DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. A contribuinte A..., SA, NIPC..., doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 5 de Julho de 2021, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), 5º, 3, a) e 10º, 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações efetuadas pela Lei nº 66- B/2012, de 31 de Dezembro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da liquidação adicional de IRC, e respectiva Demonstração de Acerto de Contas, nº 2021..., emitida em 18 de Janeiro de 2021, relativa ao exercício de 2017, no valor de € 93.705,85, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 9 de Março de 2021. Invocou a existência de erro nos pressupostos de facto e vício de violação de lei, para requerer a anulação da referida anulação adicional e dos correspondentes juros compensatórios.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
4. Usando da faculdade prevista no art. 13º do RJAT, a AT revogou o acto objecto do Pedido de Pronúncia Arbitral, por despacho de 17 de Agosto de 2021 – essencialmente por se reconhecer que, não obstante ter a Requerente incorrido em erro na materialização contabilística das operações, a verdade material é aquela que corresponde ao mérito do seu pedido, razão pela qual a revogação do acto corresponderá ao interesse substancial da justiça, que deve prevalecer.
5. Na sequência dessa revogação, o Presidente do CAAD solicitou, por despacho de 18 de Agosto de 2021, que a Requerente se pronunciasse sobre o interesse em prosseguir, nos termos e para os efeitos do art. 13º, 2 do RJAT.
6. Por Requerimento de 2 de Setembro de 2021, a Requerente veio declarar o seu interesse no prosseguimento do procedimento / processo arbitral, para efeito único de se apreciar a questão do direito a juros indemnizatórios, suscitada no Pedido de Pronúncia – questão sobre a qual o despacho revogatório fora omisso.
7. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
8. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 10 de Setembro de 2021; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
9. Nos termos art.º 17.º do RJAT, foi a AT notificada, em 13 de Setembro de 2021, para apresentar resposta.
10. A AT apresentou a sua Resposta em 18 de Outubro de 2021, na qual se dava conta de que as consequências do acto revogatório tinham sido alcançadas na prática, nomeadamente através do reembolso do imposto pago e através do pagamento do correspondentes juros indemnizatórios, dando-se cumprimento integral ao acto revogatório favorável à Requerente; além de que se alegava, por excepção, a incompetência do Tribunal para apreciar o pedido de juros indemnizatórios, e a falta de objecto processual à data da constituição do Tribunal Arbitral.
11. Por despacho de 20 de Outubro de 2021, concedeu-se à Requerente a faculdade de se pronunciar sobre a matéria de excepção suscitada na Resposta da AT.
12. A Requerente pronunciou-se a 8 de Novembro de 2021, lembrando que solicitara o prosseguimento dos autos no dia 2 de Setembro de 2021, num momento em que houvera acto revogatório mas não houvera pronúncia expressa da AT quanto ao direito a juros indemnizatórios; e lembrando que a competência material dos Tribunais Arbitrais para apreciarem a matéria de juros indemnizatórios se encontra sustentada doutrinária e jurisprudencialmente.
13. Nesse mesmo requerimento de 8 de Novembro de 2021 a Requerente reconheceu que, tendo sido pagos os juros indemnizatórios em 28 de Setembro de 2021, se verificou nessa data uma inutilidade superveniente da lide em relação a todos os aspectos relevantes.
14. Por despacho de 11 de Novembro de 2021, dispensou-se a reunião prevista no art. 18º do RJAT e as alegações das partes, fixando-se o dia 9 de Março de 2022 como data-limite para a prolação e comunicação da decisão final.
15. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
16. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
17. O processo não enferma de nulidades.
II – Questão a decidir
É consensual entre as partes que a lide é, ou se tornou supervenientemente, inútil, e isso determina a extinção da instância, nos termos do art. 277.º, e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, e) do RJAT.
Isso dispensa o Tribunal de pronunciar-se sobre as excepções suscitadas e sobre a matéria de facto e de direito conexa com o mérito da causa.
