SUMÁRIO:
I. O artigo 11º do CISV, na redação dada pela Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro, viola o artigo 110º do TFUE, na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados membros a uma tributação superior à aplicável aos veículos nacionais.
II. O princípio do primado do direito comunitário determina que as disposições dos tratados que regem a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito nacionais.
III. Verificada a desconformidade do artigo 11º do CISV, na redação dada pela Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro, com o artigo 110º do TFUE, impõe-se que o tribunal não aplique a referida norma do CISV, suspendendo a sua força vinculativa no caso concreto.
Decisão Arbitral
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RELATÓRIO:
A..., titular do número de identificação fiscal..., doravante simplesmente designado Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a anulação parcial das liquidações do Imposto sobre Veículos (ISV) nºs 2019/... e 2020/..., no valor, respetivamente, de €1.438,28 e € 2.936,79, correspondente ao imposto liquidado em excesso, e a consequente condenação da AT a restituir o imposto indevidamente pago, acrescido dos juros indemnizatórios desde a data do pagamento do imposto até à sua efetiva restituição.
Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:
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O Requerente adquiriu na Alemanha e introduziu em Portugal o veículo automóvel ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., com a matrícula portuguesa ...; e
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Adquiriu em França e introduziu em Portugal, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., com a matrícula portuguesa ...;
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O veículo com a matrícula ... foi matriculado pela primeira vez, no país de origem, em 03/12/2014;
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O veículo com a matrícula ... foi matriculado pela primeira vez, no país de origem, em 04/08/2015;
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O Requerente apresentou as declarações aduaneiras dos referidos veículos, tendo a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) liquidado o correspondente ISV, liquidação da qual resultaram os seguintes valores a pagar pelo Requerente:
- veículo da marca ...: imposto no valor total de € 1.438,28, correspondendo € 2.293,60 à componente cilindrada (à qual foi deduzido o valor de € 986,25, correspondente ao número de anos de uso do veículo) e € 130,93 à componente ambiental;
- veículo da marca ...: imposto no valor total de € 2.936,79, correspondendo € 2.501,04 à componente cilindrada (à qual foi deduzido o valor de € 1.300,54, correspondente ao número de anos de uso do veículo) e € 1.736,29 à componente ambiental;
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O Requerente pagou a totalidade do imposto liquidado;
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O valor de ISV correspondente à componente ambiental de cada um dos veículos introduzidos em Portugal não foi objeto da aplicação de qualquer percentagem de redução;
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Razão pela qual o Requerente, em 20/02/2021, apresentou pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de ISV;
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O qual veio a ser indeferido, por decisão notificada ao Requerente em 06/05/2021;
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A norma que esteve na base das liquidações impugnadas – artigo 11º do CISV –, na redação em vigor à data das respetivas liquidações, não prevê a aplicação ao ISV de qualquer percentagem de redução relativa à componente ambiental;
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O que viola o artigo 110º do TFUE, por discriminar fiscalmente os veículos usados nacionais relativamente aos veículos usados admitidos de outros Estados Membros;
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No caso de subsistirem dúvidas sobre a aplicação do disposto no artigo 110º do TFUE e sobre a desconformidade do direito nacional com este normativo, deverá a questão ser suscitada junto do TJUE, através do reenvio prejudicial.
O Requerente juntou 6 documentos e não arrolou testemunhas.
No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº1 do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.
O tribunal arbitral foi constituído em 10 de setembro de 2021.
Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida não apresentou resposta nem arrolou testemunhas, mas juntou o processo administrativo.
Atenta a posição assumida pelas partes e não existindo necessidade de produção adicional de prova, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, bem como a apresentação de alegações.
Pese embora a dispensa de apresentação de alegações, veio a Requerida alegar por escrito, pugnando pela improcedência do pedido arbitral.
Mais alegou a Requerida que, constituindo a instância arbitral um contencioso de mera anulação, não compete ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a restituição de valores por conta da anulação total ou parcial de atos de liquidação do ISV.
Devidamente notificado para o efeito, o Requerente não apresentou alegações.
SANEAMENTO:
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.
Não existem nulidades que invalidem o processado.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legitimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.
Não existem exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.
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QUESTÕES A DECIDIR:
Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre:
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determinar se o artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data dos factos (redação dada pela Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro) está ou não em conformidade com o direito comunitário, designadamente com o disposto no artigo 110º do TFUE;
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determinar se deverá este tribunal submeter a questão ao TJUE, através do reenvio prejudicial.
