SUMÁRIO:
I - O exercício do direito de audição prévia, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, compreende o direito do particular a requerer diligências complementares, aí se incluindo a audição de testemunhas.
II - Simetricamente, recai sobre a AT o dever de inquirir as testemunhas arroladas pelo particular, sempre que aquela inquirição seja adequada e útil para a decisão final do procedimento.
III - A adequação e a utilidade da prova testemunhal requerida há-de presumir-se, cabendo à AT fundamentar, no procedimento, a respectiva rejeição.
IV - Sendo a prova requerida pelo particular rejeitada pela AT, sem que esta fundamente expressamente a sua decisão, verifica-se preterição de formalidade essencial no procedimento de inspecção tributária, por violação do direito de audição, a qual é relevante.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Martins Alfaro, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 10-09-2021, profere a seguinte Decisão Arbitral:
A - RELATÓRIO
A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT): A..., LDA., com o NIF ... sede social na Rua ..., n.º ..., sala..., ...-... Braga.
A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.
A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral: Liquidações de IVA referentes aos anos de 2014 e 2015 e, ainda, ao período 2018/3T e respectivos juros compensatórios, no valor de € 37.646,17.
A.4 - Pedido: Ser o pedido de pronúncia arbitral julgado procedente e, em consequência, anular-se o acerto de contas no valor global de € 37.646,17.
A.5 - Fundamentação do pedido de pronúncia arbitral:
Na sequência da acção inspectiva, a Requerente foi notificada das liquidações de IVA de 2014 e 2015 e juros compensatórios, mas que pelo fenómeno de reporte apenas foram evidenciadas no 1º trimestre de IVA de 2018, tudo no montante global de € 37.646,17.
Efectivou-se um acerto de contas no período de imposto 2018/3T.
Em sede de direito de audição prévia, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, a Requerente sempre requereu à AT que procedesse a diligências complementares, designadamente, que fossem inquiridas as seguintes testemunhas:
a. B..., NIF ... e
b. C..., NIF ...
Isto porque, com a sua intervenção, estas testemunhas permitiriam à própria AT ter uma percepção plena da premência dos ajustamentos/regularizações técnicas em sede de IVA,
Até porque houve troca de Contabilista Certificado que justificou os referidos ajustamentos.
Com a diligência complementar solicitada, a Requerente pretendia que fossem ouvidos os intervenientes no processo, com o esclarecimento dos termos em que se processaram as regularizações de IVA relativas aos exercícios de 2014 e 2015.
Tendo esta diligência complementar sido recusada, o próprio procedimento de inspecção e, na sequência, a impugnada liquidação de IVA padece de ilegalidade, por preterição da formalidade legal essencial, prevista no artigo 60.º da LGT, pelo que deverá o pedido de pronúncia arbitral ser julgado procedente.
A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:
Por Excepção:
1.ª excepção: Incompetência Material do Tribunal Arbitral.
A Requerida invoca a incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer de actos em matéria tributária que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação, aqui se compreendendo a decisão do recurso hierárquico que confirmou a decisão da reclamação graciosa na parte em que esta concluiu pela intempestividade da reclamação com excepção das liquidações referentes a Janeiro e Fevereiro de 2014.
A utilização do processo de impugnação judicial ou acção administrativa especial depende do conteúdo do acto impugnado: se este acto comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação será aplicável o processo de impugnação judicial, mas se não comporta uma apreciação desse tipo é aplicável a acção administrativa prevista no CPTA.
No caso dos presentes autos, resulta que o acto administrativo sindicado, ou seja, a decisão que recaiu sobre o recurso hierárquico e, antes, sobre a reclamação graciosa, não comporta a apreciação da legalidade daquelas liquidações adicionais de imposto, não sendo, por conseguinte, susceptíveis de impugnação arbitral.
Nestes termos, deve o Tribunal Arbitral considerar-se incompetente para apreciar a pretensão da Requerente na parte em que a mesma vem sindicar a decisão do recurso hierárquico que confirmou a intempestividade da reclamação graciosa deduzida contra as aludidas liquidações de imposto, absolvendo a Requerida da instância.
2.ª excepção: Caso decidido.
A Requerente não impugnou a decisão proferida em sede de reclamação graciosa e confirmada em sede de recurso hierárquico, na parte em que a mesma concluiu pela intempestividade da reclamação graciosa.
Não impugnando a intempestividade do seu pedido de reclamação graciosa, posteriormente confirmado em sede de recurso hierárquico, a Requerente conformou-se com essa parte da decisão, a qual se tornou caso decidido.
Assim sendo, não pode o Tribunal Arbitral conhecer daquela questão, uma vez que a mesma não lhe foi submetida para apreciação e porque, ainda que o fosse, o seu conhecimento pelo Tribunal consubstanciaria uma violação do caso decidido.
Deve a excepção do caso decidido ser julgada procedente, absolvendo a Requerida da instância.
3.ª excepção: Inimpugnabilidade da liquidação relativa ao período de imposto 2018/03T.
Verifica-se a inimpugnabilidade da liquidação relativa ao período de imposto 2018/03T, por se tratar de um mero acto consequente das liquidações anteriores.
