Decisão Arbitral
Relatório
A… – Sociedade de Administração de Propriedades, Lda., NIPC …, sociedade civil sob a forma de sociedade por quotas, com sede na Av. …, nº …, em …, melhor identificada nos autos, formulou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no art. 10º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro) e dos Art.s 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março (Vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira), para declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações de Imposto do Selo (relativa à verba 28.1 da correspondente Tabela Geral), respeitantes ao ano de 2012, no montante total de € 17.467,64 (dezassete mil, quatrocentos e sessenta e sete euros e sessenta e quatro cêntimos).
É Requerida a Administração Tributária e Aduaneira (AT).
A Requerente não procedeu à designação de Árbitro. Para o efeito, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa designou, então, o signatário, que expressamente aceitou essa nomeação. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
O tribunal arbitral foi assim constituído em 6 de Junho de 2014.
A AT apresentou tempestivamente a sua resposta, pugnando pela total improcedência do pedido, com consequente absolvição da Requerida. Por despacho de 13 de Novembro de 2014 foi prorrogado o prazo para a decisão por um período de dois meses, a contar do final do prazo de seis meses contado do início do processo arbitral.
A reunião prevista no art. 18º do RJAT teve lugar a 16 de Dezembro de 2014 e ambas as partes alegaram por escrito.
O Tribunal foi regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes têm personalidade jurídica e capacidade judiciária, são legítimas e o processo não enferma de nulidades.
Objecto do litígio e matéria de facto
Os autos versam sobre a aplicabilidade da nova verba 28.1 da Tabela Geral do Código do Imposto do Selo a prédios em propriedade vertical. A Requerente sustenta a invalidade dos actos tributários, com consequente reembolso do imposto pago e ainda de custas processuais suportadas em processo de execução fiscal e de juros de mora igualmente suportados no mesmo âmbito e peticiona ainda juros indemnizatórios. A Requerida, pelo seu lado, além de sustentar a validade dos actos tributários contestados, excepciona ainda a intempestividade do pedido de pronúncia arbitral e que quer as custas em processo executivo, quer os juros de mora, não são passíveis de serem incluídos no escopo da arbitragem tributária, pelo que, além de também considerar dever ser o pedido improcedente nesta parte, questiona ainda o valor atribuído aos autos.
Para a decisão da causa é relevante a matéria de facto que a seguir se elenca. As liquidações de imposto em causa são as que constam dos documentos de cobrança com os números:
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…,
2012…, e
2012…;
todos eles relativos às 1ª, 2.ª e 3.ª prestações do Imposto do Selo devido em 2013 por referência a 31 de Dezembro de 2012, as quais tinham como data limite de pagamento Abril, Julho e Novembro de 2013, respectivamente (doc.s 1 a 20 do pedido arbitral).
A Requerente é uma sociedade civil sob a forma de sociedade por quotas, com sede na Av. …, nº …, em …, tendo precisamente por objecto a compra e administração do prédio sito na Av. …, nº …, freguesia de …, em …, propósito para o qual foi, aliás, constituída, com o fito de obviar à ausência de constituição do mesmo em propriedade horizontal.
Em 2012, a Requerente era proprietária daquele prédio, o qual se encontrava inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …, em …, sob o art. … (correspondente ao anterior artigo … da extinta freguesia de …) e ao qual correspondia um valor patrimonial tributário (VPT) total de € 1.681.590,00 (um milhão, seiscentos e oitenta e um mil e quinhentos e noventa euros). Este prédio correspondia a um edifício habitacional, em propriedade total, não constituído, portanto, ao tempo, em propriedade horizontal, com vários andares objecto de utilização independente: em concreto, duas habitações por piso (esquerdo e direito), num total de dez pisos (do primeiro ao décimo andares). Cada uma dessas divisões constituía uma unidade matricial autónoma, tendo sido objecto de determinação separada do respectivo VPT, sendo que a nenhum desses artigos matriciais correspondia um VPT igual ou superior a um milhão de euros (como decorre da caderneta predial urbana oferecida no pedido arbitral como doc. 21º).
Entretanto a propriedade horizontal encontra-se já constituída.
As liquidações em causa, vinte no seu total, por corresponderem a cada um dos aludidos artigos matriciais, decorrem da aplicação da nova verba 28.1 de Imposto de Selo (IS) às várias divisões independentes e afectas a habitação do dito prédio, não foram notificadas à Requerente e o seu valor total ascende ao quantitativo de € 16.815,90.
Não tendo as liquidações de imposto sido notificadas à Requerente, não foram as mesmas pagas no prazo para o respectivo pagamento voluntário, tendo dado origem a certidões de dívidas. Nessa sequência foram instaurados processos de execução fiscal em 22-12-2013, entretanto extintos por pagamento voluntário em 19-2-2014 (doc. 24).
A Requerente apenas tomou conhecimento daquelas liquidações pela citação para os processos executivos acabados de aludir. Os documentos de citação para a execução são datados de 27 de Janeiro de 2014, pelo que a requerente não teve conhecimento das liquidações em causa antes dessa data.
A verba em causa nos autos corresponde assim ao valor acima referido de imposto, adicionado de € 651,74 relativo a juros de mora pelo atraso no pagamento e ainda a custas nos processos executivos referidos, totalizando tudo o já referido montante global de € 17.467,64, valor que foi já desembolsado pela Requerente em 19 de Fevereiro de 2014.
O requerimento arbitral inicial deu entrada em 31 de Março de 2014.