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MATÉRIA DE FACTO:
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Factos provados
Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:
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O Requerente adquiriu na Alemanha e introduziu em Portugal o veículo automóvel ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., com a matrícula portuguesa..., matriculado, no país de origem, em 03/12/2014; bem como,
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Adquiriu em França e introduziu em Portugal, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, usado, da marca..., com a matrícula portuguesa ..., matriculado, no país de origem, em 04/08/2015;
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O Requerente apresentou as declarações aduaneiras dos referidos veículos, tendo a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) liquidado o correspondente ISV, liquidação da qual resultaram os seguintes valores a pagar pelo Requerente:
- veículo da marca ...: imposto no valor total de € 1.438,28, correspondendo € 2.293,60 à componente cilindrada (à qual foi deduzido o valor de € 986,25, correspondente ao número de anos de uso do veículo) e € 130,93 à componente ambiental;
- veículo da marca ...: imposto no valor total de € 2.936,79, correspondendo € 2.501,04 à componente cilindrada (à qual foi deduzido o valor de € 1.300,54, correspondente ao número de anos de uso do veículo) e € 1.736,29 à componente ambiental;
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O Requerente pagou a totalidade do imposto liquidado;
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O Requerente apresentou em 20/02/2021 pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de ISV;
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O qual veio a ser indeferido, por decisão notificada ao Requerente em 06/05/2021;
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O pedido de constituição do tribunal arbitral em matéria tributária e de pronúncia arbitral foi apresentado em 07/07/2021.
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Factos não provados
Com interesse para os autos, nenhum outro facto se provou.
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Fundamentação da matéria de facto
A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base os elementos constantes dos autos, a prova documental junta pelas partes e cuja adesão à realidade não foi questionada, bem como a matéria alegada e não impugnada.
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DO DIREITO:
A reforma da tributação automóvel em Portugal teve início com a publicação da Lei nº 22-A/2007, de 29 de junho, que aboliu o Imposto Automóvel, o Imposto Municipal Sobre Veículos, o Imposto de Circulação e o Imposto de Camionagem, criando, em sua substituição o Imposto sobre Veículos (ISV) e o Imposto Único de Circulação (IUC).
Da análise da exposição de motivos subjacente à aprovação desta Lei verifica-se que o que se pretendeu foi empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” a qual resulta da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.
Continuando, explica a referida exposição de motivos que “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.”
O que levou, inclusive, à consagração do princípio da equivalência, inscrito no artigo 1º do CISV, “deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate”.
O nº 1 do artigo 11º do CISV dispunha, à data da sua aprovação, o seguinte:
“O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória feita em função da desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional, ponderados factores como a respectiva marca, modelo, modo de propulsão, quilometragem, estado mecânico e de conservação, atentos os valores médios que resultam das publicações de referência no sector, apresentadas pelo interessado e reduzindo-se o imposto de acordo com a tabela seguinte”, a qual previa uma redução do imposto de acordo com o número de anos do veículo.
Tal redução, que apenas tinha em consideração a componente cilindrada dos veículos e não a sua componente ambiental, era crescente, iniciando-se após o primeiro ano de uso do veículo e progredindo até ao final do quinto ano de uso, após o que a redução se mantinha estável.
Reconhecendo a desconformidade de tal norma com o artigo 110º do TFUE, (que dispõe, no seu primeiro parágrafo, que “nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares”), designadamente pelo facto de não ter em consideração, na depreciação dos veículos importados, a componente ambiental, a Comissão Europeia instaurou contra a República Portuguesa o processo por infração nº 2009/2296.
Em consequência, o legislador português procedeu, com a publicação da Lei nº 55-A/2010, de 31 de dezembro (LOE 2011), à alteração da referida norma, passando, então, o artigo 11º do CISV a prever percentagens de redução em função do número de anos de uso dos veículos, tendo em conta não só a componente cilindrada, mas também a componente ambiental.
Com efeito, foi a seguinte a redação dada pela LOE 2011 ao artigo 11º do CISV:
“O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória, com base na aplicação das percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização social média dos veículos no mercado nacional, calculada com referência à desvalorização comercial média corrigida do respectivo custo de impacte ambiental.”
