DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. No dia 8-8-2021, o sujeito passivo A…, contribuinte nº …, residente na Rua …, nº …, …, … Benedita, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade da liquidação de ISV resultante da Declaração Aduaneiras de Veículo DAV nº 2020/... de 07/10/2020 (Delegação Aduaneira da Figueira da Foz) no valor de € 27.335,99 referente ao veículo ..., matrícula ...-...-....
2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro ora signatário, disso notificando as partes.
3. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são em súmula, os seguintes:
4.1. Em 30 de setembro de 2020, o Requerente introduziu em Portugal, proveniente da Alemanha, o veículo ligeiro de passageiros usado da marca ..., modelo …, com o peso bruto de 2.200 kg, movido a gasolina, n.º de motor …, n.º de quadro …, cilindrada 3855 cc, de cor azul e outras, com 28.547 quilómetros percorridos.
4.2. E matriculado pela primeira vez no seu país de origem em 19 de Novembro de 2014.
4.3. Tendo dada entrada com o veículo em território nacional, o Requerente apresentou junto da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, através de representante indireto, a competente Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) em 6 de Outubro de 2020, à qual foi atribuído o n.º 2020/....
4.4. Daquela constando, no que às características do veículo se refere, o valor de 273 g/Km a título de emissão de gases CO2.
4.5. Notificado da liquidação n.º 2020/…, de 6 de Outubro de 2020, relativa ao montante de Imposto sobre Veículos liquidado pela Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, no total de € 27.335,99, o Requerente procedeu ao seu pagamento integral, até porque, sem este, não poderia legalizar o veículo adquirido.
4.6. Com a Delegação Distrital de Viação de Leiria do IMT, I.P, a atribuir ao veículo a matrícula ...-...-... em 7 de Outubro de 2020.
4.7. É, porém, entendimento do Requerente que o acto de liquidação referente ao imposto sobre veículos, efetuado ao abrigo das normas emanadas dos artigos 7.º e 11.º do Código do Imposto sobre Veículos (CISV), aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, na redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, em vigor à data da liquidação, enferma de vício de ilegalidade no que diz respeito ao cálculo do imposto incidente sobre a componente ambiental, por não considerar qualquer percentagem de redução face ao tempo de uso do veículo, em violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), tal como ele vem sendo interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
4.8. Em face desta ilegalidade, o Requerente deduziu, em 15 de Fevereiro de 2021, reclamação graciosa relativa ao acto de liquidação de ISV junto da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, com vista à anulação parcial do referido acto.
4.9. Tendo sito posteriormente notificado em 7 de Abril de 2021, através de ofício da Exma. Sr.ª Chefe de Delegação Aduaneira da Figueira da Foz de 5 de Abril de 2021, do projecto de decisão de indeferimento da referida reclamação.
4.10. E sobre o qual o Requerente se pronunciou em sede de audição prévia.
4.11. Pese embora a pretensão nela explanada não tenha sido atendida, conforme despacho de decisão proferido pelo Diretor da Alfândega de Aveiro em 29 de Abril de 2021, notificado ao Requerente em 10 de Maio de 2021, no qual se limitou aquele a concordar com os termos e fundamentos constantes da informação prestada pela Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, indeferindo a reclamação apresentada.
4.12. Para efeitos de cálculo do imposto sobre veículos, o artigo 7.º do CISV prevê um sistema de tributação em que as taxas a aplicar têm por base tributável a cilindrada (centímetros cúbicos) e o nível de emissão de dióxido de carbono (gramas por quilómetro).
4.13. Na situação sub judice, em resultado da apresentação da DAV referente ao veículo ligeiro de passageiros acima melhor identificado, o cálculo do imposto sobre veículos foi efetuado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, aqui Requerida, com recurso à aplicação da tabela A prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Código de Imposto sobre Veículos (CISV), aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, pelo valor total de € 34.598,62, dos quais, € 13.966,60 correspondem à componente cilindrada e € 20.632,02 à componente ambiental.
4.14. Com o veículo em causa a ser considerado, ante a data da primeira matrícula no país de origem, ou seja, 19 de novembro de 2014, como um veículo com mais de cinco anos de uso e até seis anos, para efeitos dos escalões da Tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, aplicável aos veículos usados provenientes de outros Estados-membros, a que corresponde uma percentagem de redução de 52 % do seu montante.
