Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 570/2021-T
Data da decisão: 2022-01-28  IRS  
Valor do pedido: € 9.500,27
Tema: IRS – Troca Automática de Informações
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Decisão Arbitral

 

I.             RELATÓRIO

 

A…, Requerente nos autos à margem melhor identificados, apresentou pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT), com o objectivo de obter a anulação do indeferimento da reclamação graciosa n.º … e em consequência do acto de liquidação adicional de IRS n.º 2020 …, referente ao período de tributação de  2016, no valor global de €9.500,27 (Nove mil e quinhentos euros e vinte e sete cêntimos).

 

A 13 de Dezembro de 2021, a AT, respondeu defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado.

 

Foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT).

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (e estão devidamente representadas. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

II.            MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)            Em 11.04.2017, o Requerente procedeu à entrega da sua declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS referente ao ano de 2016 através do Portal das Finanças, da qual resultou um montante de imposto a receber de €10,25 (dez Euros e vinte e cinco cêntimos);

b)           Através do ofício n.º 2020…, datado de 15.09.2020 da Direcção de Finanças do Porto, a AT notificou o Requerente de que, através da troca automática de informações fiscais internacionais prevista na Directiva 2011/16/EU, transposta para ordem jurídica nacional pelo Decreto-Lei n.º 61/2013, de 10 de maio, tinha tomado conhecimento que, para o ano de 2016, o Requerente teria obtido rendimentos de categoria A, nos Países Baixos, no montante de €27.799,00 (vinte e sete mil, setecentos e noventa e nove euros), tendo sido suportado imposto no montante de €1.380, sendo a entidade patronal a B…, lda;

c)            Através do mesmo ofício, a AT informou o Requerente do seguinte: “Nos termos do artigo 57.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), está obrigado a apresentar uma declaração Modelo 3 com todos os rendimentos auferidos nesse ano. Muito embora tenha apresentado uma declaração para este ano, não inclui o anexo J com os rendimentos auferidos no estrangeiro. Sendo residente em Portugal, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 15.º do CIRS, está obrigado a declarar todos os rendimentos obtidos no nosso país assim como os obtidos no estrangeiro. Assim, fica notificado para, nos termos do art. 60.º da Lei Geral Tributária e no prazo de 15 dias, exercer por escrito o seu direito de audição-prévia à efectivação de liquidação adicional de IRS que inclua os rendimentos antes mencionados.”

d)           A 11.12.2020, o Requerente foi notificado do acto de liquidação n.º 2020 …, da qual resultou um montante de imposto a pagar de €7.866,48 (sete mil, oitocentos e sessenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos), acrescido de juros compensatórios no valor de €1.153,01 (mil cento e cinquenta e três euros e um cêntimo);

e)           A 17.02.2021, o Requerente deduziu reclamação graciosa contra o acto de liquidação adicional acima identificado, alegando que não auferiu qualquer tipo de rendimentos no estrangeiro;

f)            A 19.04.2021, a AT notificou o Requerente do projecto de indeferimento da reclamação graciosa, tendo o Requerente respondido em sede de audição-prévia.

g)            A 7.06.2021, o Requerente foi notificado pela AT da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, nos termos se considera que o Requerente não faz prova dos factos invocados.

h)           O Requerente emitiu recibos sobre todas as quantias constantes da declaração de IRS 2016 apresentada.

i)             Os rendimentos declarados pelo Requerente na sua Declaração de IRS 2016 foram pagos, em Portugal, através de transferência bancária, pela sociedade comercial B…, lda, para conta bancária, em Portugal;

j)             O Requerente preencheu o Anexo A da sua Declaração de Rendimentos referente aos rendimentos de trabalho dependente e pensões (categoria A) obtidos em território português da B…, Lda. NIF ….

k)            A entidade patronal B…, lda, com sede em Portugal, declarou nas DMR (Declaração Mensal de Remunerações) o rendimento declarado pelo Requerente na sua Declaração de IRS, como obtido em Portugal.