Subsiste somente uma divergência relativa ao suporte das custas do processo, e é somente sobre isso que cumpre decidir fundamentadamente.
II. A. Matéria provada
1. A Requerente recebeu uma liquidação adicional de IRC, e respectiva Demonstração de Acerto de Contas, nº 2021..., emitida em 18 de Janeiro de 2021, relativa ao exercício de 2017, no valor de € 93.705,85, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 9 de Março de 2021.
2. No dia 5 de Julho de 2021 a Requerente apresentou um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo que deu origem aos presentes autos.
3. Por despacho de 17 de Agosto de 2021, proferido pela Subdirectora-Geral dos Impostos sobre o Rendimento, em concordância com a Informação nº 683/2021, de 30 de Julho de 2021, foi revogado o acto de liquidação impugnado nos presentes autos, tendo sido determinado o cumprimento do disposto no art. 100º da LGT.
4. Solicitado a pronunciar-se, por despacho do Presidente do CAAD de 18 de Agosto de 2021, sobre o interesse em prosseguir, nos termos e para os efeitos do art. 13º, 2 do RJAT, a Requerente, em 2 de Setembro de 2021, veio declarar o seu interesse no prosseguimento do procedimento / processo arbitral, para efeito único de se apreciar a questão do direito a juros indemnizatórios.
5. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 10 de Setembro de 2021.
6. O valor do acto impugnado (€ 93.705,85) foi devolvido à Requerente em 17 de Setembro de 2021.
7. Os juros indemnizatórios (no valor de € 1.951,14) foram pagos à Requerente em 28 de Setembro de 2021.
II. B. Matéria não-provada
Com relevância para a questão a decidir, não há nenhum facto que tenha ficado por provar.
II. C. Posição da Requerida
1. A Requerente concluía o seu Pedido de Pronúncia Arbitral solicitando “c) A condenação da Requerida no pagamento da taxa arbitral e demais encargos, se os houver”.
2. Contudo, a Requerida, na sua Resposta de 18 de Outubro de 2021, entendia que deveria ser a Requerente a suportar as custas, por não haver qualquer justificação para o prosseguimento do processo, no momento em que a Requerente o solicitou (2 de Setembro de 2021).
3. Especificamente, a AT sustenta que a pretensão principal do Requerente já fora alcançada antes da constituição do Tribunal Arbitral, tendo deixado de existir na ordem jurídica qualquer acto sobre o qual pudesse haver pronúncia.
4. Quanto aos juros indemnizatórios, a AT alega que o direito a eles é consequência jurídica directa do quadro legal da anulação administrativa que teve lugar, nomeadamente em resultado da aplicação dos arts. 43º e 100º da LGT.
5. E lembra ainda a Requerida que há uma alusão expressa ao art. 100º da LGT na Informação n.º 683/2021, de 30 de Julho de 2021, que serve de base à revogação do acto que é objecto do pedido de pronúncia arbitral, pelo que não foi razoável a dúvida veiculada pela Requerente no seu requerimento de 2 de Setembro de 2021.
6. Sendo assim, conclui a Requerida que as razões invocadas pelo Requerente para prossecução da lide arbitral não correspondiam já a qualquer pretensão susceptível de pronúncia arbitral, por manifesta falta de objecto processual, à data da constituição do Tribunal Arbitral: o que, para lá de consequências de falta de objecto processual (uma excepção peremptória a determinar a absolvição), têm consequências na repartição de custas.
7. No que respeita à repartição das custas, a Requerida reconhece que rege o art. 536º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, e) do RJAT.
8. E reconhece ainda, em particular (nºs 32 e seguintes da Resposta), que recai em princípio sobre ela o suporte das custas, por aplicação do nº 4 desse art. 536º do Código de Processo Civil – já que a inutilidade superveniente da lide decorreu da satisfação voluntária, por ela, da pretensão da Requerente.
