Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 635/2020-T
Data da decisão: 2022-02-03  IRS  
Valor do pedido: € 34.907,60
Tema: IRS – Mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes
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Sumário

 

I. O atual regime de tributação de mais-valias imobiliárias previsto no CIRS, mesmo após a introdução do regime opcional previsto no artigo 72.º do CIRS pela Lei n.° 67-A/2007, de 31 de Dezembro, consubstancia uma discriminação negativa de não residentes e, nesse sentido, uma restrição aos movimentos de capitais incompatível com o artigo 63.° do TFUE.

 

 

A árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral singular constituído em 03.05.2021, profere a decisão que se segue:

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

 

A…, residente em 54 Rue … Orge, França, em França, portadora do cartão de cidadão n.º … e NIF … (“Requerente”), ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, 10.º, n.o 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), vem requerer a constituição de tribunal arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2019 …, de 26 de julho de 2019, referente ao período de tributação de 2018, no montante global de € 34.907,60 e, bem assim, da decisão de indeferimento tácito da revisão oficiosa apresentada.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 17.11.2020.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a Árbitro designada pelo Conselho Deontológico comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 11.01.2021 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação atual, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03.05.2021.

 

A AT apresentou Resposta em 01.06.2021.

 

A Requerente apresentou resposta às exceções invocadas pela AT em 11.06.2021.

 

Através de despacho proferido a 20.10.2021, o tribunal notificou as Partes para, querendo, apresentarem alegações escritas, o que estas vieram a fazer, tendo também dispensado a reunião prevista no artigo 18.º e prorrogado o prazo para prolação da decisão arbitral nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT.

 

No dia 29.12.2021, o Tribunal proferiu despacho a prorrogar o prazo previsto no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT pela segunda vez.

 

II. Posições das Partes

 

No pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo, a Requerente sustenta, resumidamente, o seguinte:

 

Do regime de tributação das mais-valias imobiliárias previsto no Código do IRS decorre, no entender da Requerente, a diferença de tratamento em sede de IRS entre rendimentos provenientes de mais-valias imobiliárias auferidos por sujeitos passivos não residentes em Portugal – tributados em 100% – e por sujeitos passivos residentes em território nacional – tributados parcialmente, em montante correspondente a 50% do saldo entre as mais e as menos-valias imobiliárias geradas.

 

Relativamente a sujeitos passivos não residentes em Portugal – como a Requerente – inexiste uma disposição semelhante à vertida no artigo 43.º, n.º 2, do CIRS que preveja a tributação parcial dos rendimentos provenientes de mais-valias imobiliárias (em montante correspondente a 50% do saldo entre as mais e as menos-valias).

 

Com efeito, a referida disposição legal afigura-se inaplicável à Requerente tão-somente por a mesma não ser um sujeito passivo residente em território nacional para efeitos fiscais.

 

Constata-se pois que o regime previsto no artigo 43.º, n.º 2, do CIRS, cujo âmbito de aplicação está circunscrito a sujeitos passivos de IRS residentes em Portugal, é mais favorável do que o regime fiscal aplicável a sujeitos passivos de IRS não residentes em território português, consubstanciando por isso uma discriminação em função do lugar da residência fiscal.

 

Atenta a factualidade acima exposta, a Requerente entende que uma das liberdades fundamentais previstas no TFUE se opõe à aplicação restritiva do artigo 43.º, n.º 2, do CIRS a residentes, determinando, a contrario sensu, a tributação em sede de IRS da globalidade do «saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano» por não residentes – in casu, pela Requerente.

 

Neste contexto, recorda que, de acordo com o artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o Direito da União Europeia é aplicável na ordem interna nos termos do Direito europeu – isto é, por força do primado da legislação europeia sobre o Direito doméstico, conforme se infere igualmente do disposto no artigo 8.º, n.º 2, da CRP e, bem assim, do artigo 1.º, n.º 1, da LGT.

 

A situação pela qual um residente de um Estado-membro aufere rendimentos resultantes da alienação de um imóvel localizado noutro Estado-membro constitui uma operação intraeuropeia abrangida pelo TFUE, conforme foi já por diversas vezes afirmado pelo TJUE, designadamente no Acórdão Hollmann (C-443/06).

 

Quanto ao segundo requisito elencado cumpre analisar em que medida o tratamento fiscal concedido pelo artigo 43.º, n.º 2, do CIRS ao «saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias» respeitante a transmissões efetuadas por residentes, vis-à-vis aquele respeitante a transmissões efetuadas por residentes noutros Estados-membros, deverá ser considerado como uma restrição a uma das liberdades fundamentais previstas no TFUE.