Tal redação veio a ser novamente objeto de alteração, com a publicação da LOE 2017 (Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro), passando então o artigo 11º do CISV a ter a seguinte redação:
“O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional”.
De onde resulta que o legislador português retrocedeu no que diz respeito às percentagens de redução aplicáveis à componente ambiental, passando as percentagens de redução a aplicar-se apenas quanto à componente cilindrada.
Tal alteração, no que respeita à componente ambiental, não encontra qualquer justificação ou fundamentação legal ou sequer factual, tudo apontando para que a mesma não tenha sido intencional.
E tanto assim é que posteriormente foi novamente alterada a lei e introduzida a redução quanto a esta componente, o que sucedeu com a publicação da LOE 2021 (Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro).
Posto isto,
À data dos factos em causa nos autos encontrava-se em vigor a redação do artigo 11º do CISV introduzida pela LOE 2017, que, como vimos, não previa a aplicação de qualquer redução quanto à componente ambiental.
O que contraria ostensivamente o disposto no artigo 110º do TFUE, pois que prevê uma tributação mais gravosa para os veículos provenientes de outros Estados membros, quando comparados com os veículos nacionais.
O artigo 8º nº 4 da CRP estabelece o princípio do primado do direito comunitário, ao dispor que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”
Sobre este princípio tem-se pronunciado diversa jurisprudência, não subsistindo dúvidas acerca da supremacia do direito comunitário sobre o direito nacional e sobre a aplicação direta na ordem interna das disposições dos tratados que regem a União Europeia e das normas emanadas das suas instituições.
Sobre a questão da interpretação do artigo 110º do TFUE e da sua compatibilização com as normas jurídicas internas, têm igualmente sido abundantes as decisões proferidas pelo TJUE, no sentido de concluir pela violação de tal artigo sempre que as legislações nacionais prevejam tributações para os produtos provenientes de outros Estados membros superiores às que incidem sobre produtos nacionais similares.
Concretamente no que diz respeito às sucessivas redações do artigo 11º do CISV têm sido várias as pronúncias do TJUE e da Comissão.
Assim, a Comissão começou por instaurar contra a República Portuguesa o processo de infração nº 2009/2296, que culminou, como exposto, com a alteração à citada norma, através da LOE 2011.
Posteriormente, na sequência da ação por incumprimento instaurada pela Comissão contra a República Portuguesa (processo nº C-200/15), veio o TJUE, em 16JUN2016 a concluir que o artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data, violava o artigo 110º do TFUE.
Por último, o mesmo TJUE, em Acórdão proferido em 02SET2021, no âmbito do processo C‑169/20 decidiu que “ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.”
O sentido uniforme de todas as pronúncias e decisões das instâncias europeias terá, ademais, motivado o legislador português a alterar novamente a redação do citado artigo 11º do CISV de modo a conformá-lo com o artigo 110º do TFUE, o que aconteceu, como referido, com a publicação da LOE 2021 (Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro), passando então esta norma a ter o seguinte teor:
“O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7.º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos”.
Aliás, não pode deixar de se referir que no seio da própria AT têm vindo a ser proferidas diversas decisões de revogação de liquidações de ISV, justamente por considerar que o artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data dos factos, viola o disposto no artigo 110º do TFUE.
De tudo quanto ficou exposto resulta de forma clara a inexistência de quaisquer dúvidas sobre a aplicação do artigo 110º do TFUE, bem como sobre a desconformidade do direito nacional (insiste-se, na redação em vigor à data dos factos) com o referido artigo comunitário.
Pelo que, em cumprimento do princípio do primado do direito comunitário, não pode este tribunal deixar de concluir pela desconformidade do artigo 11º do CISV com o artigo 110º do TFUE, e, em consequência, pela não aplicação da referida norma do CISV, suspendendo a sua força vinculativa no caso concreto.
O que não viola qualquer princípio constitucional já que o direito comunitário, como exposto, se sobrepõe a toda e qualquer legislação interna que com ele seja incompatível, incluindo a CRP.
Assim, os atos de liquidação em causa, ao desconsiderarem a componente ambiental do ISV, são ilegais, devendo por via disso ser parcialmente anulados, como peticionado pelo Requerente.
Em face do exposto, fica prejudicada a apreciação da segunda questão elencada.