9. Para afastar essa solução, a Requerida insiste que a lide era impossível – não foi supervenientemente inútil – porque, no momento de constituição do Tribunal Arbitral (10 de Setembro de 2021), o momento de término do procedimento e de início do processo, a pretensão da Requerente já se encontrava integralmente satisfeita, nos termos do art. 13º do RJAT.
10. Daí faz decorrer o argumento de que, caso a Requerente não tivesse declarado, no seu requerimento de 2 de Setembro de 2021, o seu interesse no prosseguimento do procedimento / processo arbitral, reconhecendo a falta originária de objecto para a sua pretensão, ela teria direito à devolução da taxa de arbitragem paga, nos termos do art. 3º-A do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
11. Tendo a Requerente declarado o seu interesse no prosseguimento do procedimento / processo arbitral, conclui a Requerida que a Requerente assume as custas por um processo originariamente destituído de objecto, passando a aplicar-se o art. 536º, 1 do Código de Processo Civil, pelo facto de a demanda ser originariamente infundada.
12. A ilustrar esta asserção, a Requerida acrescenta que o que se passou foi que a Requerente não quis esperar pela concretização da decisão revogatória que já lhe tinha sido comunicada – uma concretização que beneficiava do prazo de 60 dias estabelecido no art. 100º, 2 da LGT, um prazo que foi observado, já que:
O valor do acto impugnado (€ 93.705,85) foi devolvido em 17 de Setembro de 2021;
Os juros indemnizatórios (€ 1.951,14) foram pagos em 28 de Setembro de 2021.
II. D. Posição da Requerente
Para lá da solicitação com que remata o seu Pedido de Pronúncia Arbitral, a Requerente dá por adquirido que as custas recaem exclusivamente sobre a Requerida, por aplicação dos n.os 3 e 4 do art. 536º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 29.º, e) do RJAT; e fá-lo tanto no requerimento de 2 de Setembro de 2021 como no requerimento de 8 de Novembro de 2021.
III. Fundamentação da decisão
1. Afigura-se-nos que ocorre alguma confusão entre duas figuras, ambas mencionadas no art. 277º, e) do Código de Processo Civil:
a. A impossibilidade da lide;
b. A inutilidade superveniente da lide.
2. Se a Requerente tivesse, no seu requerimento de 2 de Setembro de 2021, declarado o seu interesse no prosseguimento do procedimento / processo arbitral para efeito de pronúncia quanto ao mérito da integralidade do pedido de 5 de Julho de 2021, isso constituiria uma verdadeira e própria impossibilidade (ou inutilidade originária) da lide, dada a anulação ocorrida em 17 de Agosto de 2021.
3. O objecto do processo teria desaparecido já no momento da constituição do Tribunal Arbitral a 10 de Setembro de 2021; a lide não poderia prosseguir porque o acto tributário sindicado já tinha cessado os seus efeitos, nos termos do art. 165º do Código de Procedimento Administrativo.
4. A lide seria impossível, e não haveria forma de imputar à Requerida a responsabilidade pelas custas – o que determinaria a aplicação da primeira parte do nº 3 do art. 536º do Código de Processo Civil (“Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se (…)”)
5. Sucede, contudo, que a Requerente, no seu requerimento de 2 de Setembro de 2021, declarou o seu interesse no prosseguimento do procedimento / processo arbitral para efeito único de se apreciar a questão do direito a juros indemnizatórios, questão suscitada no Pedido de Pronúncia, e sobre a qual o despacho revogatório fora omisso.
6. E aí, salvo se subscrevêssemos o entendimento minoritário na doutrina e na jurisprudência, que recusa aos Tribunais Arbitrais a possibilidade de apreciação do direito a juros indemnizatórios, impõe-se reconhecer que, até ao pagamento efectivo desses juros indemnizatórios, era legítima a dúvida da Requerente, dada a omissão da Requerida.