Não há outros factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se encontrem provados, com excepção da ausência de notificação das liquidações de imposto à Requerente, facto porém de que a Requerida não fez prova (art. 74º da LGT: “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos …. recai sobre quem os invoque”).
Os factos provados baseiam-se nos documentos fornecidos pelas partes, cuja correspondência à realidade, com a excepção acabada de referir, não é controvertida.
Matéria de direito
Posição das partes
A questão dos autos corresponde à aplicação, nas situações da denominada propriedade vertical, da nova tributação em IS incidente sobre prédios urbanos com afectação habitacional e VPT igual ou superior a um milhão de euros. Esta nova tributação foi introduzida em 2012 para reforço das medidas de controlo orçamental pelo lado da receita, num quadro de estado de necessidade financeira[1].
Como é bem sabido, aquela nova tributação em IS tem suscitado fortes dúvidas e elevada contestação. Isto não apenas para casos pontuais da sua aplicação (e.g., propriedade vertical, compropriedade, terrenos para construção ou sua aplicação ao ano de 2012), como também em termos gerais, pela sua eventual inconstitucionalidade, seja do seu regime geral, seja do seu regime transitório[2].
Ora, a Requerente vem, precisamente, contestar a aplicação da dita tributação decorrente da aplicação a nova verba 28.1 da TGIS aos prédios urbanos não constituídos em propriedade horizontal, mas que incluam divisões susceptíveis de utilização independente, em que o valor mínimo fixado na lei de incidência seja atingido pelo somatório do VPT dos artigos matriciais correspondentes às várias divisões, mas não por qualquer um deles individualmente considerado. Do que decorreria portanto a ilegalidade dos actos tributários em causa.
Com efeito, sustenta a Requerente não ser proprietária de um prédio com VPT igual ou superior ao referido montante, mas meramente proprietária de um prédio em propriedade vertical em que o VPT superior a esse valor apenas é alcançado pelo somatório do VPT das divisões susceptíveis de utilização independente afectas a habitação, sem que nenhuma delas, considerada individualmente, atinja esse montante mínimo de relevância tributária. Por essa razão, para a Requerente, as liquidações em crise padecem de vício de violação de lei, o que as torna anuláveis.
A Requerente entende ainda que a interpretação da AT sobre o alcance da nova verba é inconstitucional, por violar, de entre outros, os princípios da legalidade e da igualdade fiscais (art. 103º da CRP).
Tendo procedido ao pagamento do imposto tido por indevido, a Requerente sustenta serem-lhe devidos juros indemnizatórios.
Sucedendo que tal pagamento ocorreu no âmbito de processo de execução fiscal, a Requerente desembolsou simultaneamente com o imposto juros de mora e custas processuais, verbas que entende deverem ser-lhe restituídas, em consequência da anulação do acto tributário e da consequente dívida subjacente.
Diversamente, a Requerida contesta aquele entendimento. Preliminarmente, considera o tribunal arbitral incompetente para a “declaração de ilegalidade dos valores pagos em sede de processo de execução fiscal e a título de juros de mora e de custas processuais”, do que decorreria ainda a necessária redução do valor do processo, o qual corresponderia em exclusivo ao valor de Imposto do Selo cobrado nos processos executivos.
Adicionalmente, por excepção, a Requerida suscita ainda a intempestividade do pedido. Para o efeito, alega (sem o provar, como se viu) que as liquidações foram remetidas à Requerente por via postal simples e que, mesmo que assim não fosse, tal como no IMI, no caso dos autos a notificação das liquidações não é uma obrigação legal, pelo que a Requerente não podia deixar de conhecer as datas limites para pagamento voluntário, das quais decorria que o prazo para solicitar a constituição do Tribunal Arbitral terminaria em 28-2-2014, tendo porém sido apresentada em 31-3-2014. Deste facto decorre ainda, para a Requerida, ser improcedente o invocado vício de falta de fundamentação e consequente preterição de formalidades legais (em virtude quer das liquidações, quer da citação para o processo executivo).
Por impugnação a Requerida sustenta a manutenção da liquidação. Em abono da sua tese salienta, em síntese, a diversidade entre propriedade horizontal e vertical, em que a propriedade total, ou vertical, corresponde a um prédio, sendo esta a realidade a atender para apurar da verificação do valor mínimo constante da norma de incidência. Invoca para o efeito o art. 2º, nº 1 do CIMI que integra o conceito de prédio, por comparação com o nº 4 do mesmo artigo, nos termos do qual no caso de propriedade horizontal cada fracção autónoma é havida como constituindo um prédio. Acrescenta ainda que o nº 3 do art. 12º do CIMI respeita apenas à forma de registar os dados matriciais.
Para a Requerida, o VPT relevante para efeitos de incidência tributária é pois o VPT do prédio urbano e não o VPT de cada uma das partes que o integram, ainda que susceptíveis de utilização independente, posto que afectas a habitação.
Por fim, entende a Requerida inexistir qualquer violação dos princípios constitucionais da igualdade e da legalidade tributárias, tão pouco da capacidade contributiva e nem sequer da proporcionalidade.
A propósito dos juros indemnizatórios, a Requerida sustenta ter feito à data dos factos uma aplicação da lei nos termos em que como órgão executivo está adstrita constitucionalmente, pelo que inexiste erro dos serviços nos termos do art. 43º da LGT, não sendo por isso aqueles juros legalmente devidos à Requerente.
