DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
A A..., LDA, de ora em diante designada por Requerente, pessoa coletiva no ..., com sede social na ..., nº ..., ..., em Lisboa, apresentou, no dia 12 de abril de 2021, ao abrigo do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e do artigo 97.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, pedido de pronúncia arbitral, com vista à anulação da liquidação adicional do IVA, relativa ao período 201612T, com o n.º 2020 ..., no valor de € 36.993,48, com o valor de imposto a pagar após acerto de contas de € 17.320,81, acrescido dos juros compensatórios no montante de € 2.647,94.
É demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária no mesmo dia 12 de abril de 2021.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
No dia 31 de maio, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular ficou constituído no dia 22 de junho de 2021.
Autoridade Tributária respondeu à petição, defendendo que as liquidações impugnadas são legais, estando justificadas pela falta de apresentação, por parte da Requerente, dos documentos comprovativos da existência de exportações, nos termos previstos no artigo 29º, números 8 e 9 do CIVA.
No dia 22 de dezembro de 2021, o Árbitro prorrogou o prazo de decisão por mais 2 meses e no dia 24 de janeiro de 2022 foi efetuada a audição do legal representante da Requerente, B... .
As Partes apresentaram as suas alegações, a Requerente no dia 3 de fevereiro de 2022 e a Requerida no dia 14 de fevereiro de 2022.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é competente, tendo em conta o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Descrição dos factos
2.1. A Requerente sustenta que as transmissões de bens expedidos ou transportados para fora do território da UE e sobre as quais incidiu o ato de liquidação de IVA em crise devem beneficiar da isenção prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA, muito embora não existam DAUs (Documentos Administrativos Únicos) contendo certificação de saída para suporte de cada uma das operações.
Não obstante a ausência desse elemento probatório, a Requerente entende que todas as transmissões de bens se encontram devidamente suportadas por documentos e elementos probatórios, sendo que a ausência de DAUs contendo a certificação de saída não tem como consequência imediata a impossibilidade de aplicação da isenção de IVA.
A imprescindibilidade do DAU contendo a certificação de saída, defendida pela AT, é ilegal por desconsiderar o caso concreto de envio de remessas postais de baixo valor, para além de consubstanciar uma interpretação do disposto nos artigos 14.º, n.º 1, alínea a) e 29.º, n.º 8 do CIVA desconforme com o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança e com os princípios da igualdade e da proporcionalidade constitucionalmente consagrados no artigo 2.º, no artigo 13.º e no n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição da República Portuguesa («CRP»). Por outro lado, sustenta ainda a Requerente que é incompatível com os princípios enformadores do sistema comum do IVA, nomeadamente com o princípio da neutralidade fiscal, por promover discriminações arbitrárias e não justificadas entre operações idênticas e operadores económicos que estão em concorrência entre si, provocando intoleráveis perturbações no funcionamento do mercado interno.
Como consequência, a liquidação adicional, bem como o Relatório de Correções e Inspeção Final que esteve na origem das mesmas, estão profundamente inquinados de erros sobre os pressupostos de facto e de direito em que assentam, vícios de violação de lei e violação dos mais básicos princípios do sistema do IVA e da justiça material inerente ao procedimento tributário.
2.2. A Autoridade Tributária, por seu lado, defende que a Requerente está em situação irregular, tendo em conta que, conforme consta do relatório da inspeção, não apresentou os documentos legalmente exigidos com vista a comprovar que as mercadorias foram efetivamente expedidas para fora da União Europeia.
Como consequência, não pode usufruir da isenção aplicável às exportações e operações assimiladas, a que se refere o artigo 14º do Código do IVA, tendo em conta que a prova de saída tem que ser efetuada através dos DAUs.
Por outro lado, os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) concluíram ainda que a infração detetada respeita à falta de liquidação de IVA, tendo considerado como infringida a alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do Código do IVA, punível pelo artigo 114.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) (Cfr. ponto VII do RIT).
Em consequência, relativamente ao reflexo da correção apurada, no pedido de reembolso, os SIT consideraram que, «[o] reembolso do IVA solicitado na declaração periódica respeitante ao quarto trimestre de 2016, no valor de € 19.672,67, resulta de um crédito de imposto acumulado no mesmo montante, pelo que, as correções propostas no montante de € 36.993,48 conduzem ao indeferimento do pedido e à liquidação adicional de IVA, no montante de € 17.320,81, respeitante ao período 2016/12T.» (Cfr. ponto VIII do RIT).
