SUMÁRIO:
1. Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, a norma do artigo 11.º do CISV, na redação anterior à conferida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, mostra-se incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE.
2. Do princípio do primado do Direito da União Europeia resulta que a Requerida tem o dever de recusar a aplicação de normas nacionais contrários àquele ordenamento jurídico, pelo que se encontra ferido de ilegalidade um ato tributário praticado ao abrigo da referida norma do CISV, na medida da sua incompatibilidade com o artigo 110.º do TFUE, constituindo erro de direito a liquidação efetuada pela Requerida com base no regime nacional em causa, enquadrável no conceito de “erro imputável aos serviços”.
3. Na revisão do ato tributário apresentada pelo contribuinte ao abrigo da 2ª parte, do artigo 78º, da LGT, apenas são devidos juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de revisão, quer a pretensão anulatória do contribuinte seja acolhida na decisão administrativa que tenha por objeto tal pedido, quer a anulação seja determinada em processo impugnatório deduzido contra o seu indeferimento pela AT no procedimento de revisão.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I – Relatório
1. No dia 08.07.2021, a Requerente, A..., NIF ... com domicilio na Rua ..., ..., ..., Braga, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à declaração de ilegalidade e anulação parcial, no que se refere ao montante de €1124,94, do ato tributário de liquidação de Imposto Sobre Veículos (“ISV”), no valor total de € 3.972,32 resultante da Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) nº 2020/... .
A Requerente alegando ter pagado o valor da liquidação em causa, pede, também, o reembolso da quantia que considera indevidamente paga, no mencionado valor de € 1124,94, bem como a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 10 de Setembro de 2021.
3. O fundamento apresentado pelo Requerente para sustentar a ilegalidade da liquidação e peticionar a anulação parcial da mesma, diz respeito ao cálculo para efeitos de tributação da componente ambiental ou CO2, porquanto entende que a norma jurídica que esteve na base daquela liquidação – artigo 11º do CISV – , ao não estabelecer, quanto aos veículos usados, uma percentagem de redução pelo tempo de uso, à semelhança do estabelecido para a componente cilindrada, viola o artigo 110º do TFUE (Tratado de Funcionamento da União Europeia).
4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, devidamente notificada, não apresentou resposta mas juntou aos autos processo administrativo em 23.02.2022.
5.Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.
Foi ainda dispensada a realização de alegações, nos termos do art. 18º, nº 2, do RJAT, “a contrario”.
6. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
7. Cumpre solucionar as seguintes questões:
a) Ilegalidade da liquidação de ISV objeto do processo e anulação parcial da mesma.
b) Direito à restituição do imposto pago referente à anulação peticionada.
c) Direito do Requerente a juros indemnizatórios.
II – A matéria de facto relevante
8. Consideram-se provados os seguintes factos:
8.1.A Impugnante introduziu em Portugal, com origem em França, o veículo automóvel de passageiros, usado, marca ..., modelo ..., ao qual foi atribuída a matrícula ..., movido a combustível gasóleo, nº de motor ... e cilindrada 2143 cc;
8.2. No cumprimento das suas obrigações legais, o Impugnante procedeu à declaração aduaneira do referido veículo nº 2020/..., da qual consta como data da primeira matrícula o dia 2013/06/21.
8.3. A AT liquidou o ISV (Imposto Sobre Veículos) pelo valor de 3.972,32€, imposto que foi pago pelo Impugnante em 5.05.2020.
8.4. Do montante liquidado, o valor de € 2097,43 correspondeu à componente cilindrada e o valor de € 1.874,89€ à componente ambiental.
8.5. A componente cilindrada, teve uma redução de 60 % em função do número de ano de uso, pelo que, a este título, foi pago o referido valor de € 2097,43, em vez do montante de 5.243,58€, que teria sido apurado caso não tivesse sido aplicada a referida redução.
8.6. A componente ambiental foi liquidada sem qualquer redução.
8.7. Caso houvesse sido adotada a percentagem de redução à componente ambiental que foi aplicada à componente cilindrada, a redução de imposto, a este título, ascenderia a € 1124,93, de que resultaria um montante final a pagar de € 2847,39.
8.8.Em 15.12.2020 a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação objeto do processo que foi indeferida em 7.04.2021, constando da notificação efetuada à mandatária do contribuinte, além do mais, o seguinte:
Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados.
9. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos juntos ao processo pela Requerente, com os quais os documentos constantes do processo administrativo junto pela Requerida se mostram congruentes.