Síntese das questões controvertidas
Em síntese, no caso vertente, são assim cinco as questões de direito controvertidas:
1) saber se o pedido é tempestivo;
2) saber se nas situações de propriedade vertical o VPT mínimo previsto na norma de incidência deverá ser aferido por referência a cada divisão afecta a habitação e susceptível de utilização independente ou antes pelo somatório do VPT correspondente a todas essas divisões que integrem o mesmo prédio;
3) saber se a segunda interpretação é conforme à Constituição;
4) saber se em processo arbitral pode ser peticionado o reembolso de custas de processo executivo e de juros moratórios;
5) saber se são devidos juros indemnizatórios.
Resenha legislativa
Para maior facilidade expositiva, entende-se ser útil proceder agora à transcrição das disposições legais essenciais da Lei nº 55-A/2012, de 29 de Outubro, a qual de entre outros, alterou o Código do Imposto do Selo, fazendo-o nos seguintes termos:
Artigo 3.º
Alteração ao Código do Imposto do Selo
Os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, 22.º, 23.º, 44.º, 46.º, 49.º e 67.º do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, passam a ter a seguinte redacção:
(…)
Artigo 2.º
[...]
1 - ...
2 - ...
3 - ...
4 - Nas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, são sujeitos passivos do imposto os referidos no artigo 8.º do CIMI.
Artigo 23.º
[...]
1 - ...
2 - ...
3 - ...
4 - ...
5 - ...
6 - ...
7 - Tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no CIMI.
Artigo 67.º
[...]
1 - (Anterior corpo do artigo.)
2 - Às matérias não reguladas no presente Código respeitantes à verba n.º 28 da Tabela Geral aplica-se, subsidiariamente, o disposto no CIMI.»
Artigo 4.º
Aditamento à Tabela Geral do Imposto do Selo
É aditada à Tabela Geral do Imposto do Selo, anexa ao Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, a verba n.º 28, com a seguinte redacção:
«28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000 000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 - Por prédio com afectação habitacional - 1 %;
28.2 - Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável.
Artigo 6.º
Disposições transitórias
1 - Em 2012, devem ser observadas as seguintes regras por referência à liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respectiva Tabela Geral:
a) O facto tributário verifica-se no dia 31 de Outubro de 2012;
b) O sujeito passivo do imposto é o mencionado no n.º 4 do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo na data referida na alínea anterior;
c) O valor patrimonial tributário a utilizar na liquidação do imposto corresponde ao que resulta das regras previstas no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis por referência ao ano de 2011;
d) A liquidação do imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira deve ser efectuada até ao final do mês de Novembro de 2012;
e) O imposto deverá ser pago, numa única prestação, pelos sujeitos passivos até ao dia 20 de Dezembro de 2012;
f) As taxas aplicáveis são as seguintes:
i) Prédios com afectação habitacional avaliados nos termos do Código do IMI: 0,5 %;
ii) Prédios com afectação habitacional ainda não avaliados nos termos do Código do IMI: 0,8 %;
iii) Prédios urbanos quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças: 7,5 %.
2 - Em 2013, a liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respectiva Tabela Geral deve incidir sobre o mesmo valor patrimonial tributário utilizado para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre imóveis a efectuar nesse ano.
3 - A não entrega, total ou parcial, no prazo indicado, das quantias liquidadas a título de imposto do selo constitui infracção tributária, punida nos termos da lei.
Artigo 7.º
Entrada em vigor e produção de efeitos
1 - A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
2 - As alterações ao artigo 72.º do Código do IRS e ao artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária produzem efeitos desde 1 de Janeiro de 2012.
Excepção da tempestividade
Prima facie o pedido é tempestivo, nos termos do art. 36º do CPPT, segundo o qual “os actos em matéria tributária que afectem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam validamente notificados”. Devendo contar-se nos termos da alínea f) do nº 1 do art. 102º do CPPT, ou seja, desde o conhecimento do acto lesivo do interesse legalmente protegido, o que aqui só ocorre com a citação para o processo executivo.
Ainda assim, a excepção aduzida sobre a tempestividade do pedido será melhor analisada após verificação da legalidade dos actos tributários em crise, pois a natureza do eventual vício poderá ser relevante para voltar a aferir da (in)tempestividade do pedido. Por essa razão, uma eventual especificidade em sede de IMI, e da verba aqui em causa, por efeito da remissão para o CIMI, será melhor ponderada após análise da legalidade do acto. Com efeito, para saber se a Requerente estava, ou não, em tempo para contestar a legalidade do acto, é nomeadamente relevante ter presente a natureza e especificidades do acto tributário (massificado) aqui em causa.
Propriedade vertical
Sobre a problemática da determinação do VPT (mínimo) relevante para a aplicação da verba 28.1 da TGS nos casos de propriedade vertical, já se pronunciaram, entre outras, as decisões do CAAD proferidas nos processos números 50/2013-T, 132/2013, 181/2013-T, 183/2013-T, 272/2013 2013-T, 280/2013-T, 26/2014-T, 30/2014-T, 88/2014-T, 177/2014-T e 206/2014-T.
Em todos os casos a questão residia, tal como nestes autos, em saber se o VPT relevante para a norma de incidência (28.1 da TGIS) é o VPT correspondente à divisão susceptível de utilização independente ou se, pelo contrário, o VPT relevante deverá corresponder ao somatório de todas essas divisões de um mesmo prédio, posto que tais divisões se encontrem afectas a habitação. E a resposta, naquelas decisões, foi sempre pela primeira opção.
