DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
A..., doravante designada como “Demandante”, contribuinte n.º ..., residente em..., nº..., ..., ..., ...-... Aveiro, apresentou em 18-06-2021, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), pedido de pronúncia arbitral, com vista a:
A declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) n.º 2020/... de 31/01/2020, emitida pela Delegação Aduaneira da Figueira da Foz;
A condenação da Autoridade tributária à restituição do imposto respetivo pago;
A condenação da Autoridade tributária ao pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante do imposto pago.
É demandada a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Demandada”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 22-06-2021.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 05-08-2021, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 24-08-2021.
O Demandante baseia a sua pretensão nos seguintes factos e argumentos:
A liquidação de ISV impugnada resultou da aplicação do art. 11º do Código do Imposto sobre Veículos, o qual manda calcular a taxa de imposto, a aplicar aos veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias, aplicando uma redução percentual, variável em função da idade do veículo usado, à “componente cilindrada” da taxa normal (determinada nos termos do art. 7º do CISV), mas não aplicando a mesma ou qualquer redução à “componente ambiental” da mesma taxa;
Esta disposição do direito nacional é contrária ao art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, na medida em que tem como resultado onerar um automóvel usado oriundo de outro Estado-membro da União com um imposto superior ao que onera um automóvel igualmente usado e com a mesma idade que tenha, enquanto novo, pago ISV em Portugal.
A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, não apresentou resposta.
Por despacho do Tribunal Arbitral de 18-10-2020, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT por desnecessária, atendendo a não existir matéria de facto controvertida que carecesse de prova adicional para além da prova documental incorporada nos autos e a não existir também matéria de exceção sobre a qual as Partes carecessem de se pronunciar.
Pelo mesmo despacho, foram as Partes convidadas a apresentar alegações finais escritas, em prazos sucessivos de quinze dias, o que não fizeram.
II. Saneamento
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é materialmente competente.
As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não existem exceções a apreciar.
O processo não enferma de nulidades.
III. Questões a apreciar
A questão principal a apreciar no presente processo é a de saber se o art. 11º do CISV, ao prever, na determinação do imposto aplicável a automóveis usados originários de outros Estados-Membros da União, uma redução da taxa normal em função da idade, que é limitada à “componente cilindrada, excluindo a componente ambiental”, viola o art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia;
IV. Fundamentação
1. Matéria de facto
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
A) O Demandante adquiriu, em 9 de janeiro de 2020, na Alemanha, um veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros”, da marca ...;
B) Para a introdução do veículo no território português, foi emitida a Declaração Aduaneira de Veículo nº 2020/..., pela Delegação Aduaneira da Figueira da Foz;
C) Dessa Declaração Aduaneira de Veículo resultou uma liquidação de ISV no valor de € 5.560,77 (cinco mil, quinhentos e sessenta euros e setenta e sete cêntimos);
D) Na determinação do imposto a pagar foi aplicada uma redução de 43% à “componente cilindrada” da taxa de imposto, em correspondência com a idade do veículo;
E) Na determinação do imposto a pagar não foi aplicada qualquer redução à “componente ambiental” da taxa de imposto, em correspondência com a idade do veículo;
F) O Demandante pagou o imposto liquidado na sua totalidade.
Não existem factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.
A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pelo Demandante.
2. Discussão de direito
a. Incompatibilidade entre o artigo 11º do CISV e o artigo 110º do TFUE
O artigo 110.° TFUE proíbe aos Estados-Membros que façam incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros imposições internas superiores às que incidam sobre os produtos nacionais similares, ou imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções (acórdãos De Danske Bilimportører (C‑383/01, EU:C:2003:352, n.° 36) e Brzeziński (C‑313/05, EU:C:2007:33, n.° 27).
O artigo 110.° TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação das mercadorias entre os Estados‑Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas discriminatórias relativamente a produtos originários de outros Estados‑Membros (acórdãos Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C‑221/06, EU:C:2007:657, n.° 30 e jurisprudência referida) e Tatu (C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 34). Assim, este preceito legal deve garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos nacionais e produtos importados (acórdãos De Danske Bilimportører (C‑383/01, EU:C:2003:352, n.° 37) e Tatu (C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 35).
Segundo jurisprudência constante, um sistema de tributação de um Estado‑Membro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.° TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios (acórdãos Brzeziński (C‑313/05, EU:C:2007:33, n.° 40); Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C‑221/06, EU:C:2007:657, n.° 50) e Oil Trading Poland (C‑349/13, EU:C:2015:84, n.° 46 e jurisprudência referida).
De acordo com o art. 5º do Código, o Imposto sobre Veículos é um imposto que se aplica sobre o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal. Ou seja, trata-se de um imposto que se aplica quer sobre veículos fabricados/montados em Portugal, quer sobre veículos originários de outros países, seja por importação (de países terceiros) seja por “admissão em território nacional” (de países membros da EU).
Importante também é ter em conta que se trata de um imposto de obrigação única, que se aplica uma única vez, no momento da introdução no consumo no território nacional.