 

A liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE abrange todas as formas de investimento direto, estabelecimento, prestação de serviços financeiros ou admissão de valores mobiliários em mercados de capitais, o que motiva a doutrina a considerar que tal liberdade engloba «[...] qualquer transferência de valores de um Estado para outro ou, no interior de cada Estado, qualquer transferência para um não residente» (cfr. MOTA CAMPOS, Manual de Direito Comunitário, Volume III, 2004, Edições Fundação Calouste Gulbenkian, página 397).

 

Com efeito, embora o TFUE não contenha qualquer definição de capitais para efeitos do disposto no artigo 63.º, quer o TJUE quer a doutrina têm seguido a enumeração e classificação constante da Diretiva n.º 88/361/CEE, relativa à liberdade de circulação de capitais [cfr. Acórdão Franked Investment Income Group Litigation (C-446/04) e ANA PAULA DOURADO, Nondiscrimination in capital income taxation, EC Tax review, n.º 4, 1994, página 179].

 

Assim, tem-se entendido que o conceito de movimento de capital abrange qualquer transferência de capital, onerosa ou não, de um Estado para outro, incluindo a proveniente de atos de transmissão de imóveis. Na situação sub judice, a legislação portuguesa em análise será então potencialmente violadora da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, estabelecendo esta disposição, no seu n.º 1, que «[...] são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados membros».

 

Termos em que caberá determinar em que medida o tratamento fiscal diferenciado conferido aos rendimentos (advenientes de mais-valias imobiliárias) auferidos por não residentes em território nacional constitui uma restrição contrária à liberdade de circulação de capitais.

 

No contexto do Direito da União Europeia, a discriminação implica um efetivo tratamento diferenciado por um Estado-membro de uma operação ou situação intraeuropeia (transnacional) por comparação com uma situação doméstica que partilhe com aquela uma identidade quanto aos seus aspetos essenciais. Para além da existência de um tratamento diferenciado, o princípio da não discriminação comporta ainda uma ideia de tratamento desigual negativo, desvantajoso para os respetivos beneficiários, no caso, pessoas de outros Estados-membros.

 

Posto de outro modo, de acordo com uma interpretação de substância sobre a forma, dois contribuintes – residente e não residente de um Estado-membro – estarão numa situação comparável se apresentarem uma conexão comum com o sistema fiscal desse Estado-membro.

 

Atento o exposto, no entender da Requerente, a situação na qual um residente em território nacional aufere rendimentos advenientes da alienação de imóvel sito em Portugal é comparável à situação que está na origem do presente procedimento, em que tais rendimentos são auferidos por residente fiscal em França ou em qualquer outro Estado-membro.

 

Na situação sub judice, a Requerente não pôde beneficiar do regime ínsito no artigo 43.º, n.º 2, do CIRS, pelo mero facto de não ser residente para efeitos fiscais em Portugal, o que permite concluir pela existência de uma situação de discriminação em violação da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.

 

A aplicação restritiva do artigo 43.º, n.º 2, do CIRS a contribuintes residentes em território nacional, excluindo do seu âmbito contribuintes residentes noutro Estado-membro, consubstancia uma restrição à liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, que não é suscetível de ser justificada pela necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal português.

 

Por tudo quanto se expôs, o tratamento discriminatório operado pelo artigo 43.º, n.º 2, do CIRS bule necessariamente com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE e, por via disso, com o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, por violação do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito interno, facto que deverá determinar a anulação da liquidação de IRS ora em crise nos termos do artigo 163.º do CPA.

 

Em consequência, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, a Requerente pede o reconhecimento do erro imputável aos serviços da Autoridade Tributária e, nessa medida, para além do reembolso do montante de imposto indevidamente pago, o pagamento de juros indemnizatórios, computados sobre esse montante, desde a data do seu pagamento indevido até à emissão da respetiva nota de crédito, tudo com as demais consequências legais.

 

 

Na Resposta apresentada, a AT defendeu-se por exceção e por impugnação:

 

1) Por exceção

 

Caducidade do direito de ação

 

A AT alega que a liquidação objeto dos autos devia ter sido paga até 04.09.2019 e que, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado em 16.11.2020, foi-o muito depois do prazo consignado no artigo 10.º do RJAT.