-III- O Direito aplicável
10. A Requerente considera que a revisão do ato tributário, previsto no referido artigo 78º da LGT pode efetuar-se a pedido do contribuinte, respeitando-se assim os princípios constitucionais da legalidade, justiça, igualdade e imparcialidade e que, efetuado este pedido de revisão e tendo o mesmo sido indeferido, está o Requerente em tempo de nos termos do artigo 99º do CPPT, impugnar esta liquidação
Consta do acórdão do STA de 8 de Março de 2017, proferido no proc. 01019/14 , em linha com jurisprudência constante do mesmo Tribunal que “Sobre o denominado “erro imputável aos serviços” tem a jurisprudência desta secção uniforme e reiteradamente afirmado que o respectivo conceito compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e que essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afectada pelo erro (Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: de 12.02.2001, recurso nº 26.233, de 11.05.2005, recurso 0319/05, de 26.04.2007, recurso 39/07, de 14.03.2012, recurso 01007/11 e de 18.11.2015, recurso 1509/13(…).”
Por outro lado, pode ler-se no acórdão do TJUE de 4 de dezembro de 2018, no processo C 378/17 , em linha com a jurisprudência do mesmo Tribunal aí referida, o seguinte:
“38 Como diversas vezes afirmou o Tribunal de Justiça, a referida obrigação de não aplicar uma legislação nacional contrária ao direito da União incumbe não só aos órgãos jurisdicionais nacionais mas também a todos os órgãos do Estado, incluindo as autoridades administrativas, encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31; de 9 de setembro de 2003, CIF, C 198/01, EU:C:2003:430, n.o 49; de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C 341/08, EU:C:2010:4, n.o 80; e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C 628/15, EU:C:2017:687, n.o 54).
39 Daqui resulta que o princípio do primado do direito da União impõe não só aos órgãos jurisdicionais mas a todas as instâncias do Estado Membro que confiram plena eficácia às normas da União.”
Na decisão do TJUE no processo The Trustees of the BT Pension Scheme, C 628/15, consta, ainda, que:
“há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, relativamente às autoridades administrativas, acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31, e de 29 de abril de 1999, Ciola, C 224/97, EU:C:1999:212, n.os 26 e 30, e, relativamente aos órgãos jurisdicionais, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 24, e de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C 614/14, EU:C:2016:514, n.o 34).
Na doutrina nacional, refere Fausto de Quadros que “(…) temos a obrigação para a Administração Pública de recusar a aplicação de normas ou actos nacionais contrários ao Direito Comunitário, e de aplicar este mesmo contra Direito nacional de sentido contrário, conforme doutrina acolhida, de forma modelar no caso Factortame, já referido neste livro por diversas vezes. A Administração Pública vai ter, ainda mais do que o legislador, a necessidade de levar essa doutrina em conta no desempenho da sua missão de aplicar o Direito”. E no mesmo sentido, vai Miguel Gorjão-Henriques, escrevendo sobre o princípio do primado do direito comunitário:“(…) indubitavelmente, a dimensão clássica do princípio é aquela que, com clareza, nos enuncia Rostane MEHDII, ao salientar que o juiz e a administração têm a obrigação de «excluir as regras internas adoptadas em violação da legalidade comunitária”
Nesta conformidade, estando a Requerida obrigada a desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União, a não observância de tal dever, consubstancia de erro de direito imputável aos serviços.
Assim também tem concluído, pacificamente, a jurisprudência nacional, conforme consta da decisão arbitral de 1 de Abril de 2021, proferida no proc. 457/2020-T, de 1 de Abril de 2021, onde se pode ler o seguinte:
“Importa assim, determinar se se verifica, in casu, erro imputável aos serviços. Não podendo imputar-se aos serviços qualquer erro de facto, importa averiguar se lhes poderá ser imputado erro de direito. A este propósito já decidiu o STA, ao estabelecer no acórdão proferido em 19.11.2014, no processo 0886/14 que «(…) tem desde há muito entendido este Supremo Tribunal de forma pacífica que “existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária actuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectado pelo erro, conforme se deixou explicado, entre outros, no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 12.12.2001, no recurso n.º 026233, pois “havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro” já que “a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços”. - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 14 de Março de 2012, rec. n.º 1007/11, e numerosa jurisprudência aí citada.»
O mesmo resulta do acórdão do TCAS n.º 1058/10.0BELRS, de 31.01.2019, onde se decidiu, mais recentemente no sentido de que «(…) o erro imputável aos serviços concretiza qualquer ilegalidade, não imputável ao contribuinte, mas à Administração, compreendendo o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, no âmbito do qual se enquadra a violação das normas de direito da UE.»”
Nesta medida, e com tal fundamento, poderia a Requerente apresentar, como apresentou, o pedido de revisão no prazo de quatro anos após a liquidação.