 

2. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

A matéria de facto foi selecionada de acordo com o disposto no artigo 123.º, n.º 2 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) e artigo 607.º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo junto pela AT, composto exclusivamente pela reclamação graciosa.

 

III.          MATÉRIA DE DIREITO

 

Tendo em conta o pedido formulado, entende-se que a principal questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber se o acto subjacente à decisão impugnada, o acto de liquidação adicional de IRS sub judice, deve ser anulado por erro nos pressupostos de facto e vício de violação de lei, em especial, do artigo 2.º, n.º 1 a) do código do IRS ou violação das regras do ónus da prova no procedimento tributário.

 

1.            Argumentos das Partes

 

O Requerente alega no seu pedido de constituição do Tribunal Arbitral, em síntese, o seguinte:

 

a)            O Requerente apenas obteve os rendimentos de trabalho dependente constantes da declaração de IRS de 2016 apresentada;

b)           O Requerente emitiu recibos sobre as quantias constantes da declaração de IRS 2016 apresentada;

c)            Os rendimentos declarados foram pagos, em Portugal, através de transferência bancária, pela sociedade comercial B…, lda;

d)           A entidade patronal declarou e discriminou os rendimentos pagos e respectivas retenções sobre o Requerente;

e)           O Requerente desconhece o que é que as autoridades dos Países Baixos comunicaram, por tal documento/informação não ter sido fornecida pela AT ou pelos Países Baixos ao Requerente;

f)            O Requerente desconhece se as autoridades dos Países Baixos comunicaram à AT que a entidade empregadora do Requerente suportou o pagamento da quantia de €1.380, a título de imposto sobre o rendimento, nos Países Baixos;

g)            O Requerente não pode ter o ónus de provar factos negativos, tais como não ter recebido quaisquer outros rendimentos além dos declarados.

h)           Entende, em suma, o Requerente que as informações prestadas pelas autoridades fiscais holandesas não permitem concluir, de per si, a ocorrência do facto tributário do qual depende o direito da AT de tributar – o pagamento pela B…, Lda, no ano de 2016, em território holandês, de quantias de retribuição em favor da Requerente, pelo que não tendo sido feita essa prova pela AT, não podem ser invertidas as regras do ónus da prova e onerar o Requerente com o poder-dever de demonstrar que, no ano 2016 não auferiu mais rendimentos para além dos que declarou na sua Modelo 3 de IRS.

 

Por sua vez, a Requerida defende o seguinte:

a)            Na sequência da troca automática de informações fiscais, prevista na Directiva 2011/16/EU, transposta para a legislação nacional pelo Decreto-Lei 61/2013, a AT tomou conhecimento de que o Requerente obteve nos Países Baixos rendimentos da categoria A, no montante de €27.799, pagos pela B…, Lda, no ano 2016, tendo sido suportado, nos Países Baixos, imposto no montante de €1.380;

b)           Na sequência dessa comunicação, a AT, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 65.º do CIRS procedeu à correcção da Declaração de Rendimentos de IRS 2016 do Requerente, com os elementos de que obteve conhecimento pela troca de informações fiscais.

c)            Conforme o próprio Requerente afirma, o seu local de trabalho, no ano 2016, foi transferido para a Holanda, tendo o Requerido permanecido mais de 183 dias na Holanda onde desenvolveu a sua actividade profissional ao serviço da B….

d)           Os documentos bancários e os recibos de vencimento do Requerente não contrariam os factos declarados pela autoridade fiscal estrangeira, onde foram cumpridas as obrigações legais declarativas e de pagamento do imposto.

e)           Assim, não basta ao Requerente alegar que não auferiu rendimentos na Holanda, e que os valores comunicados pelas autoridades fiscais holandesas não correspondem à realidade.

f)            Os rendimentos obtidos pelo Requerente não podem ser considerados como ajudas de custo, não se vislumbrando qualquer evidência que faça supor que a qualificação indicada pelas autoridades fiscais holandesas esteja errada.

