Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 196/2021-T
Data da decisão: 2022-02-16  ISV  
Valor do pedido: € 1.585,17
Tema: ISV – veículo automóvel usado originário de outro EM da UE – componente ambiental
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SUMÁRIO:

I. Não tendo o pedido de revisão oficiosa sido indeferido por intempestivo, não fica o contribuinte impedido de impugnar a decisão proferida, tendo em vista a anulação do ato de liquidação subjacente.

II. O artigo 11º do CISV, na redação dada pela Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro, viola o artigo 110º do TFUE, na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados membros a uma tributação superior à aplicável aos veículos nacionais.

III. O princípio do primado do direito comunitário determina que as disposições dos tratados que regem a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito nacionais.

IV. Verificada a desconformidade do artigo 11º do CISV, na redação dada pela Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro, com o artigo 110º do TFUE, impõe-se que o tribunal não aplique a referida norma do CISV, suspendendo a sua força vinculativa no caso concreto.

 

Decisão Arbitral

  1. RELATÓRIO:

A..., titular do número de identificação fiscal ..., doravante simplesmente designado Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV relativa ao veículo por si importado no ano de 2017, marca ..., modelo..., matrícula ..., no valor de € 1.585,17, correspondente ao imposto liquidado em excesso, e a consequente condenação da AT a restituir o imposto indevidamente pago, no valor de € 1.585,17, acrescido dos juros indemnizatórios calculados nos termos legais desde 18/05/2017 até à sua efetiva restituição.

Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:

  1. Em 18/05/2017 o Requerente apresentou uma DAV para introduzir em Portugal o veículo automóvel ligeiro de passageiros usado, marca ..., modelo..., matrícula...;
  2. A AT liquidou o respetivo ISV no valor global de € 3.622,14, que o Requerente pagou;
  3. Do valor de ISV liquidado, € 2.450,47 corresponde à componente cilindrada e € 2.641,95 à componente ambiental;
  4. Ao valor de ISV correspondente à componente cilindrada foi aplicada a percentagem de redução prevista no artigo 11º do CISV, pelo que, relativamente a esta componente, apenas foi liquidado e pago o valor de € 980,19;
  5. O valor de ISV correspondente à componente ambiental não foi objeto da aplicação de qualquer percentagem de redução;
  6. A norma que esteve na base da liquidação impugnada – artigo 11º do CISV –viola o artigo 110º do TFUE, por discriminar fiscalmente os veículos usados nacionais relativamente aos veículos usados admitidos de outros Estados Membros;
  7. À componente ambiental da liquidação impugnada deveria ter sido aplicada a percentagem de redução prevista para a componente cilindrada, o que determinaria a redução do ISV a pagar pela Requerente em € 1.585,17;
  8. O Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação;
  9. O qual veio a ser indeferido por despacho notificado ao Requerente em 02/03/2021.

O Requerente juntou 2 documentos e não arrolou testemunhas.

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº1 do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

O tribunal arbitral foi constituído em 16 de junho de 2021.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, defendendo-se por exceção e por impugnação.

Por exceção, invoca a Requerida o seguinte:

  1. A liquidação em causa nos presentes autos foi efetuada nos termos do disposto no artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data dos factos (redação dada pela Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro);
  2. Pretendendo o Requerente pedir a sua revogação oficiosa teria de o fazer dentro do prazo de reclamação administrativa, por não se verificar qualquer erro imputável aos serviços;
  3. Tendo a liquidação sido emitida na sequência da DAV apresentada pelo Requerente em 18/05/2017 é manifesta a intempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado em 11/01/2021;
  4. O que determina a necessária intempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral formulado.