4.15. Pelo que, no que releva à componente cilindrada, e por força da redução resultante do número de anos de uso do veículo, foi aplicada uma dedução de € 7.262,63.
4.16. Não se operou, porém, idêntica dedução no que se refere à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental, como se impunha em face do direito da União Europeia.
4.17. Entendendo a Requerida que à componente ambiental não deve ser aplicada qualquer percentagem de dedução, por esta representar o custo de impacte ambiental, ante o propósito de orientar os consumidores para uma maior seletividade na aquisição de veículos em função do seu grau poluidor.
4.18. Ao mesmo tempo que defende não ser o modelo de tributação dos veículos usados então em vigor contrário ao espírito do artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
4.19. O Requerente insurge-se contra esta posição e a argumentação que lhe está subjacente.
4.20. Efetivamente, a redação do artigo 11.º do CISV que vigorava à data da liquidação (entretanto alterada pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2021) não considerava quaisquer percentagens de redução de imposto atinente à depreciação das viaturas nesta sede, à revelia do que dispõe o artigo 110.º do TFUE, aplicável por força do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.
4.21. Com o Estado Português a ignorar o parecer fundamentado da Comissão Europeia de 27 de Novembro de 2019 sobre a matéria, parecer esse que esteve na origem da instauração de competente acção junto do Tribunal de Justiça da União Europeia contra Portugal em 12 de Fevereiro de 2020.
4.22. Certo é que a norma vertida no artigo 11.º do CISV em vigor à data da liquidação, ao não atender, em sede de componente ambiental, à depreciação dos veículos usados admitidos de outros Estados-Membros da União Europeia, gerava efeitos discriminatórios na concorrência entre tais veículos e veículos usados idênticos adquiridos em território nacional, estando, por conseguinte, em desconformidade com os ditames comunitários.
4.23. A este propósito, cumpre invocar o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção), de 16 de junho de 2016, no Processo C-200/15, que, interpretando o artigo 110.º do TFUE, considerou que este «tem por objetivo assegurar a livre circulação de mercadorias entre os Estados-Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas que sejam discriminatórias para os produtos originários de outros Estados-Membros», acrescentando, de seguida, que «este artigo é violado sempre que a imposição que incide sobre o produto importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculadas de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam (…) a uma imposição superior do produto importado», para concluir que «um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional».
4.24. Donde, não pode o imposto calculado exceder o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados idênticos transacionados em Portugal, pela discriminação negativa que, de outra forma, acaba por gerar nos veículos usados admitidos em território nacional relativamente aos já aqui comercializados.
4.25. Esta matéria foi, aliás, objeto de análise, entre outras, na decisão arbitral de 30 de Abril de 2019, proferida no processo 572/2018-T, onde se concluiu que «o artigo 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110.º do TFUE, porquanto aquele artigo não pode, em conformidade com o que este artigo dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro EM sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais».
4.26. Destarte, considera o Requerente que a liquidação efectuada do ISV se encontra ferida de ilegalidade no que ao cálculo da componente ambiental se refere, porquanto a norma jurídica que esteve na base daquela liquidação – o artigo 11.º do CISV, na redação em vigor à data da liquidação – viola diretamente o espírito e a letra do artigo 110.º do TFUE.
4.27. A citada redação do artigo 11.º do CISV contraria, efectivamente, norma de hierarquia superior, tendo presente o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional e a aplicabilidade directa do direito da União Europeia na ordem interna.
4.28. Ante a ilegalidade assinalada e em conformidade com o disposto no artigo 110.º do TFUE, deve considerar-se aplicável a redução de ISV relativa à componente ambiental resultante do número de anos do veículo para efeitos dos escalões da Tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, à semelhança do que sucede com a componente cilindrada, com consequente reembolso da quantia paga em excesso, no valor de € 10.728.65.
4.29. Valor ao qual acrescem, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária e 61.º, n.º 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de ISV paga indevidamente desde a data do pagamento indevido do imposto até efetiva restituição.