As taxas do imposto, no caso de automóveis em geral, são determinadas, nos termos do art. 7º, pela soma de duas parcelas: um montante de imposto calculado em função da cilindrada (“componente cilindrada”) e um montante de imposto calculado em função do nível de emissão de dióxido de carbono (“componente ambiental”).
O art. 11.º do CISV aplica-se especificamente à admissão de veículos usados (portadores de matrículas definitivas) provenientes de outros Estados-Membros da EU.
De acordo com este preceito, a taxa de imposto a aplicar a estes veículos também é dada pela soma de duas parcelas, a “componente cilindrada” e a “componente ambiental”.
Quanto à “componente cilindrada”, ela corresponde à taxa que o art. 7º manda aplicar à introdução no consumo de um veículo novo, mas minorada por um coeficiente que varia com a idade do veículo. Esta minoração procura fazer corresponder uma redução do montante do imposto à redução do valor comercial que o veículo regista em função da idade.
Mas já quanto à “componente ambiental”, a taxa de imposto é igual à de um veículo novo introduzido no consumo em Portugal.
Por outro lado, no caso de um veículo que foi sujeito a ISV em estado novo, o montante do ISV (“componente cilindrada” mais “componente ambiental”) pago uma única vez no momento da introdução no consumo, vai sendo amortizado ao longo da vida útil do veículo. Neste processo, as duas componentes – “cilindrada” e “ambiental” – são amortizadas exatamente na mesma proporção.
Quando o veículo (que foi sujeito a ISV em estado novo) é vendido em estado usado, o seu valor de venda irá refletir não apenas a desvalorização/perda de utilidade do veículo, mas também a amortização do ISV pago aquando da introdução no consumo. As amortizações das duas componentes da taxa concorrerão proporcionalmente para reduzir o valor comercial do veículo.
No caso de um automóvel admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro, por força das regras do art. 11º, a “componente ambiental” do imposto é igual à que incidiria sobre um veículo novo.
Desta forma, o montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro é superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo.
Não há qualquer dúvida de que o art. 11º tem como efeito fazer incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares. E assim, há que concluir que existe uma antinomia entre o art. 11º do CISV e ao art. 110º do TFUE.
Conclui-se assim que o art. 11º do CISV viola efetivamente o art. 110º do TFUE, na medida em que faz incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares.
Esta conclusão foi confirmada pelo recente acórdão do TJUE de 02-09-21 no processo C‑169/20, em que o Tribunal apreciou exatamente a questão que aqui nos ocupa, tendo decidido nos seguintes termos:
“No caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, na sequência do Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C 200/15, não publicado, EU:C:2016:453), a República Portuguesa reformou o seu regime de tributação dos veículos objeto de uma primeira colocação em circulação em Portugal. Segundo o regime resultante da referida reforma, o imposto em causa, cobrado nessa ocasião, inclui duas componentes, uma calculada em função da cilindrada do veículo em questão e a outra, denominada «componente ambiental», em função do nível de emissão de dióxido de carbono desse veículo.
Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, não está prevista nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que reflita a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.
Daqui resulta que a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.
A este respeito, não contestando que o Código do Imposto sobre Veículos não prevê nenhuma redução da componente ambiental do imposto em causa relativamente aos veículos usados importados no seu território, a República Portuguesa considera, antes de mais, que esta circunstância se justifica por um objetivo de proteção do ambiente. Com efeito, o pagamento integral da componente ambiental não tem por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas subordinar essa entrada a um critério seletivo aplicando exclusivamente critérios ambientais.
Ora, importa recordar que, embora os Estados Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C 213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).”
Concluindo o Tribunal:
“Nestas condições, há que declarar que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no Código do Imposto sobre Veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.”
b. Inexistência de obrigação de reenvio prejudicial
O art. 267º do TFUE dispõe que o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: (al. a) “sobre a interpretação dos Tratados”.
O terceiro parágrafo desta disposição diz por sua vez que “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”
Não nos parece haver dúvidas de que, com esta norma, o Tratado procurou precisamente acautelar que um tribunal nacional não tenha a última palavra quanto a uma questão de “interpretação dos Tratados”, a fim de assegurar a uniformidade na interpretação do direito primário da União.
Contudo, para que esta obrigatoriedade exista, é necessário – e aqui acompanhamos, mais uma vez, a jurisprudência arbitral citada antes – que exista “uma questão de interpretação dos Tratados”, nos termos do art. 267º TFUE.
Na sua doutrina sobre a obrigação dos tribunais nacionais lhe submeterem questões prejudiciais, o Tribunal de Justiça já deixou claro que, a fim de determinar em que condições um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal, é necessário interpretar a expressão “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada” para efeitos do Direito da União (acórdão CILFIT, C-283/81, ECLI:EU:C:1982:335, nº 8).
No acórdão CILFIT (já citado, nº 21) o Tribunal de Justiça concretizou as condições em que um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter uma questão ao Tribunal.
