Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 101/2021-T
Data da decisão: 2022-01-31  IRS  
Valor do pedido: € 8.408,03
Tema: IRS – residência parcial no estrangeiro – crédito de imposto
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DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Jorge Belchior de Campos Laires, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

1.            Tramitação

 

A…, com o NIF …, residente em …, Bélgica, requereu, nos termos do artigo 95º nºs.1 e 2 al. a) da Lei Geral Tributária (LGT), do artigo 99º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e dos artigos 2º nº. 1 al. a) e 10º nº. 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), a constituição de tribunal arbitral com vista à impugnação da liquidação de IRS relativa ao período de 2017, com o nº. 2018 …, no montante de € 8.408,03, bem como do indeferimento da reclamação graciosa contra a mesma, da qual foi notificado em 28/12/2020, através do ofício nº. … de 23/12/2020.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à requerida no dia 18/02/2021.

 

Em 11/05/2021 o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro do tribunal arbitral singular o Dr. João Maricoto Monteiro, tendo aquele comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

No dia 25/05/2021, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) informou, nos termos do disposto no artigo 13.º do RJAT, que, por despacho de 10/05/2021 da Subdiretora-Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento e Relações Internacionais, que foi revogada parcialmente a liquidação objeto do pedido, tendo juntado o despacho revogatório.

 

Por Despacho de 25/05/2021, e na sequência da comunicação da AT, o Senhor Presidente do CAAD solicitou à requerente que, face ao circunstancialismo previsto no artigo 13.º, n.º 2, do RJAT, se dignasse informar o CAAD, querendo, sobre o prosseguimento do procedimento.

 

O requerente optou por não se pronunciar, tendo o procedimento prosseguido, por aplicação do artigo 13.º, n.º 2, do RJAT, tendo o Tribunal Arbitral sido constituído em 31/05/2021.

 

Por Despacho de 23/09/2021, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD determinou a substituição do árbitro Dr. João Maricoto Monteiro pelo signatário.

 

Devidamente notificadas dessa substituição, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, tendo o signatário sido nomeado como árbitro a 22/10/2021, tendo sido proferido Despacho Arbitral no sentido de determinar, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, a prorrogação por dois meses do prazo referido no n.º 1 da aludida norma.

 

Atento o disposto no artigo 17.º, n.º 1 do RJAT, em 27/10/2021 o Tribunal notificou a Diretora-geral da AT para, no prazo de trinta dias, apresentar resposta e, querendo, requerer a produção de prova adicional, solicitando a junção, no mesmo prazo, de cópia integral do processo administrativo.  Mais notificou, considerando a substituição de árbitro e consequente influência na marcha do processo, a prorrogação por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, do prazo referido no n.º 1 da aludida norma.

 

A AT apresentou a sua resposta no dia 05/12/2021, defendendo-se por impugnação, tendo juntado aos autos o processo administrativo.

 

Por Despacho de 13/12/2021, o Tribunal considerou dispensável a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e notificou as partes para, querendo, produzirem alegações escritas facultativas, no prazo sucessivo de 10 dias. Designou o dia 31 de janeiro de 2022 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral, alertando o Requerente para a necessidade de efetuar em momento anterior o pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

Em 20/12/2021, o requerente apresentou as suas alegações escritas.

 

2.            Posição das partes

 

Síntese da posição do Requerente

 

O Requerente exerce, e em 2017 exerceu, a profissão de médico dentista.

 

Em 04/09/2017, alterou definitivamente a sua residência, estabelecendo-se na Bélgica, onde passou não só a exercer a sua profissão, como a ter a sua residência fiscal e permanente, passando a manter na Bélgica o centro dos seus interesses vitais, a sua prática e os seus pacientes.

 

De 01/01/2017 até 04/09/2017, o Requerente obteve em Portugal os rendimentos totais de € 8.576,25.

 

Com o intuito de assinalar o fim da sua permanência e a alteração do seu estado de residência em território português, o Requerente apresentou em 04/09/2017 declaração de cessação de atividade em Portugal, passando a partir dessa data a exercer a sua profissão exclusivamente em território Belga.