O CIS
A nova verba foi inserida no Código do Imposto de Selo, opção que não oferece contributo de relevo para enquadrar sistematicamente o novo tributo, pois aquele imposto “incide sobre uma multiplicidade heterogénea de factos ou actos … sem um traço comum que lhes confira identidade”, o que foi, aliás, agravado pela Reforma da Tributação do Património de 2003/20014, tornando ainda mais complexo “o problema da classificação deste imposto”[3].
Mas é sabido que esta nova verba foi introduzida como forma de reforço das medidas de controlo orçamental pelo lado da receita, num quadro de estado de necessidade financeira[4], com o propósito de identificar novas exteriorizações de capacidade contributiva que pudessem ser chamadas a contribuir para aquele propósito.
E fê-lo optando por fazer incidir a nova tributação exclusivamente sobre determinados bens, implicando pois uma forte discriminação negativa destes, o que postula uma explicitação reforçada dessa opção, de modo a não colocar em crise o princípio da igualdade, ou equidade na terminologia de Glória Teixeira, quer no seu sentido de equidade horizontal, quer no de equidade vertical[5].
Ora, parece vislumbrar-se no pensamento do legislador a intenção de identificar nos imóveis de luxo destinados a habitação, um referencial, não arbitrário, de uma capacidade contributiva adicional, capaz de alargar o espectro de contributos para o desejado e necessário equilíbrio orçamental.
Neste quadro, a questão decidenda é a de saber se um prédio constituído em propriedade total ou vertical, mas com andares ou divisões com utilizações independentes, é um “prédio com afectação habitacional” para efeitos da aplicação do art.º 1.º do CIS e da verba 28.1 da TGIS, aditada pelo art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro.
Para o efeito, importa ter presente que cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição predial, a qual discrimina também o respectivo valor patrimonial tributário (n.º 2 do art.º 12.º do CIMI), sendo o IMI liquidado individualmente em relação a cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente (art.º 119.º, n.º 1 do CIMI).
E, se assim é em IMI, também assim deverá ser em Imposto de Selo. Vejamos porquê.
Interpretação literal
Como se refere na decisão tomada no processo 206/2014-T: “Dado que o CIS remete para o CIMI, há que concluir que a inscrição na matriz de imóveis em propriedade vertical, constituídos por diferentes partes, andares ou divisões com utilização independente, obedece às mesmas regras de inscrição do horizontal”.
Sendo o IMI e o Imposto do Selo “liquidados individualmente em relação a cada uma das partes”, também “o critério legal para definir a incidência do novo imposto terá de ser o mesmo”. Em consequência, haverá incidência da verba 28.1 da TGIS caso alguma dessas partes, andares ou divisões com utilização independente apresente um VPT pelo menos igual ao montante previsto na norma de incidência.
Também na decisão proferida no processo 272/2013-T (CAAD) se refere que “considerando que a inscrição na matriz de imóveis em propriedade vertical, constituídos por diferentes partes, andares ou divisões com utilização independente, nos termos do CIMI, obedece às mesmas regras de inscrição dos imóveis constituídos em propriedade horizontal, sendo o respectivo IMI, bem como o novo Imposto de Selo, liquidados individualmente em relação a cada uma das partes, não oferece qualquer dúvida que o critério legal para definir a incidência do novo imposto tem de ser o mesmo”. Aliás, aí se refere que a posição da AT “não encontra sustentação legal e é contrário ao critério que resulta aplicável em sede de CIMI e, por remissão, em sede de Imposto de Selo”, razão pela qual “a adopção do critério defendido pela AT viola os princípios da legalidade e da igualdade fiscal, bem assim como, o da prevalência da verdade material sobre a realidade jurídico-formal”.
E no mesmo sentido se refere na decisão arbitral do processo 30/2014-T (CAAD) encontrar-se na doutrina da AT uma “desconformidade com o elemento literal da parte final da norma de incidência (verba 28 da TGIS) que refere que o imposto incide sobre “o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI” e por isso, não deverá incidir sobre a soma de valores patrimoniais tributários de prédios, partes de prédios ou andares, não tendo suporte legal a operação de adição de valores patrimoniais tributários dos andares ou partes de prédio susceptíveis de utilização independente, de afectação habitacional, cindido do VPT dos demais com fins diferentes, por forma a atingir-se o limiar de tributação elegível de 1 000 000,00 de euros ou mais”.
Porém, como se refere na decisão arbitral tomada no processo 30/2014-T (CAAD), o que acontece no que respeita aos prédios urbanos com afectação habitacional, em propriedade vertical, com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, é que a AT procede, nas operações de liquidação do IS, tal como procedeu no caso vertente, à adaptação das regras do CIMI. E essa “adaptação” corresponde a “somar os VPT de cada andar ou divisão independente afecta a fins habitacionais (cindido do VPT dos andares ou divisões destinados a outros fins), criando uma nova realidade jurídica, sem suporte legal, que é um VPT global de prédios urbanos em propriedade vertical, com afectação habitacional”, o que atenta “contra o elemento literal da norma de incidência”: incidência sobre “o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI”. Pelo que “nos prédios urbanos com afectação habitacional, em propriedade vertical, com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente”, se deverá considerar o valor patrimonial tributário “que resulta exclusivamente do nº 3 do artigo 12º do CIMI. Quer para o IMI, quer para este IS”.
