Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 357/2021-T
Data da decisão: 2022-03-16  ISV  
Valor do pedido: € 24.277,24
Tema: ISV - Veículo automóvel usado originário de outro EM da UE – componente ambiental do imposto.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

I. Relatório

A... UNIPESSOAL LDA. NIF..., com sede na Rua...–..., doravante designada como “Demandante”, apresentou em 19-06-2021, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), pedido de pronúncia arbitral, com vista a:

  • A declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) nº 2019/..., com data de 06-05-2019, constante da Declaração Aduaneira de Veículos n.º 2019/... de 10/05/2019, emitida pela Alfândega de Braga;
  • A condenação da Autoridade tributária à restituição do imposto respetivo pago;
  • A condenação da Autoridade tributária ao pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante do imposto pago.

É demandada a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Demandada”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 21-06-2021.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 09-09-2021, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 28-09-2021.

O Demandante baseia a sua pretensão nos seguintes factos e argumentos:

  • A liquidação de ISV impugnada resultou da aplicação do art. 11º do Código do Imposto sobre Veículos, o qual manda calcular a taxa de imposto, a aplicar aos veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias, aplicando uma redução percentual, variável em função da idade do veículo usado, à “componente cilindrada” da taxa normal (determinada nos termos do art. 7º do CISV), mas não aplicando a mesma ou qualquer redução à “componente ambiental” da mesma taxa;
  • Esta disposição do direito nacional é contrária ao art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, na medida em que tem como resultado onerar um automóvel usado oriundo de outro Estado-membro da União com um imposto superior ao que onera um automóvel igualmente usado e com a mesma idade que tenha, enquanto novo, pago ISV em Portugal.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, não apresentou resposta.

Por despacho do Tribunal Arbitral de 17-11-2020, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT por desnecessária, ao abrigo dos princípios da celeridade, da simplificação e da informalidade processuais e da proibição de prática de atos inúteis no processo (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), e atendendo a não existir matéria de facto controvertida que carecesse de prova adicional para além da prova documental incorporada nos autos e a não existir também matéria de exceção sobre a qual as Partes carecessem de se pronunciar, nem qualquer questão a suscitar a necessidade de definição de trâmites processuais específicos.

Pelo mesmo despacho, foram as Partes convidadas a apresentar alegações finais escritas, em prazos sucessivos de quinze dias.

 

 

Nas suas alegações, a AT alega o seguinte, em síntese:

  • Conforme decorre do RJAT, a instância arbitral constitui um contencioso de mera anulação, competindo ao tribunal arbitral a apreciação da legalidade de atos de liquidação de tributos (artigo 2.º, n.º 1), mas não lhe competindo pronunciar-se sobre a restituição de impostos, por conta da anulação, total ou parcial, de atos de liquidação de ISV;
  • Incumbindo às alfândegas efetuar a liquidação do imposto, compete-lhes igualmente realizar as diligências necessárias ao cumprimento da decisão arbitral, determinando, em concreto, os montantes que, em caso de procedência da ação, venham a ser reembolsados ao sujeito passivo;
  • No que concerne ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, ainda que venha a considerar-se que o pedido arbitral deva proceder e que o ato de liquidação venha a ser parcialmente anulado, não poderá, todavia, proceder o pedido de pagamento de juros compensatórios, pois há que considerar o facto de o pedido arbitral ter sido efetuado na sequência do indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa que o Requerente apresentou junto da Alfândega de liquidação;
  • Nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido;
  • Dispondo o mesmo artigo na alínea c) do n.º 3 que são igualmente devidos juros indemnizatórios “Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária;
  • Deste modo, e seguindo jurisprudência assente do Supremo Tribunal Administrativo, mormente a vertida nos Acórdãos de 11/12/2019, no Processo n.º 058/19.9BALSB, e de 20/05/2020, no Processo 05/19.8BALSB, entende-se que os juros indemnizatórios só seriam devidos depois de decorrido um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa, e não desde a data do pagamento do imposto [cfr. artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), da LGT].

A Demandante não apresentou alegações.

 

II. Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é materialmente competente.

As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Não existem exceções a apreciar.

O processo não enferma de nulidades.

