SUMÁRIO:
1) A Liquidação objecto de impugnação judicial/de Pedido de Pronúncia Arbitral pode ser alvo de anulação administrativa na pendência da lide até ao encerramento da fase da discussão. 2) A “anulação administrativa” da Liquidação corresponde à antiga “revogação-anulação” cfr., respectivamente, Novo versus Antigo CPA. 3) A ocorrência de anulação administrativa da Liquidação na pendência da lide determina inutilidade superveniente da mesma e, na respectiva medida, extinção da instância, cfr. art.º 277.º, al. e) do CPC. 4) Não tendo a anulação administrativa sido acompanhada de devolução de quantias pagas, nem juros indemnizatórios, e tendo estas pretensões sido também submetidas ao Tribunal, não se verifica impossibilidade superveniente da lide nesta parte, nem tão pouco inutilidade, e cabe a este decidir sobre as mesmas.
DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
A... (“Requerente marido”) e B... (“Requerente mulher”), doravante em conjunto designados “Requerentes”, “Sujeitos Passivos” ou simplesmente “SPs”, contribuintes fiscais portugueses números ... e ..., respectivamente, casados entre si e residentes na ..., ..., ..., ..., Brasil, vieram, ao abrigo dos art.ºs 2.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT”), submeter ao CAAD pedido de constituição do Tribunal Arbitral.
Peticionam, assim, a declaração de ilegalidade de acto de liquidação de tributos, mais concretamente de IRS, reportado ao ano de 2020.
À liquidação em crise, com o n.º 2021..., de Junho de 2021, corresponde um valor total a pagar de € 36.682,98, a título de “Imposto relativo a tributações autónomas” (cfr. Demonstração de Liquidação junta pelos SPs). Valor que os Requerentes, não obstante não se conformarem com a liquidação, entretanto pagaram.
Na origem da liquidação em crise (doravante também “a Liquidação”) está a Declaração Modelo 3 referente ao ano de 2020 que apresentaram, e na qual declararam rendimento de Mais-Valias decorrente de alienação onerosa, nesse ano, de bem imóvel sito em Portugal (doravante “o Imóvel”).
Notificados da Liquidação, e com a mesma não se conformando, apresentaram, a 01.07.2021, Pedido de Pronúncia Arbitral, pugnando pela declaração de ilegalidade e consequente anulação da Liquidação, reembolso de imposto pago em excesso e juros indemnizatórios.
Os Requerentes não se conformam com a Liquidação por, expõem, a mesma ter por base um regime incompatível com o Direito da União Europeia (“Direito da UE” ou “DUE”). O regime Português na base da Liquidação, defendem, é discriminatório e incompatível com o DUE, constituindo uma restrição à liberdade de movimentos de capitais, proibida pelo Artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
Venderam em 2020 o Imóvel, apresentaram a Declaração Modelo 3 e Anexo G, declararam valor de aquisição, valor de realização e valor de despesas e encargos, e a sua condição de não residentes. Não questionam a quantificação feita pela Administração Tributária do ganho de mais-valias que obtiveram, porém não se conformam com a consideração que foi feita, para efeitos das Mais-Valias tributárias, do montante desse ganho por inteiro. Não foi aplicado o regime do art.º 43.º, n.º 2 do Código do IRS (“CIRS”) . A Administração Tributária aplicou - assim apurando o imposto - a taxa de 28% sobre a totalidade do ganho de mais-valias.
Expõem que são SPs não residentes em Portugal, residindo no Brasil. Que declararam a alienação onerosa do Imóvel e a Administração Tributária liquidou o imposto por aplicação do art.º 72.º, n.º 1, al. a) do CIRS. Que a taxa de 28% neste prevista foi aplicada ao total do rendimento obtido. Que este devia ter sido considerado em apenas metade, por aplicação do art.º 43.º, n.º 2 do CIRS. Não lhes foi permitido excluir de tributação 50% do valor do ganho de mais-valias como acontece com os Residentes.
