Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 252/2021-T
Data da decisão: 2022-01-03  ISV  
Valor do pedido: € 2.411,67
Tema: ISV – Admissão veículo usado da UE – Componente Ambiental.
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SUMÁRIO:

 

I.             Subscrevendo a posição que o TJUE tem expressamente assumido, em particular no acórdão proferido no processo C-169/20, não há dúvidas quanto à incompatibilidade do artigo 11.º do Código do ISV, na redação em vigor à data da emissão da liquidação em crise, com o direito da União Europeia, ao fazer impender uma carga tributária agravada sobre os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros, comparativamente com os nacionais, por não ter em conta a necessária redução do montante do imposto na componente ambiental;

II.            O n.º 4 do artigo 8.º da CRP estabelece o primado do direito comunitário, quando determina que as disposições dos tratados que regem a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito nacionais, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde que respeitados os princípios fundamentais do Estado de Direito Comunitário;

III.          Quando as normas de direito ordinário interno não são compatíveis com o direito comunitário, o Tribunal não as pode aplicar suspendendo a sua força vinculativa no caso concreto.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A Árbitro Dra. Ana Luísa Ferreira Cabral Basto (árbitro singular), designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 6 de julho de 2021, acorda no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., NIF ..., com residência no ..., ..., ...-... Vila Real, veio deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), em que a Requerida é a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante também designada por “AT”).

 

Constitui pretensão do Requerente a anulação parcial do ato de liquidação de Imposto sobre Veículos (“ISV”) praticado pelo Diretor da Alfândega do Peso da Régua, no valor global de € 5.817,33 – designadamente, resultante da apresentação da Declaração Aduaneira de Veículo (“DAV”) n.º 2018/..., de 18.12.2018 – com a correspondente redução para € 3 405,66 e consequente reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de € 2 411,67, acrescido de juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

O presente pedido de constituição de tribunal arbitral vem interposto na sequência do indeferimento do pedido de revisão oficiosa do ato liquidação em crise, por despacho de 21.04.2021 do Diretor da Alfândega de Peso da Régua, tendo esta decisão de indeferimento sido notificada ao Requerente igualmente em 21.04.2021.

 

O Requerente juntou 7 documentos e requereu prova testemunhal.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 26 de abril de 2021, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 28 de abril de 2021 e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação da AT, em 30 de abril de 2021.

 

O Requerente não procedeu à nomeação de Árbitro.

 

Assim, nos termos e para os efeitos do disposto do n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, por decisão do Exmo. Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente previstos, foi designado Árbitro do Tribunal Arbitral singular a Exma. Dra. Ana Luísa Ferreira Cabral Basto, que comunicou, ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo estipulado no artigo 4.º do Código Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 6 de julho de 2021, seguindo-se os pertinentes trâmites legais.

 

Em síntese, os fundamentos apresentados pelo Requerente para efeitos do pedido de pronúncia arbitral foram os seguintes:

 

a)            O ato de liquidação de ISV, objeto de pretensão anulatória pelo Requerente, resultou da declaração para introdução no consumo de um veículo, ligeiro de passageiros, usado, proveniente da Alemanha, tendo por referência a correspondente DAV acima mencionada.

 

b)           Neste sentido, entende o Requerente que o ato de liquidação de ISV decorrente da respetiva DAV, efetuada por aplicação da tabela constante do n.º 1 do artigo 11.º do Código do ISV, é ilegal, com fundamento na violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento de União Europeia (“TFUE”), ao não aplicar a redução de anos de uso à componente ambiental.

 

c)            Com efeito, o Requerente entende que “a norma jurídica que esteve na base daquela liquidação – art. 11º do CISV – viola o art. 110º do TFEU (Tratado de Funcionamento da União Europeia), conforme foi já declarado por acórdão transitado em julgado do Tribunal de Justiça da União Europeia” (cfr. ponto 9 da Impugnação).

 

d)           Tendo por referência a redação prevista pelo artigo 11.º do Código do ISV em vigor à data das liquidações objeto de contestação, de acordo com o qual “[o] imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional”, o Requerente conclui que “o legislador, com a nova redação dada ao art. 11º [através da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, que aprovou a Lei do Orçamento de Estado para 2017], voltou a limitar a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2)” (sublinhado e negrito do Requerente, cfr. ponto 41 da Impugnação).