 

III. Questões a apreciar

A questão principal a apreciar no presente processo é a de saber se o art. 11º do CISV, ao prever, na determinação do imposto aplicável a automóveis usados originários de outros Estados-Membros da União, uma redução da taxa normal em função da idade, que é limitada à “componente cilindrada, excluindo dessa redução de taxa a componente ambiental”, viola o art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

IV. Fundamentação

  1. Matéria de facto

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. A Demandante, no âmbito da sua atividade comercial, introduziu em Portugal, em 04-05-2019, um veículo automóvel de passageiros, usado de marca ..., modelo ..., movido a gasolina, com origem na Alemanha, a que foi atribuída a matrícula..., em 09-05-2019;
  2. O referido veículo tinha sido matriculado pela primeira vez no seu país de origem em 2013/04/18;
  3. O preço de aquisição pago no país de origem foi de 174.000,00 euros;
  4. Para a introdução do veículo no território português, foi emitida a Declaração Aduaneira de Veículo nº 2020/..., pela Alfândega de Braga, em 10-05-2019;
  5. Da liquidação de ISV, efetuada em 06-05-2019, constante da DAV supramencionada, resultou Imposto sobre Veículos a pagar no valor de 50.896,35 euros
  6. Na determinação do imposto a pagar foi aplicada uma redução de 60% à “componente cilindrada” da taxa de imposto, em correspondência com a idade do veículo (mais de 6 a 7 anos);
  7. Desta forma, a componente cilindrada da taxa de imposto, que era, antes da redução, de 26.085,72 euros, teve uma redução no montante de 15.651,43 euros, passando para 10.434,29 euros;
  8. Na determinação do imposto a pagar não foi aplicada qualquer redução à “componente ambiental” da taxa de imposto, em correspondência com a idade do veículo;
  9. Em consequência, a componente ambiental da taxa do imposto foi fixada em 40.462,06 euros;
  10. Em 03-02-2021, a Demandante deduziu pedido de revisão oficiosa contra a liquidação impugnada, pedindo a sua anulação parcial, com base na incompatibilidade do art.º 11º do CISV com o art.º 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia;
  11. Em 08-04-2021 foi emitida notificação para audiência prévia no referido procedimento de pedido de revisão oficiosa;
  12. A Demandante apresentou pronúncia em sede de audiência prévia;
  13. Em 21-04-2021 foi emitida notificação com a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa da liquidação;
  14. A Demandante pagou o imposto liquidado na sua totalidade, conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículos.

Não existem factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pela Demandante e no processo administrativo junto pela AT.

 

  1. Discussão de direito
    1. Incompatibilidade entre o artigo 11º do CISV e o artigo 110º do TFUE

O artigo 110.° TFUE proíbe aos Estados-Membros que façam incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros imposições internas superiores às que incidam sobre os produtos nacionais similares, ou imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções (acórdãos De Danske Bilimportører (C‑383/01, EU:C:2003:352, n.° 36) e Brzeziński (C‑313/05, EU:C:2007:33, n.° 27).

O artigo 110.° TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação das mercadorias entre os Estados‑Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas discriminatórias relativamente a produtos originários de outros Estados‑Membros (acórdãos Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C‑221/06, EU:C:2007:657, n.° 30 e jurisprudência referida) e Tatu (C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 34). Assim, este preceito legal deve garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos nacionais e produtos importados (acórdãos De Danske Bilimportører (C‑383/01, EU:C:2003:352, n.° 37) e Tatu (C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 35).

Segundo jurisprudência constante, um sistema de tributação de um Estado‑Membro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.° TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios (acórdãos Brzeziński (C‑313/05, EU:C:2007:33, n.° 40); Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C‑221/06, EU:C:2007:657, n.° 50) e Oil Trading Poland (C‑349/13, EU:C:2015:84, n.° 46 e jurisprudência referida).

De acordo com o art. 5º do Código, o Imposto sobre Veículos é um imposto que se aplica sobre o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal. Ou seja, trata-se de um imposto que se aplica quer sobre veículos fabricados/montados em Portugal, quer sobre veículos originários de outros países, seja por importação (de países terceiros) seja por “admissão em território nacional” (de países membros da EU).

Importante também é ter em conta que se trata de um imposto de obrigação única, que se aplica uma única vez, no momento da introdução no consumo no território nacional.

As taxas do imposto, no caso de automóveis em geral, são determinadas, nos termos do art. 7º,  pela soma de duas parcelas: um montante de imposto calculado em função da cilindrada (“componente cilindrada”) e um montante de imposto calculado em função do nível de emissão de dióxido de carbono (“componente ambiental”).

O art. 11.º do CISV aplica-se especificamente à admissão de veículos usados (portadores de matrículas definitivas) provenientes de outros Estados-Membros da EU.

De acordo com este preceito, a taxa de imposto a aplicar a estes veículos também é dada pela soma de duas parcelas, a “componente cilindrada” e a “componente ambiental”.