Finalmente, acresce ainda que, «relativamente à liquidação que resulta das correções efetuadas, são devidos juros compensatórios, nos termos do art.º 35.º da LGT.» (Cfr. página 14 do RIT).
3. Matéria de facto
3.1. Factos provados
São os seguintes os factos dados como provados com relevância para a decisão:
A) A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, criada em 2015, que se dedica ao fabrico e comércio de roupa interior e biquínis e que exporta cerca de 60% da sua produção, sobretudo para os Estados Unidos.
B) Os produtos que a Requerente vende têm um valor médio de € 20 sendo cobrados cerca de € 5 de portes de envio.
C) A Requerente vende através de uma plataforma online, na qual o cliente escolhe os produtos que deseja comprar e faz a sua encomenda.
D) Os produtos são enviados aos respetivos clientes por remessa postal, efetuada pelos CTT.
E) A pedido da Requerente, os Serviços jurídicos dos CTT informaram, no dia 19 de novembro de 2019 o seguinte:
1 Analisados os documentos que acompanhavam o mail inicial, concretamente os recibos emitidos em Lojas CTT conforme exemplo que se anexa abaixo, confirma-se que os mesmos correspondem a documentos/recibos emitidos em Lojas CTT, comprovando a aquisição de produtos de registos e primes de correio internacional. Produtos estes, adquiridos pela empresa A... LDA, com o NIF ... .
2 Mais se informa, que os CTT não produziram qualquer despacho aduaneiro de exportação, relativamente a qualquer dos objetos mencionados nos documentos anexos ao mail inicial.
3 Para os CTT, trataram-se de expedições internacionais de correio.
4 Mais se esclarece que é possível consultar o registo dos tracking number (sistema trace) mas tal informação, por questões operacionais e legais, não é disponibilizada por mais de 18 meses a contar da expedição.
Esperamos ter contribuído pra o esclarecimento das questões colocadas.
Melhores cumprimentos,
C...
F) A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral e, em sede de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas, no regime geral de tributação e tem as suas obrigações tributárias cumpridas, quer em sede de IVA quer em sede de IRC.
H) A Requerente solicitou, na declaração periódica de IVA, relativa ao período de 2016/12T, um pedido de reembolso de um crédito de IVA no valor de € 19.672,69.
I) Através da notificação n.º..., de 24 de maio de 2017, da Direção de Serviços de Reembolsos (DSR), foi a Requerente notificada do despacho de indeferimento do pedido de reembolso.
J) A Requerente foi objeto de uma ação de inspeção, relativamente ao ano de 2016, devidamente credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2017... .
K) No dia 23 de dezembro de 2020, a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IVA com o n.º 2020..., de 12/12/2020, relativa ao período de 2016/12T, no valor de € 36.993,48, com o valor de imposto a pagar, após acerto de contas, de €17.320,81 e dos correspondentes juros compensatórios, no valor de € 2.647,94.
L) No dia 19 de janeiro de 2021, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação de reapreciação de reembolso apresentada em 25/05/2017, na sequência da conversão do pedido de reapreciação em reclamação.
M) A Requerente efetuou, no dia 10 de março de 2021, o pagamento voluntário do IVA e dos respetivos juros compensatórios, na sequência do processo de execução fiscal que lhe foi instaurado.
3.2. Factos não provados
Não existem outros factos relevantes para a decisão da causa.
3.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo por ambas as Partes.
4. Matéria de direito
4.1. Questões a decidir
A questão a decidir no presente processo arbitral consiste em saber se é legal a recusa, por parte da Autoridade Tributária, de reconhecer a isenção de IVA em determinadas vendas, com base na falta de certos documentos alfandegários, nomeadamente o documento de “certificação de saída” emitido pela estância alfandegária competente no termos da legislação aduaneira aplicável.
4.2. Discussão
A Requerente alega que estas vendas se qualificam como exportações, por terem tido como destinatários pessoas singulares domiciliados fora da União Europeia, bem como pelo facto de terem sido expedidas para fora do território da União Europeia as mercadorias objeto das referidas vendas, razão pela qual devem usufruir da isenção de IVA estabelecida no artigo 14º, n.º 1, al. a) do respetivo Código.