 

e)           Consequentemente, entende o Requerente que “[a] norma atualmente em vigor, e que esteve na base da liquidação do imposto pago pelo Impugnante, viola frontalmente o art. 110º do TFUE” (cfr. ponto 47 da Impugnação), em conformidade com a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), em 16.06.2016, no âmbito do processo n.º C-200/15, que teve por objeto uma ação de incumprimento intentada pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa, por esta aplicar, “para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos” e que, por essa não cumprir “as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.° TFUE” (cfr. ponto 35 da Impugnação).

 

f)            O Requerente destaca (cfr. ponto 36 da Impugnação) as seguintes passagens do antedito acórdão com pertinência para o caso sub judice:

 

“Este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU: C:2001:109, nº 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiames e Siilin, C-101/00, EU: C:2002:505, nº 53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, nº 25)” (nº 24 dos fundamentos do acórdão).

 

“Assim, a cobrança, por um Estado-Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro é contrária ao artigo 110º. do TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C-345/93, EU:C:1995:66, n.º 20, e de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU:C:2001:109, n.º 23)” (nº 25 dos fundamentos do acórdão).

 

“ (…) Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 (…)” (nº 26 dos fundamentos do acórdão)”.

 

g)            Neste sentido, o Requerente advoga que a norma do artigo 11.º do Código do ISV viola diretamente o disposto no artigo 110.º do TFUE, “[v]iolação que foi já reconhecida, pelo menos, por duas decisões da União Europeia, uma das quais o já referido acórdão do Tribunal de Justiça”. (cfr. ponto 63 da Impugnação).

 

h)           Assim, conclui o Requerente que a AT, “quando procedeu à liquidação do ISV sob a presente impugnação, não levou em consideração o número de anos de uso do veículo na sua componente ambiental, tendo apenas considerado essa redução na componente cilindrada (…) [,] com o recurso a uma norma jurídica que viola o direito europeu – art. 110º do TFUE – que, como tal, está ferida de ilegalidade” (cfr. pontos 64 e 65 da Impugnação).

 

i)             Aliás, conforme referido pelo Requerente, “[e]sta ilegalidade foi objeto de uma queixa apresentada em 20.07.2017 junto da Comissão Europeia, que deu origem à instauração de um processo de infração contra Portugal, a que foi atribuído o nº CHAP (2017) 2326”, a qual “deu origem à emissão do parecer fundamentado pela CE, na sequência do qual esta entidade decidiu, em 12.02.2020, interpor contra Portugal uma nova ação no Tribunal de Justiça da União Europeia (…) que deu já entrada em 23.04.2020 e que corre termos com o nº C-169/20” (cfr. pontos 66 a 68 da Impugnação).

 

O Tribunal Arbitral, em 12 de julho de 2021, determinou a notificação da Requerida para exercício do contraditório e juntar cópia integral do processo administrativo.

 

A Requerida não exerceu o contraditório e disponibilizou a cópia integral do processo administrativo em 17 de novembro de 2021.

 

O Tribunal Arbitral, verificando que (i) a matéria de facto relevante para a decisão da causa não carecia da realização de outras diligências (designadamente a audição das testemunhas arroladas pelo Requerente) e que (ii) o facto de a Requerida não ter apresentado defesa não obstava ao prosseguimento do processo e à consequente emissão da decisão arbitral, dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do citado diploma, indicando o dia 6 de janeiro de 2022 como data previsível para prolação da decisão, devendo até essa data o Requerente pagar a taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”) e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD.

 

Sem prejuízo, a Requerida, não prescindindo do direito de contraditório, apresentou as Alegações, em 3 de janeiro de 2022, sendo que as mesmas versam essencialmente sobre o pedido de juros indemnizatórios, conforme se resume, de seguida:

 

j)             Entende a Requerida que aos factos em causa na presente impugnação arbitral “se aplica o direito aplicável à data da liquidação impugnada” (ponto 1 das Alegações da Requerida).

 

k)            Acrescentado que, sem prejuízo de o pedido de anulação parcial da liquidação vir a ser julgado procedente, “não poderá o pedido de juros indemnizatórios, também peticionados, proceder nos termos invocados pela Requerente” (ponto 2 das Alegações da Requerida), pelas seguintes razões:

 

l)             Uma vez que o pedido arbitral foi efetuado na sequência de um pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente junto da Alfândega de liquidação, “os juros indemnizatórios só seriam devidos depois de decorrido um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa, e não desde a data do pagamento do imposto (cf. artigo 43.º, nºs 1 e 3, alínea c), da LGT)” (ponto 6 das Alegações da Requerida).