Quanto à “componente cilindrada”, ela corresponde à taxa que o art. 7º manda aplicar à introdução no consumo de um veículo novo, mas minorada por um coeficiente que varia com a idade do veículo. Esta minoração procura fazer corresponder uma redução do montante do imposto à redução do valor comercial que o veículo regista em função da idade.

Mas já quanto à “componente ambiental”, a taxa de imposto é igual à de um veículo novo introduzido no consumo em Portugal.

Por outro lado, no caso de um veículo que foi sujeito a ISV em estado novo, o montante do ISV (“componente cilindrada” mais “componente ambiental”) pago uma única vez no momento da introdução no consumo, vai sendo amortizado ao longo da vida útil do veículo. Neste processo, as duas componentes – “cilindrada” e “ambiental” – são amortizadas exatamente na mesma proporção.

Quando o veículo (que foi sujeito a ISV em estado novo) é vendido em estado usado, o seu valor de venda irá refletir não apenas a desvalorização/perda de utilidade do veículo, mas também a amortização do ISV pago aquando da introdução no consumo. As amortizações das duas componentes da taxa concorrerão proporcionalmente para reduzir o valor comercial do veículo.

No caso de um automóvel admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro, por força das regras do art. 11º, a “componente ambiental” do imposto é igual à que incidiria sobre um veículo novo.

Desta forma, o montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro é superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo.

Não há qualquer dúvida de que o art. 11º tem como efeito fazer incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares. E assim, há que concluir que existe uma antinomia entre o art. 11º do CISV e ao art. 110º do TFUE.

Conclui-se assim que o art. 11º do CISV viola efetivamente o art. 110º do TFUE, na medida em que  faz incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares.

Esta conclusão foi confirmada pelo recente acórdão do TJUE de 02-09-21 no processo C‑169/20, em que o Tribunal apreciou exatamente a questão que aqui nos ocupa, tendo decidido nos seguintes termos:

“No caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, na sequência do Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453), a República Portuguesa reformou o seu regime de tributação dos veículos objeto de uma primeira colocação em circulação em Portugal. Segundo o regime resultante da referida reforma, o imposto em causa, cobrado nessa ocasião, inclui duas componentes, uma calculada em função da cilindrada do veículo em questão e a outra, denominada «componente ambiental», em função do nível de emissão de dióxido de carbono desse veículo.

Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, não está prevista nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que reflita a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.

Daqui resulta que a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado‑Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.

A este respeito, não contestando que o Código do Imposto sobre Veículos não prevê nenhuma redução da componente ambiental do imposto em causa relativamente aos veículos usados importados no seu território, a República Portuguesa considera, antes de mais, que esta circunstância se justifica por um objetivo de proteção do ambiente. Com efeito, o pagamento integral da componente ambiental não tem por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas subordinar essa entrada a um critério seletivo aplicando exclusivamente critérios ambientais.

Ora, importa recordar que, embora os Estados‑Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados‑Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C‑213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).”

Concluindo o Tribunal:

“Nestas condições, há que declarar que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no Código do Imposto sobre Veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.”

 

  1. Inexistência de obrigação de reenvio prejudicial

O art. 267º do TFUE dispõe que o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: (al. a) “sobre a interpretação dos Tratados”.

O terceiro parágrafo desta disposição diz por sua vez que “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”

Não nos parece haver dúvidas de que, com esta norma, o Tratado procurou precisamente acautelar que um tribunal nacional não tenha a última palavra quanto a uma questão de “interpretação dos Tratados”, a fim de assegurar a uniformidade na interpretação do direito primário da União.

Contudo, para que esta obrigatoriedade exista, é necessário – e aqui acompanhamos, mais uma vez, a jurisprudência arbitral citada antes – que exista “uma questão de interpretação dos Tratados”, nos termos do art. 267º TFUE.

Na sua doutrina sobre a obrigação dos tribunais nacionais lhe submeterem questões prejudiciais, o Tribunal de Justiça já deixou claro que, a fim de determinar em que condições um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal, é necessário interpretar a expressão “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada” para efeitos do Direito da União (acórdão CILFIT, C-283/81, ECLI:EU:C:1982:335, nº 8).

No acórdão CILFIT (já citado, nº 21) o Tribunal de Justiça concretizou as condições em que um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter uma questão ao Tribunal.

Nessa sentença, o Tribunal afirma que “um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça, a menos que dê como provado que a questão suscitada não é pertinente, ou que a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, ou que a correta aplicação do “Direito comunitário” se impõe com tal evidência que não deixa lugar a dúvida razoável alguma; a existência de tal circunstância deve ser apreciada em função das características próprias do “Direito comunitário”, das dificuldades particulares que apresenta a sua interpretação e do risco de divergência no interior da “Comunidade”.

