Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 265/2021-T
Data da decisão: 2022-01-07  ISV  
Valor do pedido: € 3.185,31
Tema: Imposto sobre Veículos – incompatibilidade do art.º 11º do CISV, na redação do art. 217º da Lei n.º 42/2016, de 17/12, com o art. 110º do TFUE.
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SUMÁRIO

O art. 217º da Lei 42/2016 de 27/12 (Lei do Orçamento de Estado para 2017), que alterou o  art. 11º do Código do Imposto sobre Veículos (CSIV)   , voltando  a limitar a aplicação das percentagens de redução do imposto  apenas à componente cilindrada, excluindo a  componente ambiental (emissão de CO2), é incompatível com o princípio da não  discriminação consagrado no  art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia(TFUE).

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I-             RELATÓRIO

 

1.Identificação das Partes

1.1. Requerente

A..., UNIPESSOAL, LDA.,  Pessoa Coletiva n.º ..., com sede em  ...-..., ...-... Sines.

2.2. Requerida

Autoridade Tributária (AT), representada pelas juristas B... e C..., designadas a 11/6/2021.

 

2.Tramitação e constituição do Tribunal

2.1. A 3/5/2021, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral;

2.2. Após a nomeação do Árbitro, a 22/6/2021, o Tribunal Arbitral foi constituído por despacho  do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD de 12/7/2021;

2.3. Na mesma data, a Requerida seria notificada pelo Tribunal Arbitral, na pessoa da diretora-geral da AT, para, no prazo de 30 dias, apresentar Resposta, requerer, se entendesse necessário, prova adicional e enviar integralmente o Processo Administrativo(PA).  

2.4. A Requerida não juntou Resposta, não enviou o PA dentro desse prazo e não apresentou qualquer justificação por o não ter feito:

2.5. A 10/11/2021, o Tribunal Arbitral notificaria a Requerida para enviar o PA;

2.6. A 20/11/2021, a Requerida enviou o PA e uma Resposta, voltando a não apresentar  justificação para a remessa tardia desses elementos.

3.O Pedido

A Requerente pretende, no âmbito do pedido de pronúncia arbitral:

a) A declaração de ilegalidade e consequente anulação parcial do ato de liquidação de ISV, no valor de € 3.185,31 da autoria da Alfândega de Peniche com o nº 2020/..., de 25/8/2020, resultante da apresentação a essa Alfândega da Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) nº 2020/..., na mesma data;

b) A também consequente restituição do imposto que considera indevidamente ter pago nessa data de 25/8/2020, acrescido de juros indemnizatórios calculados sobre esse montante  de € 3.185,31, nos termos do art. 43º da LGT, não especificando qual dos nºs desse  art. considera aplicáveis;

c)A condenação da Requerida ao pagamento integral das custas do processo.

 

4.1- Posição da Requerente

 

O cálculo do ISV foi efetuado pela AT, com recurso à aplicação da tabela aplicável aos veículos ligeiros de passageiros (Tabela A) integrante do art. 7º do CISV, pelo valor total de € 15.247,00 .

 

Do valor total de imposto, € 6.146,11 respeitavam à componente cilindrada e € 9.100,89 relativos à componente ambiental.

 

No que diz respeito à componente cilindrada, o valor de € 6.146,11 foi apurado após dedução da quantia correspondente a 35% do seu montante, ou seja, € 3.309,45, por força da redução resultante do número de anos do veículo, de acordo com as percentagens referida no nº 1 do art.  11º do CISV, de acordo com a Tabela D integrante desse art.

 

Relativamente ao montante de € 9.100,89, respeitante à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental, não foi aplicada qualquer percentagem de dedução, que efetivamente aquele nº 1 do art. 11º não prevê.