Concretizando, como se concluiu na decisão proferida no processo 26/2014-T do CAAD, “para efeitos de aplicação da verba 28 do TGIS aos prédios em propriedade vertical, aplicam-se as mesmas regras do CIMI que ao prédios em propriedade horizontal, e no mesmo sentido o VPT para efeitos da aplicação da verba é o VPT individual de cada fracção independente de habitacional, sendo que no presente caso nenhuma das fracções ultrapassa o critério de incidência de 1.000.000,00€”, tal como ocorre no caso dos presentes autos.
Concluí-se assim, em síntese, como claramente decorre das decisões citadas, que a interpretação literal da nova verba da TGIS não poderá deixar de ser diversa da sustentada pela AT, aliás, oposta, dada a clara e indiscutível remissão para as regras do CIMI.
Substância económica
Mas conforme bem se refere no Acórdão 117/2013 T do CAAD, "a interpretação exclusivamente baseada no teor literal .... não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada». Sendo que para se verificar uma correspondência entre a interpretação e a letra da lei bastará «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), o que só impedirá que se adoptem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa”.
Efectivamente, se olharmos agora para a substância económica dos factos tributários, em cumprimento do art. 11º, nº 3 da LGT, sem para o efeito se aderir a uma interpretação económica das normas de direito tributário, hoje condenada pela doutrina (cfr. Impostos, Teoria Geral, Américo Fernando Brás Carlos, pág. 196, 2014, 4º ed. Almedina), teremos igualmente de reconhecer que a expressão “cada prédio urbano” usada no nº 7 do artigo 23º abrange não apenas os prédios urbanos em propriedade horizontal, como também os andares, divisões ou partes de prédios urbanos em propriedade vertical, desde que afectos a fins habitacionais, partindo sempre, em qualquer dos casos, de uma só base tributável para todos os efeitos legais: o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI (parte final da verba 28 da TGIS), como se concluí na decisão arbitral do processo 177/2014-T (CAAD).
Ou, como se salienta na decisão proferida no processo 272/2014-T do CAAD, “na óptica do legislador, não importa o rigor jurídico-formal da situação concreta do prédio mas sim a sua utilização normal, o fim a que se destina o prédio”, pelo que “para o legislador a situação do prédio em propriedade vertical ou em propriedade horizontal não relevou, pois que nenhuma referência ou distinção é efectuada entre uns e outros. O que releva é a verdade material subjacente à sua existência enquanto prédio urbano e à sua utilização”.
Aliás, no caso dos autos, dada a posterior constituição da propriedade horizontal, esta conclusão é particularmente evidente: não obstante a manutenção da substância económica da realidade subjacente haveria incidência de IS até um determinado ano (propriedade vertical), mas não nos anos subsequentes (propriedade horizontal), o que bem demonstra falta de adesão à realidade facto-económica da interpretação administrativa de que o acto tributário é expressão.
Coesão do sistema
E se procurarmos olhar para a globalidade do sistema tributário não encontraremos indícios que venham infirmar a conclusão traçada até agora.
Como se refere no Acórdão proferido no processo 26/2014-T do CAAD, não se vislumbra qualquer censura do legislador à propriedade vertical. Com efeito, “dir-se-á, não sem razoabilidade, que o legislador, para efeitos de tributação em sede de IMI, optou por conferir autonomia, independência, a cada uma das partes ou a cada um dos andares de um único prédio, desde que umas e outros se mostrem de utilização independente, ao ponto de prever a inscrição individualizada na matriz de cada uma dessas partes independentes e de impor à tributação em sede de IMI uma cobrança também ela autónoma. Mau grado a existência jurídica de um único prédio, é o próprio legislador que não apenas recomenda mas impõe a consideração autónoma de cada uma das partes independentes, para efeitos de tributação do património”. Aliás, como decorreria de uma interpretação económica do facto, com prevalência da sua substância sobre a sua forma, como acima se viu. E se assim é em IMI, não se perceberia que assim não fosse, também, em Imposto de Selo, nomeadamente no caso da nova tributação sobre prédios (casas, melhor dizendo) de luxo.
Assim, como se decidiu nos processos 26/2014-T e 272/2014-T do CAAD, “o regime jurídico actual não impõe a obrigação de constituição de propriedade horizontal”, razão pela qual “a discriminação operada pela AT traduz uma discriminação arbitrária e ilegal “, pois “não pode a AT distinguir onde o próprio legislador entendeu não o fazer, sob pena de violar a coerência do sistema fiscal, bem assim como o princípio da legalidade fiscal previsto no artigo 103º, nº2 da CRP, e ainda os princípios da justiça, igualdade e proporcionalidade fiscal.”
Ou seja, continua a valer a interpretação literal inicialmente alcançada.
Intenção do legislador
E o certo é que nada induz o intérprete na conclusão que o legislador da nova verba da TGIS, contrariamente ao legislador do IMI, tenha pretendido discriminar a propriedade vertical face à horizontal. Como bem se relembra no Acórdão proferido no já referido processo 26/2014-T do CAAD, “aquando da apresentação e discussão, no Parlamento, da proposta de lei n.º 96/XII (2.ª), o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais referiu expressamente: “O Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012 e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros” (cfr. DAR I Série n.º 9/XII -2, de 11 de Outubro, pág. 32). Ora, como se salienta nesse Acórdão, “o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apresenta esta proposta de lei referindo sem tibiezas a expressão “casas”… de valor igual ou superior a 1 milhão de euros”, pelo que “resulta com meridiana clareza que a verba 28.1 da TGIS não pode ser interpretada no sentido de nela estarem abrangidos cada um dos andares, divisões ou partes susceptíveis de utilização independente quando apenas do respectivo somatório resulta um VPT superior ao que prevê a mesma verba”. Isto porquanto, nesse caso, “nenhuma das “casas” … apresenta, de per se, “valor igual ou superior a 1 milhão de euros””.