 

Por outro lado, em seu entender, não pode a Requerente usar o pedido de revisão oficiosa apresentado em 05.05.2020 para invocar a tempestividade da presente P.P.A, uma vez que o mesmo para ser apreciado pela AT tinha que ser apresentado nos termos do artigo 78.º n.º 1 da LGT que refere – “A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.”

 

Assim, a Requerente tinha até ao dia 04.01.2020 para apresentar o pedido de revisão oficiosa, pelo que a sua apresentação em 05.05.2020 é claramente intempestiva.

 

Incompetência material absoluta do CAAD para apreciação da legalidade do indeferimento tácito da revisão oficiosa apresentada

 

Tendo em consideração o disposto no artigo 2.º do RJAT, a competência do CAAD circunscreve-se à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

Assim, o CAAD nunca se poderia pronunciar, e muito menos decidir, sobre o pedido relativo à declaração de ilegalidade do indeferimento tácito da revisão oficiosa apresentada. A incompetência material configura uma exceção dilatória que implica a absolvição da instância, alínea a) do n.º 4 e n.º 2 do artigo 89.º do CPTA, aplicável por força do estatuído na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

2) Por impugnação

 

Com vista à adaptação da legislação portuguesa à legislação comunitária foi aditado ao artigo 72.º do CIRS, o n.º 7, atual n.º 9, cuja redação à data dos factos, era o seguinte: “Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português”.

 

Igualmente o n.º 8, atual n.º 10, do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei n.º 67-A/2007, prescrevia, à data dos factos, que “Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes”.

 

Por força dessa alteração legislativa as declarações de rendimentos de IRS respeitantes aos anos fiscais de 2008 e seguintes têm um campo para que possa ser exercida a opção pela taxa consagrada no artigo 68.º do CIRS. Compulsada a declaração de IRS entregue pela Requerente verifica-se que, no Quadro 8 do Rosto foi assinalado o campo 4 (não residente), o campo 6 (país de residência) e o campo 7 (opção pela tributação pelo regime geral).

 

Na verdade, para que o pretendido pudesse proceder, nomeadamente, que a tributação da mais-valia fosse feita pela taxa consagrada no artigo 68.º, como residente, era necessário ter preenchido os campos 9, opção pelas taxas do artigo 68.º do CIRS, e 11, total dos rendimentos obtidos no estrangeiro. Não o tendo feito, como evidencia a Mod. 3 apresentada pela Requerente, não pode o peticionado proceder e, muito menos, a imputação do erro, e consequente responsabilidade, no preenchimento da declaração ser assacada à Requerida.

 

Ademais, a norma estabelecida no n.º 2 do artigo 43.º, e cuja aplicação a Requerente defende, encontra-se no capítulo II do CIRS que tem como epígrafe "Determinação do rendimento coletável". Ou seja, estamos perante a determinação do rendimento; já para efeitos de incidência, e no que respeita à matéria das mais-valias que nos ocupa, relevantes são os artigos 9.º e 10.º do CIRS. Assim, o disposto no n.º 2 do artigo 43° do CIRS não é aplicável ao caso aqui em análise.

 

A Requerente defendeu-se das exceções invocadas pela AT da seguinte forma:

 

Quanto à caducidade do direito de ação, sustenta que a tese preconizada pela Entidade Requerida se baseia em entendimento da Autoridade Tributária há muito rejeitado pela jurisprudência nacional e pela melhor doutrina, segundo a qual o prazo destinado à apresentação do pedido de revisão oficiosa pelos contribuintes estaria limitado ao prazo de apresentação de reclamação graciosa.

 

É entendimento pacífico na doutrina nacional, de que é exemplo LEITE CAMPOS, SILVA RODRIGUES e LOPES DE SOUSA, que “mesmo nos casos em que neste artigo 78.º se refere que a revisão é da iniciativa dos serviços, nada impede que os interessados requeiram à administração tributária a revisão dos atos tributários, uma vez que tudo o que pode ser feito oficiosamente pode ser feito a pedido dos interessados. Aliás, os termos utilizados no n.º 6 [atual n.º 7] deste artigo 78.º, em que se refere que “interrompe o prazo de revisão oficiosa do ato tributário ou da matéria tributável o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária para a sua realização”, deixam perceber claramente esta possibilidade de o contribuinte pedir a realização da revisão oficiosa” (cfr. LEITE CAMPOS, SILVA RODRIGUES e LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 2003, página 407).