 

Segundo desenvolve a Requerente nos arts. 12º e seguintes da Petição Inicial (PI), apesar de os Requerentes terem procedido ao pagamento do imposto liquidado, sem o que não poderiam ter legalizado os veículos para poderem circular em Portugal, a liquidação de ISV identificada  está  ferida de um vício de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental ou CO2, .por violação do já referido art. 110º do TFUE

 

Para a Requerente, com efeito, o  montante do imposto cuja liquidação originaria o presente pedido de pronúncia arbitral, calculado sem tomar em consideração a depreciação real do veículo na parte do preço que refletiria a componente ambiental, , excederia o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados em território nacional.

 

Segundo a jurisprudência do TJUE amplamente citada pelos Requerentes na PI, um Estado-Membro não poderia cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deveria refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional, o que não seria o caso da norma legal ao abrigo da qual seria realizada a liquidação impugnada , o art. 11º do CISV, na redação do art. 217º da Lei nº 42/2016, de 28/12, que reintroduziu uma medida discriminatória que tinha sido abolida pelo art. 113º da Lei nº 55-A/2010, de 31/12, medida essa que apenas viria a ser  suprimida pelo art. 391º da Lei nº 75-B/2020, de 31/12. A base de tributação dessa norma não exprime , na verdade, a parte do preço que integra a componente ambiental, mas apenas a que integra a componente cilindrada.

 

Nessa medida, as liquidações acima referidas deveriam ser parcialmente anuladas em ordem a limitar o montante do imposto devido   ao  montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional  , de acordo com critério idêntico ao estabelecido   na Tabela D integrante desse  art. 11º, que define a desvalorização comercial média dos veículos em mercado nacional, mas  reflete apenas a desvalorização da parte do preço relativa à componente cilindrada, com exclusão da relativa à  componente ambiental.

 

4.2. Posição da Requerida

A Requerida não respondeu no prazo do nº 1 do art. 17º do RJAT, motivo pelo qual a pronúncia constante do documento apresentado a 20/11/2012, manifestamente extemporânea, não pode ser considerada.

5.SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).

O pedido é tempestivo, por deduzido dentro do prazo da alínea b) do nº 1 do art. 102º do CPPT.

6.Fundamentação de facto

6.1. Factos Provados

A Requerente A..., UNIPESSOAL, LDA., Operador sem Estatuto/Particular,   através do seu representante indireto D..., a 25/8/2020,  por meio da   DAV nº 2020/..., introduziu no consumo veículo automóvel usado marca ..., modelo ...,  movido a gasóleo, matrícula..., procedente da Alemanha, com a data de primeira  matrícula de 29/5/2017, DAV essa  que originou a Liquidação de ISV  nº 2020/..., de 25/8/2020, no valor de € 15.247,00, cujo prazo de pagamento voluntário terminaria a 8/9/2020.

No mesmo dia de 25/8/202, a Requerente pagou a totalidade do ISV liquidado.

Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, os veículos inserem-se no escalão da tabela correspondente à redução de 35%

 

No Quadro E da DAV (características do veículo), consta, quanto à Emissão de Gases CO2, o valor de 162 g/km.

 

O cálculo do ISV, que consta do Quadro R das DAV, foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, tendo, assim, o ISV sido determinado atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do art. 7.º do CISV. No apuramento do imposto foi deduzida a percentagem de redução correspondente à cilindrada, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo. No entanto, como, a  partir da Lei nº 42/2016, a redução do ISV passou apenas  a compreender a componente cilindrada, a parte do preço refletindo a componente ambiental foi considerada integralmente.

 

Em 15/12/2020, a Requerente deduziu, junto da Alfândega de Peniche, nos termos do nº 1 do art. 70.º do CPPT, reclamação graciosa dessa liquidação, que recebeu o nº 127/2020.

 

Com vista à apreciação desse pedido, a 8/1/2021, a Alfândega de Peniche elaboraria informação no sentido do indeferimento da reclamação graciosa, baseando-se, sem  pôr em causa os factos expostos e o  enquadramento jurídico efetuado pela  Requerente, na sua subordinação ao princípio da legalidade, apenas excetuado em caso de normas de aplicação direta, de acordo com o nº 1 do art. 18º da Constituição Portuguesa(CRP), o que não é o caso.