Apelam ao Princípio do Primado do DUE, ao Artigo 63.º n.º 1 do TFUE, e a uma “clara discriminação dos não-residentes no número 2 do artigo 43.º”. A tributação que sobre si incidiu é mais elevada que a que seria aplicável caso fossem Residentes, defendem. Referem Jurisprudência do TJUE, do STA e Arbitral, e que o mesmo entendimento se aplica também ao caso de residentes em Países Terceiros. Mais que a alteração introduzida pelo legislador no art.º 72.º do CIRS, n.ºs 9 e 10 não permite eliminar a discriminação apontada.
Concluem requerendo a anulação da Liquidação na medida do excesso e demais consequências supra (devolução do valor pago em excesso e juros indemnizatórios).
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD a 02.07.2021 e notificado à AT a 05.07.2021.
Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular a ora signatária, que atempadamente aceitou o encargo.
A 23.08.2021 as Partes foram notificadas da designação de árbitro e não manifestaram intenção de a recusar, cfr. art.º 11º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 10.09.2021.
Por despacho do Tribunal de 10.09.2021 a Requerida foi notificada para apresentar Resposta e juntar o PA. E a 21.09.2021 veio a mesma, diferentemente, interpor Requerimento a informar que “por despacho de 2021-09-13 da Subdiretora-Geral do Rendimento, foi revogado o ato, objeto de impugnação”. Juntou aos autos Despacho e Informação da DSIRS.
Notificados pelo Tribunal a 22.09.2021 para exercício do contraditório, e para se pronunciarem sobre o prosseguimento do processo, os Requerentes vieram, por um lado, manifestar-se contra o constante da dita Informação quanto a pagamento da Liquidação, afirmando terem entretanto procedido ao pagamento, a 30.09.2021, e assim lhes assistir o direito ao reembolso do valor de € 18.341,49, que entendem pago em excesso, e juros indemnizatórios.
Fazem notar, por outro lado, que a Requerida só anulou a Liquidação já apresentado o PPA e, nesse contexto, não instituiu nova regulação da situação jurídica dos Requerentes, contrariamente ao que seria expectável, assim não satisfazendo a sua pretensão impugnatória. Não está assegurada a tutela efectiva dos seus direitos.
Mais que a Requerida deve, em caso de eventual extinção da instância, ser condenada na integralidade das custas.
A Requerida, por sua vez, refere estranhar-se os Requerentes pagarem a 30.09.2021, já notificados da revogação, assim não cabendo direito a juros indemnizatórios. Ao que estes vieram então esclarecer ter sido por lapso que indicaram como data do pagamento 30.09.2021, e que o pagamento foi feito, antes, a 30.08.2021, cfr. documento junto.
*
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é competente e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, cfr. art.s 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03. O Processo não enferma de nulidades e não existe matéria de excepção. O Pedido é tempestivo, apresentado dentro do prazo legal de 90 dias - cfr. al. h) dos factos provados, infra, e ao abrigo do art.º 10.º, n.º 1 al. a), primeira parte, do RJAT (v. art.º 102.º, n.º 1, al. a) do CPPT e art.º 97.º, n.º 1 do CIRS).
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os factos que seguem:
a) Os Requerentes são residente fiscais no Brasil e relativamente ao ano de 2020 declararam, na sua Declaração Modelo 3, a condição de não residentes;
b) O Requerente marido e a Requerente mulher são titulares dos números de identificação fiscal portugueses ... e ..., respectivamente;
c) Por Escritura Pública de 11.08.2020 o Requerente, no estado de casado com a Requerente sob o regime de Direito Brasileiro correspondente ao regime de bens Português da comunhão de adquiridos, adquiriu, pelo preço de € 777.171,51 (setecentos e setenta e sete mil cento e setenta e um euros e cinquenta e um cêntimos), a fracção autónoma designada pela letra “C” do prédio urbano no regime de propriedade horizontal sito em ..., ..., n.ºs..., ... e ..., freguesia ..., concelho de Lisboa, descrito na CRP de Lisboa sob o número ... (doravante “o Imóvel”);
d) Por Escritura Pública de 11.12.2020 os Requerentes venderam o Imóvel pelo preço de € 1.000.000,00 (um milhão de euros);
e) Em 12.05.2021 os Requerentes apresentaram em Portugal a Declaração Modelo 3 com o Anexo G, relativa ao ano de 2020, na qual declararam rendimento de mais-valias com a alienação do Imóvel;