 

Atento o pedido formulado pelo Requerente, importa recordar que, nos termos do artigo 124.º do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.

Impõe-se, assim, ao Tribunal estabelecer a prioridade para o conhecimento dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.

Assim, considerando o enquadramento legal descrito, irá analisar-se antes de mais, o alegado erro nos pressupostos de facto, de forma a tutelar de maneira mais eficaz os interesses alegadamente ofendidos.

2.            Erro sobre os Pressupostos de Facto e vícios de Lei

 

Alega o Requerente a este propósito que o acto tributário impugnado assenta numa errada interpretação dos factos, que conduz à violação do artigo 18.º, n.º 1 do Código do IRS e 36.º da LGT.

 

O “erro sobre os pressupostos de facto” traduz-se na divergência entre os factos que a entidade administrativa teve em conta para decidir como decidiu, e a sua real ocorrência (Cfr. Acórdão do STA, proc. 343/15, de 16.03.2017).

 

No caso concreto em análise, verifica-se que o acto de liquidação adicional de IRS de 2016, sub judice, foi, de acordo com a AT, emitido na sequência de informação prestada pelos Países Baixos, no âmbito da Directiva 2011/16/EU, do Conselho, de 15.02.2011.

 

A informação obtida pela AT foi realizada ao abrigo da troca automática de informações previstas na legislação interna no Decreto-Lei n.º 61/2013, de 10 de Maio, em especial, com base no artigo 6.º que dispõe, para o que aqui releva, o seguinte:

“1 - A autoridade competente nacional comunica às autoridades competentes de outros Estados-Membros, mediante troca automática, as informações disponíveis relativas a residentes nesses outros Estados, no que se refere aos seguintes tipos de rendimentos e de elementos patrimoniais tal como são definidos pela legislação nacional aplicável: a) Rendimentos do trabalho; b) Remunerações dos membros de órgãos de gestão/administração; c) Produtos de seguro de vida não abrangidos por outros instrumentos jurídicos da União Europeia em matéria de troca de informações e outras medidas análogas; d) Pensões; e) Propriedade e rendimento de bens imóveis.

2 - Consideram-se informações disponíveis, para efeitos da troca obrigatória e automática prevista no presente decreto-lei, as informações constantes dos registos e bases de dados que podem ser obtidas pelos procedimentos de recolha e tratamento de informações da Autoridade Tributária e Aduaneira.”

 

Conforme resulta dos documentos juntos aos autos, a AT foi informada de que o Requerente teria obtido rendimentos de categoria A, nos Países Baixos, no montante de €27.799,00 (vinte e sete mil, setecentos e noventa e nove euros), tendo suportado imposto no montante de €1.380, sendo a entidade patronal a B…, Lda.

 

Com base nesta informação, a AT entendeu que o Requerente, nos termos do artigo 57.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), está obrigado a apresentar uma declaração Modelo 3 com todos os rendimentos auferidos nesse ano.

Muito embora tenha apresentado uma declaração para este ano, não inclui o anexo J com os rendimentos auferidos no estrangeiro.

Sendo residente em Portugal, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 15.º do CIRS, está obrigado a declarar todos os rendimentos obtidos no nosso país assim como os obtidos no estrangeiro.

Assim, fica notificado para, nos termos do art. 60.º da Lei Geral Tributária e no prazo de 15 dias, exercer por escrito o seu direito de audição-prévia à efectivação de liquidação adicional de IRS que inclua os rendimentos antes mencionados

 

Com base na referida conclusão – de que o Requerente não declarou em Portugal todos os rendimentos obtidos - a AT notificou o Requerente para incluir os rendimentos comunicados pelos Países Baixos, na sua declaração de IRS, nomeadamente no Anexo J, que respeita a rendimentos obtidos no estrangeiro.