Na defesa por impugnação, sustenta a Requerida, em síntese:

  1. A liquidação do imposto em causa nos autos foi efetuada nos termos do disposto no artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data dos factos (redação dada pela Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro), atendendo-se à componente cilindrada e à componente ambiental, tendo sido aplicadas as percentagens de redução correspondentes, conforme o disposto na Tabela D do artigo 11º nº 1 do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo;
  2. A norma do citado artigo 11º do CISV que esteve na base da liquidação impugnada não viola o artigo 110º do TFUE, já que tal artigo não é de aplicação exclusiva aos veículos usados admitidos em território nacional, aplicando-se ainda a veículos matriculados no território nacional, designadamente nos casos previstos nas alíneas a), b) e d) do nº 2 do artigo 5º do CISV;
  3. A interpretação do artigo 11º do CISV defendida pela Requerente viola o artigo 191º do TFUE, o Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris, as alíneas a), f) e h) do nº 2 do artigo 66º da CRP, bem como os princípios da legalidade, da justiça tributária, da igualdade, da certeza e da segurança jurídicas, do Estado de Direito Ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrados nos artigos 266º, 103º, 9º e), 66º e 20º, todos da CRP, bem como o principio da equivalência, previsto no artigo 1º do CISV;
  4. A questão da desconformidade do direito nacional, em concreto dos artigos 7º e 11º do CISV com o artigo 110º do TFUE deve ser suscitada junto do TJUE;
  5. Tendo a liquidação impugnada decorrido da aplicação da lei em vigor, não assiste ao Requerente o direito ao recebimento de juros indemnizatórios, por não se verificar qualquer erro imputável aos serviços.

Conclui, peticionando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

A Requerida juntou cópia do processo administrativo, não tendo arrolado nenhuma testemunha.

Atenta a posição assumida pelas partes e não existindo necessidade de produção adicional de prova, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT.

A AT apresentou alegações escritas, tendo reiterado o anteriormente alegado em sede de resposta.

  1. SANEAMENTO:

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

Não existem nulidades que invalidem o processado.

As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legitimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.

  1. QUESTÕES A DECIDIR:

Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre:

  1. determinar se se verifica a exceção de caducidade do direito de ação invocada pela AT;
  2. determinar se o artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data dos factos (redação dada pela Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro) está ou não em conformidade com o direito comunitário, designadamente com o disposto no artigo 110º do TFUE;
  3. determinar se deverá este tribunal submeter a questão ao TJUE, através do reenvio prejudicial.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO:
  1. Factos provados

Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:

  1. Em 18/05/2017 o Requerente apresentou uma DAV para introduzir em Portugal o veículo automóvel ligeiro de passageiros usado, marca ..., modelo..., matrícula...;
  2. A AT liquidou o respetivo ISV no valor global de € 3.622,14, que o Requerente pagou;
  3. Do valor de ISV liquidado, € 2.450,47 corresponde à componente cilindrada e € 2.641,95 à componente ambiental;
  4. Ao valor de ISV correspondente à componente cilindrada foi aplicada a percentagem de redução prevista no artigo 11º do CISV;
  5. O valor de ISV correspondente à componente ambiental não foi objeto da aplicação de qualquer percentagem de redução;
  6. O Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação em 11/01/2021;
  7. O qual veio a ser indeferido por despacho notificado ao Requerente em 02/03/2021;
  8. O pedido de constituição do tribunal arbitral em matéria tributária e de pronúncia arbitral foi apresentado em 06/04/2021.
  1. Factos não provados

Com interesse para os autos, nenhum outro facto se provou.

  1. Fundamentação da matéria de facto

A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental junta pelas partes, indicada relativamente a cada um dos pontos, e cuja adesão à realidade não foi questionada, bem como a matéria alegada e não impugnada.

  1. DO DIREITO:
  1. Da exceção de caducidade do direito de ação invocada pela AT:

Começa a AT por invocar a caducidade do direito de ação, para tanto sustentando que “tendo o presente pedido arbitral sido deduzido em consequência do indeferimento do pedido de revisão e sendo este intempestivo, além de infundado, igualmente se mostra a presente impugnação intempestiva”.