 

A partir de 04/09/2017 todos os seus rendimentos passaram a ser exclusivamente obtidos através da sua prática profissional na Bélgica, onde recebeu o montante de € 34.108,66 que, deduzido das respetivas deduções específicas de € 11.174,92, traduziu-se num rendimento tributável de € 22.933,74, tendo aí pago imposto sobre esse rendimento.

 

Como estabelece o artigo 16º, nº. 1, do Código do IRS, “são residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos: a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;”, sendo que, nos termos do nº. 4 do mesmo artigo, “A perda da qualidade de residente ocorre a partir do último dia de permanência em território português”.

 

Ora, após o último dia de permanência em território português, o Requerente não obteve quaisquer rendimentos em Portugal, não se verificando por conseguinte a previsão do artigo 16º nº. 14 do CIRS.

 

Além disso, os rendimentos que obteve posteriormente, tendo sido obtidos exclusivamente na Bélgica, foram efetivamente tributados por um imposto sobre o rendimento idêntico ou substancialmente similar ao IRS aplicado naquele país, com o qual existe intercâmbio de informações em matéria fiscal e cooperação administrativa no domínio da fiscalidade.

 

E por essa razão, e em atenção aos elementos fáticos anteriormente comprovados, deve o Requerente relativamente ao período de tributação de 2017 ser considerado como residente parcial, e nessa medida, considerar-se o seu período de tributação durante o mesmo ano o período compreendido entre os dias 01/01/2017 e o dia 04/09/2017, não sendo tributado pelos rendimentos que obteve na Bélgica após o início da sua residência fiscal nesse país.

 

A título de pedido subsidiário, para o caso de assim não se entender, os rendimentos a tributar em Portugal deveriam ser sobre o montante líquido de € 22.933,74  obtidos na Bélgica após a transferência da sua residência para este país  sobre os quais pagou efetivamente imposto sobre o rendimento idêntico ou substancialmente similar ao IRS, no montante de € 6.105,06.

 

Donde, não obstante a sua residência parcial em Portugal durante o ano de 2017, na hipótese residual de o Requerente dever ser considerado como residente neste país durante todo o ano de 2017, a evitação da dupla tributação deve ser alcançada por aplicação do artigo 23º nº. 1 al. a) da convenção celebrada entre Portugal e a Bélgica com esse objetivo.

 

Para o efeito, deve deduzir-se uma importância igual ao imposto Belga sobre os mesmos rendimentos (artigo 23º nº. 1 al. a) da CDT Portugal Bélgica).

 

Deve, assim, ser anulada a liquidação de IRS nº. 2018 … relativa ao ano de 2017, que em consequência deverá  ser substituída por outra que declare e reflita apropriadamente a relação jurídico-fiscal constituída mediante a aplicação do regime da residência parcial, ou subsidiariamente, proceda à adequada aplicação dos mecanismos de eliminação da dupla tributação estabelecidos na Lei como delimitações negativas de incidência do imposto, com todas as consequências legais, incluindo o dever de a AT reembolsar o requerente de todas as quantias por si indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43º da LGT.

 

Síntese da posição da Requerida (AT)

 

O Requerente entregou a declaração de IRS relativa ao ano de 2017 (última que foi processada) em 22/05/2018, na qual mencionou ser residente em território nacional, com os Anexos B, H e J, onde mencionou neste último ter auferido no estrangeiro (Bélgica) rendimentos da categoria B, no montante de € 34.108,66 e pagou imposto no estrangeiro no valor de € 1.100,00, e da qual resultou a liquidação n.º 2018…. de 2018-05-24, com o valor a pagar no montante de € 8.408,03.

 

Por consulta ao Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, verifica-se que o Requerente a 31/12/2017 era residente em Portugal, cessou a sua atividade profissional em 04/09/2017, tendo apenas alterado o seu domicílio fiscal para o estrangeiro (Bélgica) em 26/02/2018.

 

De acordo com a alínea a) do artigo 16.º do CIRS “são residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa”.

 

Nos termos da alínea a) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 19.º da LGT, “o domicílio fiscal do sujeito passivo é (…) para as pessoas singulares, o local da residência habitual” sendo “ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária”.