f) Na Declaração Modelo 3 (v. al. anterior), Anexo G, os Requerentes declararam despesas e encargos no montante de € 91.817,84 (noventa e um mil euros oitocentos e dezassete euros e oitenta e quatro cêntimos), valor de realização de € 1.000.000,00, e valor de aquisição de € 777.171,51;
g) Na Declaração Modelo 3 os Requerentes assinalaram no Quadro 8 - Residência Fiscal, a opção B – Não Residentes e, aí, o Campo 4 – “Não residente”, o Campo 5 “Representante – NIF”, e o Campo 6 com o código “076”;
h) Os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS com o n.º 2021..., de 17.06.2021, relativa ao ano de 2020, com o valor de imposto a pagar - “Imposto relativo a tributações autónomas” - de € 36.682,98;
i) O ganho de mais-valias dos Requerentes considerado na Liquidação é de € 131.010,65 (cento e trinta e um mil e dez euros e sessenta e cinco cêntimos) e corresponde à diferença entre o valor de realização, e o valor de aquisição (v. f) supra) acrescido do valor das despesas e encargos declarados;
j) Na Liquidação o imposto a pagar, no valor de € 36.682,98 (cfr. al. h)), foi apurado por aplicação de uma taxa de 28% sobre o ganho de mais-valias (v. al. anterior), i.e., 28% x € 131.010,65 = € 36.682,98;
k) A 01.07.2021 os Requerentes deram entrada no sistema do CAAD ao Pedido que dá origem ao presente processo;
l) O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite a 02.07.2021 e notificado à Requerida a 05.07.2021;
m) Os Requerentes pagaram a Liquidação a 30.08.2021;
n) O Tribunal Arbitral foi constituído a 10.09.2021;
o) Por despacho da Requerida de 13.09.2021, emitido na sequência de Informação de Serviço, e subscrito por delegação de competências pela Senhora Subdirectora-Geral de Gestão Tributária do Imposto sobre o Rendimento, a mesma determinou (transcreve-se): “Revogo o ato contestado, nos termos e com os fundamentos invocados”, e da respectiva Informação - n.º 405/2021, da DSIRS -, consta, entre o mais:
“(…) importa referir que:
9.1.Na Lei vigente, o saldo apurado entre as mais-valias e menos- valias imobiliárias, quando auferido por residentes em território português, é sujeito a englobamento obrigatório, sendo, como tal, tributado às taxas progressivas previstas no n.º 1 do artigo 68.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ("IRS"), em 50% do seu valor, por força do disposto na alínea b) do n.º 2 do 43.º do Código do IRS e, quando auferido por não residentes em território português, é tributado, na sua totalidade, à taxa autónoma de 28%, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º do Código do IRS, sem prejuízo dos residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu (com intercâmbio de informação em matéria fiscal) poderem optar pelo englobamento dos rendimentos, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes, considerando-se para efeitos de determinação da taxa todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território.
9.2.No entanto, a jurisprudência tem vindo a considerar que o quadro legal em vigor não é conforme com os artigos 63.º e 65.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia ("TFUE") por constituir uma discriminação negativa suscetível de restringir a circulação de capitais, com destaque para o Acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Administrativo ("STA") de 09.12.2020, proferido no âmbito do Processo n.º 75/20.6BALSB, bem como para a Decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia ("TJUE") de 18.03.2021, proferida no âmbito do Processo C-388/19 (Caso MK).
9.3. Ora, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 68.º·A da Lei Geral Tributária ("LGT"), a administração tributária deve rever as orientações genéricas quando, entre outros fatores, exista acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo STA.
(…)
12.Uma vez que foi agora assumido pela AT a aplicação do nº2 do artigo 43º do CIRS ao saldo das mais valias dos requerentes, refletindo-se na exclusão de 50% do mesmo, consubstancia assim um erro imputável aos serviços, porém, como o tributo ainda não foi pago, não tem os requerentes direito a juros indemnizatórios.
V – Conclusão
Após apreciação do pedido de pronúncia arbitral, afigura-se-nos que deverá ser aplicada na liquidação o disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 43º do CIRS considerando-se o saldo das mais-valias imobiliárias em apenas 50% do seu valor.