Assim, não lhe sendo assacada qualquer invalidade que lhe seja própria, deveria a reacção contra a mesma ser dirigida contra os actos que a antecederam, por serem esses os actos susceptíveis de impugnação.
Por impugnação:
A Requerente pede a anulação das liquidações de IVA supra referidas, porém nada concretiza relativamente às razões de facto e de direito em que sustenta a sua pretensão com vista a contrariar o mérito das correcções efectuadas pela inspecção tributária,
Limitando-se a invocar a preterição de uma formalidade que considera essencial, sem nada impugnar quanto à substância das correcções controvertidas.
Ou seja, não cumprindo com o ónus de impugnar, conclui-se que a Requerente não contesta as conclusões alcançadas pela inspecção tributária, as quais deixam de ser matéria controvertida.
A Requerente apenas pretende a anulação daquelas liquidações com fundamento na preterição de formalidade essencial, mas não tem razão, desde logo porque não desenvolveu o esforço de explicar, concretizando, por que razão o depoimento das testemunhas indicadas se afigurava imprescindível ao exercício do seu direito de audição prévia.
Nomeadamente, indicando as circunstâncias de facto sobre as quais cada uma delas iria testemunhar e a razão da sua mais-valia nos esclarecimentos a prestar, sempre em complemento de documentos concretamente identificados.
No exercício da acção inspectiva deve a AT optar pelas diligências que se afigurem adequadas ao apuramento da situação jurídico-tributária em análise, recusando as diligências que não cumpram esse requisito.
Por fim, não só a Requerente exerceu o seu direito de audição prévia em sede de acção inspectiva, o qual foi objecto de apreciação no Relatório Final, como sempre o exercício do direito de audição deve-se considerar como não essencial quando resulte dos autos que em face dos elementos existentes o exercício da audição prévia nos moldes pretendidos não teria a virtualidade de alterar as conclusões alcançadas pela inspecção tributária.
A.7 - Instrução:
Além das excepções invocadas pela Requerida, das quais a Requerente foi expressamente notificada para se pronunciar, não o tendo feito, não foram invocadas outras excepções nem arguidas nulidades.
O Tribunal entendeu ser de dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAMT, bem como a produção de alegações.
B - SANEAMENTO:
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 10-09-2021.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.
Como anteriormente referido a Requerida, na sua Resposta, excepcionou a competência material do Tribunal Arbitral, excepção essa que será conhecida imediatamente e com precedência do conhecimento de outras excepções e do mérito do pedido, se a este houver lugar.
Para tanto, a Requerida alegou em síntese, que dos autos resulta que o acto administrativo sindicado, ou seja, a decisão que recaiu sobre o recurso hierárquico e, antes, sobre a reclamação graciosa, não comporta a apreciação da legalidade daquelas liquidações adicionais de imposto, não sendo, por conseguinte, susceptíveis de impugnação arbitral.
E, nestes termos, deve o Tribunal Arbitral considerar-se incompetente para apreciar a pretensão da Requerente na parte em que a mesma vem sindicar a decisão do recurso hierárquico que confirmou a intempestividade da reclamação graciosa deduzida contra as aludidas liquidações de imposto, absolvendo a Requerida da instância.
Nos termos do regime estatuído nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT e 2.º, da Portaria de Vinculação, a determinação da competência material do Tribunal Arbitral afere-se em função do objecto do processo.
Da leitura do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, resulta inequívoco pretender a Requerente a apreciação da legalidade das «liquidações de IVA referentes aos anos de 2014 e 2015 e, ainda, ao período 2018/3T e respectivos juros compensatórios, no valor de € 37.646,17».
Assim, configurando a Requerente aqueles actos de liquidação como objecto do processo arbitral, é em relação a eles que deve ser aferida a competência do Tribunal.
Ora, uma vez que o presente pedido de pronúncia arbitral comporta tão-só a apreciação de actos tributários praticados pela AT, aqui Requerida, entende-se ser este Tribunal Arbitral materialmente competente para apreciar a pretensão da Requerente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 2.º da Portaria de vinculação, improcedendo assim a excepção invocada pela Requerida.
O Tribunal é, por conseguinte, materialmente competente, encontrando-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2º e dos artigos 5º e 6º, todos do RJAMT.
C - FUNDAMENTAÇÃO:
C.1 - Matéria de facto - Factos provados:
Com relevância para a decisão da presente causa, atento o único vício assacado pela Requerente ao acto tributário impugnado, têm-se por assentes os seguintes factos:
A Requerente é uma sociedade por quotas e dedica a sua actividade ao comércio por grosso de tabacos, com o CAE 46350.
Nos anos de 2014 e 2015, a Requerente encontrava-se enquadrada no regime normal de IVA.
A Requerente foi objecto de procedimento de inspecção tributária, quanto aos exercícios de 2014 e de 2015.
No âmbito do referido procedimento de inspecção tributária, a Requerente foi notificada pela AT para se pronunciar, em sede de audição prévia, sobre o projecto de conclusões do referido procedimento.