Ora, como já referido, o Tribunal de Justiça pronunciou-se recentemente, no seu acórdão de 02-09-21 no processo C‑169/20, já citado, sobre a exata questão da compatibilidade do art.º 11.º do CISV com o art.º 110.º do TFUE, tendo-se pronunciado no sentido de que a norma de direito português viola essa disposição do Tratado.

Não existe, por conseguinte, qualquer dúvida interpretativa que possa justificar o reenvio prejudicial nos presentes autos.

  1. Questão do pedido de devolução do imposto pago

Tendo o Demandante pago a totalidade do imposto liquidado no ato aqui impugnado, pede ao Tribunal que condene a Demandada, em caso de procedência do seu pedido, à devolução do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios.

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea” ”( CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).

O n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).

Na sequência da anulação do ato impugnado, a Impugnante terá direito a ser reembolsada do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.

  1. Questão do pedido de pagamento de juros indemnizatórios

Quanto ao direito a juros indemnizatórios correspondentes à prestação tributária indevidamente efetuada, determina o art.º 43.º da LGT, no seu n.º 1, que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

A expressão "erro imputável aos serviços" deve reconduzir-se a qualquer "ilegalidade" fundante da anulação, total ou parcial, do ato tributário. Neste sentido aponta o estipulado no já citado artº. 100º, n.º 1, da LGT, em conjugação com o artº 43.º, nº.1 da mesma lei, em que se consagra, na lei ordinária, a teoria da reconstituição da situação atual hipotética, em virtude da anulação, total ou parcial, de um ato tributário (vd. TCA-S, CT, 22-05-2019, proc. n.º 1770/12.9BELRS).

Por sua vez, o n.º 5 do art.º 24.º do RJAT, ao estipular que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral (Decisão arbitral CAAD n.º 678/2018-T, 27-05-2019).

Contudo, alega a AT, em oposição à pretensão da Impugnante de pagamento de juros indemnizatórios, que, nos termos do art.º 43.º, n.º 3, al. c) LGT, no caso de a anulação do ato ser consequente de um pedido de revisão do ato tributário, apenas são devidos juros indemnizatórios quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, hipótese que, segundo a AT, não se verifica.

Os tribunais administrativos superiores têm-se pronunciado abundantemente sobre esta questão.

Numa interpretação literal, parece suficientemente claro que, de acordo com essa norma, em caso de pedido de revisão oficiosa, só são devidos juros indemnizatórios quando a revisão – ie. quando uma decisão do pedido de revisão, em que se proceda à revisão do ato – tenha lugar mais de um ano após a data do pedido. Situação que será, aliás, de verificação muito improvável, pois é difícil que a administração tributária leve mais de um ano a decidir um procedimento de revisão por iniciativa do contribuinte, e ainda mais improvável que emita uma decisão após esse tempo, sem que, antes, o contribuinte impugne a decisão de indeferimento tácito.

Embora, no nosso entendimento, esta norma vise apenas situações em que a administração tributária reveja o ato tributário, ie. em que a administração reforme ou revogue o ato tributário – pois nos parece que a expressão “revisão do ato” não abrange uma decisão de improcedência do pedido – e não uma situação em que a administração tributária se limite a indeferir o pedido de revisão  dentro ou após o prazo de um ano, os tribunais superiores têm estendido a norma a estas últimas situações.

Sobre a questão pronunciou-se o acórdão da 2ª secção do STA de 02-11-2006, no processo n.º 0604/06, em que foi relator o Conselheiro Baeta de Queiroz, nos seguintes termos:

“Como se sabe, os contribuintes dispõem de mais do que uma via para obter a anulação dos actos tributários de liquidação: a reclamação graciosa, a revisão oficiosa (que o Código de Processo das Contribuições e Impostos designava por reclamação extraordinária), e a impugnação judicial.

A primeira e a última só são actuáveis pelo contribuinte. Já a revisão oficiosa é um procedimento que a Administração pode despoletar em seu benefício, mas de que também o contribuinte é admitido a provocar. A LGT refere-se, na alínea c) do nº 1 do seu artigo 54º, à «revisão, oficiosa ou por iniciativa dos interessados, dos actos tributários».

Na versão do CPCI, a reclamação extraordinária só era possível em casos muito limitados. O CPT alargou a possibilidade de recurso a esta via, que hoje é susceptível de uso, por iniciativa do sujeito passivo, «com fundamento em qualquer ilegalidade», de acordo com o nº 1 do artigo 78º da LGT.