 

O Requerente não juntou nenhum documento comprovativo da sua residência no estrangeiro a partir de 04/09/2017, nomeadamente, através de documento emitido pela autoridade fiscal competente para o efeito.

 

Acresce ainda referir que não foram juntos documentos que comprovem o momento em que os rendimentos foram auferidos, isto é, não foi comprovado que os rendimentos auferidos no estrangeiro foram obtidos após 04/09/2017, tendo-se ainda constatado em sede de reclamação graciosa, através da análise aos documentos juntos no procedimento de divergência, que o reclamante começou a auferir rendimentos na Bélgica a 02/08/2017 e que um dos últimos recibos emitidos em Portugal tem como data da prestação o dia 31/08/2017.

 

Nos termos do n.º 1 do artigo 15.º do CIRS, sendo o requerente residente em Portugal, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.

Assim, verificando-se que não estão preenchidos os requisitos da residência parcial, tendo o requerente sido considerado residente em Portugal pela totalidade do ano, os rendimentos auferidos no estrangeiro estão sujeitos a tributação em território nacional, com o respetivo imposto suportado no estrangeiro já considerado na liquidação atualmente em vigor.

 

Porém, o requerente declarou no Anexo J o montante do rendimento ilíquido de gastos e outras deduções, quando deveria ter declarado o rendimento líquido de gastos e de outras deduções.

 

Apesar de o erro da liquidação ter tido por base os elementos declarados pelo requerente, deve a liquidação ser corrigida nesta parte do pedido, ou seja, deverá ser apenas considerado o rendimento líquido conforme comprovado pelo requerente através do documento n.º 6 junto ao pedido.

 

Quanto aos juros indemnizatórios importa referir que, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

 

Porém, no caso concreto, a liquidação contestada teve por base a declaração entregue pelo requerente e com base nos elementos por ele declarados, pelo que não estamos perante um erro imputável aos serviços, e, consequentemente, não são devidos juros indemnizatórios.

 

Por tudo o exposto, deve-se concluir pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, em tudo quanto não for abrangido pelo despacho de revogação, nomeadamente quanto aos juros indemnizatórios.

 

II. SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente. O Requerente e a Requerida têm personalidade e capacidade judiciárias, são partes legítimas e encontram-se regularmente representadas. O processo não enferma de nulidades.

 

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

1.            Matéria de facto provada

A liquidação em causa resulta da declaração de IRS, relativa ao ano de 2017, na qual o Requerente mencionou ser residente em território nacional, com os Anexos B, H e J, onde mencionou neste último ter auferido no estrangeiro (Bélgica) rendimentos da categoria B, no montante de € 34.108,66, ter pago imposto no estrangeiro no valor de € 1.100,00, tendo resultado o valor a pagar no montante de € 8.408,03 (declaração e liquidação constante do processo administrativo).

 

O Requerente apresentou procedimento de reclamação graciosa, ao qual foi atribuído o n.º …, alegando, em síntese, reunir as condições para ser considerado residente parcial em Portugal no período de 01/01/2017 a 04/09/2017, e, subsidiariamente, que deveria ser considerado na liquidação a totalidade do imposto pago no estrangeiro (documento constante do processo administrativo).

 

O Requerente foi notificado, por ofício expedido em 23/12/2020, do indeferimento total da reclamação graciosa apresentada (documentação constante do processo administrativo).

 

No Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, o Requerente a 31/12/2017 estava registado como residente em Portugal, com domicílio fiscal em Portugal, tendo alterado o seu domicílio fiscal para a Bélgica em 26/02/2018 (documentação constante do processo administrativo).

 

O Requerente declarou junto da AT a cessação da sua atividade em Portugal com referência a 04/09/2017 (documentação constante do processo administrativo). 

 

No ano de 2017 o Requerente auferiu rendimentos sujeitos a tributação na Bélgica no valor de € 34.108,66 que, com deduções específicas de € 11.174,92, traduziu-se num rendimento líquido tributável de € 22.933,74, tendo aí pago imposto sobre esse rendimento no montante de € 6.105,06 (declaração, traduzida para língua portuguesa, emitida pela autoridade fiscal belga, junto à Reclamação Graciosa e ao pedido de pronúncia arbitral).