O artigo 29º do CIVA estabelece, no seu no 8, que “As transmissões de bens e as prestações de serviços isentas ao abrigo das alíneas a) a j), p) e q) do n.º 1 do artigo 14.º e das alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 do artigo 15.º devem ser comprovadas através dos documentos alfandegários apropriados ou, não havendo obrigação legal de intervenção dos serviços aduaneiros, de declarações emitidas pelo adquirente dos bens ou utilizador dos serviços, indicando o destino que lhes irá ser dado.”
Acrescenta ainda, no nº 9, que “a falta dos documentos comprovativos referidos no número anterior determina a obrigação para o transmitente dos bens ou prestador dos serviços de liquidar o imposto correspondente.”
A Requerente apresentou inicialmente 3 exemplos de comprovativos de saída, fazendo o cross- reference entre o tracking number enviado ao cliente aquando da confirmação da compra on-line e o registo do tracking number na plataforma dos CTT.
Face à insistência dos Serviços de Inspeção, no sentido de serem apresentados os DAU com certificação de exportação, a Requerente procurou obter dos CTT todos os números de registos por si efetuados, tendo obtido a declaração confirmativa acima mencionada, da saída das mercadorias do território da União Europeia.
No Relatório de Inspeção, que serviu de base e de fundamento às liquidações impugnadas, a Autoridade Tributária considerou que os documentos apresentados não provavam a existência de exportações, para os efeitos do artigo 29º, nº 8 do CIVA.
A Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006), relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, no artigo 14.º, n.º 1, estabelece:
“Entende‐ se por «entrega de bens» a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário.”
Incluído no capítulo 1, sob a epígrafe «Disposições gerais», do título IX, intitulado «Isenções», da Diretiva IVA, o artigo 131.º dispõe:
“As isenções previstas nos capítulos 2 a 9 aplicam‐se sem prejuízo de outras disposições comunitárias e nas condições fixadas pelos Estados—Membros a fim de assegurar a aplicação correta e simples das referidas isenções e de evitar qualquer possível fraude, evasão ou abuso.”
No capítulo 6, intitulado “Isenções na exportação”, do título IX da Diretiva IVA, o artigo 146.º, n.º 1, prevê-se:
“Os Estados—Membros isentam as seguintes operações:
As entregas de bens expedidos ou transportados, pelo vendedor ou por sua conta, para fora da Comunidade;
[...]”
No capítulo 7, sob a epígrafe “Disposições diversas”, do título XI, sob a epígrafe “Obrigações dos sujeitos passivos e de determinadas pessoas que não sejam sujeitos passivos”, da Diretiva IVA, o artigo 273.º estabelece-se:
“Os Estados‐ Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados‐ Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados‐ Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira.”
O artigo 14º, n.º 1, al. a) do CIVA constitui transposição do artigo 146.º, n.º 1, al. b) da Diretiva IVA, nos termos da qual os Estados-Membros “isentam as entregas de bens expedidos ou transportados pelo adquirente ou por sua conta para fora da União”.
Constitui doutrina do Tribunal de Justiça da União Europeia que esta disposição deve ser interpretada em conjugação com o artigo 14.º, n.º 1 desta diretiva, nos termos do qual se entende por “entrega de bens” a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário (v., neste sentido, Acórdãos de 28.02.2018, Pieńkowski, C-307/16, EU:C:2018:124, n.º 24; e 17.12.2020, BAKATI PLUS, C‐ 656/19, EU:C:2020:1045, nº 55).
Esta isenção visa garantir a tributação das prestações de serviços no lugar de destino, ou seja, aquele onde os produtos exportados serão consumidos (v., neste sentido, Acórdão de 08.11.2018, Cartrans Spedition, C-495/17, EU:C:2018:887, n.º 34; e Acórdão de 28.03.2019, Milan Vins, C-275/18, nº 23).
Decorre das exigências tanto da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade, que os termos de uma disposição do direito da União que não comporte uma remissão expressa para o direito dos Estados‐ Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem em princípio ser objeto de uma interpretação autónoma e uniforme em toda a União (Acórdãos de 18.10.2011, Brüstle, C‐ 34/10, EU:C:2011:669, n.° 25 e jurisprudência referida, e de 23 de abril de 2020, Associazione Avvocatura per i diritti LGBTI, C‐ 507/18, EU:C:2020:289, n.° 31 e jurisprudência referida).