Quando o pedido de revisão oficiosa for efectuado pelo sujeito passivo, deve sê-lo, com fundamento em qualquer ilegalidade, «no prazo de reclamação administrativa», conforme o referido nº 1. É discutido qual seja este prazo, uma vez que a expressão «reclamação administrativa» pode ser entendida propriamente, ou seja, como tratando-se da regulada pelo Código de Procedimento Administrativo, ou como reportando-se à reclamação graciosa de que se ocupa o CPPT.

Mas é seguro que a Administração pode, «no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços», rever oficiosamente o acto – segmento final do nº 1 do artigo 78º da LGT.

E vem-se entendendo que, caso tenha ocorrido erro imputável aos serviços e a Administração não se disponha a repará-lo espontaneamente, revendo o acto, é possível ao contribuinte solicitar essa revisão, podendo impugnar judicialmente a decisão que indefira o seu pedido.

O prazo para a iniciativa do contribuinte é, neste caso, o mesmo de que dispõe a Administração, ou seja, quatro anos, quando os factos tributários sejam posteriores a 1 de Janeiro de 1998 (cfr. o artigo 5º nº 6 do Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro).

(...)

3.4. Cuidemos, agora, da disposição do artigo 43º da LGT. Segundo ela, quando o contribuinte reagir contra o ato de liquidação no prazo – em regra, de noventa dias – de que dispõe para reclamar ou impugnar, o êxito dessa sua reação implica que sem mais lhe sejam pagos juros indemnizatórios. Esses juros contam-se desde o pagamento que fez e agora se vê ter sido indevido. É o que estabelece o nº 1 («são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido»), conjugado com o artigo 61º do CPPT.

Os juros indemnizatórios não são devidos exclusivamente nos casos tratados pelo nº 1 do artigo 43º da LGT.

O nº 3 do mesmo artigo dispõe que eles também são devidos em outras circunstâncias.

Mas o tema dos juros indemnizatórios é tratado diferentemente quando aquele prazo decorra sem reacção do contribuinte, isto é, quando a anulação da liquidação não resulte de reclamação nem de impugnação.

Neste caso, se tal reacção nunca vier a ocorrer, e for a Administração a anular o acto tributário, de motu proprio, não estão previstos juros indemnizatórios. A não ser que não devolva o que indevidamente arrecadou no prazo de trinta dias. É o que consta da alínea b) do nº 3 do artigo 43º da LGT.

O mesmo acontece se o contribuinte pedir a revisão oficiosa e ela for deferida antes de passado um ano. A Administração não paga juros indemnizatórios, a não ser que, por motivo seu, demore o procedimento de revisão mais do que um ano. É o conteúdo da alínea c) seguinte.

Ou seja: nos termos do artigo 43º da LGT, só são devidos juros tendentes a indemnizar o contribuinte pela cobrança indevida quando ele impugne ou reclame, o que, em regra, deve fazer em noventa dias.

Essa a única situação prevista no nº 1 do artigo. A revisão do acto feita por iniciativa do contribuinte não se confunde nem equivale à reclamação graciosa, não podendo ter-se por incluída no n.º 1 do artigo 43.º, que só fala em reclamação graciosa ou impugnação judicial.

E não há disposição da LGT que atribua juros indemnizatórios em resultado do pagamento indevido de tributos noutros casos que não de reclamação ou impugnação.

O nº 3 do artigo já não trata dos juros directamente destinados a indemnizar o contribuinte por estar desembolsado do seu dinheiro em resultado de um erro imputável aos serviços. Ocupa-se de outros casos, em que os juros se relacionam com uma realidade diversa do erro dos serviços, a saber, o incumprimento de prazos procedimentais por parte da Administração: ou porque não restituiu oficiosamente o tributo no prazo legal (alínea a)); ou porque não processou a nota de crédito no prazo de trinta dias (alínea b)); ou porque demorou mais de um ano a findar o procedimento de revisão oficiosa requerida pelo contribuinte (alínea c), que pode conjugar-se com o artigo 57º nº 1).

Por isso é que, nos casos do nº 3, nunca são devidos juros indemnizatórios, desde que sejam cumpridos pela Administração os prazos aí directa ou remissivamente previstos. Os juros pressupõem, sempre, o incumprimento desses prazos, do qual são indissociáveis (sublinhado nosso).

O que explica, ainda, que o legislador se não tenha limitado à disposição do nº 1, aonde bem podia ter incluído – mas não o fez – a revisão oficiosa. E que tenha especificado, separadamente, no nº 3, outras circunstâncias em que também são devidos juros indemnizatórios.