 

O Requerente celebrou um contrato de arrendamento na Bélgica com efeitos a partir do dia 01/05/2017 (contrato, traduzido para língua portuguesa, junto à Reclamação Graciosa e ao pedido de pronúncia arbitral).

 

O Requerente tem uma designada “Carte E – Belgique” com uma inscrição válida de 18/08/2017 a 18/08/2022 (documento junto à Reclamação Graciosa e ao pedido de pronúncia arbitral).

 

2.            Matéria de facto não provada

Dos factos com relevância para a decisão arbitral, não ficou provado as datas, durante o ano de 2017, em que os rendimentos de fonte belga foram recebidos pelo Requerente. 

 

De notar que a declaração emitida pela autoridade fiscal belga não faz qualquer referência à data em que os rendimentos foram auferidos durante o ano de 2017.

 

Adicionalmente, no processo administrativo encontram-se documentos redigidos em língua belga que não foram juntos ao pedido de pronúncia arbitral, além de que não estão devidamente traduzidos nem contextualizados, considerando o Tribunal, por isso, que os mesmos são insuscetíveis de provar que o Requerente auferiu a totalidade dos rendimentos após 04/09/2017, data em que o Requerente alega ter passado a residir fiscalmente na Bélgica.

 

 

3.            Fundamentação

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela AT, e em factos não questionados pelas partes.

 

III.  MATÉRIA DE DIREITO

 

a)            Pedido principal (residência parcial)

 

Nos termos do artigo 16.º, n.º 4, do Código do IRS “a perda da qualidade de residente ocorre a partir do último dia de permanência em território português, salvo nos casos previstos nos n.ºs 14 e 16”.

 

O n.º 14 determina que “um sujeito passivo considera-se residente em território português durante a totalidade do ano no qual perca a qualidade de residente quando se verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições: a) permaneça em território português mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, nesse ano; e b) obtenha, no decorrer desse ano e após o último dia de permanência em território português, quaisquer rendimentos que fossem sujeitos e não isentos de IRS, caso o sujeito passivo mantivesse a sua qualidade de residente em território português”.

 

Face ao normativo em questão, e na eventualidade, a analisar, de o dia 04/09/2017 ter sido o último dia de permanência em Portugal, o regime fiscal da residência parcial poderia ser aplicado e, em consequência, como alega o Requerente, não serem tributados em IRS os rendimentos auferidos na Bélgica a partir dessa data.  

 

O Requerente defende, e com razão, que a residência fiscal não se afere nem exclusiva, nem principalmente, pela inscrição do domicílio fiscal no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes.

 

O artigo 19.º n.º 3 da LGT, na redação à data, determinava que “é obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária” e, conforme o seu n.º 4, “é ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.”

 

Não se confundindo o conceito de residência fiscal com o de domicílio fiscal, sempre se dirá que a alteração do domicílio na data do último dia de permanência, caso tivesse ocorrido, seria um forte indício de alteração efetiva da residência fiscal, mas, não tendo acontecido essa alteração na data em que o Requerente alega ter sido o seu último dia de permanência, tal não impede que se alegue e demonstre esse facto por outros meios de prova.

 

Conforme dispõe o artigo 74.º, n.º 1, da LGT, “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.  

 

Para esse efeito, o Requerente vem juntar documentação que sustenta a sua alegação de que, a partir de 04/09/2017, deixou de residir em Portugal.

 

Desde logo, tem relevância o facto de ter cessado a atividade profissional em Portugal a partir dessa data, uma vez que o exercício da profissão em Portugal, enquanto residente fiscal, requer uma atividade aberta como profissional independente.

 

O facto de o Requerente ter recebido um valor considerável de rendimentos na Bélgica indicia que a permanência na Bélgica não foi esporádica, em princípio apenas compatível como uma situação estável nesse país. Mas além disso o Requerente junta ainda um contrato de arrendamento na Bélgica, com efeitos a partir de 01/05/2017. 

 

Por isso, não assiste razão à AT quando baseia o indeferimento da reclamação, bem como a resposta no presente processo, na mera circunstância de o Requerente a 31/12/2017 estar registado como residente em Portugal, não valorizando minimamente a alegação do Requerente, bem como os elementos de prova carreados no processo.