Decorre, por outro lado, do disposto no artigo 146º, n.º 1, alínea a) e no artigo 14º, nº 1 da Diretiva IVA, que a isenção da entrega para exportação é aplicável quando o direito de dispor do bem como proprietário tiver sido transferido para o adquirente, quando o fornecedor demonstrar que o bem foi expedido ou transportado para fora da União e quando, na sequência dessa expedição ou transporte, o bem saiu fisicamente do território da União (v., neste sentido, Acórdão de 28 de fevereiro de 2018, Pieńkowski, C-307/16, EU:C:2018:124, n.º 25; ).
No que diz respeito às exigências de prova da ocorrência de uma exportação, a jurisprudência do TJUE tem firmado o entendimento no sentido de que, para dar como provado que os bens foram “expedidos ou transportados para fora da União”, não é necessária a verificação do cumprimento exaustivo das obrigações impostas pela legislação aduaneira, nomeadamente o Código Aduaneiro da União e o seu Regulamento de Aplicação.
A qualificação de uma operação como entrega para exportação nos termos do artigo 146.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva IVA não pode depender da colocação dos bens em causa sob o regime aduaneiro de exportação, cujo incumprimento tenha por consequência privar definitivamente o sujeito passivo da isenção na exportação. (v. Acórdão de 28.03.2019, Milan Vins, C-275/18, nº 27).
Cabe aos Estados-Membros fixar, em conformidade com o artigo 131.º da Diretiva IVA, as condições da isenção das operações de exportação com o fim de assegurar a aplicação correta e simples das isenções previstas por esta diretiva e evitar qualquer possível fraude, evasão e abuso. No exercício dos seus poderes, os Estados-Membros devem respeitar os princípios gerais de direito que fazem parte da ordem jurídica da União, entre os quais se inclui o princípio da proporcionalidade (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2018, Cartrans Spedition, C-495/17, EU:C:2018:887, n.º 37).
Em relação a este princípio, importa salientar que uma medida nacional vai para além do que é necessário para assegurar a cobrança exata do imposto se fizer depender, no essencial, o direito à isenção de IVA do cumprimento de obrigações formais, sem ter em conta os seus requisitos materiais e, nomeadamente, sem se interrogar sobre se estes foram respeitados. Com efeito, as operações devem ser tributadas tomando em consideração as suas características objetivas (Acórdão de 8 de novembro de 2018, Cartrans Spedition, C-495/17, EU:C:2018:887, nº 38).
Ora, no caso dos autos, a Requerente juntou, para todas as vendas que pretende ver isentas, para além dos documentos que atestam materialmente a saída dos bens do território aduaneiro da União, uma declaração emitida pelo expedidor a confirmar a saída dos bens, independentemente de saber se todas as formalidades alfandegárias foram respeitadas.
Ora, resulta da jurisprudência já citada do TJUE que não é essencial, para que um sujeito passivo possa beneficiar da isenção prevista no artigo 146.º, nº 1, al. a) da Diretiva, que o mesmo cumpra rigorosamente a legislação aduaneira, sem prejuízo de ter que fazer a prova da saída das mercadorias do território da União Europeia.
Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, só existem dois casos em que o incumprimento de um requisito formal pode implicar a perda do direito à isenção de IVA (Acórdão de 8 de novembro de 2018, Cartrans Spedition, C-495/17, EU:C:2018:887, n.º 40).
Em primeiro lugar, o princípio da neutralidade fiscal não pode ser invocado, para efeitos da isenção de IVA, por um sujeito passivo que tenha participado intencionalmente numa fraude fiscal que pôs em perigo o funcionamento do sistema comum do IVA. Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, não é contrário ao direito da União exigir a um operador que aja de boa- fé e tome todas as medidas que lhe podem ser razoavelmente exigidas para garantir que a operação que efetua não implica a sua participação numa fraude fiscal. Na hipótese de o sujeito passivo em causa saber ou dever saber que a operação que efetuou estava implicada numa fraude cometida pelo adquirente e de não ter tomado todas as medidas razoáveis ao seu alcance para evitar essa fraude, deve ser-lhe recusado o direito à isenção de IVA (Acórdão de 8 de novembro de 2018, Cartrans Spedition, C-495/17, EU:C:2018:887, n.º 41).
No caso em apreço, a recusa da isenção em causa não se baseou na existência de tal fraude.
Por outro lado, a violação de um requisito formal pode levar a uma recusa de isenção de IVA se essa violação tiver por efeito impedir a produção da prova incontestável do cumprimento dos requisitos de fundo (Acórdão de 8 de novembro de 2018, Cartrans Spedition, C-495/17, EU:C:2018:887, n.º 42).