4.30. Sem prescindir, a existirem dúvidas sobre a interpretação e a aplicação do estatuído no artigo 110.º do TFUE, deve proceder-se ao reenvio prejudicial desta questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia para efeitos da respetiva interpretação à luz do TFUE.
5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira não apresentou contestação a este pedido, apesar de regularmente notificada para o efeito.
6. Em 8/2/2022 foi proferido despacho arbitral dispensando a reunião prevista no art. 18º do RJAT, uma vez que, embora a falta de contestação não implique no contencioso a confissão dos factos, nem qualquer efeito cominatório (art. 110º, nº6, do CPPT), a sua não apresentação torna desnecessária a realização da referida reunião, bem como a produção de alegações pelas partes.
II – Factos provados
7. Com base na prova documental constante da documentação junta pelo Requerente, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
7.1. O Requerente apresentou Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) nº 2020/... de 07/10/2020 (Delegação Aduaneira da Figueira da Foz) no valor de € 27.335,99 referente ao veículo ..., a que foi atribuída a matrícula ...-...-....
7.2. O valor da liquidação de ISV correspondentes à referida DAV, no montante de € 27.335,99 foi integralmente pago pelo Requerente.
7.3. O cálculo do imposto sobre veículos foi efectuado pela Requerida, com recurso à aplicação da tabela A prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Código de Imposto sobre Veículos (CISV), aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, pelo valor total de € 34.598,62, dos quais € 13.966,60 correspondem à componente cilindrada e € 20.632,02 à componente ambiental.
7.4. Tendo o veículo sido considerado, face à data da primeira matrícula no país de origem, ou seja, 19 de novembro de 2014, como um veículo com mais de cinco anos de uso, para efeitos dos escalões da Tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, aplicável aos veículos usados provenientes de outros Estados-membros, a que corresponde uma percentagem de redução de 52 % do seu montante.
7.5. Pelo que, no que releva à componente cilindrada e por força da redução resultante do número de anos de uso do veículo, foi aplicada uma dedução de € 7.262,63
7.6. Não foi, porém, aplicada idêntica redução de ISV relativa à componente ambiental resultante do número de anos do veículo para efeitos dos escalões da Tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, à semelhança do que sucede com a componente cilindrada, a qual corresponderia ao valor de € 10.728.65.
7.7. Em 15.2.2021, o Requerente apresentou junto da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, reclamação graciosa do acto de liquidação de imposto, dando origem ao processo a que foi atribuído o n.º …2021….
7.8. Com vista à apreciação desse pedido foi elaborada a informação de serviço por aquela Delegação Aduaneira, sobre a qual recaiu despacho do Chefe da Delegação, datado de 31.3.2021, no sentido do indeferimento.
7.9. Por ofício n.º 477, de 05.04.2021, foi aquele projecto de decisão notificado ao Requerente para efeitos de audição prévia.
7.10. A resposta do Requerente, de 22.04.2021, foi analisada na informação de serviço de 26.04.2021, da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, sobre a qual recaiu o despacho do Director da Alfândega de Aveiro, de 29.04.2021, de indeferimento da reclamação graciosa, decisão que veio a ser notificada ao Requerente pelo ofício n.º 646, de 07.05.2021.
7.11. Perante esta decisão apresentou o Requerente, em 08.08.2021, junto da Instância Arbitral, o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV e o reembolso do montante de € 10.728.65, acrescido de juros indemnizatórios.
III - Factos não provados
8. Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.
IV - Do Direito
9. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.
- Da ilegalidade da liquidação de ISV.
- Do direito a juros indemnizatórios.
Examinar-se-ão assim essas questões:
DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE ISV.
10. Sustenta o Requerente existir ilegalidade da liquidação de ISV em apreciação, uma vez que a disposição do art. 11º do CISV contraria o art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.
Ora vejamos:
O art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia dispõe expressamente o seguinte:
"Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções".