 

A este propósito, defende a AT que o prazo de 4 anos para apresentação do pedido de revisão oficiosa do ato tributário por iniciativa do contribuinte apenas se aplica quando se verifique erro imputável aos serviços.

 

Erro este que, segundo a AT, não se verifica, já que a AT se limitou a aplicar as normas vigentes, “não tendo a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário”.

 

Assim, pretendendo o Requerente apresentar pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação, teria de o fazer dentro do prazo de reclamação administrativa e não do prazo de 4 anos, que a lei apenas prevê para as hipóteses de erro imputável aos serviços, que in casu não se verifica.

 

Conclui, pois, a AT, defendendo que o pedido de revisão oficiosa apresentado pelo contribuinte é intempestivo, o que determina a necessária intempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral.

 

Devidamente notificado para se pronunciar, querendo, sobre a exceção invocada pela AT, o Requerente nada disse.

 

Cumpre decidir:

Independentemente da existência de diversa jurisprudência que defende o entendimento propugnado pela Requerida, de acordo com o qual, sendo julgado intempestivo o pedido de revisão oficiosa, não pode o contribuinte voltar a sindicar a liquidação cuja revisão oficiosa requereu, com o qual se concorda, a verdade é que, in casu, o pedido de revisão oficiosa não foi indeferido por intempestividade.

 

Ao invés, o pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente foi objeto de apreciação por parte da AT, tendo sido analisados e rebatidos os argumentos e questões suscitadas no pedido de revisão oficiosa, tendo a AT concluído pela sua improcedência e pela manutenção da liquidação sindicada, pelo facto de a mesma resultar da mera aplicação da lei em vigor à data da liquidação do imposto.

 

Aliás, analisado o projeto de decisão do pedido de revisão oficiosa em causa, verifica-se que em momento algum é questionada a sua tempestividade, sendo evidente não ter sido esse o motivo do seu indeferimento.

 

E, se o pedido de revisão oficiosa apresentado não foi indeferido por intempestivo, é manifesto que não pode agora a AT, nesta sede, vir socorrer-se da sua hipotética intempestividade para fundamentar a caducidade do direito de ação.

 

Mal ou bem, a AT não indeferiu o pedido de revisão oficiosa com base na sua intempestividade, mas sim com base na improcedência dos argumentos e questões avançadas pelo Requerente.

 

Pelo que, atento o fundamento do indeferimento do pedido de revisão oficiosa deduzido, nenhum impedimento existe a que o Requerente impugne tal decisão, tendo em vista a anulação parcial da liquidação impugnada.

 

Tendo o Requerente sido notificado na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado por ofício datado de 02/03/2021 e tendo o pedido de constituição do tribunal arbitral sido apresentado em 06/04/2021, é manifesto não se encontrar precludido o prazo de 90 dias previsto no artigo 10º nº 1 a) do RJAT.

 

Improcede, assim, a exceção de caducidade do direito de ação invocada pela AT.

  1. Da conformidade do artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data dos factos (redação dada pela Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro) com o direito comunitário:

A reforma da tributação automóvel em Portugal teve início com a publicação da Lei nº 22-A/2007, de 29 de junho, que aboliu o Imposto Automóvel, o Imposto Municipal Sobre Veículos, o Imposto de Circulação e o Imposto de Camionagem, criando, em sua substituição o Imposto sobre Veículos (ISV) e o Imposto Único de Circulação (IUC).

Da análise da exposição de motivos subjacente à aprovação desta Lei verifica-se que o que se pretendeu foi empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” a qual resulta da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.

 

Continuando, explica a referida exposição de motivos que “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.

O que levou, inclusive, à consagração do princípio da equivalência, inscrito no artigo 1º do CISV, “deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate”.

O nº 1 do artigo 11º do CISV dispunha, à data da sua aprovação, o seguinte:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória feita em função da desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional, ponderados factores como a respectiva marca, modelo, modo de propulsão, quilometragem, estado mecânico e de conservação, atentos os valores médios que resultam das publicações de referência no sector, apresentadas pelo interessado e reduzindo-se o imposto de acordo com a tabela seguinte”, a qual previa uma redução do imposto de acordo com o número de anos do veículo.

