Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 250/2021-T
Data da decisão: 2022-01-10  ISV  
Valor do pedido: € 795,24
Tema: Imposto sobre veículos- incompatibilidade do art.11º do CISV, na redação do art. 217.º da Lei n.º 42/2016, de 17/12, com o art. 110º do TFUE – erro imputável aos serviços – tempestividade do pedido de revisão oficiosa dos atos tributários, com esse fundamento, referido na 2ª parte do n.º 1 do art. 78.º da LGT.
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SUMÁRIO

a) Não cabe à administração fiscal, sob pena de subversão do princípio da separação de poderes, recusar a aplicação de medidas de natureza legislativa  legitimamente aprovadas pelo Governo ou pela Assembleia da República, com fundamento em ilegalidade.

b) Ainda que essas medidas, à luz dos critérios gerais de aplicação das leis, se mostrem ilegais, não pode a administração fiscal deixar de as seguir;

c) Assim a aplicação de uma norma ilegal não pode ser considerada “erro imputável aos serviços”, salvo quando o TC já tiver anteriormente declarado essa ilegalidade com força obrigatória geral ou se estiver   perante violação de normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, por respeitarem a  direitos, liberdades e garantias ,como são aquelas  a que se refere o nº 1 do art. 18º da CRP.

c)Essa é a jurisprudência consolidada do STA (Acórdão do Pleno de 30/1/2019, proc. 564/18.2BALSB), a propósito da aplicação do art. 43º da LGT, mas  que  , em virtude da unidade do ordenamento jurídico- tributário, é extensiva à apreciação da tempestividade do meio de revisão oficiosa do nº 1 do art. 78º da LGT, com o mesmo fundamento, não sendo de presumir que, no mesmo instrumento normativo, o legislador tenha usado conceitos diferentes, se não opostos,  de “erro imputável aos serviços”.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I-             RELATÓRIO

 

1.Identificação das Partes´

1.1. Requerente

A..., Número de Identificação Fiscal..., ..., ...-... Relvas Grande

I

2.2. Requerida

Autoridade Tributária (AT), representada pelas juristas B... e C..., designadas a 28/6/2021.

 

2.Tramitação e constituição do Tribunal

2.1. A 28/4/2021, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral, aceite nessa dia;

2.2. Após a nomeação do Árbitro, a 16/6/2021, o Tribunal Arbitral foi constituído por despacho  do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD de 6/7/2021;

2.3. Na mesma data, a Requerida seria notificada, na pessoa da diretora-geral para, no prazo de 30 dias, apresentar Resposta, requerer, se entendesse necessário, prova adicional e enviar integralmente o Processo Administrativo (PA).  

2.4. A Requerida não juntou Resposta nem enviou o PA dentro desse prazo:

2.5. A 10/11/2021, o Tribunal Arbitral notificaria a Requerida para enviar o PA no prazo de 10 dias;

2.6. A Requerida não enviou o PA, nem deu quaisquer explicações para o não ter feito;

2.7. A 27/12/2021, o Tribunal Arbitral prorrogou por 30 dias a data de conclusão do processo arbitral, o qual, dada a total falta de colaboração da Requerida, terá de ser resolvido de acordo com os elementos disponíveis, caso se mostrem suficientes para esse efeito, sendo a falta de Resposta valorada nos termos dos nºs 6 e 7 do art. 110º do CPPT.

3.O Pedido

A Requerente pretende, no âmbito do pedido de pronúncia arbitral:

a) A declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de liquidação de ISV da autoria da Alfândega de Leixões   com o nº 2018/..., de 17/7/2018 resultante da apresentação da Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) nº  2018/...,  na mesma data;

b) A consequente restituição do imposto indevidamente pago também nessa data de € 795,24  acrescido dos juros indemnizatórios calculados sobre esse montante nos termos do art. 43º da LGT;

c)A condenação da Requerida ao pagamento integral das custas do processo.

 

4.1- Posição do Requerente

 

O cálculo do ISV foi efetuado pela AT, com recurso à aplicação da tabela aplicável aos veículos ligeiros de passageiros (Tabela A) integrante do art. 7º do CISV, pelo valor total de € 5.193,65.

 

Do valor total de imposto, € 2.991,55 respeitaram à componente cilindrada e € 2.272,10 relativos à componente ambiental.

 

No que diz respeito à componente cilindrada, o imposto de € 2.991,55 foi apurado após a  dedução ao valor total de € 6.766,80  da percentagem de redução em função do número de anos do veículo  constante da tabela D prevista no nº 1  do art.  11º do CISV, fixada em 35 %.