A aqui Requerente pronunciou-se sobre o referido projecto de conclusões, invocando diversos factos e juntando documentos, tendo, a final, requerido nos seguintes termos:
TESTEMUNHAS
Em face dos fundamentos expostos, clarificar o que neles é referido e esclarecer devidamente o conteúdo dos documentos anexos, requer-se que sejam inquiridas as seguintes testemunhas:
B..., NIF n.9..., residente na ..., ...-... Braga.
C..., NIF ..., residente na Rua ..., ..., ...-... Póvoa de Lanhoso.
Após o exercício do direito de audição prévia por parte da aqui Requerente, a AT proferiu decisão final do procedimento de inspecção tributária.
Pronunciando-se, na referida decisão final do procedimento, sobre os fundamentos invocados pela aqui Requerente, em sede de audição prévia, a AT escreveu o seguinte:
Conclusão
Assim, face ao exposto, com exceção dos montantes de imposto calculados no ponto 3.5 do Cap. III, corrigidos conforme os quadros inseridos no anterior ponto 2.1, consideramos que o sujeito passivo não apresentou elementos suscetíveis de promover alterações ao Projeto de Relatório nos restantes pontos, pelo que nestes, reiteramos assim, o procedimento tomado.
Na referida decisão final do procedimento de inspecção tributária, a AT não procedeu a qualquer pronúncia sobre as diligências complementares solicitadas pela aqui Requerente.
A Requerente foi notificada das liquidações de IVA, relativas aos anos 2014 e 2015, acrescidas de juros compensatórios, mas que pelo mecanismo de reporte apenas foram evidenciadas no 1º trimestre de IVA de 2018.
Tendo-se efectivado um acerto de contas no período de imposto respeitante a 2018/3T, de acordo com o seguinte quadro:
A fundamentação dos actos impugnados é a que consta da anteriormente referida decisão final do procedimento de inspecção tributária.
O termo do prazo para pagamento voluntário da liquidação n.º 2018..., relativa ao período de 201803T, ocorreu em 15-01-2019.
Em 02-05-2019, a Requerente apresentou reclamação graciosa, o qual correu termos sob o n.º ...2019....
Por decisão proferida em 06-01-2020 verificou-se o indeferimento parcial da sua pretensão.
A agora Requerente recorreu hierarquicamente daquela decisão, recurso esse que veio a ser indeferido por decisão datada de 02-02-2021.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 06-07-2021.
C.2 - Matéria de facto - Factos não provados:
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
C.3 - Motivação quanto à matéria de facto:
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados em função da sua relevância jurídica, face às soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAMT.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e no teor do Processo Administrativo junto pela Requerida, não impugnados.
C.4 - Matéria de direito:
C.4.1 - Restantes excepções invocadas pela Requerida:
O artigo 124.º, do CPPT, não faz alusão às questões processuais, diversamente do que sucede no CPC, no artigo 608.º, n.º 1, o qual estabelece um critério de precedência lógica, que impõe ao tribunal a apreciação prioritária das questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.
Com efeito, nos termos do artigo 608, n.º 1, do CPC, «sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica».
Considera-se aplicável ao processo arbitral o estabelecido no artigo 608, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT.
E o artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do RJAMT, refere-se expressamente às «excepções que seja necessário apreciar e decidir antes de conhecer do pedido».
A tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral constitui um pressuposto processual, cuja não verificação conduz à absolvição da instância - artigos 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.º 2 e 577.º, todos do CPC, e 89.º, n.º 4, alínea k), do CPTA, ex vi o artigo 29.º, n.º 1, do RJAMT -, pelo que irá apreciar-se e decidir-se, em primeiro lugar, quanto a esta questão e, de seguida, quanto à restante excepção suscitada pela Requerida.
C.4.1.1 - Excepção de caso decidido.
Embora a Requerida denomine a excepção que invoca como de "caso decidido", na verdade, tal excepção refere-se à eventual intempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral.
Com efeito, alega a Requerida que a Requerente não impugnou a decisão proferida em sede de reclamação graciosa e confirmada em sede de recurso hierárquico, na parte em que a mesma concluiu pela intempestividade da reclamação graciosa,
Pelo que, não impugnando a intempestividade da reclamação graciosa, posteriormente confirmada em sede de recurso hierárquico, a Requerente conformou-se com essa parte da decisão, a qual se tornou caso decidido.
Acrescenta ainda a Requerida que, assim sendo, não pode o Tribunal Arbitral conhecer daquela questão, uma vez que a mesma não lhe foi submetida para apreciação e porque, ainda que o fosse, o seu conhecimento pelo Tribunal consubstanciaria uma violação do caso decidido.
Não assiste razão à Requerida.
Na decisão arbitral proferida no processo n.º 415/2020-T, considerou-se, em sede de delimitação do objecto processual da arbitragem, o seguinte:
«No pedido arbitral, começa-se por invocar a violação dos princípios da verdade material e do inquisitório com fundamento na não admissão da produção de prova testemunhal, que havia sido requerida pelos sujeitos passivos no âmbito do procedimento tributário de reclamação graciosa, e que se lhes afigurava ser útil para a descoberta da verdade material e à correcta aplicação do direito, especialmente em vista a determinar os objectivos que estiveram na base da constituição da F... SGPS.