Tal redução, que apenas tinha em consideração a componente cilindrada dos veículos e não a sua componente ambiental, era crescente, iniciando-se após o primeiro ano de uso do veículo e progredindo até ao final do quinto ano de uso, após o que a redução se mantinha estável.

Reconhecendo a desconformidade de tal norma com o artigo 110º do TFUE, (que dispõe, no seu primeiro parágrafo, que “nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares”), designadamente pelo facto de não ter em consideração, na depreciação dos veículos importados, a componente ambiental, a Comissão Europeia instaurou contra a República Portuguesa o processo por infração nº 2009/2296.

Em consequência, o legislador português procedeu, com a publicação da Lei nº 55-A/2010, de 31 de dezembro (LOE 2011), à alteração da referida norma, passando, então, o artigo 11º do CISV a prever percentagens de redução em função do número de anos de uso dos veículos, tendo em conta não só a componente cilindrada, mas também a componente ambiental.

Com efeito, foi a seguinte a redação dada pela LOE 2011 ao artigo 11º do CISV:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória, com base na aplicação das percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização social média dos veículos no mercado nacional, calculada com referência à desvalorização comercial média corrigida do respectivo custo de impacte ambiental.”

Tal redação veio a ser novamente objeto de alteração, com a publicação da LOE 2017 (Lei nº 42/2016, de 28 de dezembro), passando então o artigo 11º do CISV a ter a seguinte redação:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional”.

De onde resulta que o legislador português retrocedeu no que diz respeito às percentagens de redução aplicáveis à componente ambiental, passando as percentagens de redução a aplicar-se apenas quanto à componente cilindrada.

Tal alteração, no que respeita à componente ambiental, não encontra qualquer justificação ou fundamentação legal ou sequer factual, tudo apontando para que a mesma não tenha sido intencional.

E tanto assim é que posteriormente foi novamente alterada a lei e introduzida a redução quanto a esta componente, o que sucedeu com a publicação da LOE 2021 (Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro).

 

Posto isto,

À data dos factos em causa nos autos encontrava-se em vigor a redação do artigo 11º do CISV introduzida pela LOE 2017, que, como vimos, não previa a aplicação de qualquer redução quanto à componente ambiental.

O que contraria ostensivamente o disposto no artigo 110º do TFUE, pois que prevê uma tributação mais gravosa para os veículos provenientes de outros Estados membros, quando comparados com os veículos nacionais.

E tal não é contrariado, como alega a Requerida, pelo disposto no artigo 191º do TFUE e pelo artigo 66º da CRP, que manifestamente não podem prevalecer sobre o princípio geral e estruturante consagrado no artigo 110º do TFUE.

Note-se que o artigo 8º nº 4 da CRP estabelece o princípio do primado do direito comunitário, ao dispor que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”

Sobre este princípio tem-se pronunciado diversa jurisprudência, não subsistindo dúvidas acerca da supremacia do direito comunitário sobre o direito nacional e sobre a aplicação direta na ordem interna das disposições dos tratados que regem a União Europeia e das normas emanadas das suas instituições.

A este propósito veja-se, entre outros, o acórdão proferido pelo CAAD em 01JUN2017, processo nº 577/2016-T, in www.dgsi.pt:

“(...) apesar de só os Estados Membros terem competência em matéria de impostos diretos, o Tribunal de Justiça (TJ) tem sustentado, através das suas decisões, que esses Estados devem exercer essa competência em conformidade com o direito da União Europeia. Evitando assim, violações das cinco liberdades económicas fundamentais, designadamente (...) a livre circulação de mercadorias (artigos 28.º e seguintes do TFUE) (...). Ora, é precisamente através da proteção de cada uma destas liberdades, diretamente aplicáveis, que ocorre uma verdadeira harmonização pela via jurisprudencial que se traduz na obrigatoriedade de as legislações nacionais se conformarem a cada uma dessas liberdades. (...) O direito português consagra uma cláusula de receção automática plena do direito convencional internacional, cumpridas as formalidades de aprovação, ratificação e publicação (...).  Daqui decorre que os tratados são fonte imediata de direitos e obrigações para os seus destinatários, podendo ser invocados perante os tribunais.” (sublinhado nosso).