 

m)          A este respeito a Requerida invoca a jurisprudência assente do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) constante dos Acórdãos de 11.12.2019, no Processo 058/19.9BALSB e de 20.05.2020, no Processo 05/19.8BALSB, bem como a decisão arbitral proferida no processo n.º 296/2020-T.

 

Em razão do exposto, cumpre solucionar as seguintes questões:

 

i.             Ilegalidade da liquidação de ISV, por violação do artigo 110.º do TFUE, na componente ambiental, objeto do presente processo;

ii.            Direito do Requerente à restituição do imposto pago;

iii.           Direito do Requerente a juros indemnizatórios.

 

 

II.            MATÉRIA DE FACTO

 

II.1         FACTOS PROVADOS

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

O Requerente introduziu em Portugal, 17.12.2018, um veículo ligeiro de passageiros usado, de proveniente da Alemanha, melhor identificado na DAV n.º 2018/..., de 18.12.2018, junta como Doc. 1 à Impugnação e no processo administrativo.

 

Em resultado da apresentação da DAV acima referida, a AT, através do Diretor da Alfândega do Peso da Régua, liquidou ISV no valor global de € 5.817,33.

 

De acordo com a informação constante da referida DAV, o valor global de ISV liquidado tem como parcelar um montante de € 4.494,70, referente à componente cilindrada, e um montante de € 4.019,45, referente à componente ambiental.

 

No que concerne à componente de cilindrada, foi deduzida uma quantia no valor de € 2.696,82, de acordo com as percentagens de redução constantes da tabela D prevista no n.º 1, do artigo 11.º, do Código do ISV, aplicável aos veículos usados.

 

Relativamente ao montante de € 4.019,45, respeitante à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental, não foi aplicada qualquer percentagem de dedução.

 

Por não se conformar com a forma em parte com a liquidação de ISV efetuada pela AT, na medida em que o respetivo cálculo não contemplou qualquer redução de taxa da componente ambiental, o Requerente apresentou, em 26.01.2021, junto da Alfândega do Peso da Régua, um pedido de revisão oficiosa dos correspondentes actos de liquidação de ISV.

 

Tal pedido de revisão foi indeferido, por despacho proferido pelo Diretor da Alfândega do Peso da Régua, notificado à Impugnante em 21.04.2021 (cfr. Doc. 7 da Impugnação e do processo administrativo).

 

II.2         FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

II.3         FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Singular e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que releva para a decisão, tendo em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo Requerente, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.os 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no acórdão do TCA-Sul de 26.06.2014, proferido no processo 07148/13, “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

 

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

III.          SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

IV.          DO DIREITO

 

Conforme resulta do pedido arbitral, o Requerente manifestou a sua inconformidade com o ato de liquidação impugnado, por entender que, ao não levar em consideração o número de anos do veículo na sua componente ambiental, o artigo 11.º do Código do ISV, na redação em vigor então (introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, que aprovou a Lei do Orçamento de Estado para 2017), violava diretamente o disposto no artigo 110.º do TFUE, o que inquina a liquidação de ilegalidade.

 

Ora, de acordo com o disposto no Código do ISV, estão sujeitos a este imposto “os veículos automóveis ligeiros de passageiros”, sendo “sujeitos passivos do imposto os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares (…) que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando -se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos” (cfr. artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 3.º, n.º 1, ambos do Código do ISV).

 

Conforme prevê o artigo 5.º do mesmo código, “constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal”, sendo que, para este efeito, de acordo com alínea a) do n.º 3 do mesmo artigo, entende-se por “admissão, a entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado-Membro da União Europeia em território nacional”.

 

Por sua vez, “a introdução no consumo e a liquidação do imposto são tituladas pela declaração aduaneira de veículos (DAV)”, sendo, “[p]ara efeitos de matrícula, os veículos automóveis ligeiros (…) são sujeitos ao processamento da DAV” (cfr. artigo 17.º, n.º 1 e 3 do Código do ISV).

 

Para efeitos de cálculo do ISV, as taxas aplicáveis têm por base tributável uma componente cilindrada e uma componente ambiental, sendo que a primeira estipula uma taxa consoante a cilindrada e o tipo de veículo e a segunda uma discriminação entre os veículos a gasolina e os veículos a gasóleo (de forma positiva relativamente aos primeiros), prevendo uma tributação progressiva em função do nível de CO2 g/km.