Sendo portanto claro, tal como se refere na referida decisão 272/2014-T, que para o legislador só aquele valor de um milhão de euros, ou um valor superior, desde que afecto “a uma habitação (casa, fracção autónoma ou andar com utilização independente) traduz uma capacidade contributiva acima da média e, enquanto tal, susceptível de determinar um contributo especial para garantir a justa repartição do esforço fiscal.”
E se assim é, então, para tanto, teremos pois de atender ao conceito de “casa” enquanto unidade susceptível de utilização independente, pois é nessa realidade económica que encontraremos a identificação da exteriorização da capacidade contributiva que o legislador considerou relevante. Mais, se assim não fosse, procederia o legislador a uma discriminação que não se encontraria justificada, pois como já se viu não se encontra no sistema uma censura da propriedade vertical quando comparada com a horizontal. Mais, essa distinção chocaria com uma necessária equidade entre idênticas exteriorizações de uma mesma capacidade contributiva.
Capacidade contributiva e interpretação conforme à Constituição
É seguro que o legislador fiscal está subordinado aos princípios da igualdade, o qual, como bem refere Sérgio Vasques[6], é mais do que um mero limite negativo e impõe algo mais do que a mera proibição do arbítrio, postulando antes uma repartição dos impostos de acordo com o critério da capacidade contributiva, pelo que o legislador terá de ancorar a tributação em elementos económicos razoáveis e não arbitrários, susceptíveis de justificar a pretensão tributária numa capacidade contributiva concretamente exteriorizada pelo sujeito passivo.
É assim imperativo procurar no texto da nova norma uma leitura que dê cumprimento àqueles princípios. Ou, o que vale o mesmo, não procurar naquele texto um sentido que viole tais princípios.
Ora, as capacidades contributivas exteriorizadas pela propriedade de um prédio composto por um conjunto de fracção autónomas em propriedade horizontal ou por um conjunto de divisões de utilização independente em regime de propriedade vertical, não podem deixar de ser consideradas idênticas, se não mesmo, eventualmente, menores no caso da segunda hipótese. Ou seja, um prédio não tem, seguramente, um valor de mercado maior por estar organizado como propriedade vertical. Vale o mesmo, se não mesmo menos, já que as alternativas de transmissibilidade são menores. E sabemos que o VPT pretende ser uma aproximação, precisamente, ao valor de mercado dos prédios.
Assim, a interpretação pugnada pela AT conduziria a uma manifesta desigualdade entre proprietários de imóveis em propriedade horizontal e em propriedade vertical e já se viu que não se vislumbra uma qualquer intenção penalizadora destes, mesmo que se admitisse que tal fosse constitucionalmente admissível. Nesse mesmo sentido, como bem se salienta na decisão do processo 272/2014-T do CAAD, a “existência de um prédio em propriedade vertical ou horizontal não pode ser, por si só, indicador de capacidade contributiva. Pelo contrário, da lei decorre que uns e outros devem receber o mesmo tratamento fiscal em obediência aos princípios da justiça, da igualdade fiscal e da verdade material”.
Concluindo, como se conclui na decisão proferida no processo 26/2014-T do CAAD, “a verdade material é a que se impõe como critério determinante da capacidade contributiva e não a mera realidade jurídico-formal do prédio, visto que constituição da propriedade horizontal implica uma mera alteração jurídica do prédio não impondo sequer uma nova avaliação”. E esse facto “não se afigura coerente com a decisão da AT tributar as partes habitacionais de um prédio em propriedade vertical, em função do VPT global do prédio e não do que é efectivamente atribuído a cada parte.” Assim e como já se transcreveu acima, “não pode a AT distinguir onde o próprio legislador entendeu não o fazer, sob pena de violar a coerência do sistema fiscal, bem assim como o princípio da legalidade fiscal … e ainda os princípios da justiça, igualdade e proporcionalidade fiscal”.
Nestes termos, os actos tributários em crise enfermam de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, pois nenhuma parte de prédio possui VPT de valor igual ou superior ao limiar decorrente da norma aplicada, o que torna os ditos actos tributários anuláveis.
Excepção: Tempestividade (cont.)
Já se viu a relevância do art. 36º do CPPT, conduzindo a que o início do prazo ocorresse nos termos da alínea f) do art. 102º do CPPT (cfr. ainda com o nº 4 do art. 70º do CPPT, a propósito da reclamação graciosa), mas também que a questão deveria ser reapreciada depois de melhor dissecado o acto tributário em causa,
Ora, sabe-se que a Requerente só foi notificada das liquidações colocadas em crise com a presente acção arbitral com a citação para os processos executivos, por ausência de pagamento voluntário. Com efeito, não obstante as liquidações de imposto terem sido “feitas em 2013-3-22”, o certo é que as mesmas não foram levadas ao conhecimento da Requerente até à citação para o correspondente processo executivo. Ou, pelo menos, a Requerida não o demonstra, como lhe competia, atenta a repartição do ónus da prova (cfr. art. 74º da LGT já citado).