Concluindo-se, pois, na referida decisão que “os tratados são superiores hierarquicamente relativamente à lei ordinária. Esta superioridade decorre não só dos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, mas igualmente do artigo 8.º n.ºs 1 e 2 da CRP. Apresenta-se, pois, como claro que, para que a convenção vigore na ordem interna, é necessário que a lei ordinária posterior a não possa revogar. Ou seja, o direito internacional convencional não pode ser afastado por leis ordinárias, surgindo como superior àquelas. Sejam essas leis subsequentes, as quais serão materialmente inconstitucionais se o contrariarem; sejam anteriores, as quais terão de ser suspensas se forem conflituantes com esse direito convencional internacional, só retomando a vigência no caso de suspensão ou cessação da convenção internacional que estiver em causa.” (sublinhado nosso).

Sobre a questão da interpretação do artigo 110º do TFUE e da sua compatibilização com as normas jurídicas internas, têm igualmente sido abundantes as decisões proferidas pelo TJUE, no sentido de concluir pela violação de tal artigo sempre que as legislações nacionais prevejam tributações para os produtos provenientes de outros Estados membros superiores às que incidem sobre produtos nacionais similares.

Concretamente no que diz respeito às sucessivas redações do artigo 11º do CISV têm sido várias as pronúncias do TJUE e da Comissão.

Assim, a Comissão começou por instaurar contra a República Portuguesa o processo de infração nº 2009/2296, que culminou, como exposto, com a alteração à citada norma, através da LOE 2011.

Posteriormente, na sequência da ação por incumprimento instaurada pela Comissão contra a República Portuguesa (processo nº C-200/15), veio o TJUE, em 16JUN2016 a concluir que o artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data, violava o artigo 110º do TFUE.

Por último, o mesmo TJUE, em Acórdão proferido em 02SET2021, no âmbito do processo C‑169/20 decidiu que “ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.”

O sentido uniforme de todas as pronúncias e decisões das instâncias europeias terá, ademais, motivado o legislador português a alterar novamente a redação do citado artigo 11º do CISV de modo a conformá-lo com o artigo 110º do TFUE, o que aconteceu, como referido, com a publicação da LOE 2021 (Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro), passando então esta norma a ter o seguinte teor:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7.º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos”.

Aliás, não pode deixar de se referir que, pese embora a defesa apresentada pela Requerida no âmbito deste processo, a verdade é que no seio da própria AT têm vindo a ser proferidas decisões em sentido contrário, sendo diversas as liquidações revogadas pela AT, justamente por considerar que o artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data dos factos, viola o disposto no artigo 110º do TFUE.

De tudo quanto ficou exposto resulta de forma clara a inexistência de quaisquer dúvidas sobre a aplicação do artigo 110º do TFUE, bem como sobre a desconformidade do direito nacional (insiste-se, na redação em vigor à data dos factos) com o referido artigo comunitário.

Pelo que, em cumprimento do princípio do primado do direito comunitário, não pode este tribunal deixar de concluir pela desconformidade do artigo 11º do CISV com o artigo 110º do TFUE, e, em consequência, pela não aplicação da referida norma do CISV, suspendendo a sua força vinculativa no caso concreto.

O que não viola qualquer dos princípios constitucionais elencados pela Requerida, justamente porque o direito comunitário, como exposto, se sobrepõe a toda e qualquer legislação interna que com ele seja incompatível, incluindo a CRP.