 

De modo particular, e no que aos veículos usados provenientes de outros Estados-Membros da União Europeia respeita – como no caso em apreço –, estabelecia o artigo 11.º do Código do ISV, na redação então em vigor:

“1 – O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:

TABELA D

 

2 - Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respetivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos”.

 

Ora, as questões suscitadas no âmbito da União Europeia relativamente à carga fiscal incidente sobre os veículos usados provenientes de veículos matriculados em Estados-Membros e, designadamente, em matéria de legalidade e conformidade com as normas comunitárias do ISV, há muito se vêm arrastando.

 

Por exaustivo, se transcreve o historial que a esse propósito se fez constar da decisão arbitral de 30.04.2019, proferida no processo n.º 572/2018-T:

 

“(…) Essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter protecionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos. 

 

Não obstante, em 2001, o Acórdão do TJCE (de 22.02.01) denominado «Gomes Valente», proferido a título prejudicial, veio criar as condições para se romper, a nível nacional, com o quadro clássico de tributação dos veículos usados, assente exclusivamente em reduções fixas em função do n.º de anos de uso.

 

Neste âmbito, embora tenha sido referido que a aplicação de uma tabela de taxas para os veículos usados fundada num critério de depreciação único não seria contrário ao referido artigo 95º do Tratado de Roma, foi sublinhado que era importante que fossem tomados em conta outros fatores de depreciação que não apenas a antiguidade, de forma a garantir que a referida tabela refletisse de modo mais preciso a depreciação real dos veículos e permitisse alcançar de uma forma mais fácil o objetivo da tributação dos veículos usados, de modo a que, em nenhum caso, esta pudesse ser superior ao montante da taxa residual incorporada no valor dos veículos usados já matriculados em território nacional.

 

Esta jurisprudência veio a ser reforçada com o Acórdão do TJCE n.º 101/00, proferido em 19 de Setembro de 2002 num processo que então envolveu o Governo Finlandês e Antti Sillin, no qual foi considerado que o artigo referido artigo 95º, primeiro parágrafo do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 90º, primeiro parágrafo) permitia a um EM aplicar aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o valor tributável é determinado por referência ao valor aduaneiro definido, mas obsta a que o valor tributável varie em função da fase de comercialização quando daí possa resultar, pelo menos, em determinados casos, que o montante do imposto que incide sobre um veículo usado importado exceda o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.

 

Refira-se ainda que, na sequência do designado Acórdão «Gomes Valente», a jurisprudência tem entendido que para que um sistema de tributação dos veículos usados seja compatível com o disposto no Tratado é necessário que se adopte ou um modelo de tributação baseado na avaliação de cada veículo ou um modelo de tributação baseado em tabelas fixas que exclua todo e qualquer efeito discriminatório.

Por outro lado, o actual artigo 110º do TFUE opõe-se a que um EM aplique aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o imposto que incide sobre esses veículos não atenda à depreciação real do veículo e não permita garantir sempre que o montante do imposto que fixa não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.

 

Mais se considerou que, quando um EM aplica aos veículos usados importados de outros Estados membros um sistema de tributação em que a depreciação real dos veículos é definida de modo geral e abstrata com base em critérios determinados pelo direito nacional, o disposto no Tratado exige que esse sistema de tributação seja organizado de forma a excluir todo e qualquer efeito discriminatório.

 

Pode assim afirmar-se que o Acórdão do TJCE proferido no caso «Gomes Valente» abriu a porta para uma nova forma de tributação dos veículos usados admitidos de outros Estados membros.

 

Mas, ao que ao presente caso interessa, refira-se que em 2006, no âmbito do sistema de tributação húngaro, no Acórdão do TJUE de 5 de Outubro de 2006 (C-290/05), no caso Nádasdi, foi analisada pela primeira vez a questão ambiental face aos impostos automóveis aplicáveis dentro do espaço da União Europeia.

 

Com efeito, o sistema fiscal húngaro ignorava a desvalorização do veículo e tratava de forma igualitária todos os veículos que tivessem a mesma motorização e comportamento ambiental.

 

Contudo, o referido Acórdão veio declarar que «o artigo 90.º, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação. Não é relevante proceder a uma comparação com os veículos usados postos em circulação no Estado-Membro em questão antes da introdução desse imposto”.