VI – Proposta de Decisão
Por tudo o exposto, propõe-se que seja revogado o ato de liquidação de IRS nº 2021..., referente ao período de tributação de 2020.
Deve remeter-se esta informação à DSCJC,
À consideração Superior”
p) Não houve devolução aos Requerentes da quantia paga, nem foram pagos juros indemnizatórios; (cfr. teor do acto de anulação, e cfr. posições manifestadas pelas Partes nos requerimentos interpostos após comunicada nos autos a revogação)
2.2. Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa não existem factos que não tenham ficado provados.
2.3. Fundamentação da matéria de facto
Os factos dados como provados foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA e com os requerimentos das Partes - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, nas posições manifestadas pelas Partes nos articulados e requerimentos e factos constantes dos autos não questionados.
Ao Tribunal cabe seleccionar, de entre os alegados pelas Partes, os factos que importam à apreciação e decisão da causa perspectivando as hipotéticas soluções plausíveis das questões de direito (v. art.º 16.º, al. e) e art.º 19.º do RJAT e, ainda, art.º 123.º, n.º 2 do CPPT e art.º 596.º do CPC ), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.s 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e art.ºs 5.º, n.º 2 e 411.º do CPC ).
3. Matéria de Direito
3.1. Questões a decidir
As questões a decidir nos presentes autos são essencialmente de Direito, assim:
Verifica-se impossibilidade/inutilidade superveniente da lide?
Se sim, em que medida?
Dependendo da resposta às questões supra, será ou não de conhecer dos pedidos de anulação (parcial) da liquidação, condenação na devolução de quantias pagas, e juros indemnizatórios.
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Recapitulando brevemente.
Em suma, entendem os Requerentes que a Liquidação se encontra ferida de invalidade porque – contrariamente ao sucedido – deveria ter sido aplicado o art.º 43.º, n.º 2 do CIRS e, assim, a tributação ter incidido apenas sobre 50% do ganho de mais-valias obtido. E tal não sucedeu, pois que a Requerida considerou para efeitos de tributação não metade, mas sim o valor total do ganho de mais-valias.
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Depois aplicando sobre esse valor uma taxa especial de 28% - cfr. factos provados, supra.
Assim procedendo, pois, à Liquidação, refira-se, nos termos do art.º 72.º, n.º 1, al. a) do CIRS.
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Segundo os Requerentes, e retornando ao seu entendimento, a medida em que a Liquidação se encontra ferida de invalidade é a correspondente a metade do respectivo valor de imposto a pagar. E assim vêm peticionar a anulação parcial da mesma, com a condenação na devolução da quantia de € 18.341,49, a saber, metade do montante devido (e pago) cfr. a Liquidação (e juros indemnizatórios).
A Requerida veio, já no decurso dos presentes autos de processo Arbitral, comunicar a revogação da Liquidação, determinada por seu despacho de 13.09.2021 (cfr. factos provados). E assim ocorrida, a própria revogação, também ela no decurso dos presentes autos. Como se viu e decorre dos factos provados. Com efeito, PPA foi aceite a 02.07.2021, a Requerida foi notificada da interposição do mesmo a 05.07.2021, e o Tribunal Arbitral veio a ser constituído a 10.09.2021.
Vejamos então.
Determina o legislador - art.º 277.º do CPC - que configura causa de extinção da instância, entre outras, “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide” - cfr. al. e).
Ora, como se sabe e bem se compreende, entre os elementos essenciais da causa – na ausência dos quais a mesma carecerá de condições de existência/validade - encontramos, precisamente, o seu objecto. Que se alcança pela conjugação entre pedido e causa de pedir.
Sem prejuízo do que antecede, poderá também perspectivar-se o próprio acto em crise como o objecto (stricto sensu) da acção.
Sendo que, nestes autos de processo Arbitral, os Requerentes vêm submeter ao Tribunal pretensão de anulação (parcial) do acto administrativo de liquidação supra melhor identificado, tendo por causa (fundamento) a alegada violação de lei do mesmo.
A Requerida, como visto já, e cfr. al. o) - factos provados, veio revogar aquele acto, o acto em crise, a Liquidação. Independentemente da questão terminológica implicada, a que de seguida atentaremos, aquele último acto decisório, administrativo, destina-se a extinguir os efeitos do acto seu objecto, a Liquidação.