 

Tal informação recebeu despacho do mesmo dia do sr. diretor da Alfândega de Peniche, notificado à Requerente por carta registada a 9/4/2021.

 

Factos não Provados

Não se consideram não provados quaisquer factos suscetíveis de relevância para o conhecimento da presente causa.

 

7-Fundamentos de direito.

7.1. Da ilegalidade da norma fundamento da liquidação do ISV,  o  nº 1 do art. 11º do CISV , na redação do art. 217º da Lei nº 42/2016

A ilegalidade do fundamento das liquidações impugnadas é indiscutível, como resulta do ainda recente Acórdão do TJUE de 2/9/2021, no proc. C-169/ 2020. que, aliás, mais não faz que confirmar a já vasta jurisprudência  anterior  do CAAD sobre o assunto em causa, em que avultam  as decisões dos processos nº 572/2018-T; Processo nº 346/2019-T; Processo nº 348/2019-T; Processo nº 350/2019-T; Processo nº 459/2019-T; Processo nº 466/2019-T; Processo nº 498/2019-T; Processo nº 660/2019-T; Processo nº 776/2019-T; Processo nº 833/2019-T; Processo nº 872/2019-T; Processo n º 13/2020-T; Processo nº 34/2020-T; Processo nº 52/2020-T; Processo nº 75/2020-T; Processo nº 98/2020-T; Processo nº 113/2020-T; Processo nº 117/2020-T; Processo nº 117/2020-T; 158/2020-T; Processo nº 201/2020-T; Processo nº 209/2020-T; Processo nº 246/2020-T; Processo nº 293/2020-T; Processo nº 309/2020-T; Processo nº 329/2020-T; Processo nº 347/2020-T 455/2020-A , 456-2020/T e 474-2020/T.

Tal Acórdão foi proferido em ação por incumprimento intentada contra o Estado português pela Comissão Europeia,  nos termos do art. 258º do TJUE.

Como resulta do nº 36 desse Acórdão, para efeitos da aplicação do art.  110.º TFUE, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados já presentes no território do Estado Membro, que constituem produtos similares ou concorrentes aos primeiros, deve tomar se em consideração, não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve, assim, refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional.

Neste contexto, prosseguiriam os nº s 37 e 38. desse Acórdão, para saber se um imposto cria uma discriminação indireta entre os veículos automóveis usados importados e os veículos automóveis usados similares já presentes no território nacional, importa examinar se tal imposto é neutro no que respeita à concorrência entre os veículos usados importados e os veículos usados similares anteriormente matriculados no território nacional e submetidos, no momento da matrícula, ao referido imposto.

Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do CISV prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, na legislação que vigorou entre a Lei nº 42/2016 e a Lei  nº 75-B/2020,  não esteve  prevista , para os  veículos importados. nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que refletisse a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.

Daqui resulta, segundo os nºs 41 e 42 desse Acórdão que a legislação nacional que institui o imposto em causa tivesse por consequência que, durante esse período, o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros fosse calculado, relativamente à parte do preço que refletia a componente ambiental, sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a legislação nacional não garantiu que os veículos usados importados de outro Estado Membro fossem  sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.

Recorda o nº 43  do mesmo Acórdão que, embora os Estados Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE. A proteção do ambiente não se efetiva necessariamente por medidas discriminatórias. O ambiente pode ser protegido com a mesma ou maior eficácia por meio de medidas não discriminatórias.

O artigo 110.º TFUE opor-se-ia, assim, a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da classificação ambiental dos veículos, fosse calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplicasse a veículos usados importados de outros Estados Membros, ultrapassasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já tivessem  sido  registados no Estado Membro de origem.

