Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Sofia Quental e Dra. Rita Guerra Alves (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 06-12-2021, acordam no seguinte:
1. Relatório
A… (doravante designada por “Requerente”), portadora do Número de Identificação Fiscal (“NIF”) …, com residência na …, veio, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária doravante designado como "RJAT"), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a declaração de ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão de acto tributário n.º ...2021... e consequente anulação da liquidação de IRC n.º 2019...., relativa ao ano de 2017.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 13-09-2021.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 27-09-2021, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 06-12-2021 (considerando a suspensão de prazos prevista no artigo 7.º da lei n.º 1-A/2020, de 9 de Março).
A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, suscitando excepções e defendendo a improcedência dos pedidos.
Na sequência da Resposta, B..., NIF …, que é cônjuge da Requerente, veio requerer a sua intervenção principal que foi admitida por despacho de 10-02-2022.
Por despacho de 21-01-2022, foi decidido que dispensar reunião e alegações, com possibilidade de a Requerente responder às exceções.
A Requerente pronunciou-se sobre as excepções suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não são suscitados obstáculos à apreciação do mérito da causa.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
-
A Requerente e seu marido B... apresentaram a declaração modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2017, que consta do documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
-
No quadro 9 do anexo G da referida declaração de rendimentos referente ao período de 2017, a Requerente declarou uma mais-valia no valor de € 6.658.914,24, apurada nos seguintes termos:
-
Idêntica mais valia foi declarada pelo marido da Requerente B...;
-
Após a entrega da referida Declaração de IRS – Modelo 3, foi emitida a demonstração de liquidação n.º 2018. …, da qual resultou o montante a pagar de € 3.730.153,90, relativo a ambos os cônjuges (Documento n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
-
A Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou uma inspecção à Requerente e seu marido B..., relativa a IRS do ano de 2017, em que foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:
III. Descrição dos factos e fundamentos das correções meramente aritméticas
III.I. Em sede de IRS
III.1.1. Mais-valias
Em 5-09-2018 notificou-se o sujeito passivo para apresentar os documentos comprovativos da venda, da aquisição e dos encargos suportados com as referidas participações sociais.
Em resposta remeteu documento comprovativo da venda das participações sociais, documento comprovativo da aquisição formal das partes sociais e esclarece que as despesas e encargos declarados no valor global de 61.250.000,00 "são referentes ao pagamento efetuado ao C..., situação contratualizada não só como condição do negócio, mas também como despesas e sem a qual aquele não se realizaria". Refere, no entanto, que "por força do tempo entretanto decorrido, os contribuintes já não dispõem dos documentos comprovativos de tal despesa/encargo, protestando juntar a mesma se a entidade bancária a vier a disponibilizar". Entende que o documento comprovativo de aquisição das partes sociais é prova bastante da veracidade das declarações.
O contrato de aquisição das participações sociais
O contrato de aquisição das participações sociais (Anexo 1 - contrato de aquisição sem anexos) apresentado é datado de 17-03-2006 e encontra-se incompleto, dele não constando a totalidade dos anexos identificados e sendo parte dos anexos apresentados ilegíveis.
Este contrato prevê a aquisição à D..., SGPS. S.A de 250.000 ações, correspondentes à totalidade do capital social, pelo preço total de 8750.000,00. Prevê ainda na sua cláusula 5ª que os adquirentes B… e A… aceitam a cessão da posição contratual que a então vendedora detinha em contraio de mútuo no montante de 61.250.000,00 firmado com o C... em 18-04-20052, ficando com o encargo do seu pagamento. Para o efeito deverá o adquirente subscrever e avalizar as livranças e garantias necessárias à substituição da primeira contraente (a vendedora) enquanto garantes do mútuo, bem como subscrever os contratos e documentos necessários à obtenção do consentimento do C... à cessão da referida posição contratual.
Prevê ainda no n° 4 da cláusula 6ª a entrega de comprovativo de revogação de procuração irrevogável de constituição de hipoteca a favor do E… (anexo não apresentado) após ter sido obtido o consentimento do C... à cessão da posição contratual e à substituição da livrança subscrita pela então vendedora.