A terem sido extintos os efeitos da Liquidação, ocorrerá impossibilidade superveniente da lide, por deixar de existir o seu objecto. Quando o objecto da causa, no decurso da mesma, se extinga, vimo-lo já, ocorre impossibilidade superveniente da lide. Causa de extinção da instância e, assim, de conhecimento oficioso.
Apreciemos então se assim efectivamente sucede nos autos.
Diz-nos o legislador, no art.º 165.º do CPA , versão actual, que a revogação é o acto administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro acto por razões de mérito, conveniência ou oportunidade, e que o acto administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro acto com fundamento em invalidade constitui anulação administrativa (cfr., respectivamente, n.ºs 1 / 2 do artigo).
Temos, pois, que o legislador, pelo Novo CPA , passou – diferentemente do que sucedia no anterior CPA - a distinguir com conceitos diferenciados as duas realidades ali subjacentes, subjacentes à eliminação do acto: no primeiro caso - “revogação” - eliminação fundada em razões de oportunidade, e, no segundo – agora não já “revogação” mas sim “anulação administrativa” -, eliminação fundada na desconformidade do acto à ordem jurídica.
No primeiro caso - “revogação” - poderá assim também dizer-se, destruição de efeitos fundada em razões extrínsecas ao acto, enquanto que no segundo - “anulação administrativa” - fundada, ao invés, em razões que são intrínsecas ao acto que vem a ser anulado.
E às referidas duas figuras concede o legislador tratamento distinto. Entre o mais no que aos respectivos efeitos - v. art.º 171.º do CPA - e consequências se refere. A revogação por regra produzindo efeitos para futuro. Já a anulação comportando em geral efeitos retroactivos, ex tunc, com as demais consequências - cfr., desde logo, art.º 172.º do CPA.
Ora, muito embora o legislador tributário, no art.º 79.º da LGT, tenha referido acto decisório de “revogação”, e não tendo estabelecido os critérios de qualificação da invalidade dos respectivos actos objecto daquele, não deixará de ser de convocar a disciplina do CPA na matéria (v. também art.º 29.º, n.º 1, al.s c) e d) do RJAT e art.ºs 2.º, al. c) da LGT e 2.º al. d) do CPPT).
No sentido da aplicação do regime do CPA à revogação prevista no art.º 79.º da LGT já se pronunciou o STA, entre outros, no Acórdão de 15.03.2017, proc. 449/14, como também o TCA Sul no Acórdão de 14.10.2021, proc. 23/16.8BELRS.
No caso dos autos, e por tudo o que antecede, não pode deixar de considerar-se estarmos perante um acto de “anulação administrativa” no sentido do n.º 2 do art.º 165.º do CPA. O acto objecto da - como tal referida no despacho da Requerida e no art.º 79.º da LGT - revogação é um acto vinculado, e a revogação (revogação-anulação; e na actual terminologia expressa do CPA “anulação administrativa”) vem determinar a eliminação, a destruição dos efeitos, desse outro acto, a Liquidação (o acto aqui em crise, objecto do presente processo), – com efeitos ex tunc, e com fundamento em invalidade.
Em conformidade, determinou a Requerida – cfr. Informação supra (v. al. o) – factos provados) – a destruição dos efeitos da Liquidação, assim fundada: “(...) a jurisprudência tem vindo a considerar que o quadro legal em vigor não é conforme com os artigos 63.º e 65.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia ("TFUE") (...). / (...) nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 68.º·A da Lei Geral Tributária ("LGT"), a administração tributária deve rever as orientações genéricas quando, entre outros fatores, exista acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo STA. (...) / Uma vez que foi agora assumido pela AT a aplicação do nº2 do artigo 43º do CIRS ao saldo das mais valias dos requerentes, refletindo-se na exclusão de 50% do mesmo, consubstancia assim um erro imputável aos serviços (...). / Por tudo o exposto, propõe-se que seja revogado o ato de liquidação (...).” E assim, no correspectivo Despacho determinando: “Revogo o ato contestado, nos termos e com os fundamentos invocados”.