Questão diversa é, ainda assim, a de saber se o deveria ter feito. Isto porquanto a AT invoca o art. 46º, n.º 5 do CIS e o art. 119º do CIMI, normas que determinam que a AT deve “enviar, até ao fim do mês anterior ao do pagamento, o competente documento de cobrança, com a discriminação dos prédios, suas partes suscetíveis de utilização independente, respetivo valor patrimonial tributária e de coleta imputada a cada município da localização dos prédios”, determinando ainda o art. 119º, n.º 3 do CIMI que, caso não seja enviado o documento de cobrança, cabe ao sujeito passivo solicitar 2ªas vias para efectuar o pagamento.
Ou seja, entende a AT que caberia ao sujeito passivo, por sua iniciativa e dado o silêncio da AT, solicitar a liquidação do imposto, ou a notificação do acto, para proceder ao seu pagamento ou reagir contenciosamente, questionando a legalidade dessa liquidação. Não o tendo feito, estaria agora precludido o seu direito, por decurso do prazo para reclamar, impugnar ou suscitar pedido arbitral.
E é aqui que os autos merecem profunda reflexão.
As liquidações de IS são indevidas por serem ilegais, como se viu e é jurisprudência pacífica e aceite, quer neste CAAD, quer no STA (para além do aqui já referido, a Requerente cita nas suas alegações[7], ainda inúmeras decisões já proferidas no mesmo sentido[8]).
Mesmo que se aceitasse que, no caso vertente, as regras do IMI prescindiriam de notificação do imposto para início de contagem do prazo de impugnação, importaria sempre ter presente estarmos no início da aplicação de um novo tributo, sendo do domínio público que os operadores económicos não haviam, sequer, antecipado a possibilidade da interpretação administrativa que veio a incluir no âmbito de incidência da norma prédios como os dos autos.
Ou seja, nada poderia levar a Requerente a suspeitar, sequer, da possibilidade de ser sujeito passivo de uma liquidação como a dos autos.
A ser assim, poderia ser legítimo impor-lhe o ónus de requerer uma liquidação (indevida e que não poderia sequer ponderar ser devida), ou a sua notificação, como forma de poder fazer valer o seu direito?
Se ficcionarmos uma outra situação teremos maior facilidade de resposta: imaginemos que o “sistema informático” emitia liquidações por referência a prédios urbanos de VPT inferior a um milhão de euros e que o sujeito passivo vinha a ter conhecimento desse facto apenas após o decurso do suposto prazo, contado desde a data limite fixada para o (indevido) pagamento. Poderia a AT defender-se sustentando a extemporaneidade do pedido, sem manifesto abuso de direito? Obviamente que não! Como bem sustenta a Requerente “Não faz qualquer sentido que a Requerente efectuasse – ou tivesse de efectuar - o pedido de emissão de 2ºas vias para pagamento um imposto que (i) não é devido, (ii) é ilegal e, ademais, (iii) cuja entrada em vigor ocorreu no ano em causa e para imóveis que não correspondem ao objecto dos tributos ora em crise.”
Não pode pois o sujeito passivo contar com um comportamento ilegal da AT e ficar sujeito a um prazo cujo início de contagem desconhece. Tal corresponderia à denegação do direito à sindicância da respetiva legalidade, em violação directa e expressa do princípio da tutela dos direitos da Requerente, constitucionalmente previstos, entre outras, nas normas dos arts. 20º, n.º 1 e 202º, n.º 2 da CRP.
Logo, o prazo de reacção só poderá contar-se com o conhecimento da (ilegal) pretensão da AT. A tal não obsta o RJAT pois o seu art. 10º determina que o prazo de apresentação da acção arbitral se conta dos factos previstos no n.º 1 e 2 do art. 102º do CPPT, i.e. a partir do “termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte”.
Vale pois aqui o art. 36º do CPPT e a alínea f) do art. 102º do CPPT.
Ora, como resultou dos presentes autos, as liquidações relativas ao imposto em crise foram notificadas à Requerente com indicação da data limite de pagamento em 28 de Fevereiro de 2014 e a Requerente não tomou conhecimento dos actos aqui em crise antes de 27 de Janeiro de 2014, pelo que a acção foi tempestivamente apresentada em 31 de Março de 2014.
Tendo a Requerente suscitado tempestivamente a ilegalidade da liquidação, logo que tomou conhecimento das liquidações (com o processo executivo), não procede pois a excepção aduzida pela AT.
Custas do processo executivo, juros moratórios e valor dos autos
Ainda que suscitada ao nível do valor do processo, a objecção da AT é mais ampla, pois dela decorre o entendimento segundo o qual o pedido de reembolso do valor pago a título de custas e de juros de mora, por ocasião e por causa de processo executivo decorrente dos actos tributários aqui censurados, não poderia ser apreciado nesta sede (arbitral). Por outro lado é evidente que a objecção não respeita ao valor das liquidações de imposto em execução, pois o pedido da Requerente, como é bom de ver, não decorre, nesta parte, dos valores coercivamente cobrados, mas sim das liquidações de imposto que estão subjacentes e que, como vimos, não lhe haviam sido notificadas.
Ora, tem sido entendimento que a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos (art. 2º, nº 1, alínea a) do RJAT) deverá ter o alcance da acção de impugnação e que na apreciação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD deverá ter-se presente princípios de celeridade, economia e eficácia processuais, permitindo uma eficaz e completa tutela dos interesses em causa, nomeadamente dos sujeitos passivos.