Considerando que o sujeito passivo indica que ficou com o encargo de efetuar pagamento ao C... e que a cláusula 5ª fica dependente do consentimento do C... à cessão da posição contratual, solicitamos ao sujeito passivo inicialmente via telefone e e-mail e posteriormente por carta registada para apresentar o documento comprovativo da transferência do contrato de mútuo no montante de 61.250.000,00 celebrado em 18-04-2005 entre C... - F…, S.A. e D…, SGPS, S.A. para B... e A…, bem como cópia de alguns documentos comprovativos do pagamento das prestações correspondentes a esse mútuo. Até à presente data não nos foi remetido qualquer dos elementos solicitados.
O contrato de venda das participações sociais
O contrato de venda das participações sociais apresentado (Anexo 2 - contrato de venda e contrato de promessa de venda sem anexos), datado de 16-10-2017, prevê a venda da totalidade do capital social pelo montante de 620.533.771,30. No ponto II identifica os titulares das ações vendidas, e no ponto 4.1 o preço pago aos vendedores, conforme segue:
Nos seus pontos 5. Execução e 6. Obrigações após a data da execução definem-se várias cláusulas a cumprir, das quais importa referir a prevista no ponto 5 (ii) que corresponde a acordo de indemnização da sociedade à vendedora A... no valor de 635.000,00 pela cessação de funções de Presidente do Conselho de Administração, cuja obrigação de pagamento se extingue por compensação com o crédito detido pela I... face à vendedora.
Análise do cálculo da mais-valia
a) Quanto à proporção das partes sociais transmitidas
Em face dos elementos apresentados, importa desde já corrigir os montantes declarados referentes à aquisição das participações sociais transmitidas, considerando que em 2017 os sujeitos passivos vendem 75% (37,5% + 37,5%) do capital social e não 100% do mesmo.
Assim, o valor declarado de aquisição das participações sociais transmitidas terá de ser também o correspondente a 75% do capitai social, que é a parte agora transmitida pelos sujeitos passivos.
Deste modo, o valor das participações sociais agora alienadas não será de € 750.000 (375.000+375.000), correspondente à aquisição de 100% do capital social, mas de € 562.500 (750.000*75%), sendo o valor de aquisição de cada um dos titulares do rendimento de € 281.250,00 (375.000*75%).
De igual modo, o montante das despesas e encargos declarados não seria de € 1.250.000,00, mas sim de € 937.500,00 (1.2500,00*75%). Contudo, nem esse valor se comprovou, conforme abaixo se refere.
b) Quanto aos encargos suportados com a aquisição das partes sociais
Sobre o valor de aquisição a título oneroso de partes sociais dispõe o art° 48° do Código do IRS (CIRS)
No caso da alínea b) do n.° 1 do artigo 10.°, o valor de aquisição, quando esta haja sido efetuada a título oneroso, é o seguinte:
a) Tratando-se de partes sociais, warrants autónomos, certificados referidos na alínea g) do n.°1 do artigo 10.° ou de outros valores mobiliários cotados em mercado regulamentado, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o da menor cotação verificada nos dois anos anteriores à data da alienação, se outro menos elevado não for declarado;
b) Tratando-se de quotas, outras partes sociais, warrants autónomos, certificados referidos na alínea g) do n.° l do artigo 10.° ou de outros valores mobiliários não cotados em mercado regulamentado, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respetivo valor nominal; (sublinhado nosso)(...)
Dispõe ainda art° 51° do CIRS:
Para a determinação das mais-valias sujeitas a imposto, ao valor de aquisição acrescem:
a) Os encargos com a valorização dos bens, comprovadamente realizados nos últimos 12 anos, e as despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação, bem como a indemnização comprovadamente paga pela renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a esses bens, nas situações previstas na alínea a) do n." l do artigo 10.°;
b) As despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação, nas situações previstas nas alíneas b) e c) do n.° l do artigo 10." (sublinhado nosso) (...).
Sendo certo que o contrato de compra das participações sociais prevê que os adquirentes aceitem a cessão da posição contratual no já referido contrato de mútuo firmado com o C..., no montante de €1.250.000,00, é também decorrente do contrato de compra das participações sociais que a cessão da posição contratual no contrato de mútuo fica dependente da obtenção do consentimento do C... (vide clausulas 5ª e 6ª n° 4).