Nessa sentença, o Tribunal afirma que “um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça, a menos que dê como provado que a questão suscitada não é pertinente, ou que a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, ou que a correta aplicação do “Direito comunitário” se impõe com tal evidência que não deixa lugar a dúvida razoável alguma; a existência de tal circunstância deve ser apreciada em função das características próprias do “Direito comunitário”, das dificuldades particulares que apresenta a sua interpretação e do risco de divergência no interior da “Comunidade”.
Ora, como já referido, o Tribunal de Justiça pronunciou-se recentemente, no seu acórdão de 02-09-21 no processo C‑169/20, já citado, sobre a exata questão da compatibilidade do art.º 11.º do CISV com o art.º 110.º do TFUE, tendo-se pronunciado no sentido de que a norma de direito português viola essa disposição do Tratado.
Não existe, por conseguinte, qualquer dúvida interpretativa que possa justificar o reenvio prejudicial nos presentes autos.
c. Questão da devolução do imposto pago e dos juros indemnizatórios
Tendo o Demandante pago a totalidade do imposto liquidado no ato aqui impugnado, pede ao Tribunal que condene a Demandada, em caso de procedência do seu pedido, à devolução do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios.
De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea” ”( CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).
O n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).
Na sequência da anulação do ato impugnado, o Demandante terá direito a ser reembolsado do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.
Quanto ao direito a juros indemnizatórios, dispõe o art. 43º nº 3 LGT que “são também devidos juros indemnizatórios (...) d) em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.
É o caso dos presentes autos, em que se julga o art. 11º do ISV, no qual se baseou o ato de liquidação impugnado, incompatível com o art. 110º do Tratado da União Europeia.
Pelo que há que concluir que, transitada a presente decisão arbitral em julgado, o Demandante terá direito a ser ressarcido nos termos do art. 43º, nº 3, al. d), através do pagamento de juros indemnizatórios.
V. Decisão
Nos presentes autos o Demandante pede a anulação da liquidação de ISV nº 2020/..., de 31/01/2020.
Esta liquidação foi efetuada com base nos artigos 7º (veículos novos) e 11º (veículos usados) do CISV.
Em obediência ao disposto no art. 7º, a Autoridade Tributária calculou o imposto dividindo a taxa em duas componentes: “componente cilindrada” e “componente ambiental”.
A “componente cilindrada” da taxa, determinada com base na Tabela A do artigo 7º do CISV, foi calculada em 4.474,46 euros.
A “componente ambiental” da taxa, determinada igualmente com base na Tabela A do artigo 7º do CISV, foi calculada em 3.010,33 euros.
Em seguida, em aplicação da Tabela D do art. 11º, a Autoridade Tributária aplicou à “componente cilindrada” da taxa, determinada nos termos do art. 7º, uma redução de 43%, correspondente à idade do veículo.
A Autoridade Tributária não aplicou qualquer redução à “componente ambiental” da taxa em correspondência com a idade do veículo.
Concluiu-se anteriormente que o art. 11º do CISV é incompatível com o art. 110º do TFUE, ao não aplicar, aos veículos usados admitidos no território nacional provindos de um Estado-Membro, qualquer redução à componente ambiental da taxa em função da idade do veículo, na medida em que isso dá origem a que o montante total do imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro seja superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo, o que se traduz numa “possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais”, podendo assim comportar efeitos discriminatórios.
Sendo assim, deve-se concluir que o art. 110º do TFUE obriga o Estado Português a aplicar, no cálculo da “componente ambiental” da taxa de ISV incidente sobre a admissão em território português de um veículo usado provindo de outro Estado-Membro, uma redução percentual igual à aplicável à “componente cilindrada” da mesma taxa.
A redução a aplicar à componente ambiental da taxa seria de:
43% * 3.010,33 euros = 1.294,44 euros
A aplicação desta redução, em conformidade com o art. 110º do TFUE, determinaria um montante total de imposto a pagar de 4.266,34 euros, em vez do montante efetivamente liquidado de 5.560,77 euros, o que se traduz num montante de imposto indevidamente pago de 1.294,44 euros.
Assim, nos termos anteriormente expostos, decide-se:
(I) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, e consequentemente anular o ato de liquidação impugnado, concretamente a liquidação nº 2020/006517, de 31/01/2020, na parte resultante da não aplicação, à “componente ambiental” da taxa prevista na Tabela A do art. 7º do CISV, de uma percentagem de redução de 43%.
(II) Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada à devolução do imposto indevidamente pago, o qual corresponde a um montante de 1.294,44 euros;
(III) Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada ao pagamento dos juros indemnizatórios calculados sobre o montante do imposto indevidamente pago.
VI. Valor do processo
Nos termos do art. 97.º-A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em 1.294,44 euros.
VII. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 306,00 euros, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Demandada.
Notifique-se o Ministério Público, nos termos do artigo 252º do CPC, e do artigo 72º, nº 1, al a) e nº 3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
Notifiquem-se as Partes.
Porto, 23 de fevereiro de 2022.
O Árbitro
(Nina Aguiar)