Deste modo, quando a Administração exceder o prazo de um ano para proceder à revisão oficiosa que o contribuinte requereu, mas vier a decidi-la favoravelmente, só paga juros indemnizatórios após esse ano” (sublinhado nosso).

Até este ponto, a doutrina do STA exposta está em tudo conforme com a interpretação literal que enunciámos anteriormente: no caso de pedido de revisão do ato tributário, só há lugar ao reconhecimento de juros indemnizatórios quando a administração tributária emita decisão – revisão que consista em revisão do ato - após o prazo de um ano passado sobre a data da apresentação do pedido; se a administração proceder à revisão do ato dentro do prazo de um ano após a apresentação do pedido, mesmo que nessa decisão revogue o ato ou o reforme in mellius, não serão devidos juros indemnizatórios.

Prossegue o acórdão, no entanto, proferindo:

“Mas, se o contribuinte se vir obrigado a recorrer ao tribunal para obter uma decisão, porque a Administração, dentro ou fora daquele prazo, não reviu o acto, este contribuinte não é tratado diferentemente daquele que obteve a mesma decisão favorável pela via administrativa depois de decorrido um ano. À semelhança do interessado cujo pedido de revisão teve desfecho favorável ditado pela Administração decorrido mais de um ano, também aquele a quem só foi dada razão no tribunal passado esse tempo são devidos os mesmos juros. É que, em qualquer dos casos, a demora de mais de um ano é imputável à Administração: ou porque tardou a decidir, ou porque decidiu em desfavor do contribuinte, vindo a mostrar-se, em juízo, que devia ter decidido ao contrário.”

A situação tratada neste último trecho do aresto é, aparentemente, a que corresponde ou, pelo menos, a que mais se aproxima do caso dos autos.

Sustenta o Tribunal nesta parte do acórdão que, quando o sujeito passivo: i) efetue um pedido de revisão do ato tributário; ii) não obtenha da administração tributária provimento da sua pretensão; e iii) venha posteriormente a lograr a anulação do ato em via contenciosa, terá direito a juros indemnizatórios, independentemente de a administração tributária ter-se pronunciado antes ou após o prazo de um ano contado da apresentação do pedido.

Vejamos com que fundamentos chega o Tribunal a esta conclusão.

Diz o Tribunal:

“3.5. Na conceção da LGT, como se vê, os juros indemnizatórios relacionados com o desapossamento da quantia pecuniária que o contribuinte desembolsou por força de uma liquidação efectuada com erro imputável aos serviços são atribuídos se ele reclamar graciosamente ou impugnar judicialmente. O contribuinte tem o ónus de reclamar ou impugnar (a ele se refere o nº 2 do artigo 78º da LGT) e, não o fazendo, perde a possibilidade de obter indemnização automaticamente traduzida na atribuição de juros indemnizatórios, embora não perca de todo a possibilidade de recuperar o que pagou.

Por isso o seu artigo 100º só obriga a Administração ao pagamento de juros indemnizatórios «em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso», omitindo referência à revisão, apesar do que está previsto no anterior artigo 43º.

O que se justifica porque, esgotado o prazo para reclamação e impugnação, há uma estabilização dos atos de liquidação, ainda que não seja absoluta, pois sempre ficam de fora a hipótese de nulidade do ato, a todo o tempo invocável, e a de revisão, com um prazo alongado, a beneficiar, quer a administração, quer o sujeito passivo.

Mas, para efeitos de imediata atribuição de juros indemnizatórios, o que importa é aquele primeiro prazo: depois dele corrido na inércia do contribuinte nunca mais são atribuídos juros desde o pagamento do tributo indevidamente liquidado.”

Verifica-se a partir do excerto citado, que o Tribunal toma como argumento decisivo para a dilação do reconhecimento de juros indemnizatórios – no acórdão em questão, o Tribunal decide pelo reconhecimento de juros a favor do sujeito passivo, mas apenas a partir de um ano após o requerimento de revisão oficiosa do ato de liquidação, e até efetivo reembolso – a inércia do sujeito passivo.

Inércia essa que reside no facto de o sujeito passivo não atuar, ie., não desencadear o meio impugnatório do ato ilegal nos prazos da reclamação graciosa ou da impugnação contenciosa. Se o fizesse, assume o Tribunal, beneficiaria do direito a juros indemnizatórios desde a data do pagamento, nos termos do n.º 1 do art.º 43.º da LGT.

A doutrina tem raízes e aparece confirmada em outros acórdãos.