 

Adicionalmente, considerou-se que os Estados-Membros têm liberdade para selecionar os critérios a utilizar no cálculo do imposto e estabelecer um sistema de tributação diferenciado para certos produtos, em função de critérios objetivos aplicados, sendo que tais diferenciações só serão consideradas compatíveis com o direito da União Europeia se, por um lado, prosseguirem objetivos compatíveis, também eles, com as exigências do Tratado e do direito derivado e, se por outro, as formas que vierem a revestir sejam de molde a evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, das “importações” provenientes dos outros Estados-Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes.

 

Assim, ainda que, em termos gerais, no âmbito de um regime fiscal relativo à tributação automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em fatores ambientais constituem critérios objetivos e possam ser utilizados no sistema de tributação, da sua utilização não poderá resultar discriminação e o imposto que vier a ser apurado não poderá onerar mais os produtos provenientes de outros Estados-Membros do que os produtos nacionais similares, implicando que a cobrança por um Estados-Membros de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estados-Membros é contrária ao artigo 110.º do TFUE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.

 

Em 2009, interpretando o mesmo artigo 110.º do TFUE, o TJUE, no Acórdão de 19 de março de 2009 (que opôs a Comissão Europeia à Finlândia), considerou que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de um modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

 

Ora, relevando que, nos termos do disposto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o direito internacional prevalece sobre o direito interno português e é diretamente aplicável em território nacional, sem desenvolver qualquer fundamentação, fez eco uma comunicação da Comissão Europeia em que se informava que esta tinha encetado, no TJUE, um processo contra Portugal, no sentido de defender que era censurável o artigo 11.º do Código do ISV não contabilizasse no cálculo do ISV incidente sobre veículos usados nenhuma desvalorização até o veículo ter mais de um ano de tempo de uso, nem é considerada nenhuma diminuição do valor real para os veículos com mais de cinco anos de utilização, processo que culminou com a prolação do Acórdão to TJUE (C-200/15), de 16.06.2016, acima já referido.

 

Por se entender que as alterações legislativas ao artigo 11.º do Código do ISV não traduzem consonância com a legislação comunitária, continua a mesma decisão arbitral:

 

“Contudo, como não foi comtemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE n.º C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando diretamente a legislação nacional, consubstanciada no artigo 11º do Código do ISV (na redação em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que «a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do TFUE.

 

E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, mas excluindo de novo da redação do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.

 

Assim, os atuais contornos da legislação nacional ignoram, no artigo 11.º, n.º 1, Tabela D, o previsto no artigo 110.º do TFUE e a posição que o TJUE tem assumido (e que já assumia face ao disposto no artigo 90.º do Tratado de Roma) de que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

 

A situação descrita levou (de novo) a Comissão Europeia, na sua busca de justiça comunitária, a dar início a um procedimento contra Portugal por este não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados «importados» de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestas viaturas face às viaturas usadas adquiridas em território nacional”.

 

Pois bem, resulta do exposto evidente a orientação constante do TJUE sobre a incompatibilidade de normas nacionais que tributem mais gravosamente os veículos “importados” de outros Estados Membros, como se extrai tanto das decisões referidas como de tributações de similares contornos vigentes noutros países da União Europeia.

 

Aliás, como se refere no acórdão de 20.09.2007, proferido no processo C-74/06, Comissão das Comunidades Europeias vs República Helénica: “O artigo 95.°, primeiro parágrafo, do Tratado, só permite a um Estado-Membro aplicar aos veículos usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação em que a depreciação do valor efetivo dos referidos veículos é calculada de modo geral e abstrato, com base em critérios ou tabelas fixas determinados por uma disposição legislativa, regulamentar ou administrativa, se esses critérios ou tabelas forem suscetíveis de garantir que o montante do imposto devido não excede, ainda que apenas em certos casos, o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional”.

 

Ou, como estabelece o Acórdão de 05.10.2006, processos C-290/05 e C-33/05 Ap., Ákos Nádasdi:

 

“No âmbito de um regime relativo ao imposto automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em considerações ambientais constituem critérios objetivos. Daí poderem ser utilizados num regime desses. Em compensação, não é exigível que o montante do imposto esteja relacionado com o preço do veículo.

 

Contudo, um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados-Membros do que os produtos nacionais similares.

 

Ora, um veículo novo relativamente ao qual o imposto automóvel foi pago na Hungria perde, com o decorrer do tempo, uma parte do seu valor de mercado. Assim, diminui, na mesma medida, o montante do imposto automóvel compreendido no valor residual do veículo. Sendo um veículo usado, só pode ser vendido por uma percentagem do valor inicial, percentagem que engloba o montante residual do imposto automóvel.