 

No mesmo sentido vai a jurisprudência dos tribunais superiores. Dá o exemplo do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do processo n.º 0402/06, de 12 de julho de 2006: “Embora o artigo 78.º da L.G.T., no que concerne a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, se refira apenas à que tem lugar dentro do «prazo de reclamação administrativa», no n.º 6 do mesmo artigo (na redação inicial, que é o n.º 7 na redação vigente) faz-se referência a «pedido do contribuinte», para a realização da revisão oficiosa, o que revela que esta, apesar da impropriedade da designação como «oficiosa», pode ter subjacente também a iniciativa do contribuinte. Idêntica referência é feita no n.º 1 do art. 49.º da L.G.T., que fala em «pedido de revisão oficiosa», e na alínea a) do n.º 4 do art. 86.º do C.P.P.T., que refere a apresentação de «pedido de revisão oficiosa da liquidação do tributo, com fundamento em erro imputável aos serviços». É, assim, inequívoco que se admite, a par da denominada revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte (dentro do prazo de reclamação administrativa), que se faça, também na sequência de iniciativa sua, a «revisão oficiosa» (que a Administração deve realizar também por sua iniciativa.) (…) Assim, é de concluir que, o facto de ter transcorrido o prazo de reclamação graciosa e de impugnação judicial do ato de liquidação, não impedia a impugnante de pedir a revisão oficiosa e impugnar contenciosamente o ato de indeferimento desta”.

 

Em conformidade, o meio procedimental de revisão de atos tributários não pode ser considerado como um meio excecional de reação contra as consequências de um ato de liquidação, mas sim como um meio alternativo aos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda possam ser utilizados) ou complementar dos mesmos (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos demais meios impugnatórios do ato de liquidação). Assim, sendo claro que o contribuinte pode solicitar à Autoridade Tributária que proceda à revisão de um ato tributário – isto é, que provoque a sua revisão –, é também evidente que esta estará vinculada a pronunciar-se sobre esse pedido e, havendo fundamento para tanto, a rever – mediante anulação nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”) – esse mesmo ato tributário. E é esse o ensinamento que vem preconizando a mais reputada doutrina, de acordo com a qual "na sequência de um pedido de revisão formulado por um interessado, num caso de revisão oficiosa, a administração tributária terá de se pronunciar sobre o pedido, por força do preceituado no art. 55.º, n.º 1, da L.G.T. No caso de se verificarem os pressupostos da revisão, a administração tributária terá de proceder à mesma, por imposição dos princípios da justiça e do respeito pelos interesses legítimos dos cidadãos, que devem nortear a sua atividade (arts. 266.º, n.º 2 [da C.R.P.] e 55.º da L.G.T.) (...) Por outro lado, as decisões da administração tributária proferidas na sequência de um pedido de revisão formulado por um interessado são contenciosamente controláveis [art.s 95.°, n.° 1, alínea d), da L.G.T. e 97.°, n.º 1, alínea d), do C.P.P.T.]" (cfr. LEITE CAMPOS, SILVA RODRIGUES e LOPES DE SOUSA, ob. cit., página 408).

 

No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20 de março de 2002, proferido no âmbito do processo n.º 026580:

Permitindo a lei a revisão do ato tributário, não é possível falar-se de uma estabilização definitiva dos efeitos do ato tributário sem que todos os prazos da sua reclamação, impugnação judicial, de revisão e de recurso contencioso estejam esgotados. Mesmo quando oficiosa, a revisão do ato tributário pode ser impulsionada por pedido dos contribuintes, tendo a administração tributária o dever de proceder a ela, caso se verifiquem os respetivos pressupostos legais”

 

Pelo que, forçoso se torna concluir pela tempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 5 de maio de 2020, com fundamento em erro imputável aos serviços da Autoridade Tributária e dentro do prazo de 4 anos que tais serviços dispunham (também por sua iniciativa) para o efeito, uma vez que o respetivo termo apenas se verificaria a 4 de setembro de 2023.

 

Quanto à alegada incompetência dos tribunais arbitrais constituídos juntos do CAAD, alega que constitui o objeto (imediato) do presente pedido de pronúncia arbitral o ato tributário de liquidação de IRS n.º 2019 …, de 26 de julho de 2019, referente ao período de tributação de 2018, no montante global a pagar de EUR 34.907,60, ato esse que constitui o fim último visado pela Requerente com a presente ação arbitral, relativamente ao qual se formula, a final, o pedido de anulação. Pedido e objeto esses relativamente aos quais é pacífica a competência material dos tribunais arbitrais a funcionar junto do Centro de Arbitragem Administrativa, os quais têm competência para apreciar e julgar sobre a ilegalidade de atos tributários de liquidação (cfr. artigo 2.º, n.º 1, do RJAT).