Por exemplo, no acórdão do STA de 17-05-2006 (proc. nº 016/06) em que foi relator o Conselheiro Brandão de Pinho, diz-se:

“O sentido do artigo 43.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária é o que a Fazenda Pública lhe atribui, no sentido de os juros indemnizatórios apenas serem os devidos a partir de um ano após o pedido de revisão.

Isto essencialmente porque o contribuinte podia ter reclamado ou impugnado a liquidação – que são os meios contenciosos “normais” (digamos assim), de pôr em causa, graciosa ou contenciosamente, o acto tributário, tendo então direito a juros indemnizatórios nos termos do n.º 1; Se deixar passar tais prazos, socorrendo-se do mecanismo da revisão, ainda por cima oficiosa, fica naturalmente sujeito às respetivas consequências: sibi imputet, pois”(sublinhado nosso).

Daí que os juros indemnizatórios sejam devidos decorrido um ano após o pedido de revisão e não desde a data do pagamento da quantia liquidada.”

No acórdão do STA de 06-07-2005 (proc. n.º 560/07) em que foi relator o Conselheiro António Pimpão, afirma-se:

A norma em questão, art.º 43º da LGT, afirma no seu nº 1 que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

(...)
O nº 3 refere, ainda, que “são também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

...
c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
O sentido deste preceito é aquele que a FP lhe atribui quando admite que os juros indemnizatórios, a serem devidos, deverão ser contabilizados a partir de um ano após o pedido de revisão efetuado pela recorrida.

E entende-se que assim seja pois que se podia o contribuinte com fundamento em erro imputável aos serviços questionar a liquidação, nos termos do nº 1 do mencionado art.º 43º, tendo, em tal situação, caso a sua pretensão procedesse direito aos juros indemnizatórios contados nos termos do nº 3 do art.º 61º do CPPT (desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito) se deixou, eventualmente passar o pedido de impugnação e se socorreu do mecanismo da revisão imediatamente ficou sujeito às consequências deste mecanismo legal.


É que ao solicitar tal revisão é razoável que a AT disponha de certo prazo para a apreciar.”

Não vemos como possa esta construção interpretativa ser aplicada ao caso dos autos.

Desde logo, há que apontar que ela parece não ter em devida conta a possibilidade de o pedido de revisão do ato tributário poder ter lugar, nos termos da primeira parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT, dentro do prazo da reclamação “administrativa”.

Com efeito, o art.º 78.º da LGT prevê três possibilidades quanto ao impulso do procedimento de revisão do ato tributário:

A primeira possibilidade é a de a revisão do ato tributário ser pedida pelo contribuinte dentro do prazo da reclamação “administrativa” (termo que interpretamos aqui como sinónimo de reclamação graciosa e, portanto, como sendo a reclamação prevista no art.º 69.º do CPPT).

A segunda possibilidade, prevista na segunda parte do n.º 1 do art.º 78.º, é da revisão oficiosa, i.e., levada a cabo por iniciativa da Administração, sem qualquer impulso por parte do sujeito passivo, revisão esta que pode ser realizada no prazo de quatro anos previsto nesse mesmo trecho legal.

E a terceira possibilidade, aparentemente prevista no n.º 7 do art.º 78.º, mas, em qualquer caso, reconhecida e consagrada pela jurisprudência, é a da revisão oficiosa, i.e., levada a cabo por iniciativa da Administração, mas na sequência de um pedido do sujeito passivo, a ser apresentado no mesmo prazo de quatro anos previsto na segunda parte do n.º 1 do art.º 78.º.

Ora, se o sujeito passivo efetuar o pedido de revisão dentro do prazo da reclamação graciosa, como previsto na primeira parte do n.º 1 do art.º 78.º LGT, todo a ratio da doutrina exposta fica desprovida de substância.

Mas mesmo tendo o sujeito passivo, como no caso dos autos, efetuado o pedido de revisão oficiosa para além do prazo da reclamação graciosa, também não se vê com que base pode ser aplicada ao caso a al. c) do n.º 3 do art.º 43º da LGT.

Vejamos:

A previsão deste preceito contém três elementos: i) a existência de um pedido de revisão do ato tributário apresentado pelo sujeito passivo, o que no caso se verificou; ii) a efetiva revisão do ato tributário, o que no caso não ocorreu, pois a Autoridade Tributária indeferiu o pedido de revisão e, portanto, não efetuou a revisão; e iii) que a revisão tenha lugar mais de um ano após a apresentação do pedido, o que no caso também não ocorreu, pois nem sequer houve qualquer revisão.

Não se verificando estes elementos, não pode a norma aplicar-se.