 

Resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça pelos órgãos jurisdicionais de reenvio que um veículo do mesmo modelo e de antiguidade, quilometragem e outras características idênticas, comprado em segunda mão noutro Estado-Membro e registado na Hungria será, contudo, sujeito a 100% do imposto automóvel aplicável a um veículo dessa categoria. Por conseguinte, o referido imposto onera mais os veículos usados importados do que os veículos usados similares já registados na Hungria e sujeitos ao mesmo imposto. 56. Assim, não obstante o carácter ambiental do objetivo e do fundamento do imposto automóvel e mesmo não tendo estes qualquer relação com o valor de mercado do veículo, o artigo 90°, primeiro parágrafo, CE exige que seja tida em conta a depreciação dos veículos usados que são objeto de tributação, visto que esse imposto se caracteriza por ser apenas cobrado uma vez quando do primeiro registo do veículo para efeitos da sua utilização no Estado-Membro em causa e por ser desta forma incorporado no referido valor.» Com base nestes considerandos, o Tribunal viria a declarar que «2 - O artigo 90°, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida:

 

– em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e

 

– em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação”.

 

E, de forma indiscutível, relativamente ao Código do ISV, mais propriamente no que respeita a alteração ao artigo 11.º do Código do ISV, veio o TJUE, por acórdão de 16.06.2016, proferido no processo C-200/15, Comissão Europeia vs República Portuguesa, a considerar:

 

“Para efeitos da aplicação do artigo 110.º TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar-se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados, mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve reflectir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de Setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).

 

No caso em apreço, o artigo 11.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre Veículos prevê, para efeitos do cálculo do imposto aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros, a tomada em consideração de uma desvalorização em função de uma tabela de percentagens fixas que estabelece, designadamente, em 20% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado durante um período de um a dois anos e em 52% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado há mais de cinco anos.

 

Daqui resulta que a República Portuguesa aplica aos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação no qual, por um lado, o imposto devido por um veículo utilizado há menos de um ano é igual ao imposto que incide sobre um veículo novo similar posto em circulação em Portugal e, por outro, a desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos é limitada a 52%, para efeitos do cálculo do montante deste imposto, independentemente do estado geral real desses veículos.

 

Ora, é facto assente que o valor de mercado de um veículo automóvel começa a diminuir a partir da data da sua compra ou da sua entrada em circulação e que esta diminuição continua para além do quinto ano da sua utilização (v., neste sentido, acórdão de 19 de Setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C-101/00, EU:C:2002:505, n.º 78).

 

Deste modo, a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos.

 

Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que, nos casos referidos no número anterior do presente acórdão, os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE”.

 

Em conclusão, viria o Tribunal a declarar que “1) A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE”.

 

Para, pretensamente, ir ao encontro desta última decisão judicial foi dada nova redação ao artigo 11.º do Código do ISV, através da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, incluindo-se a desvalorização dos veículos quanto à componente cilindrada, mas excluindo-se, de modo declarado, a desvalorização relativa à componente ambiental.

 

Do que resulta que a legislação nacional em vigor à data – no aludido artigo 11.º do Código do ISV – continuava a não ser compatível com o disposto no artigo 110.º do TFUE, permanecendo uma tributação mais onerosa para os veículos provenientes de outros Estados-Membros, quando comparados com os adquiridos no território nacional.

 

Não se conseguindo vislumbrar em que medida a aplicação do artigo 191.º do TJUE fosse incompatível ou pudesse prevalecer à aplicação do artigo 110.º, como defende a Requerida.

 

Quer dizer, continuava o artigo 11.º do Código do ISV a ser contrário ao artigo 110.º do TFUE e à interpretação conjugada, uniforme e reiterada que dos mesmos tem o TJUE dado a conhecer.