 

Nem a AT invoca outros factos que pudessem inviabilizar o regime da residência parcial, como seja a regra do n.º 16 do citado artigo 16.º do Código do IRS: “Um sujeito passivo considera-se, ainda, residente em território português durante a totalidade do ano sempre que volte a adquirir a qualidade de residente durante o ano subsequente àquele em que, nos termos do n.º 4, perdeu aquela mesma qualidade”.

 

Mas a AT alega igualmente que “não foram juntos documentos que comprovem o momento em que os rendimentos foram auferidos, isto é, não foi comprovado que os rendimentos auferidos no estrangeiro foram obtidos após 04/09/2017, tendo-se ainda constatado em sede de reclamação graciosa, através da análise aos documentos juntos no procedimento de divergência, que o reclamante começou a auferir rendimentos na Bélgica a 2017-08-02”.

 

Este ponto é relevante, uma vez que o regime de residência parcial implica que, até à data da deslocação de residência, Portugal tem direitos de tributação sobre o rendimento obtido pelo Requerente, onde quer que estes sejam obtidos, conforme a regra do artigo 15.º, n.º 1, do CIRS.

 

De facto, o Requerente limitou-se a invocar que os rendimentos foram obtidos na Bélgica após essa data, não fornecendo qualquer prova documental ou outra que sustentasse essa invocação. Ou seja, de modo a que os rendimentos auferidos na Bélgica não sejam tributados em IRS, não basta alegar e provar que a partir de 04/09/2017 passou a ser residente fiscal na Bélgica, é necessário provar que os rendimentos foram recebidos após essa data.

 

Trata-se de uma prova que o Requerente não logrou fazer e, portanto, face à regra sobre o ónus da prova ínsita no referido artigo 74.º, n.º 1, da LGT, a alegação de que os rendimentos não devem ser tributados em IRS não deve proceder.

 

b)           Pedido subsidiário

 

Subsidiariamente, o Requerente defende que os rendimentos a tributar em Portugal deveriam ser sobre o montante líquido de € 22.933,74, alegação essa que a AT concorda e, nessa medida, revogou parcialmente o ato de liquidação em crise.

 

Mas mais alega o Requerente que a liquidação deveria considerar o crédito do imposto correspondente ao montante de € 6.105,06 pago relativamente a imposto belga, por aplicação do artigo 23.º, n.º 1, a), da convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre Portugal e a Bélgica.

 

A AT, em sede de revogação parcial da liquidação, não considera este crédito, mantendo assim unicamente o valor inicialmente declarado pelo Requerente de € 1.100.

 

Ora, os n.ºs 1 e 2 do artigo 81.º do CIRS, dispõem o seguinte:

 

1 – Os titulares de rendimentos das diferentes categorias obtidos no estrangeiro, incluindo os previstos nas alíneas c) a e) do n.º 1 do artigo 72.º, têm direito a um crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, dedutível até ao limite das taxas especiais aplicáveis e, nos casos de englobamento, até à concorrência da parte da coleta proporcional a esses rendimentos líquidos, considerados nos termos do n.º 6 do artigo 22.º, que corresponde à menor das seguintes importâncias:

a) imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;

b) fração da coleta do IRS, calculada antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos das deduções específicas previstas neste Código.

2 – Quando existir convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a dedução a efetuar nos termos do número anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela convenção.

 

Face ao preceituado na norma acima, é claro que o Requerente tem direito ao crédito de imposto pago na Bélgica, ainda que limitada à fração de IRS correspondente aos rendimentos a que respeita esse imposto, não sendo, no caso concreto, aplicável a limitação prevista no n.º 2 da referida norma, dado que a convenção não estabelece qualquer limite de tributação no caso de profissões independentes exercidas por meio de instalação fixa, como é o caso (cf. artigo 14.º da Convenção).

 

Na sua declaração de IRS o Requerente indicou o valor de € 1.100 Euros como imposto pago na Bélgica, mas através da documentação apresentada constata-se que, conforme alegado pelo Requerente, o valor devido na Bélgica é de € 6.105,06.