Chama a atenção o nº 45 do  Acórdão do TJUE o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente do que aquela que foi adotada pelo Estado português,  fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor pagador . Em lugar dessa medida, que seria irrepreensível perante o Direito Comunitário, o legislador optou por introduzir uma discriminação a favor do mercado nacional de carros usados, que não se pode fundar em si mesma na proteção do ambiente.

Assim, segundo o nº 51 desse Acórdão,  ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no Código do Imposto sobre Veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE, incumprimento que ficou sanado apenas com o art. 391º da Lei nº 75-B/2020, de 31/12(OE 2021), ao qual o legislador entendeu  não conferir eficácia interpretativa.

7.2- Do direito a juros indemnizatórios

O nº 1 do art. 43º da LGT determina serem devidos juros indemnizatórios quando se determine em reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços de que tenha resultado pagamento de dívida tributária de montante superior ao legalmente devido. 

Está em causa, assim, em primeiro lugar, se a violação do art. 110º do TFUE pela AT integra, ou não, erro imputável aos serviços na liquidação do ISV, o que  só essa possível se essa norma tiver aplicação direta, independentemente de qualquer transposição para o direito interno. Caso essa norma convencional  não  tenha aplicação direta, o direito a juros indemnizatórios não é suscetível de reconhecimento no presente processo arbitral nos termos desse nº 1.

Em Direito Comunitário, apenas têm aplicação direta as normas cuja exequibilidade não dependa de medidas  normativas, legislativas ou regulamentares nacionais ou atos administrativos adotados pelos Estados membros .

Têm, por outro lado, efeito direto as normas que, não sendo de aplicação direta, podem, no entanto, ser invocadas pelos particulares junto dos tribunais, como fonte de direitos e obrigações.

 

À luz dessa doutrina, nos termos do art. 288º do TFUE, apenas têm aplicação direta os Regulamentos e as Decisões. No caso das Decisões identificarem destinatários, apenas a estes se lhes aplicam diretamente.

 

As normas do TJUE não têm, segundo esse critério, aplicação direta (Patrícia Fragoso Martins. “O Princípio do Primado do Direito Comunitário sobre as Normas Constitucionais dos Estados Membros- Dos Tratados ao Projeto de Constituição Europeia”, Lisboa, 2005, pg. 29). Podem, no entanto, caso sejam invocadas perante tribunais nacionais, ter efeito direto, consequente do  primado do Direito Comunitário, como seria desenvolvido pela jurisprudência do TJUE logo a partir do Tratado de Roma.

 

Com efeito, o  Acórdão do TJUE C- 26/62, de 5/2/63, conhecido por Van Gend & Loos, tal art. 12º   do Tratado de Roma reconheceu  aos particulares direitos individuais que as jurisdições internas dos Estados membros  deveriam salvaguardar, incluindo  os direitos inerentes à liberdade de circulação.

 

Segundo o posterior Acórdão nº C- 166/77, de 9/3/78, conhecido por Simmenthal, a salvaguarda desses direitos  não depende de o juiz solicitar ou esperar a prévia eliminação da norma interna incompatível, quer   por via legislativa , quer  por qualquer outro processo constitucional do Estado membro.

 

É de referir que, a partir do Acórdão do TJUE C-/60, de 16/12/60, o TJUE consideraria não dispor, como hoje ainda não dispõe, mesmo no âmbito da ação por incumprimento atualmente regulada no art. 260º do TFUE,  da competência  de anulação de atos dos Estados membros com fundamento em serem contrários ao Direito Comunitário, independentemente de tais atos serem individuais e concretos ou normativos. 

 

Assim, a sanção da violação do princípio do primado como foi desenvolvido por essa jurisprudência não é a invalidade mas a mera ineficácia, por inaplicabilidade, perante o Direito Comunitário, seja este primário, como é o referido art. 110º do TFUE, ou derivado,  das  normas de direito interno  que o contrariem.

 

O princípio do primado não prejudica outras consequências que o direito interno de cada Estado membro possa extrair autonomamente da violação das normas do Direito Comunitário.