Importa referir, quanto a este aspecto, que o âmbito de competência dos tribunais arbitrais, na arbitragem tributária, é definido por referência à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte ou pagamento por conta ou à declaração de legalidade de actos de fixação da matéria tributável que não dê origem a liquidação (artigo 2.º, n.º 1, do RJAMT). Pelo que, tendo sido deduzido um pedido de constituição de tribunal arbitral para a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, o objecto do processo é esse próprio acto tributário (neste sentido, o acórdão do STA de 18 de Maio de 2011, Processo n.º 0156/11, e, na doutrina, cfr. SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol II, Coimbra, 2017, pág. 434).
A reclamação graciosa precedentemente deduzida, nos termos do artigo 70.º do CPPT, constituindo uma garantia procedimental do contribuinte, corresponde a um procedimento de segundo grau, permitindo que a Administração possa ainda tomar uma posição definitiva sobre a questão antes de o interessado poder suscitar um litígio judicial. E nesse sentido, o efeito útil e relevante do indeferimento da reclamação graciosa traduz-se na manutenção na ordem jurídica do acto tributário de liquidação».
Na senda deste entendimento - a que o Tribunal adere -, tendo sido deduzido um pedido de constituição de tribunal arbitral para a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, o objecto do processo é esse próprio acto tributário, não sendo necessário - nem adequado - sindicar, em sede arbitral, a legalidade da reclamação graciosa.
É certo que poderia dizer-se, como a Requerida, que a falta de impugnação da intempestividade da reclamação graciosa, seria impeditiva de o tribunal arbitral conhecer da tempestividade da apresentação da reclamação graciosa.
Mas tal asserção não é correcta.
Com efeito, o tribunal arbitral tem sempre competência, em razão da matéria, para o conhecimento oficioso do procedimento de reclamação graciosa, enquanto pressuposto da tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral.
Sendo a intempestividade da reclamação graciosa de conhecimento oficioso - artigos 578.º, do CPC e 89.º, nrs. 2 e 3, alínea k), do CPTA, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, do RJAMT -, então, a maiori, ad minus, também a tempestividade da reclamação graciosa é de conhecimento oficioso.
Assim, este Tribunal não aprecia a tempestividade ou a intempestividade da reclamação graciosa, enquanto causa de pedir, mas sim enquanto pressuposto processual do pedido de constituição do tribunal arbitral.
E, enquanto pressuposto processual do pedido de constituição do tribunal arbitral, não pode o Tribunal deixar de apreciar a questão da tempestividade da reclamação graciosa, para efeitos de apreciação e decisão relativamente à tempestividade do pedido de pronúncia arbitral.
O Tribunal Arbitral não aprecia, assim, a questão da legalidade da tempestividade ou da intempestividade da reclamação graciosa, limita-se a apreciar as suas consequências.
Isto é, limita-se a ponderar quais as consequências da tempestividade ou da intempestividade da apresentação da reclamação graciosa no pedido de constituição do tribunal arbitral.
E, para tal ponderação, têm os tribunais arbitrais competência material, uma vez que cabe na competência dos tribunais a apreciação dos pressupostos processuais, sendo a tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral um deles e tratando-se de matéria de conhecimento oficioso, como já se viu anteriormente.
A isto acresce que o Tribunal tem, não só o poder, como também o dever, de apreciar os pressupostos processuais - neles se incluindo a tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral.
A tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral constitui, assim, um pressuposto processual que cabe ao tribunal arbitral apreciar e de cuja apreciação o tribunal, no exercício do seu poder jurisdicional - exclusivamente vinculado à lei -, não pode prescindir.
Em consequência, tem este Tribunal competência, em razão da matéria, para conhecer da tempestividade da apresentação da reclamação graciosa, relativa aos actos tributários em causa, enquanto pressuposto processual da própria tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral, sem que para tal se revele necessário que a Requerente integre no objecto do processo a referida reclamação graciosa.
Nesse sentido, ou seja, que a tempestividade da reclamação administrativa é condição necessária para a tempestividade - no caso - da impugnação judicial, vejam-se, entre muitos, os seguintes arestos:
Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, proferido em 23-03-2017, no processo n.º 07644/14:
«Estando a reclamação graciosa fora de prazo à data em que foi apresentada, em consequência e independentemente da mesma ter sido ou não decidida, a impugnação judicial também será intempestiva».
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 02-04-2009, no processo n.º 0125/09:
«Só a tempestividade da reclamação graciosa abre à impugnante, neste caso, a possibilidade de discutir a legalidade das liquidações impugnadas, pois a sua extemporaneidade da reclamação ainda que não consequencie a extemporaneidade da impugnação conduz à sua necessária improcedência, por se reagir, então, contra um caso decidido ou resolvido».
E «só a tempestividade da reclamação graciosa abre à impugnante, neste caso, a possibilidade de discutir a legalidade das liquidações, pois a confirmar-se a intempestividade da reclamação tudo se passa como se esta não tivesse existido».
Ora, decorre da matéria de facto dada como provada que a reclamação graciosa em causa foi tempestivamente apresentada, que a decisão final de indeferimento da reclamação graciosa ocorreu em 06-01-2020, que a decisão final do procedimento de recurso hierárquico ocorreu 02-02-2021e que o pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 06-07-2021, daqui se concluindo que o pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado dentro do prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, do RJAMT, ou seja, que foi tempestivamente apresentado.