E a conclusão que vem de se retirar (o acto de 13.09.2021 é de anulação administrativa) também não deixa de valer, resulta-nos claro, mesmo se se constatando que, no caso, em rigor o que dá causa à (fundamenta a) destruição do acto é, mais que o seu parâmetro de validade, a interpretação/o entendimento dos Tribunais a respeito deste.
É, pois, uma anulação administrativa (cfr. art.º 165.º/2 do CPA), aquilo de que aqui se trata.
E acresce que, como bem notam os Requerentes, a Requerida, pelo referido acto decisório superveniente, não chegou a operar ainda uma necessária (e peticionada) nova configuração da sua situação jurídica. Tão só destruiu os efeitos jurídicos do primeiro acto (a Liquidação). Limitou-se, assim, a eliminá-lo da Ordem Jurídica.
Poderia a Requerida fazê-lo, operar a anulação administrativa nos termos em que o fez?
Revertendo novamente, e no enquadramento que ficou exposto, ao disposto pelo legislador no CPA, determina-se no respectivo art.º 168.º, n.º 3, que quando o acto tenha sido objecto de impugnação jurisdicional a anulação administrativa pode ter lugar até ao encerramento da discussão.
E dispõe, por outro lado, o n.º 1 do art.º 172.º, igualmente do CPA, que: “Sem prejuízo do eventual poder de praticar novo ato administrativo, a anulação administrativa constitui a Administração no dever de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado, (...).”
Não só o referido Diploma Legal, já se viu, é de aplicação subsidiária também em sede de processo arbitral tributário como, ainda, este processo traduz, como se sabe, um meio alternativo ao processo de impugnação judicial . Pelo que, mais uma vez, não se vêm razões senão para que também aqui a regulamentação em causa seja de convocar.
Vejamos.
Nos autos, havia já sido constituído o Tribunal Arbitral e decorria o prazo para apresentação da Resposta pela Requerida (cfr. art.º 17.º, n.º 1 do RJAT), quando a mesma procedeu à anulação, e mais veio aos autos comunicá-lo. Antes, pois, do encerramento da fase da discussão - cfr. art.º 168.º, n.º 3 do CPA. A anulação teve assim lugar em tempo, não obstante na pendência do processo Arbitral.
E, diga-se, não deixou também de ficar cumprido o art.º 13.º do RJAT, máxime no seu n.º 3, não tendo a Requerida, enquanto na pendência da lide, e já transcorrido o prazo do n.º 1 do mesmo dispositivo, vindo praticar um novo acto.
Por outro lado, se dúvidas houvesse, o acto era passível de anulação administrativa: a Liquidação mantinha-se na Ordem Jurídica e não configurava acto ferido de nulidade - v. art.º 166.º, n.º 1 do CPA.
Acresce, também se dúvidas houvesse, que a anulação pode ser determinada e só em momento posterior, sendo o caso, ser praticado novo acto administrativo - v. art.º 172.º, n.º 1 do CPA.
Isto sem prejuízo de, como também em outros dispositivos legais, tributários, desde logo o art.º 100.º da LGT, e como também determina aquele mesmo art.º 172.º, n.º 1 do CPA, em a Requerida anulando, dever reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado.
No caso, a Requerida tão só anulou, como vimos. Como decorre também do próprio acto de anulação – entre o mais se lendo, na Informação “porém, como o tributo ainda não foi pago, não têm os requerentes direito a juros indemnizatórios” e o Despacho aderindo aos termos da mesma; v. factos provados, al.s o) e p).
E, assim:
Resta ao Tribunal em alguma medida matéria sobre a qual haja que decidir?
Quanto ao pedido de anulação – não resta sobre que decidir, o acto já não existe na Ordem Jurídica. A lide carece, nessa medida, de objecto. A pretensão dos Requerentes de que seja anulada a Liquidação não pode mais ser satisfeita. Inexiste o acto de Liquidação.
Verifica-se, aqui, impossibilidade superveniente da lide, de conhecimento oficioso, e tendo as Partes sido notificadas para exercício do contraditório, como supra (v. relatório). A impossibilidade superveniente da lide é causa de extinção da instância. Que terá assim que ser declarada pelo Tribunal.