 

Relativamente ao montante de € 2.272,10, respeitante à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental, não foi aplicada, por não prevista na lei, qualquer percentagem de dedução.

 

Segundo desenvolve o Requerente, em especial nos arts. 48º a 61º   da Petição Inicial (PI), que a liquidação impugnada está ferida parcialmente de um vício de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental ou CO2, por violação do já referido art. 110º do TFUE.

 

Segundo o Requerente, o montante do imposto cuja liquidação originaria o presente pedido de pronúncia arbitral, calculado sem tomar em consideração a depreciação real do veículo na parte do preço que refletiria a componente ambiental, excederia o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados em território nacional.

 

Segundo a jurisprudência do TJUE amplamente citada na PI, um Estado-Membro não poderia  cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deveria refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional, o que não seria o caso da norma legal ao abrigo da qual seria realizada a liquidação impugnada , o art. 11º do CISV, na redação do art. 217º da Lei nº 42/2016, de 28/12, que reintroduziu uma medida discriminatória que tinha sido abolida pelo art. 113º da Lei nº 55-A/2010, de 31/12, medida essa que apenas foi suprimida pelo art. 391º da Lei nº 75-B/2021, de 31/12. .

 

Nessa medida, a liquidação  acima identificada  deveria ser parcialmente anulada em ordem a limitar o montante do imposto devido   ao  montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional  , de acordo com critério idêntico ao estabelecido   na Tabela D integrante do nº 1 do  art. 11º, que define a desvalorização comercial média dos veículos em mercado nacional, mas que reflete apenas a desvalorização da parte do preço relativa à componente cilindrada, com exclusão da relativa à  componente ambiental.

 

4.2. Posição da Requerida

A Requer ida não respondeu no prazo do nº 1 do art. 17º do R JAT nem posteriormente. Não enviou igualmente o PA, Consideram-se, no entanto, suficientes para fundamentar a presente Decisão Arbitral os elementos disponíveis, não havendo fundamento para novo adiamento.

5.SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).

6.Fundamentação de facto

6.. Factos Provados

O Requerente, Operador sem Estatuto/Particular,  através do seu Representante Direto D..., Ldª,  por meio da DAV    2018/..., introduziu no consumo nessa data de 17/7/2018 veículo automóvel ligeiro de passageiros usado   marca ..., variante ... movido a gasóleo, matrícula ...,  procedente da Alemanha onde foi pela primeira vez matriculado a 15/5/2015  Na mesma data, pagou ISV,  antes do termo do prazo de pagamento voluntário, que  só ocorreria, caso esse pagamento não tivesse sido feito,  a 31/7/2018.

 

Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, os veículos  inserem-se  no escalão da tabela correspondente à redução de  35%.

 

No Quadro E da DAV (características do veículo), consta, na casa 50, quanto à Emissão de Gases CO2 o valor de 122 g/km.

 

O cálculo do ISV, que consta do Quadro R das DAV, foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e calculado o ISV atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do art. 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo , que, como se referiu, , a partir da Lei nº 42/2016, apenas compreenderia a componente cilindrada.

A 17/2/2021, o Requerente apresentaria na Alfândega de Leixões pedido de revisão oficiosa da liquidação de ISV acima identificada, que, a 15/4/2021, seria indeferido por intempestividade.

 

6.2.        Factos não provados

 

Não se consideram não provados quaisquer factos suscetíveis de relevância para o conhecimento da presente causa.

 

7.1. Da contrariedade com o art. 110º do TFUE   da norma - fundamento da liquidação do ISV,  o  nº 1 do art. 11º do CISV , na redação do art. 217º da Lei nº 42/2016

A  incompatibilidade com norma de tratado internacional  (não inconstitucionalidade, mas mera ilegalidade ) da norma - fundamento das liquidações impugnadas por violação do Direito Comunitário  é indiscutível, como resulta do ainda muito recente  Acórdão do TJUE de 2/9/2021, no proc. C-169/2020 que, aliás, mais não faz que confirmar a já vasta jurisprudência do CAAD sobre o assunto em causa, em que avultam  as decisões dos processos nº 572/2018-T;  nº 346/2019-T;  nº 348/2019-T;  nº 350/2019-T;  nº 459/2019-T;  nº 466/2019-T;  nº 498/2019-T;  nº 660/2019-T;  nº 776/2019-T;  nº 833/2019-T;  nº 872/2019-T;  n º 13/2020-T;  nº 34/2020-T;  nº 52/2020-T;  nº 75/2020-T; nº 98/2020-T;  nº 113/2020-T;  nº 117/2020-T;  nº 117/2020-T; nº 158/2020-T;  nº 201/2020-T;  nº 209/2020-T;  nº 246/2020-T;  nº 293/2020-T;  nº 309/2020-T;  nº 329/2020-T;  nº 347/2020-T n 455/2020-T , nº  456-2020/T e nº 474-2020/T.