Na medida em que a não colocação dos bens destinados a exportação no referido regime aduaneiro pode ter normalmente por efeito tornar mais difícil ou até impossível para as autoridades tributárias a verificação da saída efetiva dos bens do território da União, é verdade que a realidade da exportação deve ser objeto de prova bastante perante as autoridades tributárias competentes, uma vez que esta exigência se refere aos requisitos materiais de concessão da isenção (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2018, Cartrans Spedition, C-495/17, EU:C:2018:887, n.º 48).
Contudo, não foi alegado pela Autoridade Tributária que a falta de colocação dos bens em causa sob o regime aduaneiro de exportação tenha impedido de provar que os requisitos materiais, in casu, a saída efetiva dos bens do território da União, foram cumpridos.
A Autoridade Tributária apenas alegou que o documento apresentado não era o devido, sem alegar ou demonstrar que os documentos apresentados não provavam materialmente a exportação.
Na sua resposta, a Autoridade Tributária alega que a Requerente não deu ou não provou ter dado devido cumprimento às suas obrigações legais no âmbito da legislação aduaneira, nomeadamente declarando os bens para o regime de exportação.
Mas, em primeiro lugar, não foi com base nessa alegação que, no Relatório de Inspeção, se recusaram os documentos apresentados, mas apenas com base no argumento de que os documentos apresentados não eram os “documentos de certificação de saída” previstos na legislação aduaneira.
Em segundo lugar, o Tribunal considerou já, expressamente, que não é indispensável que as mercadorias sejam colocadas no “regime aduaneiro de exportação”, para que possa haver-se por provada uma exportação para efeitos de isenção de IVA.
Com efeito, disse o Tribunal no acórdão Milan Vinš, já citado:
“A este respeito, uma condição como a prevista no artigo 66.o, n.º 1, da Lei n.º 235/2004, que impede a concessão de uma isenção de IVA a uma entrega de bens que não tenham sido colocados sob o regime aduaneiro de exportação, ainda que seja ponto assente que esses bens foram efetivamente exportados em conformidade com os critérios recordados no n.º 24 do presente acórdão, e que, por conseguinte, esta entrega corresponde, pelas suas características objetivas, às condições de isenção previstas no artigo 146.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva IVA, não respeita o princípio da proporcionalidade.
Com efeito, impor tal condição equivaleria a fazer depender o direito à isenção do cumprimento de obrigações formais, na aceção da jurisprudência citada no n.º 29 do presente acórdão, sem examinar a questão de saber se os requisitos de fundo impostos pelo direito da União foram ou não efetivamente satisfeitos. A simples circunstância de um exportador não ter colocado os bens em causa sob o regime aduaneiro da exportação não implica que essa exportação não tenha efetivamente ocorrido (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2018, Cartrans Spedition, C‐ 495/17, EU:C:2018:887, n.º 50).”
Assim, não bastava à Autoridade Tributária alegar que o documento apresentado não é aquele que a legislação aduaneira impõe que o sujeito passiva tenha para efeitos de exportação, mas teria de alegar e demonstrar que os documentos apresentados não provam materialmente as exportações, o que a Autoridade Tributária não fez.
Ao basear a recusa da isenção no não cumprimento, por parte da Requerente, de uma obrigação formal, que é a apresentação do documento de “certificação de saída” emitido pela estância aduaneira competente, nos termos da legislação aduaneira em vigor, a Autoridade Tributária impôs àquela uma condição não conforme com o artigo 29º, nº 8 do CIVA, ferindo os atos tributários de ilegalidade por erro sobre os pressupostos de direito.
5. DECISÃO
Assim, nos termos anteriormente expostos, decide-se:
A. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
B. Anular o ato de liquidação adicional de IVA com o número 2020..., consubstanciada no documento de liquidação adicional número ..., documento de demonstração de liquidação de IVA com o número 2020... e documento de acerto de contas número 2020..., bem como o ato de liquidação dos respetivos juros compensatórios, consubstanciado no documento de demonstração de liquidação com o número 2020... e documento de demonstração de acerto de contas número 2020...;
C. Condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento do imposto até efetivo e integral pagamento.
6. Valor do processo
Nos termos do artigo 97.º-A no 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 39.641,42.
7. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1 836.00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Autoridade Tributária. Notifique-se.
Lisboa, 21 de fevereiro de 2022
O Árbitro
Paulo Lourenço