 

Assim o Direito Comunitário apenas obriga o juiz nacional a desaplicar as medidas normativas ou administrativas nacionais incompatíveis com o Direito Comunitário.

 

Do mesmo modo, do princípio do primado não resulta a licitude de, salvo em cumprimento de decisão judicial, as Administrações Públicas dos Estados Membros desaplicarem as medidas normativas nacionais incompatíveis com o Direito Comunitário.

A possibilidade de a Administração Pública se recusar a aplicar atos legislativos com fundamento em inconstitucionalidade ou mera ilegalidade, exercendo um controlo da constitucionalidade ou legalidade dos atos normativos reservado aos tribunais ,  é, aliás, no modelo do Estado de direito adotado pela quase totalidade dos países da União Europeia,  incompatível com o princípio da separação de poderes, em Portugal com expressão no nº 1 do art. 111º da Constituição da República Portuguesa(CRP),  que dispõe que os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na CRP. Não se vislumbra, por exemplo, como possa ser compatível com esse modelo a possibilidade de um diretor-geral ou funcionário subalterno recusar a aplicação de uma lei do Parlamento, à margem do controlo deste sobre toda a atividade administrativa.

Esse princípio seria acolhido, passando agora para o direito interno, pelo nº 4 do art. 8º da CRP, aditado pelo art. 3º da Lei Constitucional nº 1/2004, de 24/7, que dispõe que as disposições dos Tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

 

Por comparação com o que constava do Projeto de Revisão Constitucional nº 3/IX, esse  nº 4 não declara, assim,  o direito primário dos Tratados  e o direito  derivado prevalecerem hierarquicamente  sobre as normas do  direito interno , mas apenas determinarem a sua ineficácia/ inaplicabilidade. 

 

A versão final   que viria a ser aprovada estaria de harmonia com o posterior   Tratado de Lisboa resultante do cumprimento do mandato da conferência intergovernamental definido pelo Conselho Europeu de Bruxelas de 22/06/2007, que retirou ao projeto de tratado inicial, o chamado Projeto de Tratado que  estabelece uma Constituição para a Europa aprovado pelo Conselho Europeu de Roma de 29/10/2004, esse  carácter constitucional.

 

Deste modo, as normas dos Tratados da União, como é o caso desse art. 110º do TFUE: não são aplicáveis diretamente, mas têm efeito direto na medida em que a sua incompatibilidade com o Direito Comunitário pode ser invocada perante os tribunais para efeito da remoção da  aplicação do direito interno contrário.

 

No entanto, as normas dos Tratados e direito derivado   não são aplicáveis sempre que a sua  aplicação contrarie princípios fundamentais do Estado de direito democrático, hipótese de momento meramente  académica, já que tais princípios fundamentais foram incorporados pelos Tratados, incluindo na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

Está, assim, afetada   pelo que parte da doutrina chama de “inconstitucionalidade indireta”, por contrariar esse nº 4 do art. 8,º ou, ainda que assim se não concorde.  de ilegalidade “sui generis”, por contrariar o nº 2 do art. 3º, qualquer medida normativa nacional  da qual resulte a inaplicabilidade do Direito da União Europeia (Jorge Miranda, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra, 2005, pg 95).

 

A eventual violação indireta de normas constitucionais por norma interposta em que se enquadra a chamada “inconstitucionalidade indireta “ só cabe, no entanto  na figura da inconstitucionalidade quando a violação da norma interposta  implicar igualmente a violação direta e autónoma de normas constitucionais diversas para além da que fixam as regras da hierarquia ( Acórdão do Tribunal Constitucional de 31/10/84, Proc. 84-0043).

 

Assim,  o  direito convencional vinculativo , que não se confunde com o direito derivado,  nos termos dos nºs 2 a 4 do art, 8º, da CRP,  de acordo com a chamada Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15/11)  nos termos da alínea i) do n.º 1 do  artigo 70.º:, apenas  é passível de um juízo de inconstitucionalidade nos  casos de decisões que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional.