Contudo, a impossibilidade da lide não se verifica, no nosso caso, quanto à pretensão apresentada pelos Requerentes de devolução de quantias pagas e de condenação em juros indemnizatórios. Com efeito, entre o momento em que a lide se iniciou e aquele em que a Liquidação foi anulada administrativamente o respectivo objecto mantinha-se inalterado.
Com a anulação administrativa da Liquidação, o objecto da lide foi como que recortado: se em relação ao pedido de anulação ele (objecto da lide) deixou de existir - ao deixar de existir o acto de Liquidação deixa o mesmo de poder ser anulado, não há como satisfazer a pretensão dos Requerentes nesse particular -, já em relação à peticionada devolução de quantias pagas e juros indemnizatórios não decorreu da anulação, como ocorrida, a impossibilidade da lide.
Verificou-se o pagamento da Liquidação, a 30.08.2021. A Liquidação foi logo depois – melhor, a 13.09.2021 - anulada. Assiste aos Requerentes - como supra - o direito à reconstituição da situação que existiria se a Liquidação não tivesse existido. E, não tendo tal sucedido, mantém-se o objecto da lide nesta medida (peticionada que foi a devolução de quantias pagas em cumprimento da Liquidação, e juros). Tendo os Requerentes pago a Liquidação (anulada) e continuando, desde então, desapossados dessa quantia, mantém-se o objecto da lide nesta parte. A pronúncia do Tribunal, aqui, é possível e mantém utilidade.
Antecipando também agora a decisão, é procedente o Pedido nesta parte, sendo devida a devolução das quantias pagas, cfr. art.º 100.º da LGT. Como se prossegue já de seguida.
4. Reembolso de quantias pagas e juros indemnizatórios
Como se viu e resulta da matéria de facto assente (v. supra) os Requerentes procederam ao pagamento da Liquidação. Tendo esta sido anulada, administrativamente, e não tendo havido devolução das quantias pagas, haverá agora que determiná-lo.
No mais, é consequência do que também antecede (as quantias terem sido pagas, em cumprimento da Liquidação que veio a ser anulada, e não devolvidas) que os Requerentes ficaram, desde o pagamento, desapossados das quantias, sendo que com base na Liquidação - anulada - o não deveriam ter ficado. E embora o pagamento de juros indemnizatórios não esteja sujeito ao princípio do pedido, o certo é que os Requerentes os peticionaram.
Que aos tribunais tributários é reconhecida competência para apreciar e decidir quanto a devolução de quantias pagas em excesso, e quanto a juros indemnizatórios, não obstante em contencioso de mera anulação, é entendimento pacífico e há muito assente. E v. art.º 24.º, n.º 5 do RJAT.
Nos termos do n.º 1 do art.º 43.º da LGT são devidos juros indemnizatórios quando se determine em reclamação graciosa ou impugnação judicial ter havido erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao devido. Tendo a Liquidação sido anulada (administrativamente) o pagamento realizado com base na mesma não pode considerar-se devido. Foi assim em montante superior ao devido. E é devida a reconstituição da situação actual hipotética, como supra (cfr. art.º 100.º da LGT). No mais, e havendo já ao tempo da Liquidação Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STA, é de entender o erro de direito como sendo imputável à Requerida.
Pelo que estão também reunidos os requisitos para a condenação em juros indemnizatórios, como se fará.
5. Decisão
Termos em que decide este Tribunal Arbitral:
a) Julgar parcialmente extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide quanto ao pedido de anulação da Liquidação;
b) Condenar a Requerida na devolução das quantias pagas, a saber, € 36.682,98;
c) Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento (30.08.2021) até emissão da respectiva nota de crédito (cfr. art.º 61.º, n.º 5 do CPPT e art.º 43.º da LGT).
6. Valor do processo
Nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2 do CPC, fixa-se o valor do processo em € 18.341,49 (o valor indicado pelos Requerentes e a que a Requerida se não opôs).
7. Custas
Conforme disposto no art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, no art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento já referido e na Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00, a cargo da Requerida - cfr. também art.º 536.º, n.ºs 3 e 4 do CPC (e não sendo, em todo o caso, imputável aos Requerentes a anulação do acto depois de iniciada a lide).
Lisboa, 10 de Janeiro de 2022
O Árbitro,
(Sofia Ricardo Borges)