Termos em que se julga improcedente a excepção de intempestividade, suscitada pela Requerida.
C.4.1.2 - Excepção: Inimpugnabilidade da liquidação relativa ao período de imposto 2018/03T.
A Requerida defende verificar-se a inimpugnabilidade da liquidação relativa ao período de imposto 2018/03T, por se tratar de um mero acto consequente das liquidações anteriores.
Para a Requerida, não sendo assacada àquele período qualquer invalidade que lhe seja própria, deveria a reacção da Requerente ser dirigida contra os actos que a antecederam, por serem esses os actos susceptíveis de impugnação.
Também aqui não lhe assiste razão.
Com efeito, a Requerente configura o objecto processual como sendo constituído pelas liquidações de IVA referentes aos anos de 2014 e 2015 e, ainda, ao período 2018/3T e respectivos juros compensatórios, no valor de € 37.646,17.
Embora as correcções de imposto, na sequência da decisão final do procedimento de inspecção tributária, se refiram aos anos de 2014 e de 2015, a verdade é que, por virtude do peculiar mecanismo do IVA, o imposto resultante das referidas correcções veio a ser exigido apenas quanto ao período 2018/3T.
Sendo sabido que, em sede de IVA, e diversamente da concepção tradicional, a liquidação constitui um acto complexo só plenamente entendível se considerado em sentido amplo e tendo em conta o mecanismo do crédito e o encadeamento da liquidação/dedução, fica clara a razão pela qual as correcções relativas aos anos de 2014 e 2015, apenas vieram a ter efeitos lesivos do património da Requerente em 2018.
É precisamente por causa de, em sede de IVA, a liquidação constituir um acto complexo, incontornavelmente determinado pelo mecanismo do crédito e pelo encadeamento da liquidação/dedução, que se entende que o objecto do processo se encontra correctamente configurado pela Requerente: as correcções ao imposto referem-se a 2014 e 2015 e a determinação do imposto resultante ocorreu em 2018, pelo que a impugnação há-de recair sobre as correcções - enquanto fundamento do imposto adicional - e sobre a liquidação em sentido restrito - já que esta, enquanto exigência de pagamento do imposto, alterou a situação jurídica tributária do sujeito passivo.
Termos em que se julga improcedente a excepção de inimpugnabilidade, suscitada pela Requerida.
C.4.2 - A questão de mérito a decidir nos autos é a seguinte: A falta de realização das diligências complementares, solicitadas pela aqui Requerente, aquando do exercício do seu direito de audição prévia, no procedimento de inspecção tributária, constitui vício invalidante do acto tributário impugnado?
Vejamos:
Como decorre do probatório, a Requerente pronunciou-se em sede de audição prévia no âmbito do procedimento de inspecção tributária e requereu a realização de diligências complementares, no caso, a audição de duas testemunhas, alegando que tais diligências visavam «em face dos fundamentos expostos, clarificar o que neles é referido e esclarecer devidamente o conteúdo dos documentos anexos».
Igualmente como decorre do probatório, a AT proferiu a decisão final do referido procedimento, sem que se pronunciasse sobre as requeridas diligências complementares, assim ignorando por completo tal pretensão da Requerente.
O direito de participação dos particulares na formação das decisões que lhes digam respeito resulta, desde logo, do artigo 267.º, n.º.5, da Constituição.
No domínio tributário, este direito encontra consagração no artigo 60.º, n.º.1, da LGT.
Mais especificamente, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, o referido direito está plasmado no artigo 60.º, do RCPITA.
Com JOAQUIM FREITAS DA ROCHA e JOÃO DAMIÃO CALDEIRA, diremos que « O direito de audição é por natureza um direito essencial em qualquer procedimento, assumindo o mesmo em sede de inspecção uma dimensão e intensidade ainda maior, na medida em que no momento em que o mesmo deve ser exercido — na comunicação do projecto de conclusões do relatório de inspecção — ainda não existe verdadeiramente um litígio entre a Administração tributária e o contribuinte. Quando muito existe um potencial litígio, pelo que a audição nesta sede pode ter um carácter preventivo quanto à conflitualidade emergente».
É pacificamente aceite que o direito de participação dos particulares na formação das decisões que lhes digam respeito tem a dupla função de permitir ao particular defender-se de um possível acto impositivo lesivo por parte da Administração pública - no caso, da AT - e de assegurar ao particular a possibilidade de influenciar a decisão final do procedimento.
Perante uma determinada intenção concreta da Administração pública, tem o particular o direito de influenciar a decisão final do procedimento, quer no plano dos factos - apresentando factos e produzindo prova -, quer no plano do Direito - apresentando argumentos jurídicos, susceptíveis de levar a uma decisão de direito, diversa daquela que consta no respectivo projecto.
O contributo do particular para o procedimento é desejável, não apenas porque conhece melhor do que ninguém a realidade factual, - já que se trata de factos pessoais -, mas também porque tal contributo permitirá que a decisão a tomar pela Administração pública seja mais fundamentada, completa e acertada, dos pontos de vista factual e legal.