 

No projecto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente, veio a AT fundamentar a liquidação adicional de IRS realizada considerando que o Requerente permaneceu mais de 183 dias na Holanda onde desenvolveu a sua actividade profissional ao serviço da B…, lda, que apesar de ter sede em Portugal, talvez tenha tido estabelecimento estável na Holanda, considerando irrelevantes os documentos bancários que atestam os pagamentos efectuados, em Portugal ao Requerente, assim como os recibos de vencimentos emitidos em Portugal, concluindo que o Requerente não fez prova dos factos comunicados pela autoridade fiscal na Holanda, onde foram cumpridas as obrigações legais declarativas e de pagamento de imposto.

 

De notar que os factos considerados como pressupostos e condição do acto impugnado não constam de qualquer documento, não tendo sido realizada qualquer prova sobre os mesmos.

 

Não obstante, a AT concluiu que “pelo preenchimento dos requisitos definidos na Convenção para a tributação dos rendimentos na Holanda, a autoridade fiscal respectiva tributou o rendimento que a B… pagou ou colocou à disposição do reclamante pelo trabalho que lá desenvolveu.”

 

Daqui e dos factos que se vieram a considerar-se provados na decisão da AT, como por exemplo, o Reclamante permaneceu mais de 183 dias na Holanda onde desenvolveu a sua actividade profissional ao serviço da B… e sendo residente em Portugal, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 15.º do CIRS, está obrigado a declarar todos os rendimentos obtidos no nosso país assim como os obtidos no estrangeiro, haveria de se ter concluído estar-se perante uma situação de dupla tributação internacional por cumulação de residências, o que não se verificou.

 

Como ensina Rui Duarte Morais , “A aplicação de uma convenção implica que a qualidade de residente seja referida a só um dos Estados contratantes. É preciso, em cada situação concreta, saber qual é o Estado da residência e qual é o Estado da fonte, pois são diferentes os direitos e deveres que para cada um deles resulta de tais posições.

(…)

Se em ambos os Estados tiver ocorrido uma tributação a título de residente, haverá que recorrer às regras de desempate previstas na própria convenção, as quais enumeram, numa ordem de preferência sucessiva, os seguintes critérios: existência de habitação permanente num (só) desses Estados; país com o qual sejam mais estreitas as relações económicas e pessoais (centro de interesses vitais); Estado em que permanece habitualmente; Estado de que é nacional; acordo entre as administrações fiscais interessadas.”

 

Na verdade, impunha-se a AT actuar em conformidade com o disposto no artigo 4.º, n.º 2 do Acordo PARA EVITAR A DUPLA TRIBUTAÇÃO E PREVENIR A EVASÃO FISCAL EM MATÉRIA DE IMPOSTOS SOBRE O RENDIMENTO E O CAPITAL celebrado entre Portugal e os Países Baixos (Resolução da Assembleia da República n.º 62/2000), adiante ADT, segundo o qual:

 

“Quando, por virtude do disposto no n.o 1, uma pessoa singular for residente de ambos os Estados Contratantes,

a) Será considerada residente apenas do Estado em que tenha uma habitação permanente à sua disposição. Se tiver uma habitação permanente à sua disposição em ambos os Estados, será considerada residente apenas do Estado com o qual sejam mais estreitas as suas relações pessoais e económicas (centro de interesses vitais);

b) Se o Estado em que tem o centro de interesses vitais não puder ser determinado ou se não tiver uma habitação permanente à sua disposição em nenhum dos Estados, será considerada residente apenas do Estado em que permanece habitualmente;

c) Se permanecer habitualmente em ambos os Estados ou se não permanecer habitualmente em nenhum deles, será considerada residente apenas do Estado de que for nacional;

d) Se for nacional de ambos os Estados ou não for nacional de nenhum deles, as autoridades competentes dos Estados Contratantes resolverão o caso de comum acordo.