Porém, já pelo contrário, não se vê no caso concreto nada que possa obstar à aplicação do n.º 1 do art.º 43.º, o qual prevê que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em (...) impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. No caso concreto, ocorre a anulação do ato tributário, por uma decisão arbitral, a qual é equiparável a uma “anulação judicial”, com base numa ilegalidade que, como já vimos antes, é considerada um “erro imputável aos serviços”. Verificam-se todos os elementos necessários para que seja aplicada esta norma.

Consideramos, assim, que é de aplicar literalmente ao caso dos autos o n.º 1 do art.º 43.º da LGT, o que determina que o Demandante tem direito a juros indemnizatórios, em consonância com o princípio constitucional consagrado no artº 22.º da Constituição Portuguesa.

E porque nada se encontra na lei em contrário e por ser essa a regra geral, de acordo com o art.º 100.º da LGT, tais juros devem computar-se desde a data do pagamento indevido da prestação tributária até à emissão da respetiva nota de liquidação.

 

V. Decisão

Nos presentes autos a Demandante pede a anulação da liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) nº 2019/..., com data de 06-05-2019, constante da Declaração Aduaneira de Veículos n.º 2019/... de 10/05/2019, emitida pela Alfândega de Braga.

Esta liquidação foi efetuada com base nos artigos 7º (veículos novos) e 11º (veículos usados) do CISV.

Em obediência ao disposto no art. 7º, a Autoridade Tributária calculou o imposto dividindo a taxa em duas componentes: “componente cilindrada” e “componente ambiental”.

A “componente cilindrada” da taxa, determinada com base na Tabela A do artigo 7º do CISV, foi calculada em 26.085,72 euros.

A “componente ambiental” da taxa, determinada igualmente com base na Tabela A do artigo 7º do CISV, foi calculada em 40.462,06 euros.

Em seguida, em aplicação da Tabela D do art. 11º, a Autoridade Tributária aplicou à “componente cilindrada” da taxa, determinada nos termos do art. 7º, uma redução de 60%, correspondente à idade do veículo.

 A Autoridade Tributária não aplicou qualquer redução à “componente ambiental” da taxa em correspondência com a idade do veículo.

Concluiu-se anteriormente que o art. 11º do CISV é incompatível com o art. 110º do TFUE, ao não aplicar, aos veículos usados admitidos no território nacional provindos de um Estado-Membro, qualquer redução à componente ambiental da taxa em função da idade do veículo, na medida em que isso dá origem a que o montante total do imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro seja superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo, o que se traduz numa “possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais”, podendo assim comportar efeitos discriminatórios.

Sendo assim, deve-se concluir que o art. 110º do TFUE obriga o Estado Português a aplicar, no cálculo da “componente ambiental” da taxa de ISV incidente sobre a admissão em território português de um veículo usado provindo de outro Estado-Membro, uma redução percentual igual à aplicável à “componente cilindrada” da mesma taxa.

A redução a aplicar à componente ambiental da taxa seria de:

60% * 40.462,06 euros = 24.277,24 euros

A aplicação desta redução, em conformidade com o art. 110º do TFUE, determinaria um montante total de imposto a pagar de 26.619,11 euros, em vez do montante efetivamente liquidado de  50.896,35 euros, o que se traduz num montante de imposto indevidamente pago de 24.277,24 euros.

Assim, nos termos anteriormente expostos, decide-se:

  1. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, e consequentemente anular o ato de liquidação impugnado, concretamente a liquidação nº 2019/..., com data de 06-05-2019, constante da Declaração Aduaneira de Veículos n.º 2019/... de 10/05/2019, emitida pela Alfândega de Braga, na parte resultante da não aplicação, à “componente ambiental” da taxa prevista na Tabela A do art. 7º do CISV, de uma percentagem de redução de 60%.
  2. Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada à devolução do imposto indevidamente pago, o qual corresponde a um montante de 24.277,24 euros;
  3. Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada ao pagamento dos juros indemnizatórios calculados sobre o montante do imposto indevidamente pago, desde a data do pagamento do imposto até à data da emissão da respetiva nota de liquidação.

 

VI. Valor do processo

Nos termos do art. 97.º-A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em 24.277,24 euros.

 

VII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1.530,00 euros, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Demandada Autoridade Tributária.

 

Notifique-se o Ministério Público, nos termos do artigo 252º do CPC, e do artigo 72º, nº 1, al a) e nº 3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.

Notifiquem-se as Partes.


Porto, 16 de março de 2022.

 

O Árbitro

 

 

(Nina Aguiar)