7. Por outro lado, acompanhemos Jorge Lopes de Sousa: “se for praticado um ato revogatório sem nova regulação da situação jurídica, mas subsistirem efeitos produzidos pelo ato revogado, afigura-se que o processo poderá prosseguir em relação a esses efeitos, se foi pedida a sua eliminação, como permite o artigo 65.º, n.º 1, do CPTA, subsidiariamente aplicável, ao abrigo do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT. (…) Numa situação deste tipo, estar-se-á perante uma eliminação apenas parcial do objeto do processo, que não deverá ser obstáculo ao seu prosseguimento para apreciação dos pedidos formulados que não foram satisfeitos pelo ato revogatório.”
8. Ainda poderá sustentar-se que o pagamento de tais juros indemnizatórios é decurso directo da aplicação dos arts. 43º e 100º da LGT, é uma decorrência automática desse regime; ou mesmo, como alega a Requerida, que bastaria à Requerente que aguardasse pacientemente o esgotamento dos prazos estabelecidos no art. 100º da LGT.
9. Mas isso seria, por um lado, subscrever uma teoria “in claris” sobre a vigência da lei, que o nosso sistema jurídico não comporta; e, por outro lado, seria minorar, relativizando-o, o papel da tutela jurisdicional (no caso, arbitral) dos direitos, de que resulta a consagração amplíssima do acesso ao Direito.
10. Seguimos aqui os argumentos aduzidos na fundamentação do acórdão proferido no Proc. nº 520/2018-T: “A circunstância de o dever de pagamento de juros indemnizatórios estar previsto na lei e decorrer (como efeito) da anulação, desde que verificados os seus pressupostos, não compromete, segundo este Tribunal, a utilidade de uma pronúncia jurisdicional nesse sentido que regule a questão com efeito de caso julgado material. Interpretação esta parametrizada pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva e pela dispensa de um eventual contencioso (desnecessário e oneroso), em caso de incumprimento dos deveres reconstitutivos por parte da AT, nomeadamente uma ação indemnizatória autónoma, que derivaria da posição contrária.”
11. No caso vertente, a Requerente exprimiu a sua preferência pelo prosseguimento do procedimento / processo arbitral em 2 de Setembro de 2021; o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 10 de Setembro de 2021; e só em 28 de Setembro de 2021, com o pagamento desses juros indemnizatórios, foi supervenientemente inutilizada a lide que especificamente se lhes reportava.
12. E só a partir desse momento é que se diria ser irrazoável, ou desonesto, insistir na prossecução do processo, dado o desaparecimento desse outro objecto processual.
13. Em suma, quanto ao objecto do processo como ele passou a ser definido após o requerimento de 2 de Setembro de 2021 da Requerente, ocorreu uma verdadeira e própria inutilidade superveniente da lide.
14. O que nos faz regressar às regras legais de repartição das custas. Dado que:
não houve alteração das circunstâncias não imputável às partes (art. 536º, 2 do Código de Processo Civil);
as partes não acordaram a repartição das custas (art. 536º, 4 “in fine” do Código de Processo Civil – e ver igualmente o art. 527º do Código de Processo Civil)
15. Aplica-se plenamente o estatuído no nº 4 do art. 536ºdo Código de Processo Civil: “Considera-se, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente”.
16. Ou seja, nos termos do art. 536º, 3 “in fine” do Código de Processo Civil, a Requerida é responsável pela totalidade das custas.
IV. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
1. Julgar extinta a instância.
2. Absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira.
3. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas.
V. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 93.705,85 (noventa e três mil, setecentos e cinco euros e oitenta e cinco cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI. Custas
Custas no montante de € 2.754.00 (dois mil, setecentos e cinquenta e quatro euros) a cargo da Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).
Lisboa, 5 de Janeiro de 2022
Os Árbitros
Fernando Araújo
José Carreira
Rui Marrana