O direito de audição prévia, inclui, além do direito de pronúncia stricto sensu, também o direito - no que ao caso interessa - de requerer ao órgão instrutor do procedimento a realização de diligências complementares
O artigo 121.º, n.º.2, do CPA, aplicável ex vi o artigo 4.º, alínea e), do RCPITA, estatui que «após a audiência, podem ser efetuadas, oficiosamente ou a pedido dos interessados, as diligências complementares que se mostrem convenientes», tendo in casu a Requerente solicitado a audição de duas testemunhas para as finalidades já descritas.
A norma vinda de citar, cria, na esfera jurídica da AT, o dever de realizar tais diligências complementares.
Evidentemente, tal dever encontra-se subordinado à adequação e à utilidade para os fins do procedimento.
De tal, decorre que o órgão instrutor deverá abster-se de realizar tais diligências quando as considere desadequadas ou inúteis aos fins instrutórios do procedimento.
Como se viu, no caso dos autos, a AT ignorou por completo as diligências complementares requeridas pela aqui Requerente, não se pronunciando sobre a sua (in)adequação ou sobre a respectiva (in)utilidade.
Ora, a verdade é que, exercendo a Requerente o seu direito de ver realizadas diligências complementares, estas não devem ser efectivadas apenas nos casos em o órgão instrutor entenda que não deverão ser levadas a cabo.
O mesmo é dizer que o órgão instrutor ou decide efectivar as diligências complementares requeridas pelo particular ou decide recusá-las, mas, neste segundo caso, está sujeito ao dever de fundamentação de tal recusa.
O que não pode é recusar - ainda que implicitamente - a realização das diligências requeridas, sem mais, já que a não realização das mesmas obriga necessariamente à ponderação, face às questões a decidir e à matéria em causa, sobre a adequação e a utilidade da realização das mesmas.
Tal como se sumariou no acórdão do STA, proferido em 01-03-2011, no processo n.º 045897:
«A Administração não está obrigada a realizar todas as diligências de prova que o interessado requeira na fase de audiência prévia, transformando esta numa reabertura da instrução.
II - Mas não as poderá omitir sem se pronunciar sobre o pedido que o interessado formule nesse sentido, justificando sumariamente o indeferimento - sob pena de inaceitável degradação da faculdade conferida pelo art. 101º, nº 3, do CPA».
Poderá afirmar-se que, ao omitir, na decisão final do procedimento, qualquer referência às diligências complementares requeridas, poderá considerar-se que o órgão instrutor da AT indeferiu a realização de tais diligências.
Mas a verdade é que, embora compita «(unicamente) ao órgão instrutor avaliar da necessidade ou da pertinência das diligências requeridas pelos particulares, não estando (legalmente) obrigado a realizá-las» e que «a decisão da Administração que indeferiu as diligências de prova requeridas procedimentalmente encerra uma certa margem de discricionariedade» - Cfr. acórdão do TCA - Sul, proferido em 26-11-2020, no processo n.º 56/09.0BELRA,
Também é certo que, porém, «o órgão instrutor terá, necessariamente, que ponderar os pedidos e justificar sumariamente o seu indeferimento» e que a decisão de indeferimento pode «ser sindicada nesse aspecto em caso de erro de facto, grosseiro ou manifesto» - Cfr. acórdão do TCA - Sul, proferido em 26-11-2020, no processo n.º 56/09.0BELRA.
É que a adequação e a utilidade da prova testemunhal requerida hão-de presumir-se, cabendo à AT fundamentar, no procedimento, a respectiva rejeição, o que, no caso concreto, não fez.
Assim, no caso dos presentes autos, a AT não ponderou e, claramente, não justificou - nem sequer sumariamente - o indeferimento - implícito - do pedido de diligências complementares, por parte da Requerente.
E tal comportamento omissivo torna impossível o controle jurisdicional, em caso de erro de facto, grosseiro ou manifesto.
Acresce que - e como se sumariou no acórdão do STA, proferido em 14-05-2003, no processo n.º 317/03:
«1 - O art° 60° da LGT mais não é do que a transposição do princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões e deliberações que lhe dizem respeito e que encontra consagração expressa no art° 267°, n° 5, da CRP.
2 - Desde que ocorra qualquer das hipóteses previstas no predito preceito legal, é obrigatória a audição do contribuinte, sob pena de ter sido preterida formalidade essencial do procedimento tributário, que afecta a decisão que nele for tomada (cfr. art° 135° e 136°, n° 2, do CPA).
3 - É de anular a liquidação de imposto de sisa e juros compensatórios em que foi preterida a audiência prévia do contribuinte, quando esta possa servir, precisamente, para o interessado procurar induzir a Administração Tributária a compatibilizar a observância da legalidade na elaboração do acto de liquidação com a situação efectivamente existente».
Ainda neste patamar, cita-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, proferido em 18-04-2018, no processo n.º 06559/13, porque absolutamente revelador do pensamento deste Tribunal Arbitral:
Perante esta possibilidade de requerer diligências complementares, recai sobre a entidade administrativa o dever de as realizar, sempre que, naturalmente, as mesmas se afigurem adequadas e úteis a averiguar o circunstancialismo de facto relevante para a decisão a tomar no procedimento.