Acresce que, muito embora a Requerida tenha sustentado, na decisão que incidiu sobre o pedido de revisão da liquidação, inexistir erro imputável aos serviços, o certo é em tal decisão não deixou de sustentar a legalidade do ato de liquidação, ao referir que “a Administração Tributária se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sobre o espectro do princípio da legalidade”.
É certo que a Requerida acrescenta “e não tendo (…) a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num “julgamento” de pretensa desconformidade com o direito comunitário (…)” .Mas, mesmo que se considere que a Requerida não apreciou a legalidade do ato de liquidação entendemos que, no caso concreto, à luz do princípio da tutela judicial efetiva e do seu sub-princípio do “pro actione”, sempre haverá que admitir o conhecimento do mérito da ação.
Na verdade, como escrevem Serena Cabrita Neto-Carla Castelo Trindade:
“ (…) não é evidente a linha que separa um indeferimento por razões formais -por não verificação de erro imputável aos serviços, de injustiça grave ou notória- de um indeferimento por razões materiais. Assim, cremos ser de admitir que se o contribuinte porventura fundamentar a sua ação judicial (de impugnação ou de pedido de constituição de tribunal arbitral) com um segundo grupo de argumentos e um subsequente pedido, isto é, com o conhecimento do próprio mérito do pedido de revisão, com a consequente anulação do acto tributário, não haverá como não admitir o “alargamento” do objecto da acção ao mérito.É que a tutela judicial efectiva obriga a que o contribuinte possa, nos momentos processuais próprios, levar ao conhecimento do tribunal todas as questões não resolvidas administrativamente. E sendo o acto tributário o objecto “mediato” desta acção, a impugnação ou o pedido de constituição do tribunal arbitral sempre se mostram ser os meios mais adequados para tutelar o contribuinte”
Ora, no caso concreto, da petição constam os fundamentos pertinentes à apreciação do mérito do pedido, bem como da decisão que incidiu sobre o pedido de revisão oficiosa constam os argumentos pelas quais a Requerida entende que aqueles fundamentos sobre o mérito, alegados pelo Requerente, não devem proceder.
Por outro lado, na notificação da decisão que incidiu sobre o pedido de revisão oficiosa, a Requerida menciona expressamente que a Requerente pode deduzir impugnação judicial no prazo de três meses, o que é coerente com a circunstância de ter apreciado a legalidade da liquidação.
Não pode, pois, deixar de se concluir que não estava ao Requerente vedado a contestação da decisão que indeferiu o pedido de revisão oficiosa através de impugnação judicial ou arbitral, tendo como objeto mediato o ato de liquidação.
11. Da ilegalidade das liquidações de ISV.
Escreveu-se na decisão arbitral proferida no processo 572/2018-T , designadamente, o seguinte:
“6.47. Em sede de ISV, existe um longo percurso no que diz respeito às questões que a Comissão Europeia tem levantado ao Estado Português em matéria de legalidade das normas nacionais, nomeadamente, quanto à carga fiscal incidente sobre os veículos usados.
6.48. Com efeito, essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter protecionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos.
(…).
6.66. Não obstante as disposições internas, e como já vimos, o artigo 110º do TFUE (na esteira do artigo 90º do Tratado de Roma), preceitua que “nenhum EM fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente sobre produtos nacionais similares”.
6.67. Sobre a interpretação deste artigo face aos direitos nacionais já o TJUE se pronunciou por diversas vezes precisando o seu alcance dado que a admissão nos mercados nacionais de veículos automóveis portadores de placa de matrícula definitiva de outros Estados membros, isto é de veículos usados, rege-se exclusivamente pelo direito nacional, não podendo, todavia, tal direito contrariar os princípios em que se alicerça o funcionamento da UE.
6.68. Por isso, dentro da liberdade conformadora que o legislador nacional dispõe para modelar o imposto de forma a proceder à sua cobrança de forma exequível e eficaz, é necessário ter em conta, para além da opinião da Comissão Europeia, enquanto entidade a quem cabe zelar pelo respeito pelo Tratado, a jurisprudência comunitária que se vai produzindo.