 

Considerando que a comunicação foi efectuada pelos Países Baixos a Portugal, na qualidade de País da residência, cabia à AT, nos termos previstos no artigo 28.º -Troca de Informações - do ADT – solicitar as informações necessárias para aplicar as disposições desta Convenção ou as das leis internas dos Estados Contratantes relativas aos impostos abrangidos pela Convenção, na medida em que a tributação nelas prevista não seja contrária a esta Convenção.

 

Em especial, seria necessário à AT ter obtido informações para determinar a residência fiscal do Requerente na Holanda, conforme disposto no artigo 4.º, n.º 2 do ADT, ao invés de se concluir pela residência fiscal do Requerente, na Holanda, sem qualquer facto concreto subjacente demonstrável ou documento e sem que, posteriormente, se resolva o problema da cumulação de residências, em cumprimento das regras de repartição da competência fiscal entre os Países envolvidos.

 

É que não pode bastar à AT informar o contribuinte de que existe uma comunicação de valores, com uma qualificação de rendimento, obtido noutro país para que automaticamente possa ser erigido um acto de liquidação adicional com base única e exclusivamente nessa informação que só é do conhecimento da AT.

 

Na verdade, o direito à liquidação adicional de imposto tem também de assentar em evidências da sua sujeição a imposto e do valor devido, em conformidade com a lei interna.

 

No caso em análise, dentro do quadro do regime de troca de informações previsto, caberia à AT procurar obter elementos que fundamentassem a sujeição do valor comunicado a imposto em Portugal, assim como o tipo de rendimento, em cumprimento do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 18.º, n.º 1 do Código do IRS.

 

A este propósito, a AT apenas conclui que os rendimentos declarados pelas Autoridades Holandesas seriam devidos como ajudas de custos indevidas. Tal facto não é, contudo, sustentado em nenhum documento ou meio de prova.

 

Na verdade, da leitura do conjunto dos elementos exteriorizados pela AT ao longo do procedimento administrativo, e perscrutando o mesmo no sentido de aí encontrar a fonte das conclusões da AT, em termos factuais, apenas encontramos conclusões, generalidades, falta de concretização de teses e ideias, não sendo possível encontrar um elenco de factos susceptíveis de conduzir à liquidação impugnada.

 

Na verdade, antes de se considerar um rendimento como ajudas de custo, tem de se apurar, por exemplo, se o trabalhador foi contratado ou não para trabalhar directamente no estrangeiro, se a remuneração acordada já previa a deslocação para o estrangeiro ou não e se as designadas ajudas de custo eram efectivamente pagas a esse título ou incorporavam a remuneração (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proc. 1904/05.0BEPRT).

 

Na falta de quaisquer elementos juntos aos autos que evidenciem a natureza do rendimento, não pode este ser presumido.

 

Até porque, conforme o disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT “[o] ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.” (no mesmo sentido, o artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).

 

Sobre o ónus da prova tem sido entendido que “(…) em regra, a administração tributária terá o ónus da prova dos pressupostos dos factos constitutivos dos direitos que pretender exercer no procedimento, enquanto os sujeitos passivos terão o ónus de provar os factos que possam servir de suporte à concretização desses direitos.” (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária. Anotada e comentada, encontro da escrita: Lisboa, 4.ª ed., 2012, p. 656).

 

Não obstante, a AT não juntou aos autos qualquer documento, para além da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente, “suscetível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respetivos documentos de suporte” (Cfr. Acórdão proferido no processo n.º 01424/05.2BEVIS 0292/18, de 27 de fevereiro de 2019).

 

À AT cabia solicitar informações às Autoridades Fiscais Holandesas, nos termos previstos na alínea i) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira, - O exercício das garantias de eficácia previstas no artigo anterior pode concretizar-se através das seguintes faculdades dos funcionários em serviço de inspecção tributária: i) Solicitar informações às administrações tributárias estrangeiras, no âmbito dos instrumentos de assistência mútua e cooperação administrativa europeia ou internacional. (aditada pela Lei n.º 75-A/2014, de 30 de setembro), em conjugação o disposto no artigo 19.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 61/2013, de 10.05.2013.