Assim, só por si, o contrato de compra das participações sociais não serve de comprovativo de que os sujeitos passivos B...e A... ao adquirirem as participações sociais ficaram com o encargo do pagamento do mútuo no montante de € 1.250.000,00, conforme alegam.
Tanto mais que, considerando que a data do contrato de aquisição das partes sociais apresentado (17-03-2006) não coincide com a data declarada na declaração mod. 3 de IRS (09-03-2007) (facto não esclarecido pelos sujeitos passivos), fica a dúvida se será aquele o contrato definitivo de aquisição das participações sociais.
Notificados para apresentar o documento comprovativo da transferência do contrato de mútuo para B...e A..., bem como cópia de alguns documentos comprovativos do pagamento das prestações correspondentes a esse mútuo, nada apresentaram.
Deste modo, não se encontrando documentalmente provado que o encargo com o mútuo no montante de 1.250.000,00 ocorreu efetivamente, não pode o mesmo ser considerado parte do custo de aquisição das participações sociais.
Acresce ainda que, em face da falta de resposta dos sujeitos passivos, diligenciamos junto da I..., sociedade cuja aquisição das partes sociais se encontra aqui em análise, e constatamos que em 2008 a mesma tinha em curso um empréstimo contratado com o C..., cujo capital em dívida era, em janeiro de 2008, de € 1.196.604,04.
Solicitado o contrato de mútuo referente a esse empréstimo, facultaram-nos cópia de escritura de assunção de dívida e alteração de empréstimo com hipoteca e fiança, datado de 24-09-2007 (Anexo 3), onde, resumidamente, se determina o seguinte:
- Por escritura de 18-04-2005 o C... concedeu à D..., SGPS, S.A um crédito no montante de 61.250.000,00, sendo o montante em dívida naquela data de €1.196.605,04.
- A I... assume a dívida e todas as responsabilidades emergentes do empréstimo, designadamente a obrigação de pagar ao C... as prestações devidas para reembolso do capital em dívida e juros compensatórios, vencendo-se a primeira prestação em 18-01 -2008.
Facultaram-nos ainda a pedido o diário da contabilização inicial do referido empréstimo (Anexo 4) bem como os extratos da conta 2313 e 251104 - Empréstimos bancários a m/l prazo C... da contabilidade da I..., onde se encontram refletidos os pagamentos das prestações referentes a esse empréstimo dos anos de 2008 a 20174.
Comprova-se assim, que o encargo com o pagamento do mútuo não foi dos sujeitos passivos B...e A..., pelo que os encargos declarados não poderão ser aceites para o cálculo da mais-valia obtida com a transmissão das partes sociais.
Deste modo, o valor da mais valia corrigido é de € 4.775.953,48 (15.400.328,48 - (562.500*1,11)), gerando uma correção ao rendimento coletável no montante de € 1.458.125,00 (14.775.953,48-13.317.828,28) (Categoria G).
-
O contrato de aquisição de acções pelo B... tem o teor que consta do documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
-
O contrato de venda de acções pela Requerente e B... te o teor que consta do documento n.º 8 cujo teor se dá como reproduzido;
-
Em 30-03-2006, realizou-se uma assembleia geral da I... em foi presidente da mesa a Requerente e em que participaram, como detentores da totalidade do capital social, o seu marido B... e as suas filhas H.... e G... (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
-
Em 09-03-2007 as acções adquiridas foram registadas nos termos que constam do documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
-
Depois da inspecção, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação n.º 2019...., que consta do documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
-
A correcção respeitou à mais-valia declarada pela Requerente no quadro 9 do anexo G da sua declaração de rendimentos do período de 2017, passando a considerar-se os seguintes montantes:
-
Em 08-05-2019, a Requerente e o seu marido B... impugnaram a liquidação no Tribunal Administrativo e Fiscal de ..., nos termos que consta da petição junta com a Resposta às Excepções, cujo teor se dá como reproduzido;
-
Em 26-02-2021, a Requerente apresentou o pedido de revisão oficiosa que consta do documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
-
A Requerente e o interveniente B... eram casados em regime de comunhão geral de bens, no momento em que foi feita a referida aquisição de acções (contrato que consta do documento n.º 4);
-
A Requerente pagou o imposto liquidado (facto afirmado no artigo 25.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionado);
-
O pedido e revisão oficiosa não foi decidido até 27-09-2021, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral
que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados
Não se provou que a Requerente tivesse obtido através de doação as acções que veio a vender em 2017.