 

Não cabe à Administração Pública, particularmente à Administração Tributária, sob pena de subversão do princípio da separação de poderes, usurpando a função dos  tribunais, recusar  a aplicação de medidas  de natureza legislativa  legitimamente aprovadas pelo Governo ou pela Assembleia da República, com fundamento em inconstitucionalidade  mas também em  ilegalidade.

 

Ainda que, de acordo com os critérios gerais de interpretação das leis previstos na lei civil e na lei fiscal, o resultado da interpretação dessas normas seja o da sua inconstitucionalidade ou ilegalidade, a Administração Tributária  não pode deixar, mesmo assim,  de as aplicar, deixando para os tribunais o controlo da constitucionalidade ou ilegalidade que  é da sua exclusiva competência.

 

Essa é a jurisprudência consolidada do STA (Acórdão do Pleno de 30/1/2019, proc. 564/18.2BALSB), a propósito da aplicação do art. 43º da LGT,  de acordo com o qual  “Para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, nos termos do disposto no art. 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da Administração Tributária qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da Administração Tributária  decidir de modo  de modo diferente daquele que decidiu ,por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. nº 2 do art. 266.º da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr.  nº 1 do art. 18º   da CRP)”.

 

Tal Acórdão abrange não apenas a inconstitucionalidade mas a ilegalidade das normas: não faria sentido, aliás, que o efeito direto negado às normas constitucionais fosse reconhecido às normas legais, colocadas num plano inferior na hierarquia das   normas jurídicas.

 

Traduz  jurisprudência consolidada , de acordo com os critérios que têm vindo a ser definidos pela Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo no preenchimento do conceito de “jurisprudência mais recentemente consolidada do STA”: esta deve transparecer ou do facto de a pronúncia respetiva constar de acórdão do Pleno assumido pela generalidade dos Conselheiros em exercício na Secção consoante prevê o  nº 2 do atual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais(ETAF)   ou do facto de existir uma sequência ininterrupta de várias decisões no mesmo sentido, obtidas por unanimidade em todas as formações da Secção, como são particularmente, entre outras, as citadas na Decisão nº 362- 2020/T, do CAAD (Vide, por todos, o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, 12 /12/2012, proferido no processo com o n.º 932/12).

 

Nessa medida, o art. 217º da Lei 42/2016 de 27/12 (Lei do Orçamento de Estado para 2017), que alterou o  art. 11º do Código do Imposto sobre Veículos (CSVI) voltando  a limitar a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a  componente ambiental (emissão de CO2),  não sendo inconstitucional , está certamente  ferido de  ilegalidade por contrariar o art. 110º  do TFUE, o  que não quer dizer que tenha aplicação direta.

Deste modo, ao liquidar o imposto com base em uma norma –esse art. 217º da Lei 42/2016- sem dúvida incompatível com o Direito Comunitário, com a consequente ilegalidade, - a Administração Tributária limitou-se a aplicar o  direito em vigor, com a consequente exclusão de erro imputável aos serviços, na aceção da citada  jurisprudência superior, não podendo ter agido de modo diverso.

 

O nº 3 do art. 43º estenderia o direito a juros indemnizatórios sempre  que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas, A causa da ilegalidade da liquidação continua nesse caso a ser imputável aos serviços: não a um funcionário concreto, mas ao órgão da administração tributária do qual emanaram esses instruções, pelo que se lhe aplica integralmente  o entendimento anteriormente desenvolvido.

 

Ampliando o direito a juros indemnizatórios a outros fundamentos que não incluem o erro imputável aos serviços na liquidação, o nº 3 estabeleceria serem também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

 a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do ato tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d)Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

 

Em todos esses casos previstos nesse nº 3, o direito a juros indemnizatórios não tem de ser reconhecido em decisão administrativa ou judicial como exige o nº 1.