Assim, o ato de liquidação em causa, ao desconsiderar a componente ambiental do ISV, é ilegal, devendo por via disso ser parcialmente anulado, como peticionado pelo Requerente.

Em face do exposto, fica prejudicada a apreciação da segunda questão elencada.

 

Com efeito,

Dispõe o artigo 267º, do TFUE:

O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a)Sobre a interpretação dos Tratados; 

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou

organismos da União. 

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie. 

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. 

Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.

 

Significa isto que, sempre que se coloca uma questão de interpretação e aplicação do direito da União Europeia, devem os tribunais nacionais suscitar essa questão perante o TJUE,  através do reenvio prejudicial, apenas sendo dispensado tal reenvio “quando a interpretação do Direito da União Europeia resulta já do chamado acquis jurisprudencial”.[1]

No caso dos autos e conforme resulta de tudo quanto se expôs, está em causa uma questão sobre a qual não se suscitam dúvidas de interpretação de normas do direito da União Europeia, em concreto do artigo 110º do TFUE.

A questão da conformidade da norma do artigo 11º do CISV, na redação em vigor à data dos factos, tem vindo, como já se deixou exposto, a ser largamente apreciada pelas instâncias, designadamente europeias, encontrando-se sedimentado o entendimento segundo o qual existe violação do artigo 110º do TFUE sempre que “a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado”.[2]

De onde resulta que, ainda que a apreciação desta questão não tivesse ficado prejudicada pela decisão dada à segunda questão elencada, não se imporia a este tribunal submeter a questão a decidir à apreciação do TJUE.

Peticiona ainda o Requerente a condenação da Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios.

Quanto aos juros indemnizatórios, prescreve o artigo 43º da LGT:

“1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”

No caso dos autos, pese embora não se possa concluir pela existência de um erro imputável aos serviços, que em rigor apenas se limitaram a aplicar a lei em vigor à data dos factos, a verdade é que o Requerente, em face da decisão dos presentes autos e da consequente anulação parcial da liquidação impugnada, se viu forçada a pagar um tributo em montante superior ao devido.

Assim, são devidos juros indemnizatórios, a pagar pela Requerida ao Requerente, calculados sobre o imposto liquidado em montante superior a devido - € 1.585,17 – juros esses calculados às taxas legais desde a data do pagamento indevido até à data da emissão da correspondente nota de crédito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 61º nº 5 do CPPT.

Procede, assim, o pedido formulado relativamente à anulação parcial da liquidação de ISV impugnada, devendo a Requerida reembolsar o Requerente do valor pago em excesso (€ 1.585,17) e pagar os correspondentes juros indemnizatórios, calculados sobre o valor de € 1.585,17, às taxas legais, desde a data do pagamento indevido até à data da emissão da correspondente nota de crédito.

 

  1. DISPOSITIVO:

Em face do exposto, decide-se julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:

  1. anular parcialmente a liquidação de ISV impugnada, no montante de € 1.585,17;
  2. condenar a AT a reembolsar ao Requerente o valor do imposto pago em excesso - € 1.585,17;
  3. condenar a AT no pagamento ao Requerente de juros indemnizatórios, calculados sobre o valor de € 1.585,17, às taxas legais, desde a data do pagamento indevido até à data da emissão da correspondente nota de crédito.

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Fixa-se o valor do processo em € 1.585,17, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

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Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I da Tabela Anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 1 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerida, por ser a parte vencida.

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Notifique-se o representante do Ministério Público junto do tribunal competente para o julgamento da impugnação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º nº 3 do RJAT.

 

Lisboa, 16 de fevereiro de 2022.

O Árbitro,

Alberto Amorim Pereira

 



[1] Cfr. Ac. CAAD de 30NOV2015, processo nº 364/2015-T, in www.caad.org.pt.

[2] Neste sentido, veja-se, entre outros, acórdão do TJUE de 22FEV2001, processo C-393/98, citado no acórdão do TJUE de 16JUN2016, processo C-200/15.