 

Ou seja, do Pedido apresentado pela Requerente, não resulta qualquer pedido de declaração de ilegalidade própria do ato de indeferimento tácito da revisão oficiosa, mas apenas os vícios do próprio ato de liquidação de IRS, cuja anulação se requer, constituindo aquele ato presumido objeto meramente mediato na presente ação.

 

III. Fundamentação

 

III.1 De facto

 

a. Factos provados

 

  1. No ano de 2018, a Requerente era solteira e residente (incluindo para efeitos fiscais) em França – em concreto, em …, Romainville.

 

  1. Nesse mesmo ano, a Requerente era proprietária de uma fração autónoma, identificada pela letra “C”, localizada na …, na freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, Portugal.

 

  1. O referido imóvel estava inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santa Maria Maior sob o n.º … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ….

 

  1. Por escritura pública de 26 de fevereiro de 2018, a Requerente alienou o imóvel em referência pelo montante global de € 185.000,00.

 

  1. Na referida data, o imóvel possuía o valor patrimonial tributário de € 25.532,36.

 

  1. A fração autónoma em apreço tinha sido adquirida pela Requerente a 30 de outubro de 2014 pelo montante global de € 61.500,00.

 

  1. No dia 4 de junho de 2019, por referência ao período de tributação de 2018 e na qualidade de não residente para efeitos fiscais em Portugal, a Requerente entregou a sua declaração periódica de rendimentos (“Modelo 3 de IRS”), em sede da qual refletiu no Anexo G («mais-valias e outros incrementos patrimoniais») os valores de realização (€ 185.000,00) e aquisição (€ 61.500,00) do imóvel identificado supra, tendo igualmente assinalado, na folha de rosto da Modelo 3 de IRS, pretender a tributação pelo regime geral.

 

  1. No dia 5 de agosto de 2019, a Requerente foi notificada pela Autoridade Tributária da liquidação de IRS n.º 2019 …, de 26 de julho de 2019, referente ao período de tributação de 2018, no montante global a pagar de € 34.907,60.

 

  1. No dia 24 de outubro de 2019, Requerente foi citada da instauração do processo de execução fiscal n.º …, destinado à cobrança coerciva da pretensa dívida tributária em apreço.

 

  1. A Requerente requereu a adesão a um plano prestacional de pagamento da dívida tributária, encontrando-se o mesmo em vigor desde 21 de fevereiro de 2020, tendo a Requerente procedido aos pagamentos mensais desde aquela data.

 

  1. A Requerente apresentou revisão oficiosa do referido ato tributário em 5 de maio de 2020.

 

  1. O indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formou-se em 5 de setembro de 2020.

b. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

c. Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e nos factos alegados pelas Partes que não foram controvertidos.

 

III.3 De Direito

 

Antes de mais, e porque as exceções dilatórias invocadas (incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e caducidade do direito de ação) poderão constituir obstáculo ao conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância – cfr. artigos 576.º, n.º 2, e 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC – deverão as mesmas ser oficiosa e prioritariamente conhecidas.

 

Em primeiro lugar, invoca a AT a exceção de caducidade do direito de ação por, em seu entender, não ser de considerar, para efeitos de contagem do prazo de impugnação contenciosa, o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente e cujo objeto foi o ato de liquidação adicional também aqui impugnado.

 

Ora, a este respeito, e na senda do que refere a Requerente, deve dizer-se que a AT parte do pressuposto de que, nos casos em que, no artigo 78.º da LGT, se refere que a revisão é da iniciativa dos serviços, só a AT pode ter a iniciativa de proceder à revisão do ato tributário – logo, porque foi a Requerente a suscitar essa revisão através do pedido de revisão oficiosa que apresentou a 5 de maio de 2020, não se teria produzido o indeferimento tácito a partir do qual a Requerente contou o prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral nos termos do disposto no artigo 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.

 

Contudo, como vários autores e tribunais já tiveram oportunidade de clarificar, mesmo quando, no artigo 78.º da LGT, se refere que a revisão é da iniciativa dos serviços, isso não significa que a iniciativa para a mesma seja exclusivamente dos serviços, nada impedindo que os interessados requeiram à administração tributária a revisão dos atos tributários.