Dispunha o artigo 11.º, nº1, do CISV, na redacção anterior à Lei 75-B/2020, de 31 de Dezembro, o seguinte:
O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:
TABELA D
Esta redacção do art. 11º, nº1, do CISV foi introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), surgida após o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção) de 16 de junho de 2016, emitido no processo C-200/15 relativo à acção incumprimento interposta pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa no qual se declarou a desconformidade da anterior redacção desta disposição com o art. 110º TFUE, nos seguintes termos:
"A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE (…)Este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU: C:2001:109, nº 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiames e Siilin, C-101/00, EU: C:2002:505, nº 53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, nº 25)” (nº 24 dos fundamentos do acórdão). Assim, a cobrança, por um Estado-Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro é contrária ao artigo 110º. do TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C-345/93, EU:C:1995:66, n.º 20, e de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU:C:2001:109, n.º 23)” (nº 25 dos fundamentos do acórdão).“ (…) Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 (…) ".
Sucede, porém, que esta redacção do art. 11º do CISV mantém uma diferenciação com os valores do ISV aplicáveis aos veículos nacionais, e que constam do art. 7º CISV e tabelas anexas, dado que o legislador, em conformidade com o acima referido acórdão do TJUE, alargou as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso, mas introduziu uma outra alteração diferenciadora em relação aos veículos com origem noutros Estados-Membros, com impacto no cálculo do ISV, uma vez que a actual redacção do art. 11º CISV limita a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2), ao contrário do que sucede com os veículos usados já matriculados no território nacional.
Por esse motivo, a jurisprudência deste CAAD tem decidido uniformemente que a anterior redacção do art. 11º CISV violava o disposto no art. 110º TFUE (cfr. as decisões dos processos 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T e 660/2019-T).
É claramente essa a solução desta questão, uma vez que as normas do Direito da União Europeia, no caso o art. 110º TFUE, têm efeito directo e primado sobre o Direito Nacional, não podendo assim o art. 11º CISV contrariar aquela disposição. Ora, existe uma clara violação do artigo 110.° TFUE sempre que o montante de imposto que incide sobre um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, o que é o caso.
Esta situação foi, aliás, reconhecida pelo legislador que, através da Lei 75-B/2020, de 31 de Dezembro, alterou o art. 11º CISV passando a aplicar as percentagens de redução tanto à componente cilindrada como à componente ambiental.
É manifesta assim a ilegalidade da liquidação de ISV impugnada, tendo razão o Requerente nesta questão.
- DO DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS.
11. O Requerentes solicitou ainda o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43º da LGT.
Decorre do número 1 desse artigo que "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido".
Podemos entender ainda que, como decorre do n.º 5 do art. 24.º do RJAT, o direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido em processo arbitral. Ter-se-á, no entanto, de determinar se houve ou não erro imputável aos serviços.
Como já se referiu, a Autoridade Tributária tinha pleno conhecimento da jurisprudência existente no sentido da interpretação da incompatibilidade da anterior redacção do art. 11º do CISV como o art. 110º do TFUE, devendo por isso ter aceite a revisão oficiosa pedida pelo contribuinte. Estamos assim, neste caso, perante uma actuação por parte da Autoridade Tributária, que se traduz num “erro imputável aos serviços”, conforme consta do art. 43º da LGT.
Tendo em conta o estabelecido no artigo 61º do CPPT e tendo sido verificada a existência de erro imputável aos serviços da Administração Tributária, do qual resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vide art. 43º, nº1 da LGT), entendemos que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre o valor de € 10.728.65, que serão contados desde a data do pagamento desse montante, até ao integral reembolso dessa mesma quantia.
V – Decisão
Nestes termos, julga-se procedente o pedido de anulação parcial da liquidação de ISV resultante da Declaração Aduaneira de Veículo DAV nº nº 2020/... de 07/10/2020 (Delegação Aduaneira da Figueira da Foz), anulando-se parcialmente a referida liquidação quanto ao valor de € 10.728.65.
Julga-se procedente o pedido de reembolso do ISV, acrescido dos componentes juros indemnizatórios, condenando-se a Requerida a pagar ao Requerente a quantia de € 10.728.65, acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios desde o pagamento indevido até que ocorra o reembolso.
Fixa-se ao processo o valor de € 10.728.65 e o valor da correspondente taxa de arbitragem em € 918,00 nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, condenando-se a Requerida nas custas do processo.
Lisboa, 5 de Março de 2022
O Árbitro
(Luís Menezes Leitão)