Na verdade, para além de não se ter produzido prova da existência de uma doação de tais acções à Requerente efectuada por seu marido, as acções pertenciam-lhe desde o momento em que foram adquiridas por este, no âmbito do regime de comunhão geral de bens em que estavam casados.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto relevante para a decisão da causa.
3. Matéria de direito
3.1 Excepção da ilegitimidade activa
A Autoridade Tributária e Aduaneira suscitou a excepção da ilegitimidade activa, por entender que era necessária a intervenção processual do marido da Requerente B..., com NIF …, que apresentou conjuntamente com a Requerente a declaração modelo 3 de IRS.
Foi deferido o requerimento de intervenção apresentado pelo marido da Requerente B…, pelo que a falta de legitimidade activa está sanada, deixando de subsistir a excepção dilatória [artigo 278.º, n.º 3, do CPC subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
3.2. Litispendência
A excepção da litispendência pressupõe a repetição de uma causa quando a anterior ainda está em curso [artigo 580.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT]. Nos termos do artigo 581.º do CPC, «repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir».
A Autoridade Tributária e Aduaneira suscitou a excepção da litispendência por a Requerente e seu marido B... terem apresentado uma impugnação judicial da liquidação adiciona de IRS relativa ao ano de 2017 que foi objecto do pedido de revisão oficiosa que está subjacente ao presente processo.
Como se vê pela petição da impugnação judicial proposta no Tribunal Administrativo e Fiscal de ..., que foi junta à Resposta às Excepções, nela não é invocado como fundamento de anulação o erro na determinação do valor de aquisição que foi invocado no pedido de revisão oficiosa e é também invocado o presente processo arbitral como fundamento da anulação da liquidação.
Nos termos do artigo 3.º, n.º 2, do RJAT, «é possível deduzir pedido de impugnação judicial e pedido de pronúncia arbitral relativamente a um mesmo acto tributário, desde que os respectivos factos e fundamentos sejam diversos», o que está em sintonia com o preceituado nos artigos 581.º, n.ºs 1 e 4, parte final, do CPC, sobre a identidade de causa de pedir em acções anulatórias, pois em acções deste tipo a causa de pedir que é «a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido».
Assim, sendo imputados à liquidação diferentes vícios (fundamentos de invalidade) no presente processo na impugnação judicial pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal de ..., não se verifica uma situação de litispendência, por falta de identidade de causa de pedir.
Improcede, assim, a excepção da litispendência.
3.3. Questão do abuso do direito
O artigo 334.º do Código Civil estabelece que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
A Autoridade Tributária e Aduaneira suscita a questão do abuso do direito, com fundamento no artigo 334.º do Código Civil, por a Requerente adoptar um comportamento contraditório por nunca ter colocado questão do valor de aquisição relevante para determinar as mais-valias, quer no exercício de direito de audição no âmbito do procedimento inspectivo, quer na referida impugnação judicial da liquidação.
O facto de o contribuinte indicar um valor de aquisição de acções e não o discutir no âmbito do procedimento inspectivo não obsta a que invoque todos os vícios que entender, no exercício dos seus direitos de impugnação constitucional e legalmente reconhecidos, que lhe permitem invocar como «fundamento de impugnação qualquer ilegalidade» (artigo 268º, n.º 4, da CRP e 99.º do CPPT).
Além do mais, o direito de audição assegurado pelo artigo 60.º da LGT e pelo artigo 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira é uma faculdade que o contribuinte poderá usar ou na conforme entender.