 

Ora, o documento emitido pela autoridade fiscal belga, e no qual se constata o valor de rendimentos bruto, o valor líquido e o imposto devido, já se encontrava junto ao processo de reclamação graciosa.

 

Nessa medida, tem razão o Requerente quando alega que o processo de atenuação ou evitação de dupla tributação internacional não foi devidamente considerado pela AT em sede de reclamação graciosa, quando já dispunha de todos os elementos para liquidar o imposto de forma correta.

 

E sublinhe-se que a AT não põe em causa a idoneidade do documento apresentado pelo Requerente, tanto é que lhe confere a necessária credibilidade para o apuramento do rendimento líquido tributável. Nem põe em causa o efetivo pagamento do imposto por parte do Requerente, e, diga-se, caso duvidasse da veracidade da documentação apresentada, poderia sempre acionar os mecanismos de troca de informações com o Estado belga ao abrigo da Convenção.

 

Assim, procede a pretensão do Requerente no sentido de que a liquidação em causa deve considerar, como crédito de imposto, o valor de imposto devido e pago na Bélgica de € 6.105,06 e que recaiu sobre o rendimento englobado para efeitos de tributação em IRS. 

 

IV.  JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

A AT alega que a liquidação contestada teve por base a declaração entregue pelo Requerente e com base nos elementos por ele declarados, pelo que não estamos perante um erro imputável aos serviços, e, consequentemente, não são devidos juros indemnizatórios.

 

No caso do presente pedido, é verdade que a liquidação ora em análise resulta da declaração do Requerente, pelo que não pode ser imputada à AT a incorreta liquidação, dado que se limitou a liquidar o imposto resultante dessa mesma declaração.

 

Porém, por meio de reclamação graciosa, o Requerente formulou o pedido de anulação parcial da liquidação, o qual foi totalmente indeferido.

 

Ora, como referido, o documento emitido pela autoridade fiscal belga, e no qual se constata o valor de rendimentos bruto, o valor líquido e o imposto devido, já se encontrava junto ao processo de reclamação graciosa, pelo que, no âmbito daquele processo de reclamação graciosa, a AT tinha todas as condições para uma liquidação correta do IRS do exercício de 2017.

 

E pese embora o Requerente, em sede de reclamação graciosa, não tenha formulado o pedido de consideração da tributação pelo valor líquido, tendo unicamente pedido, subsidiariamente, a consideração do crédito de imposto, tal não desobrigava a AT, na posse de documentação de onde constavam todos esses factos, de considerar igualmente o valor líquido para efeitos de tributação. Até porque, conforme resulta do citado artigo 81.º do CIRS, o crédito de imposto deve incidir sobre o valor líquido obtido no estrangeiro, pelo que esse exercício deveria sempre ser feito pela AT.

 

Desta forma, o direito a juros indemnizatórios sobre o indevidamente pago deve ser reconhecido a partir do momento em que a AT indefere a reclamação graciosa, e cuja notificação foi feita ao Requerente em 28/12/2020, dado que com a reclamação a AT dispunha de todos os elementos necessários a uma correta liquidação do imposto.

 

Os juros são contáveis desde a referida data de 28/12/2020 até à data do processamento da respetiva nota de crédito, nos termos do artigo 61.º, n.º 5, do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, calculados sobre a quantia indevidamente paga pelo Requerente, à taxa dos juros legais em conformidade com o disposto nos artigos 43.º, n.º 4 e 35.º, n.º 10, ambos da LGT 

 

V.  DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e em consequência:

a) Anular a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa

b) Anular parcialmente a liquidação de IRS relativa ao período de 2017, com o nº. 2018 …, devendo a mesma ser substituída por liquidação que tenha em consideração como crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional o valor de € 6.105,06

c) Condenar a Requerida ao reembolso à Requerente do montante indevidamente pago

d) Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios relativamente ao indevidamente pago, contados desde 28/12/2020 até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

 

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do Procedimento e Processo Tributário, e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 8.408,03.

 

VII. CUSTAS

 

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 918, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

31 de janeiro de 2022

 

O Árbitro Singular

(Jorge Belchior de Campos Laires)