Tal adequação e necessidade de realização de diligências complementares deverá ser - e não poderá ser de outra forma, já que é a entidade administrativa que dirige o curso do procedimento - alvo de um juízo de ponderação que, obviamente, culminará na aceitação, ou rejeição, do pedido formulado pelo administrado/ contribuinte.
Com efeito, “mesmo que entenda não dever efectuar as diligências requeridas, a administração tributária deverá pronunciar-se expressamente sobre o pedido da sua realização, se não antes, na decisão final, pois, por força do disposto no art. 107º do CPA, “na decisão final expressa, o órgão competente deve resolver todas as questões pertinentes suscitadas durante o procedimento e que não hajam sido decididas em momento anterior”. Isto é, se for proferida decisão final expressa, há um dever de pronúncia generalizado da administração sobre todas as questões suscitadas pelos interessados, pronúncia essa que, a não ocorrer antes da decisão final, deverá ser nela incluída, o que decorre também do princípio da decisão, enunciado no art. 60º da LGT (deve ler-se, 56º), nos termos do qual “a administração tributária está obrigada a pronunciar-se sobre todos os assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados por meio de reclamações, recursos, representações, exposições, queixas ou quaisquer outros meios previstos na lei pelos sujeitos passivos ou quem tiver interesse legítimo” – vide, Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, Diogo Leite de Campos e outros, 4ª edição, 2012, Encontro de Escrita, pág. 514.
No mesmo sentido, pode ver-se Mário Esteves de Oliveira e outros, in CPA, Anotado e Comentado, Vol. I, 1ª edição, pág. 546, onde se refere, a propósito da decisão final expressa, que aí devem ser incluídas as “opções que o órgão instrutor tenha revelado – seja qual for o grau da sua convicção – em matéria de existência, selecção e comprovação de factos relevantes ou de interpretação e aplicação do direito”, desde que não tenha ocorrido anteriormente uma tomada de decisão expressa.
E, na verdade, a não ser assim – entenda-se, ao não se exigir uma tomada de posição expressa sobre as diligências requeridas – facilmente a possibilidade que era concedida pelo artigo 101º, nº1 do CPA redundaria em letra morta, olimpicamente ignorada pela Administração. Neste sentido, veja-se o acórdão do STA, de 01/03/01, recurso nº 45897, em cujo sumário se pode ler que “I - A Administração não está obrigada a realizar todas as diligências de prova que o interessado requeira na fase de audiência prévia, transformando esta numa reabertura da instrução. II - Mas não as poderá omitir sem se pronunciar sobre o pedido que o interessado formule nesse sentido, justificando sumariamente o indeferimento - sob pena de inaceitável degradação da faculdade conferida pelo art. 101º, nº 3, do CPA”.
Ora, no caso concreto, já vimos, os serviços de inspecção tributária não se pronunciaram no sentido de deferir, ou indeferir, as diligências de prova requeridas, ou seja, inexiste, no caso, qualquer tomada de posição reveladora de um juízo de ponderação sobre a utilidade da realização da diligência requerida.
[…]
Como é evidente, esta não é uma actuação aceitável e traduz, a nosso ver, uma manifesta violação do conteúdo do direito de audição, na sua vertente de direito dos interessados a requererem a realização de diligências complementares.
Por um lado, como já se deixou dito, a AT não está obrigada a realizar todas e quaisquer diligências que lhe são pedidas. Contudo, a não realização das mesmas obriga à ponderação, face às questões a decidir e à matéria controvertida, sobre a adequação e utilidade da realização das mesmas. Este juízo cabe inegavelmente à AT e não ao contribuinte/ administrado.
[…]
No caso concreto, deve dizer-se que, lendo as alegações correspondentes ao direito de audição, não era de afastar, ab initio, a utilidade dos depoimentos em causa, já que, como se percebe, na discussão sobre a natureza dos encargos titulados pelas facturas nºs 2194D e 9 – custos do exercício relativos a despesas de conservação e reparação ou encargos com bens de uso duradouro, integrantes do activo imobilizado – e, até, pela especificidade do caso, o conhecimento das testemunhas poderia ajudar a esclarecer, além do mais – como, aliás, a sentença não deixou de reconhecer – se as peças descritas na factura 2194 D estão “sujeitas ao desgaste do uso, com substituição previsível na campanha seguinte, uma vez que tais peças funcionam e interagem com água e com adubos líquidos altamente corrosivos, e, por isso, calcinam e entopem com frequência”; se “os componentes de maior valor constantes de tal factura são componentes eléctricos, que não aumenta a vida útil do pivot nem produz qualquer alteração à sua capacidade, sendo que sem a substituição destas peças o "pivot" não funciona”; ou se “está em causa apenas uma limpeza de vala, um trabalho de conservação e manutenção duma estrutura já existente” ou a “aquisição ou construção duma nova estrutura”.