Por outro lado, como diz a Requerente, «a circunstância de num processo judicial não se discutir (ou até se aceitar) um determinado valor não tem o efeito que dele pretende retirar a Fazenda Pública – muito menos no sentido de sedimentar o facto ou configurar “confissão” do mesmo pelo Contribuinte», pois a própria «confissão judicial prestada num processo não vale fora dele, nem sequer como confissão extrajudicial», com decorre do n.º 3 do artigo 255.º do Código Civil.
Para além disso, como se referiu, o artigo 3.º, n.º 2, do RJAT permite a invocação num processo arbitral de um vício que na foi invocado num processo de impugnação judicial que tenha por objecto a mesma liquidação.
Estre regime, nem como o regime da revisão oficiosa dos actos de liquidação, para além dos prazos normais de impugnação administrativa, justifica-se, além do mais, porque o contribuinte pode não se aperceber imediatamente de todos os vícios de que a liquidação enferma e, na perspectiva legislativa, não há inconvenientes para a segurança jurídica para a invocação de novos vícios no prazo alargado em que e permitida a revisão oficiosa.
Assim, corresponde ao exercício de um direito, exercido nos termos previstos na lei, a invocação pela Requerente, em pedido de revisão oficiosa, de um vício que não foi invocado em impugnação judicial.
Pelo exposto, não ocorre abuso do direito.
4. Questão do valor de aquisição das acções
A Requerente defende, em suma, que o seu marido B... comprou as acções que estão subjacentes às mais-valias, através de contrato celebrado em 17-03-2006 e, depois, em data não determinada anterior a 30-03-2006, transmitiu parte delas, a título gratuito, para a Requerente e suas filhas (G... e H....), de forma que, nesta data, estas já participaram como titulares de acções na assembleia geral da I....
No que concerne à Requerente é claro que não se pode entender que as acções foram adquiridas por doação efectuada pelo seu marido B..., pois, sendo casados em regime de comunhão geral de bens, a aquisição onerosa das acções feita por este imediatamente se produziu também na esfera patrimonial da Requerente. Na verdade, à face deste regime de bens «o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei» (artigo 1732.º do Código Civil) e não se verifica qualquer excepção, designadamente qualquer da indicadas no artigo 1733.º do mesmo Código.
Assim, tem de se concluir que as acções que a Requerente veio a vender em 2017 não foram adquiridas gratuitamente, através de uma hipotética doação, antes foram adquiridas onerosamente através do contrato que consta do documento n.º 4.
De qualquer modo, é manifesto que a liquidação não enferma de erro imputável aos serviços ao não aplicar à determinação do preço de aquisição o regime previsto no artigo 45.º do CIRS, pois, quanto às acções vendidas pela Requerente (e são apenas estas que estão em causa no pedido de revisão oficiosa e no presente processo), é seguro que não se integraram n seu património através de doação, mas sim através de aquisição onerosa feita pelo seu marido B…. ( [1] )
Por isso, foi correcta a actuação da Autoridade Tributária e Aduaneira ao aplicar o regime previsto no artigo 48.º do CIRC para determinar o valor de aquisição das acções vendidas pela Requerente em 2017.
Resultando do exposto a inexistência do erro que a Requerente imputa à liquidação impugnada, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento da restantes questões suscitadas, designadamente relativas à verificação dos requisitos previstos no artigo 78.º, n.ºs 1, 4 e 5, da LGT, pois, em todos os casos, a revisão oficiosa a pedido do contribuinte depende da existência do erro que lhe é imputado.
Conclui-se, assim, que o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa não enferma do erro que a Requerente lhe imputa.
Improcede, assim, o pedido de pronúncia arbitral.
Consequentemente, fica prejudicado, por ser inútil
5. Decisão
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar improcedentes as excepções suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira;
-
Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
-
Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira do pedido formulado com base em erro na aplicação do regime do artigo 48.º do CIRS.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 582.960,00.
7. Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 8.874,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Lisboa, 13-02-2022
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(Sofia Quental)
(Rita Guerra Alves)
[1] Diferente poderá ser a solução, naturalmente, quanto à aquisição das acções pelas filhas da Requerente, pois, quanto a estas, as acções que venderam não foram adquiridas através do contrato celebrado pelo B….