6.69. E tanto assim é que em conformidade com o documento anexado pela Requerida com as suas alegações escritas se percebe que o Estado Português, interpelado pela Comissão Europeia em 2009/2010, quanto à forma como eram tributados os veículos usados admitidos em Portugal provenientes da UE (porque contrária ao previsto no referido e citado artigo 110º do TFUE), se viu forçado a alterar a legislação em vigor em matéria de ISV, em concreto o artigo 11º, nº 1 do Código do ISV (naquela data vigente), através da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do OE para 2011), no sentido de:
“O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória, com base na aplicação das percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização social média dos veículos no mercado nacional, calculada com referência à desvalorização comercial média corrigida do respectivo custo de impacte ambiental:
6.70. Contudo, como não foi comtemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE nº C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando directamente a legislação nacional, consubstanciada no artigo 11º do Código do ISV (na redacção em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que “a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do TFUE” (sublinhado nosso).
6.71. E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei nº 42/2016, de 28 de Dezembro, mas excluindo de novo da redação do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.
6.72. Assim, os actuais contornos da legislação nacional ignoram, no artigo 11º, nº 1 Tabela D, o previsto no artigo 110º do TFUE e a posição que o TJUE tem assumido (e que já assumia face ao disposto no artigo 90 do Tratado de Roma) de que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.
6.73. A situação descrita levou (de novo) a Comissão Europeia, na sua busca de justiça comunitária, a dar início a um procedimento contra Portugal por este EM não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados “importados” de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestas viaturas face às viaturas usadas adquiridas em território nacional.
6.74. Com efeito, a Comissão volta a entender que a legislação nacional não é compatível com o disposto no artigo 110º do TFUE, na medida em que os veículos usados “importados” de outros EM são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado nacional. “
(…)
6.85. Não obstante a Requerida referir que “(…) o conteúdo do artigo 110º deste tratado proveio do artigo 90º do tratado CE, ao qual ainda não estavam subjacentes as preocupações ambientais, com a acuidade que hoje se colocam”, tal afirmação não será de todo correcta porquanto o artigo 191º do TFUE teve origem no artigo 174º daquele Tratado e também a jurisprudência do TJUE se referiu em diversos momentos às questões ambientais na interpretação do referido artigo 90º, nomeadamente, no já citado processo C-290/05.
6.86. E, recorde-se, em conformidade com o que é defendido pelo Requerente, o Acórdão do TJUE (C-200/15), de 16-06-2016, refere que “este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam (…) a uma imposição superior do produto importado (…)”, sendo que “(…) um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional (…)”.
(…)
6.87. Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que, o que deverá aqui relevar é que o artigo 11º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110º do TFUE porquanto aquele artigo não pode, em conformidade com o que este artigo dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro EM sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.”
Esta posição, tem vindo a ser perfilhada em sucessivas decisões arbitrais proferidas, designadamente, nos processos n.º 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 498/2019-T e 660/2019-T, 13/2020-T, 293/2020-T, 474/2020-T, entre outras.
12. Acresce que, a controvérsia em questão foi objeto de apreciação do TJUE no acórdão de 2.09.2021, proferido no processo C 169/20 (Comissão Europeia contra República Portuguesa), e decidido no sentido perfilhado pela jurisprudência nacional acima referida, podendo ler-se no mesmo, além do mais, o seguinte:
“39 No caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, na sequência do Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C 200/15, não publicado, EU:C:2016:453), a República Portuguesa reformou o seu regime de tributação dos veículos objeto de uma primeira colocação em circulação em Portugal. Segundo o regime resultante da referida reforma, o imposto em causa, cobrado nessa ocasião, inclui duas componentes, uma calculada em função da cilindrada do veículo em questão e a outra, denominada «componente ambiental», em função do nível de emissão de dióxido de carbono desse veículo.
40 Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, não está prevista nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que reflita a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.
41 Daqui resulta que a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.
42 A este respeito, não contestando que o Código do Imposto sobre Veículos não prevê nenhuma redução da componente ambiental do imposto em causa relativamente aos veículos usados importados no seu território, a República Portuguesa considera, antes de mais, que esta circunstância se justifica por um objetivo de proteção do ambiente. Com efeito, o pagamento integral da componente ambiental não tem por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas subordinar essa entrada a um critério seletivo aplicando exclusivamente critérios ambientais.
43 Ora, importa recordar que, embora os Estados Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C 213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).
44 A este respeito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de sublinhar que o artigo 110.º TFUE se opõe a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da «classificação ambiental» dos veículos, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado Membro de importação (Acórdão de 5 de outubro de 2006, Nádashi e Németh, C 290/05 e C 333/05, EU:C:2006:652, n.os 56 e 57).
45 Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor pagador (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 60).”
(…)
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) decide:
1) Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.
(…)”
13. Tendo em consideração o exposto, mostrando-se o artigo 11.º do CISV, na redação anterior à conferida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE, face ao princípio do primado do Direito da União Europeia, o ato de liquidação em causa, desconsiderando a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV, encontra-se ferido de ilegalidade, não podendo deixar de ser parcialmente anulado, no que respeita ao excesso de tributação decorrente daquela ausência de redução, nos termos peticionados pelo Requerente.