 

Por esse motivo, quando for o interessado a suscitar a revisão oficiosa do ato de liquidação, existe um dever da administração de responder a esse pedido, logo, se a resposta não ocorrer, opera a presunção de indeferimento tácito prevista no artigo 57.º, n.º 1, da LGT.

 

Assim, a exceção de caducidade do direito de ação não procede. Formando-se a 5 de setembro de 2020 a presunção de indeferimento tácito da revisão apresentada, e tendo o pedido de pronúncia arbitral na origem dos presentes autos sido apresentado a 16 de novembro de 2020, resulta manifesta a sua tempestividade, porquanto foi apresentado dentro do prazo de 90 dias contado da data da formação da presunção do indeferimento tácito daquele pedido de revisão (nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 10.º, n.º 1, do RJAT e 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT).

 

Quanto à exceção de incompetência do tribunal arbitral, erguida sobre o pressuposto de que o tribunal não seria competente para apreciar a legalidade do indeferimento tácito produzido relativamente ao pedido de revisão oficiosa, a AT refere que “Tendo em consideração o disposto no artigo 2.º do RJAT, a competência do CAAD circunscreve-se à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.

 

Em resposta, veio a Requerente dizer que o objeto (imediato) do presente pedido de pronúncia arbitral é o ato tributário de liquidação de IRS n.º 2019 …, de 26 de julho de 2019, pedido e objeto esses relativamente aos quais é pacífica a competência material dos tribunais arbitrais a funcionar junto do CAAD, os quais têm competência para apreciar e julgar sobre a ilegalidade de atos tributários de liquidação (cfr. artigo 2.º, n.º 1, do RJAT). Contudo, a isso não obsta o facto de, tendo a Requerente recorrido à via administrativa para pedir a revisão oficiosa do mesmo ato de liquidação e não tendo tido resposta da parte da AT, ter-se formado o ato tácito de indeferimento que também vem impugnado.

 

Relativamente a esta segunda exceção, importa começar por referir que a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT). Refere-se nesta norma que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

 

Para Jorge Lopes de Sousa[1], a competência dos tribunais arbitrais “restringe-se à atividade conexionada com atos de liquidação de tributos, ficando fora da sua competência a apreciação da legalidade de atos administrativos de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da Administração Tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação do ato de liquidação, a que se refere a alínea p) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT” (sublinhado nosso). Nesta norma cairá a reclamação graciosa, nos casos de indeferimento expresso que não comporte apreciação do ato de liquidação, face à revogação do n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, que referia: “Em caso de indeferimento de reclamação graciosa, o prazo de impugnação será de 15 dias após a notificação”.

 

A apreciação da competência do tribunal arbitral envolve um juízo sobre a adequação ao caso do meio processual da ação administrativa ou do processo de impugnação judicial, em atenção ao disposto no artigo 97.º do CPPT, que procede à definição dos respetivos campos de aplicação, distinguindo a “impugnação dos atos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação” (alínea d) do n.º 1) e o “recurso contencioso do indeferimento total ou parcial ou da revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da administração tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do ato de liquidação” (alínea p) do n.º 1), sendo que, nos termos do n.º 2, o “recurso contencioso dos atos administrativos em matéria tributária, que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação, da autoria da administração tributária, compreendendo o governo central, os governos regionais e os seus membros, mesmo quando praticados por delegação, é regulado pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos”.

 

Para concretizar a distinção entre o âmbito de aplicação destes meios processuais, que, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, possui relevo na definição da competência dos tribunais arbitrais tributários, constitui orientação jurisprudencial consolidada que “a utilização do processo de impugnação judicial ou do recurso contencioso (atualmente ação administrativa especial, por força do disposto no artigo 191.º do CPTA) depende do conteúdo do ato impugnado: se este comporta a apreciação da legalidade de um ato de liquidação será aplicável o processo de impugnação judicial e se não comporta uma apreciação desse tipo é aplicável o recurso contencioso/ação administrativa especial” (cfr. acórdão do STA de 25.06.2009, proc. n.º 0194/09, de 14-05-2015, proc. n.º 01958/13, de 18-06-2014, proc. n.º 01752/13 e de 28-05-2014, proc. n.º 01263/13; cfr. quanto à jurisprudência arbitral, os acórdãos n.ºs 148/2014-T, de 19-09-2014; 236/2013-T, de 22-04- 2014; e 244/2013-T, de 06-05-2014, entre outros).