Com efeito,
Dispõe o artigo 267º, do TFUE:
“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a)Sobre a interpretação dos Tratados;
b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou
organismos da União.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.
Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.”
Significa isto que, sempre que se coloca uma questão de interpretação e aplicação do direito da União Europeia, devem os tribunais nacionais suscitar essa questão perante o TJUE, através do reenvio prejudicial, apenas sendo dispensado tal reenvio “quando a interpretação do Direito da União Europeia resulta já do chamado acquis jurisprudencial”.[1]
No caso dos autos e conforme resulta de tudo quanto se expôs, está em causa uma questão sobre a qual não se suscitam dúvidas de interpretação de normas do direito da União Europeia, em concreto do artigo 110º do TFUE.
A questão da conformidade da norma do artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data dos factos, tem vindo, como já se deixou exposto, a ser largamente apreciada pelas instâncias, designadamente europeias, encontrando-se sedimentado o entendimento segundo o qual existe violação do artigo 110º do TFUE sempre que “a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado”.[2]
De onde resulta que, ainda que a apreciação desta questão não tivesse ficado prejudicada pela decisão dada à primeira questão, não se imporia a este tribunal submeter a questão a decidir à apreciação do TJUE.
Peticiona ainda o Requerente a condenação da Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios.
Quanto aos juros indemnizatórios, prescreve o artigo 43º da LGT:
“1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;
b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”
No caso dos autos, pese embora não se possa concluir pela existência de um erro imputável aos serviços, que em rigor apenas se limitaram a aplicar a lei em vigor à data dos factos, a verdade é que o Requerente, em face da decisão dos presentes autos e da consequente anulação parcial das liquidações impugnadas, se viu forçado a pagar um tributo em montante superior ao devido.
Assim, são devidos juros indemnizatórios, a pagar pela Requerida ao Requerente, calculados sobre o imposto liquidado em montante superior ao devido, juros esses calculados às taxas legais desde a data do pagamento indevido até à data da emissão da correspondente nota de crédito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 61º nº 5 do CPPT.
Por último, cumpre ainda referir, quanto à questão suscitada pela Requerida nas alegações apresentadas relativamente à falta de competência do tribunal arbitral para se pronunciar sobre a restituição de valores por conta da anulação dos atos de liquidação de ISV, não lhe assistir razão.
Com efeito, é evidente que o tribunal, na decisão a proferir, deve extrair, sob pena de a decisão proferida carecer de qualquer efeito útil, todas as consequências da decisão tomada quanto ao pedido de anulação das liquidações, condenando a AT a proceder à devolução do imposto pago em excesso sempre que conclua pela anulação da liquidação.
Ademais, conforme é sabido, ao processo arbitral aplicam-se subsidiariamente as normas do processo civil, pelo que a questão suscitada pela Requerida sempre deveria ter sido suscitada no prazo de apresentação da resposta e não em sede de alegações.
Procede, assim, o pedido formulado relativamente à anulação parcial das liquidações de ISV impugnadas, devendo a Requerida reembolsar o Requerente do valor pago em excesso e pagar os correspondentes juros indemnizatórios, calculados sobre o valor pago em excesso, às taxas legais, desde a data do pagamento indevido até à data da emissão da correspondente nota de crédito.
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DISPOSITIVO:
Em face do exposto, decide-se julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:
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anular parcialmente as liquidações de ISV impugnadas, no montante relativo à componente ambiental do ISV pago, sem a redução correspondente ao número de anos de uso dos veículos introduzidos em Portugal;
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condenar a AT a reembolsar ao Requerente o valor do imposto pago em excesso;
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condenar a AT no pagamento ao Requerente de juros indemnizatórios, calculados sobre o valor do imposto pago em excesso, às taxas legais, desde a data do pagamento indevido até à data da emissão da correspondente nota de crédito.
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Fixa-se o valor do processo em € 959,17, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
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Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I da Tabela Anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 1 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerida, por ser a parte vencida.
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Notifique-se o representante do Ministério Público junto do tribunal competente para o julgamento da impugnação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º nº 3 do RJAT.
Lisboa, 10 de março de 2022.
O Árbitro,
Alberto Amorim Pereira
[2] Neste sentido, veja-se, entre outros, acórdão do TJUE de 22FEV2001, processo C-393/98, citado no acórdão do TJUE de 16JUN2016, processo C-200/15.