 

Nasce automaticamente da verificação de qualquer dos   factos elencados nesse nº 3 e não de qualquer ato prévio, administrativo ou judicial, que declare o direito a tais juros, que não é condição do seu reconhecimento.

 

Em caso de incumprimento do dever de pagamento de juros indemnizatórios não obstante a ocorrência de qualquer das circunstâncias desse nº 3 do art. 43º, pode o visado, conforme os casos, reagir pelos meios previstos nos arts. 146º e 147.º do CPPT, execução dos julgados ou intimação para um procedimento.

 

A pretensão da Requerente não tem qualquer enquadramento na alínea c) do nº 3 do art. 43º da LGT.

Com efeito, tal norma abrange  apenas as decisões judiciais e não as decisões arbitrais, ainda que proferidas por tribunais arbitrais.

Decisões judiciais são apenas as decisões dos juízes  dos tribunais judiciais, ou seja, dos juízes dos tribunais comuns e dos juízes dos tribunais administrativos e fiscais, sujeitos a um regime essencialmente comum , nos termos do nº 1 do art. 7º e do nº 1 do art. 8º da Organização Judiciária( Lei nº  62/2013, de 18/8).

Os árbitros dos tribunais arbitrais não pertencem, para efeitos do Capítulo I do Título II dessa Lei, ao contrário dos juízes daqueles tribunais, a qualquer profissão judiciária e a sua independência, garantias e incompatibilidades não são idênticas às dos juízes.

Assim, essa alínea d) do nº 3 do art. 43º da LGT apenas abrange as decisões dos tribunais tributários e, no exercício das suas funções da fiscalização concreta da constitucionalidade e legalidade dos atos normativos a que se refere o art. 280º da CRP, do Tribunal Constitucional.

O Acórdão do TJUE C-169/2020 limita-se à verificação do incumprimento pelo Estado português das obrigações previstas no art. 110º do TFUE, não contendo qualquer declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade do art. 217º da Lei nº 42/2016, reservada aos tribunais nacionais, pelo que não pode ser desencadear diretamente a aplicação  dessa alínea d) do nº 3 do art. 43º da LGT.

De acordo com esta última norma, o direito a juros indemnizatórios depende do trânsito em julgado da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade de norma de direito nacional, quer com caráter geral, quer num caso concreto.

Seria, assim, inoportuna ou extemporânea a decisão de tribunal arbitral que, antes do trânsito em julgado da declaração de  inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral ou, em casos concretos. , na sequência do recurso obrigatório interposto pelo Ministério Público.  nos termos do nº 3 do art. 280º da CRP ou da omissão pelo Ministério Público desse dever de recorrer, conhecesse antecipadamente do direito do contribuinte a juros indemnizatórios.

Tal direito só se constituí   com esse trânsito em julgado e não anteriormente e, por ser automático,  não carece de ser declarado.

8-   Decisão

 

Termos em que, o Tribunal decide:

 

a) A declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de liquidação de ISV da autoria da Alfândega de Peniche com o nº 2020/..., de 25/8/2020, resultante da apresentação da Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) nº 2020/..., na mesma data;

b) A consequente restituição do imposto indevidamente pago também nessa data de 25/8/2020 de € 3.185,31 ;

c)A condenação da Requerida ao pagamento integral das custas do processo.

d)Julgar totalmente improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios 

 

9. Valor do processo

 

 Fixa-se o valor do processo, nos termos da alínea a) do nº 1 do  97.º-A, n.º 1,do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), em  € 3.185,31;

 

10. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos nº 1 e 2 do art. 3º do  respetivo Regulamento  e do nº 2 do art. 12.º, n.º 2, e do nº 4 do  22.º ambos do RJAT, a pagar integralmente pela  Requerida e

Registe-se e notifiquem-se as partes e, para efeitos da alínea a) do nº 1 e do nº 3 do art. 72º da LOTC, o Ministério Público.

 

Lisboa, 7 de Janeiro de 2022

 

O Árbitro Singular

(António de Barros Lima Guerreiro)