Neste sentido, a arbitrabilidade daquelas duas questões acessórias à discussão da legalidade do acto tributário afigura-se evidente, pois decorrem directamente do acto tributário em causa, tendo lugar no quadro do processo administrativo em sentido amplo de liquidação e cobrança do imposto. Mais, como é evidente a anulação do acto só será eficaz na reposição da situação anterior à ilegalidade havendo reembolso de acréscimos cobrados no quadro do processo de liquidação e cobrança em sentido amplo acima referido. Veja-se que, sintomática e impressivamente, da citação consta uma única quantia exequenda que inclui as três verbas (imposto, custas e juros – cfr. doc.s 1 a 20) e o documento de cobrança e recibo dá quitação do imposto e acrescidos (cfr. doc 24).
Haverá, porém, que determinar se tal resultará excepcionado da vinculação (voluntária) da AT ao RJAT. Assim, no art. 2º da correspondente Portaria, encontramos a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida, com um conjunto de excepções listadas nesse preceito. Porém, aquelas quatro excepções de modo algum estão conexas com consequências acessórias de actos tributáveis arbitráveis, mas sim com certos actos de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamentos por conta ou ainda de aplicação de métodos indirectos, bem como certas pretensões relativas a direitos aduaneiros, demais impostos indirectos conexos com importações ou certas questões relacionadas com determinadas questões aduaneiras.
Importa pois concluir que a apreciação da liquidação de actos tributários como os aqui em causa, implicará também a apreciação da legalidade de encargos com juros de mora e custas por processo de execução, suportados em consequência directa da liquidação daqueles actos.
Em consequência, declarada a ilegalidade daqueles tributos deverá declarar-se deverem ser restituídas à Requerente as quantias desembolsadas não apenas a título de imposto, mas também a título de custas processuais e juros moratórios (acrescidos), tal com peticionado.
Em consequência, o valor dos autos deverá ser de € 17.467,64,00, por ser essa a utilidade económica do processo.
Juros indemnizatórios
Tem sido jurisprudência pacífica que verificada a ilegalidade da liquidação, se imputa sempre o erro aos serviços, do que decorre o dever de indemnizar o sujeito passivo com juros indemnizatórios contados deste a data de desemboslo até integral reembolso. Mais, no caso dos autos, como tem sido igualmente jurisprudência pacífica não se vê como não imputar à AT o erro pela interpretação legislativa que ela própria criou.
É pois evidente serem devidos juros indemnizatórios nos termos referidos, sendo que imposto e acrescidos deverão considerar-se “dívida tributária” para efeitos do nº 1 do art. 43º da LGT, contando-se os juros nos termos do art. 61º do CPPT, tendo presente que o pagamento de imposto e acrescidos ocorreu em 19-02-2014.
Dispositivo
Em resultado do exposto, este Tribunal Singular decide julgar procedente o pedido e, em consequência,
a) anular os actos de liquidação em crise, com fundamento em violação de lei, correspondente a erro nos pressupostos,
b) com consequente reembolso à requerente do montante de imposto indevidamente liquidado e pago de € 16.815,90;
c) acrescido de € 651,74 respeitante a juros de mora pelo atraso no pagamento e a custas nos correspondentes processos executivos, igualmente desembolsados;
d) acrescido ainda de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde o desembolso até integral reembolso, calculados sobre o montante total do pedido (€ 17.467,64).
Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, nºs 1 e 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 17.467,64.
Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00 (mil, duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 29-01-2015
Texto elaborado em computador, nos termos do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, regendo-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, com versos em branco e revisto pelo árbitro signatário.
O árbitro
(Jaime Carvalho Esteves)
[1] Ou económico-financeira, cfr. Sustentabilidade e Solidariedade em Tempos de Crise, Suzana Tavares da Silva, in Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise, Coord. José Casalta Nabais e Suzana Tavares da Silva, pág.s 61 e ss.
[2] Ver Luís Menezes Leitão, Sobre a Tributação em Imposto de Selo dos Imóveis de Luxo (verba 28.1 TGIS), in Arbitragem Tributária nº1, pág.s 44 e ss.
[3] Cfr. José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, 2ª Ed., 2012, pág.s 424 e 422, Almedina.
[4] Ou económico-financeira, cf. Sustentabilidade e Solidariedade em Tempos de Crise, Suzana Tavares da Silva, in Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise, Coord. José Casalta Nabais e Suzana Tavares da Silva, pág.s 61 e ss.
[5] Glória Teixeira, Manual de Direito Fiscal, pág. 56, 2º ed., Almedina.
[6] Manual de Direito Fiscal, págs. 249 e ss, 2011, Almedina.
[7] Aqui largamente citada.
[8] Vide as decisões do Tribunal Arbitral nos processos n.ºs 42/2013-T, 48/2013-T, 49/2013-T, 50/2013-T, 75/2013-T, 132/2013-T, 144/2013-T, 158/2013-T, 180/2013-T, 181/2013-T, 189/2013-T, 183/2013-T, 205/2013-T, 215/2013-T, 218/2013-T, 225/2013-T, 231/2013-T, 288/2013-T e 310/2013-T, e os acórdãos do STA n.ºs 55/14, de 14-05-2014, 0271/14 de 23-04-2014, 0270/14 de 23-04-2014, 0272/14 de 23-04-2014, 01870/13 de 09-04-2014, 048/14 de 09-04-2014, 055/14 de 14-05-2014, 01871/13 de 14-05-2014 e 0317/14 de 14-05-2014.