Quer isto dizer, portanto, que, contrariamente ao decidido pelo TAF de Leiria, foi, no caso, preterida, sem qualquer justificação, uma diligência complementar de instrução oportunamente requerida pelo contribuinte inspeccionado, a qual se afigurava útil e adequada para o esclarecimento das questões em análise em sede inspectiva (o direito de audição versou, aliás, sobre todas as correcções propostas), o que consubstancia uma violação do direito de audição prévia à conclusão do relatório de inspecção, a inquinar os actos tributários de liquidação adicional subsequentes.
Do que se explanou até agora, entende o Tribunal que a omissão de pronúncia sobre a realização de diligências complementares, bem como a não ponderação de respectivo pedido e, ademais, a inexistência de qualquer justificação, ainda que sumária do seu indeferimento (para mais, implícito) e a impossibilidade de controle jurisdicional de tal indeferimento constituem causas invalidantes do procedimento de inspecção tributária e, consequentemente, do acto tributário impugnado, que nele encontrou a fundamentação.
E nem procede, no caso dos autos, o eventual aproveitamento dos actos impugnados.
Com efeito, não só as razões convocadas pela aqui Requerente, no seu requerimento de audição prévia, são pertinentemente justificativas da audição das testemunhas - bastará ter presentes os artigos 58.º, da LGT e 6.º, do RCPITA, no que toca ao princípio da descoberta da verdade material, enquanto princípio (e dever) matricial orientador da actividade administrativa -,
Como não é possível ao Tribunal afiançar, com um razoável grau de certeza ou probabilidade, que, caso tivessem sido realizadas as diligências complementares requeridas pelo particular, a aqui Requerente. o conteúdo da decisão final do procedimento de inspecção tributária e dos actos impugnados nunca seria diferente daquele que veio a ser decidido.
Chamando de novo à colação o douto acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, proferido em 18-04-2018, no processo n.º 06559/13:
importa deixar claro que, no caso sub judice, não é possível levar tão longe o princípio do aproveitamento do acto para daí concluir que, independentemente da violação em concreto do direito de audição, o conteúdo do acto nunca seria diferente daquele que veio a ser proferido.
Trata-se de uma conclusão que, no caso, não é segura, sendo certo que “tendo em conta que a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto – utile per inutile non viciatur” (cfr. acórdão do Pleno STA, de 22/01/14, proferido no processo nº 441/13).
No caso, pode e deve considerar-se que a natureza dos apontados encargos não se apresenta como algo com um conteúdo pré-determinado e indiscutível, relativamente aos quais não haja zonas cinzentas ou de fronteira e cujo concreto circunstancialismo de facto (tipo de peças, contexto da sua utilização, entre outros aspectos) possa ditar um, ou outro, enquadramento.
É, precisamente, o enfoque no caso concreto que nos leva a concluir que não podia dar-se por seguro, como entendeu o TAF de Leiria, que o exercício do direito de audiência não teria qualquer influência no conteúdo do acto de liquidação, seja na quantificação da matéria tributável, seja relativamente a outras questões de facto e de direito aptas a influir no acto final do procedimento.
Concluímos, pois, que não estamos perante uma situação em que se demonstra que, mesmo sem ter sido cabalmente cumprida a formalidade correspondente ao direito de audição, a decisão final do procedimento - leia-se, o acto tributário de liquidação adicional - não poderia ser diferente.
E, assim sendo, como entendemos que é, não havia que aplicar, contrariamente ao que concluiu o Mmo. Juiz a quo, o princípio do aproveitamento dos actos administrativos.
Tal equivale a dizer que, por violação do direito de audição, as liquidações impugnadas – como já antes fomos adiantando - teriam que ser anuladas […].
Por fim, improcede igualmente a alegação da Requerida, de que, aquando da solicitação das diligências complementares, a aqui Requerente não desenvolveu o esforço de explicar, concretizando, por que razão o depoimento das testemunhas indicadas se afigurava imprescindível ao exercício do seu direito de audição prévia, nomeadamente, indicando as circunstâncias de facto sobre as quais cada uma delas iria testemunhar e a razão da sua mais-valia nos esclarecimentos a prestar, sempre em complemento de documentos concretamente identificados.
Com efeito, não só em lado algum se vislumbra que tal indicação corresponda a uma obrigação legal do particular, como é certo que a sua falta não impedia a AT de apreender, no caso, o alcance da prova pretendida ou, mesmo, de solicitar esclarecimentos caso os entendesse necessários.
Termos em que se irá decidir pela anulação das liquidações objecto do pedido de pronúncia arbitral, com fundamento na preterição de formalidade essencial no procedimento de inspecção tributária, por violação do direito de audição.
D - DECISÃO:
De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, em consequência anulando as liquidações de IVA, objecto do pedido de pronúncia arbitral, referentes aos anos de 2014 e 2015 e, ainda, ao período 2018/3T e respectivos juros compensatórios, no valor de € 37.646,17.
E - VALOR DA CAUSA:
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 37.646,17.
O valor indicado pela Requerente não foi impugnado e não considera o Tribunal existir fundamento para o alterar, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 37.646,17.
F - CUSTAS:
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 1.836,00, indo a Requerida, que foi vencida, condenada nas custas do processo.
Notifique.
Lisboa, 07 de Fevereiro de 2022.
O Árbitro,
(Martins Alfaro)
Assinado digitalmente