Tal Acórdão foi proferido em ação por incumprimento intentada contra o Estado português pela Comissão Europeia,  nos termos do art. 258º do TJUE.

Como resulta do nº 36 desse Acórdão, para efeitos da aplicação do art.  110.º TFUE, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados já presentes no território do Estado Membro, que constituem produtos similares ou concorrentes aos primeiros, deve tomar se em consideração, não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve, assim, refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional.

Neste contexto, prosseguiriam os nº s 37 e 38. desse Acórdão, para saber se um imposto cria uma discriminação indireta entre os veículos automóveis usados importados e os veículos automóveis usados similares já presentes no território nacional, importa examinar se tal imposto é neutro no que respeita à concorrência entre os veículos usados importados e os veículos usados similares anteriormente matriculados no território nacional e submetidos, no momento da matrícula, ao referido imposto.

Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do CISV prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, na legislação que vigorou entre a Lei nº 42/2016 e a Lei  nº 75-B/2020,  não esteve  prevista , para os  veículos importados. nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que refletisse a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.

Daqui resulta, segundo os nºs 41 e 42 desse Acórdão que a legislação nacional que institui o imposto em causa tivesse por consequência que, durante esse período, o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros fosse calculado, relativamente à parte do preço que refletia a componente ambiental, sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a legislação nacional não garantiu que os veículos usados importados de outro Estado Membro fossem  sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.

Assim, segundo o nº 51 desse Acórdão, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no CISV, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE no período entre a  Lei nº 42/2016 e a Lei  nº 75-B/2020.

Tal declaração de incumprimento não implica a nulidade da redação do nº 1 do art. 11º do CISV, ao contrário do que teria um juízo do TC sobre a constitucionalidade ou legalidade dessa norma, uma vez não se refletir diretamente no direito interno.

7.2. Da intempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente

Segundo o nº 1 do art. 78º da LGT invocado pelo Requerente, os atos tributários podem ser revistos pela entidade que os praticou:

- Por iniciativa do contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade, no prazo de reclamação graciosa previsto no nº 1 do art. 70º do CPPT;

-Por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos ou a todo o tempo se o imposto ainda não tiver sido pago, tendo como fundamento apenas o erro imputável aos serviços.

A liquidação impugnada de ISV data de 17/7/2018, mas o pedido de revisão oficiosa data de 27/2/2021, tendo sido, assim, deduzido muito após o termo dos 120 dias, contados a partir de 31/7/2018, em que, nos termos do nº 1 do art. 70º do CPPT, deveria o Requerente apresentado reclamação graciosa dessa liquidação.

A tempestividade   do presente pedido de pronúncia arbitral apenas se poderia basear numa pretensa aplicabilidade direta do art. 110º do TFUE, que não é reconhecida pelo Direito Comunitário, nem pela legislação nacional.

O art- 110.º do TFUE, correspondente ao anterior artigo 90.º do TCE, declara que nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.

 

O comando dessa norma que tem origem no art. 12º do próprio Tratado de Roma dirige-se primordialmente aos Estados membros da UE que não podiam e continuam a não poder, através de medidas discriminatórias não fundamentadas nem adequadas para os fins a atingir, anteriores  ou posteriores à entrada em vigor do TFUE, entravar a liberdade de circulação de mercadorias no então Mercado Comum, ora mercado interno da UE.

 

Em Direito Comunitário, apenas têm aplicação direta as normas cuja exequibilidade não dependa de medidas normativas, legislativas ou regulamentares nacionais ou atos administrativos adotados pelos Estados membros.

 

Têm, por outro lado, efeito direto as normas que, não sendo de aplicação direta, dada a exequibilidade depender da sua transposição pelos Estados membros para o direito nacional, podem, no entanto, ser invocadas pelos particulares junto dos tribunais, como fonte de direitos e obrigações.

 

Nos termos do art.º 288º do TFUE, apenas têm aplicação direta os Regulamentos e as Decisões. No caso das Decisões identificarem destinatários, apenas a estes se lhes aplicam diretamente.