14. Veio, ainda, o Requerente, pedir a o reembolso da quantia de imposto que considera indevidamente paga, no valor de € 1124,94, bem como o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.
15.No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da anulação parcial do ato de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição do montante pago indevidamente por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.
16. No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
Dispõe o nº 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Por sua vez dispõe o nº 3 do mesmo artigo:
“3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
(…)
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”
Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23-05-2018, processo 1201/17:
“3.8. Importa, por isso, afrontar a questão de saber se os juros indemnizatórios são devidos desde a data em que o pagamento do tributo foi efetuado ou a partir de um ano após o pedido de revisão formulado pelo contribuinte.
Já vimos que o acórdão fundamento entendeu que os juros indemnizatórios a que as impugnantes têm direito neste processo são apenas devidos a partir de um ano após o pedido de revisão por elas formulado.
O acórdão de 15-02-2007, processo 01041/06, deste STA tem o seguinte sumário:
“I - A revisão oficiosa dos actos de liquidação é susceptível de ser provocada pelo interessado, dentro do respectivo prazo, com fundamento em qualquer erro, de facto ou de direito, imputável à Administração.
II - Pedida a revisão oficiosa do acto de liquidação e vindo o acto a ser anulado, mesmo que só na impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a iniciativa do contribuinte, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada.”.
Neste acórdão são referidos os diversos acórdãos que neste mesmo sentido se pronunciaram.
E o acórdão fundamento acompanhou esta corrente jurisprudencial afirmando no seu sumário o seguinte:
“I - O art.º 43.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, sem definir o momento a partir do qual são os mesmos devidos.
II - O nº 3, c) do mesmo preceito consagra que também são devidos juros indemnizatórios, «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à Administração Tributária».
III - O legislador considera que o prazo de um ano é o prazo razoável para a Administração decidir o pedido de revisão e executar a respectiva decisão, quando favorável ao contribuinte, afastando-se da indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte.”.
Do artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária resulta que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Não resulta desta norma qual o momento a partir do qual são os juros indemnizatórios devidos.
O n.º 3, c) do mesmo preceito estabelece, contudo, que são devidos juros indemnizatórios, “quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à Administração Tributária”.
À situação em apreciação é aplicável o nº 3, al. c) do artigo 43º da Lei Geral Tributária pois que podendo a recorrida ter questionado a liquidação optou por nada fazer até ao momento em que apresentou um pedido de revisão oficiosa do ato tributário.
Como se escreveu no acórdão fundamento entre a data da liquidação e a data do pedido de revisão decorreu um extenso período em que a reposição da legalidade poderia ter sido provocada por iniciativa do contribuinte que a não impulsionou, o que justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte, suscita a questão da ilegalidade do ato de liquidação imediatamente após o pagamento da quantia em questão pois que entendeu o legislador que o prazo de um ano é o prazo razoável para a Administração decidir o pedido de revisão e executar a respetiva decisão, quando favorável ao contribuinte, afastando-se da indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte.
Daí que se possa concluir que esta norma do artigo 43.º, n.º 3 c) da LGT consagra um regime especial, quanto aos juros indemnizatórios, aplicável apenas em situações de revisão, como é o caso dos presentes autos e não perante a situação normal típica em que a impugnação da liquidação se inicia após o pagamento.”
Em conformidade com este aresto, que se acompanha, o Requerente apenas terá direito a juros indemnizatórios a partir do fim do prazo de um ano após a apresentação do pedido de revisão formulado, ou seja, a partir de 15.12.2021.
-IV- Decisão
Assim, nos termos e com os fundamentos supra expostos, decide o Tribunal arbitral julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, decretando-se a anulação parcial do ato tributário de liquidação impugnado, no que se refere ao valor de € 1124,93 (mil cento e vinte e quatro euros e noventa e três cêntimos), condenando-se a Requerida a restituir tal valor, acrescido de juros indemnizatórios contados a partir de 15.12.2021.
Valor da ação: € 1124,93 (mil cento e vinte e quatro euros e noventa e três cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerida, no valor de 306.00 € Trezentos e seis euros), nos termos do nº 4 do artigo 22º do RJAT.
Notifique-se as partes.
Nos termos e para efeitos do art. 17º, nº 3 do RJAT, notifique-se, ainda, o Representante do Ministério Público junto do Tribunal competente para o julgamento da impugnação, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual.
Lisboa, CAAD, 28.02.2022
O Árbitro
Marcolino Pisão Pedreiro