 

Em consequência, em face dos factos em discussão e do pedido de indeferimento com base em erro nos pressupostos de facto e vicio de violação de lei, entende-se, seguindo a Jurisprudência firmada sobre a matéria, que a factualidade trazida aos autos não permite abalar a presunção de veracidade da declaração de IRS apresentada pelo Requerente (Acórdãos CAAD, Proc 343/2018, de 11.09.2019).

 

É que, em regra, as declarações dos contribuintes devem ter-se por verdadeiras e de boa-fé: “[p]resumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízos dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.” (cfr. artigo 75.º, n.º 1 da LGT).

 

Não logrou também a AT, ao longo de todo o processo, fazer qualquer prova ou demonstração da natureza dos rendimentos ou do valor dos rendimentos alegadamente obtidos pelo Requerente no estrangeiro. A este propósito, considerou inicialmente a AT que o Requerente teria obtido rendimentos de trabalho não declarados na Holanda, para mais tarde vir esclarecer que foram ajudas de custo configuradas como rendimentos de trabalho sujeitos a IRS.

 

Todas as ilações retiradas e projectadas no acto de liquidação adicional de IRS resultam da informação prestada pela administração tributária Holandesa, nos termos já enunciados, que consistem numa informação standard sobre o rendimento registado na Holanda como obtido pelo Requerente, sobre o imposto pago e sobre a entidade pagadora.

 

Ora, de acordo com o disposto no artigo 76.º, n.º 1 da LGT as “informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei.”, acrescentando o número 4 do mesmo artigo que a regra do n.º 1 se aplica às “informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado.”.

 

A este propósito foi fixado no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 23.11.2017, o seguinte:

 

II - Para apurar se um despacho está, ou não, fundamentado impõe-se, antes de mais, que se faça, desde logo, a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material: uma coisa é saber se a Administração deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; outra, bem diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa.

 

III - É sobre a Administração Tributária que recai o ónus de demonstrar que existem indicadores fundados que legitimam a sua actuação de proceder a correcções, liquidando imposto devido por aquisições intracomunitárias – cfr. artigo 74.º da Lei Geral Tributária.

 

(..)

 

V - As informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado fazem fé quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei – cfr. artigo 76.º, n.º 1 e n.º 4 da Lei Geral Tributária.”

 

Acresce ainda ao exposto que “a AT não poderia, sem mais, proferir decisão final no procedimento tributário apenas com base nas informações recebidas no âmbito do mecanismo de troca de informações, sem atestar a realidade material que se lhes encontra subjacente, designadamente face aos elementos carreados pelo próprio contribuinte para o procedimento tributário.” (cfr. acórdão arbitral proferido no processo n.º 181/2017-T, de 14.11.2017).

 

Assim, considerando as normas aplicáveis acima identificadas e a jurisprudência sobre a matéria, em face dos factos carreados nos autos não pode deixar de se concluir que a informação prestada pela Administração Fiscal Holandesa não está suficientemente fundamentada nem se baseia em critérios objectivos, nem foi fundamentada à posteriori pela AT portuguesa, pelo que, atentas as regras do ónus prova, entende-se que o acto tributário é ilegal, por vício de violação de lei, consubstanciado em erro sobre os pressupostos de facto e em violação do disposto no artigo 2.º, n.º 1 a) do Código do IRS e violação das regras do ónus da prova no procedimento tributário.

 

Estes erros justificam a anulação da liquidação impugnada, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT. De todo o exposto, impõe-se anular a liquidação impugnada.

 

IV.          DECISÃO

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide julgar totalmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa identificada e o acto tributário subjacente, no valor de €9.500,27 (Nove mil e quinhentos euros e vinte e sete cêntimos).

 

V. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €9.500,27 (Nove mil e quinhentos euros e vinte e sete cêntimos).

 

VI. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €918, conforme a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da AT.

 

Lisboa, 28 de Janeiro de 2022

 

(Magda Feliciano)

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)