 

Nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT, quanto aos atos suscetíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico. Embora a revisão do ato tributário a pedido do contribuinte se reconduza a um meio administrativo e não contencioso, ele abrirá o acesso à via contenciosa, pois a decisão que recair sobre o pedido de revisão é suscetível de impugnação direta nos termos do artigo 97.º, n.º 1, alínea d) e artigo 102.º, n.º 1, alínea e), ambos do CPPT, correspondendo por conseguinte à notificação do despacho de indeferimento proferido na sequência do pedido de revisão do ato tributário. Referimo-nos, naturalmente, ao indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa que comporte a apreciação da legalidade de um ato de liquidação, porque, caso contrário, o meio próprio seria a ação administrativa, hoje prevista nos artigos 37.º e ss do CPTA, por força da parte final da alínea p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT. Contudo, uma vez que o n.º 1 do artigo 2.º do RJAT compreende, apenas, a apreciação da declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta, bem como a declaração de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais, os tribunais arbitrais são incompetentes para conhecer quaisquer outras matérias. Porém, para aferir da incompetência material do tribunal arbitral para apreciar o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, não podemos esquecer que, como referem Jorge Lopes de Sousa e outros[2] “O indeferimento tácito é uma ficção jurídica destinada a possibilitar ao interessado o acesso aos tribunais, para obter tutela para os seus direitos ou interesses legítimos, nos casos de inércia da administração tributária sobre pretensões que lhe foram apresentadas”.

 

Nos termos do n.º 1 do artigo 57.º da LGT, o procedimento tributário deve ser concluído no prazo de quatro meses, devendo a administração tributária e os contribuintes abster-se da prática de atos inúteis ou dilatórios. Refere o n.º 5 do mesmo preceito que “sem prejuízo do princípio da celeridade e diligência, o incumprimento do prazo referido no n.º 1, contado a partir da entrada da petição do contribuinte no serviço competente da administração tributária, faz presumir o seu indeferimento para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial. Não obstante o legislador ter revogado o referido n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, manteve a alínea d), n.º 1 do mesmo artigo, que refere: “A impugnação será apresentada no prazo de três meses contados a partir dos factos seguintes: alínea d) Formação da presunção de indeferimento tácito”.

 

Em suma:

(i) Em caso de indeferimento expresso da reclamação graciosa, recurso hierárquico ou pedido de revisão (atos de segundo e terceiro graus, na medida em que comportem apreciação da legalidade dos atos de primeiro grau – liquidações, autoliquidações, retenções na fonte e pagamentos por conta[3]) que comporte a apreciação da legalidade de um ato de liquidação, poderá ser apresentada impugnação judicial;

(ii) Em caso de indeferimento expresso de reclamação graciosa, recurso hierárquico ou pedido de revisão, que não comporte a apreciação da legalidade de um ato de liquidação, não poderá ser apresentada impugnação judicial, devendo o contribuinte lançar mão da ação administrativa prevista nos artigos 37.º e ss do CPTA;

(iii) Em caso de indeferimento tácito de reclamação graciosa, recurso hierárquico ou pedido de revisão, poderá ser apresentada impugnação judicial, por força do disposto na alínea d), n.º 1 do artigo 102.º do CPPT.

 

Assim, o indeferimento tácito pode ser objeto do processo arbitral, nada obstando, portanto, ao prosseguimento dos presentes autos.

 

Passemos, pois, à análise de mérito.

 

A questão decidenda nos presentes autos consiste em aferir da legalidade do ato tributário sub judice à luz do disposto na legislação interna aplicável e no direito da União Europeia.

 

Como é sabido, os ganhos obtidos por pessoas singulares com a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, quando não constituam rendimentos empresariais e profissionais, são tributados, em sede do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), no âmbito da categoria G (incrementos patrimoniais), como mais-valias, nos termos do disposto no Código do IRS (CIRS). Quando resultem da transmissão de direitos reais relativos a imóveis situados em território português, consideram-se obtidos em Portugal, pelo que ficam abrangidos pela incidência de IRS quando auferidos por não residentes.

 

O valor desses rendimentos que sejam qualificados como mais-valias, quando obtidos por sujeitos passivos residentes, são considerados em apenas 50% e sujeitos a englobamento com os restantes rendimentos para efeitos de determinação e aplicação das taxas gerais progressivas estabelecidas no Código do IRS, compreendidas entre os 14,5% e 53% (considerando a taxa de adicional).