 

É, aliás, com base neste entendimento que a Comissão Europeia deu início, em 23.04.2020, no TJUE, a uma ação por incumprimento contra o Estado português, processo a que foi atribuído o n.º C-169/20, com vista a que se declare que, “ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados introduzidos no território da República Portuguesa e adquiridos noutros Estados-Membros no âmbito do cálculo do imposto de registo, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia». Para esse efeito, a Comissão alegou que: «A legislação portuguesa em causa consagra uma discriminação entre a tributação que incide sobre o veículo importado e aquela que incide sobre o veículo nacional similar. As modalidades e a forma de cálculo em vigor levam a que a tributação do veículo importado seja quase sempre mais elevada. Esta situação é tanto mais preocupante quanto ela é contrária à jurisprudência assente do Tribunal de Justiça: a legislação portuguesa relativa ao cálculo do imposto aplicável aos veículos usados adquiridos noutros Estados-Membros já foi objeto de procedimentos de infração anteriores e de vários acórdãos do Tribunal de Justiça. A legislação portuguesa não garante que os veículos usados importados de outros Estados-Membros sejam tributados num montante que não exceda o imposto refletido nos veículos usados domésticos similares. Tal pode ser explicado pelo facto de, em consequência da alteração da legislação em 2016, a componente ambiental utilizada para calcular o valor de um veículo usado não ser desvalorizada. Daqui resulta que a tabela de desvalorização adotada pela legislação nacional não conduz a uma aproximação razoável do valor real do veículo usado importado. Consequentemente, o montante pago para registar um veículo usado importado excede o montante relativo a um veículo usado similar já registado em Portugal, o que configura uma violação do artigo 110º do TFUE e da jurisprudência do Tribunal de Justiça”.

 

Nessa sequência, o TJUE, em 02.09.2021, proferiu o acórdão no referido processo C-169/20, nos termos do qual concluiu que: “Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado-Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE”.

 

De referir, ainda, que, em resultado da mencionada ação por incumprimento contra o Estado português, o legislador português veio atualizar, naquele mesmo sentido, através da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, a redação do n.º 1 do referido artigo 11.º do Código do ISV, e mantida na versão da Lei n.º 21/2021, de 20 de abril, que, doravante, passa a ser a seguinte:

 

“Artigo 11.º (Taxas - veículos usados)

1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, tendo em conta a útil média remanescente dos veículos, respetivamente componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7.º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos, respetivamente”.

 

Em conclusão, subscrevendo a posição que o TJUE tem expressamente assumido, não se afiguram dúvidas quanto à incompatibilidade do artigo 11.º do Código do ISV, na redação em vigor à data da emissão das liquidações em crise, com o direito da União Europeia, ao fazer impender uma carga tributária agravada sobre os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros, comparativamente com os nacionais, ao não ter em conta a necessária redução do montante do imposto na componente ambiental.

 

Acresce que o n.º 4 do artigo 8.º da CRP, estabelece o primado do direito comunitário, quando determina que as disposições dos tratados que regem a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito nacionais, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde que respeitados os princípios fundamentais do Estado de direito comunitário.

 

Logo, quando as normas de direito ordinário interno não são compatíveis com o direito comunitário, o Tribunal não as pode aplicar suspendendo a sua força vinculativa no caso concreto. “O juiz nacional, encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito comunitário, tem a obrigação de assegurar o pleno efeito dessas normas, deixando se necessário inaplicadas, por sua própria autoridade, qualquer disposição contrária da legislação nacional, ainda que posterior, sem que tenha de pedir ou aguardar a eliminação prévia desta por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional” (Acórdão de 09.03.1978 do TJUE, proferido no processo C-106/77 - Acórdão Simmenthal).

 

Daqui se retira que o primado do direito da União Europeia é absoluto e impõe-se à própria Constituição. Assim, a legalidade da liquidação em crise deve aferir-se, em última instância, pela sua conformidade com o direito da União Europeia que compete aos Estados-Membros, designadamente através dos tribunais, aplicar e fazer respeitar. Facto que o legislador português também já reconheceu ao alterar, através da Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, a redação do artigo 11.º do Código do ISV, por forma a que a mesma ficasse em conformidade com o direito da União Europeia.

 

Nestes termos, julga-se incompatível com o direito comunitário a norma do artigo 11.º do Código do ISV (em particular, a redação em vigor à data dos factos), na medida em que sujeita os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional.

 

Consequentemente, o ato de liquidação em causa, desconsiderando a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV, encontra-se feridos de ilegalidade devendo ser anulado. Restringindo-se, porém, a ilegalidade apenas àquele excesso de tributação, e nela se centrando em exclusivo o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, devendo o referido ato ser parcialmente anulado.

 

A par da anulação parcial do ato de liquidação, e consequente reembolso da importância indevidamente cobrada, o Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, “desde a data do pagamento do imposto até à efetiva restituição”.

 

A este respeito, refira-se que, no Acórdão proferido no Processo 0735/19.4BEBRG, o STA reconheceu o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.º 3, alínea d) da LGT, “desde o pagamento indevido do tributo, nos termos do estatuído no artigo 61.º/5 do CPPT”.

 

Com efeito, de acordo com o referido artigo 43.º, n.º 3, alínea d) da LGT, são também devidos juros indemnizatórios “[e]m caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.

 

Conforme é referido por Iara Marques Freitas e Mariana Mendonça Saraiva no artigo “O Direito a Juros Indemnizatórios em caso de Inconstitucionalidade da Norma Aplicada e o Erro Imputável aos Serviços” (publicado na Revista Electrónica de Fiscalidade da AFP (2019), Ano I, n.º 1) “ao contrário do que sucede com as situações de erro imputável aos serviços da Administração Tributária – cuja verificação e reconhecimento é condição sine qua non para o nascimento do direito a juros indemnizatórios –, o n.º 3 do artigo 43.º da LGT determina directamente que o (único) pressuposto de que depende aquele direito é a existência de «decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respectiva devolução»”.

 

Neste sentido, entende o presente Tribunal que não tem acolhimento a fundamentação invocada pela Requerida nas suas Alegações, na medida em que, com exclusão das situações de erro imputável aos serviços (da AT), há lugar a direito a juros indemnizatórios sempre que se verifique uma das situações elencadas no n.º 3 do artigo 43.º da LGT. Consequentemente, no caso sub judice, bastará verificar-se a aplicação da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT para que possa operar o direito aos juros indemnizatórios.

 

Por outro lado, veja-se, ainda, a Decisão Arbitral proferida no Processo 140/2021-T, de 10.09.2021, que aqui, em parte se transcreve, por se subscrever o seu racional de fundamentação:

“Como o Requerente procedeu ao pagamento da totalidade da importância em parte indevidamente liquidada, tem direito, segundo a jurisprudência uniforme do CAAD, e como pediu, à devolução do montante pago em excesso.

Tem também direito ao recebimento dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, a partir do trânsito da presente decisão – não por erro dos seus serviços, mas por erro do legislador.

Ainda se poderia invocar, como obstáculo à aplicação da norma da referida alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que, em rigor, a violação de normas do Direito da União por leis internas não constitui propriamente nem “inconstitucionalidade” nem “ilegalidade”. Contudo, […] a desconformidade de uma lei com o Direito da União configura uma situação análoga à de inconstitucionalidade (ou, pode admitir-se agora, de inconstitucionalidade indirecta, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição através da desconformidade com o parâmetro interposto do Direito da União).

Em qualquer caso – e reconduza-se o juízo de desconformidade de uma norma legal interna com o Direito da União a inconstitucionalidade ou a ilegalidade (e não se vê que possa ser outra coisa) –, certo é que não faria sentido que tal situação tivesse um tratamento diferente do que o legislador de 2019 criou para as situações de desconformidade com normas de valor reforçado ou com a Constituição.

Assim, só a partir do trânsito em julgado de um juízo de desconformidade com o Direito

da União – como o que dependerá do trânsito da presente decisão – haverá lugar ao pagamento

de juros.”

 

De reforçar, porém, que os juros indemnizatórios, sem prejuízo de serem reconhecidos ao abrigo da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, são devidos “desde o pagamento indevido do tributo, nos termos do estatuído no artigo 61.º/5 do CPPT” (cfr. Acórdão proferido pelo STA no Processo 0735/19.4BEBRG).

 

V.           DECISÃO

 

Nestes termos e com os fundamentos expostos, decide o Tribunal Arbitral:

 

a)            julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, determinar a anulação parcial do ato de liquidação impugnado, no valor global de € 2.411,67.

 

E em consequência:

 

b)           Ordenar a devolução ao Requerente do referido montante, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, desde o pagamento indevido do tributo, nos termos do estatuído no artigo 61.º, n.º 5 do CPPT.

 

VI.          VALOR DA CAUSA

 

Fixa-se ao processo o valor de € 2.411,67, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do RCPAT.

 

VII.         CUSTAS

 

Fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi julgado procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.

 

Registe-se e notifique-se a presente decisão às partes e ao Ministério Público, em conformidade com o n.º 3 do artigo 17.º do RJAT.

 

Lisboa, 3 de janeiro de 2022

 

O árbitro,

 

Ana Luísa Ferreira Cabral Basto