 

Quanto aos sujeitos passivos não residentes, vigoram dois regimes distintos:

(i) Um regime geral, aplicável a quaisquer sujeitos passivos não residentes, traduzido na tributação desses rendimentos à taxa especial de 28% incidente sobre a totalidade do rendimento (correspondendo o rendimento, na sua totalidade, à mais-valia).

(ii) Um regime opcional, especificamente aplicável a residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu (EEE), desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, de acordo com a natureza dos rendimentos e os condicionalismos para aceder ao regime, no âmbito do qual se preveem duas alternativas:

- optar pelas taxas aplicáveis aos residentes, caso em que a tributação dos rendimentos é à taxa que, de acordo com a tabela progressiva, se aplicaria no caso de serem auferidos por residentes em território português;

- optar pelas regras aplicáveis aos residentes, quando os rendimentos obtidos em território português representem, pelo menos, 90% da totalidade dos rendimentos do sujeito passivo (ou seja, dos rendimentos de base mundial).

A opção pelo regime (ii) vem com a obrigatoriedade de indicar o total dos rendimentos obtidos no estrangeiro, para efeitos da determinação da taxa da tabela progressiva.

 

O regime de tributação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias obtidos em Portugal por não residentes já foi contestado por diversas vezes e ao longo de vários anos. Já depois de o TJUE se pronunciar sobre o assunto (no acórdão do TJUE C-443/06), o Estado português alterou o referido regime de tributação, tendo introduzido o regime opcional a que se aludiu supra através da Lei do Orçamento do Estado para 2008.

 

Contudo, a introdução daquele regime opcional não neutralizou as diferenças entre residentes e não residentes, que subsistiram e continuaram a motivar discussões em tribunal.

 

Entretanto, o pleno da secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo veio pronunciar-se sobre esta questão em Acórdão de 09/12/2020, proferido no processo 075/20.6BALSB, tendo uniformizado jurisprudência no sentido de considerar que «o n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redação aplicável, ao prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, incompatível com o artigo 63.° do TJUE, não tendo essa discriminação negativa dos não residentes sido ultrapassada pelo regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.° 67-A/2007, de 31 de Dezembro, previsto, aliás, apenas para os residentes noutro Estado-membro da União Europeia.»

 

Assim, em respeito pela primazia do direito da União Europeia sobre o direito nacional e pela autoridade interpretativa do TJUE, este tribunal faz seu o entendimento de que o regime fiscal dos artigos 43.º, n.º 2, e 72.º, nº 1, 14 e 15 do CIRS, estabelece uma discriminação injustificada entre residentes e não residentes relativamente à tributação de mais-valias provenientes da alienação de bens imóveis situados em Portugal, incompatível com o disposto nos artigos 63.° e 65.º do TFUE, de igual vício pelo facto de obrigar a que, para evitar que o não residente fique sujeito a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais-valias realizadas por um residente, aquele tenha que escolher entre um regime fiscal discriminatório e outro não discriminatório, devendo, por conseguinte, ser declarada a ilegalidade parcial e anulação da liquidação de IRS em crise no presente processo, com todas as consequências legais.

 

Mostram-se, ainda, preenchidos os requisitos legais de que depende, nos termos do artigo 43.º da LGT e 61.º, n.ºs 2 e 5 do CPPT, o pagamento de juros indemnizatórios à Requerente.

 

IV. Decisão

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Declarar a ilegalidade parcial e anulação da liquidação de IRS n.º 2019 …, de 26 de julho de 2019, referente ao período de tributação de 2018, no montante global de € 34.907,60, com a consequente restituição desse imposto, bem como a ilegalidade do indeferimento tácito produzido no processo de revisão oficiosa apresentada relativamente àquele ato;

b)           Condenar a Requerida, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.ºs 2 e 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), no pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, calculados sobre a quantia indevidamente paga, desde o dia em que foi paga até ao seu efetivo e integral reembolso;

c)         Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo;

d)         Determinar que seja notificado o Ministério Público da decisão aqui proferida, nos termos do n.º 3 do artigo 17.º do RJAT.

 

V. Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 34.907,60.

 

VI. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.836,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

           

Lisboa, 03.02.2022

A Árbitro,

Raquel Franco



[1] Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária in Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, p. 10.

[2] Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in “Lei Geral Tributária”, anotada e comentada, Encontro da Escrita, op. cit. 483.

[3] Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária in Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, op. cit. 121.