 

As normas do TJUE não têm, à luz desse critério, aplicação direta (Patrícia Fragoso Martins. “O Princípio do Primado do Direito Comunitário sobre as Normas Constitucionais dos Estados Membros- Dos Tratados ao Projeto de Constituição Europeia”, Lisboa, 2005, pg. 29). Podem, no entanto, caso sejam invocadas perante tribunais nacionais, ter efeito direto, consequente do  primado do Direito Comunitário, como seria desenvolvido pela jurisprudência do TJUE logo a partir do Tratado de Roma.

 

Com efeito, o     Acórdão do TJUE C- 26/62, de 5/2/63, conhecido por Van Gend & Loos, tal art. 12º   do Tratado de Roma reconheceu  aos particulares direitos individuais que as jurisdições internas dos Estados membros  deveriam salvaguardar, incluindo  os direitos inerentes à liberdade de circulação.

 

Segundo o posterior Acórdão nº C- 166/77, de 9/3/78, conhecido por Simmenthal, a salvaguarda desses direitos não depende de o juiz solicitar ou esperar a prévia eliminação da norma interna incompatível, quer   por via legislativa, quer  por qualquer outro processo constitucional do Estado membro.

 

É de referir que, a partir do Acórdão do TJUE C-/60, de 16/12/60, o TJUE consideraria não dispor, como hoje ainda não dispõe, mesmo  no âmbito da ação por incumprimento atualmente regulada  no art. 260º do TFUE,  da competência  de anulação de atos dos Estados membros com fundamento em serem contrários ao Direito Comunitário, independentemente de tais atos serem individuais e concretos ou normativos. 

 

Assim, a sanção da violação do princípio do primado como foi desenvolvido por essa jurisprudência não é a invalidade mas a mera ineficácia, por inaplicabilidade, perante o Direito Comunitário, seja este primário, como é o referido art. 110º do TFUE, ou derivado, das  normas de direito interno  que o contrariem.

 

O princípio do primado não prejudica outras consequências que o direito interno de cada Estado membro possa extrair autonomamente da violação das normas do Direito Comunitário.

 

Assim o Direito Comunitário apenas obriga o juiz nacional a desaplicar as medidas normativas ou administrativas nacionais incompatíveis  com o Direito Comunitário.

 

Não lhe permite anular essas medidas, que apenas pode ser decidida, por esse juiz nacional,  nos termos do seu  próprio direito nacional, caso este assim permita.

Do mesmo modo, do princípio do primado não resulta a licitude de, salvo em cumprimento de decisão judicial, as Administrações Públicas dos Estados Membros desaplicarem as medidas normativas nacionais incompatíveis com o Direito Comunitário.

A possibilidade de a Administração Pública se recusar a aplicar atos legislativos com fundamento em inconstitucionalidade, por violação da CRP,  ou mera ilegalidade,  em especial por violação de lei reforçada ou outros fundamentos enunciados no nº 2 do art. 280º da CRP ,  exercendo um controlo da constitucionalidade ou legalidade dos atos normativos reservado aos tribunais ,  é, aliás, no modelo do Estado de direito adotado pela quase totalidade dos países da União Europeia,  incompatível com o princípio da separação de poderes, em Portugal com expressão no art. 111º da Constituição da República Portuguesa (CRP),  que, no nº 1, dispõe que os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na CRP. Não se vislumbra, por exemplo, como possa ser compatível com esse modelo a possibilidade, a título de exemplo, de um diretor-geral ou funcionário subalterno recusar a aplicação de uma lei do Parlamento, à margem do controlo deste sobre toda a atividade administrativa.

Esse princípio seria acolhido, passando agora para o direito interno, pelo nº 4 do art. 8º da CRP, aditado pelo art. 3º da Lei Constitucional nº 1/2004, de 24/7, que dispõe que as disposições dos Tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático. É, assim, à luz do Direito Comunitário e não do direito nacional que deve ser apreciada a aplicabilidade direta do art. 110º do TFUE.

 

Por comparação com o que constava do Projeto de  Revisão Constitucional nº 3/IX, esse  nº 4 não declara, assim,  o direito primário dos Tratados  e o direito  derivado prevalecerem hierarquicamente  sobre as normas do  direito interno , mas apenas determinarem a sua ineficácia/ inaplicabilidade. 

 

A versão final   que viria a ser aprovada estaria de harmonia com o posterior   Tratado de Lisboa resultante do cumprimento do mandato da conferência intergovernamental definido pelo Conselho Europeu de Bruxelas de 22/06/2007, que retirou ao projeto de tratado inicial, o chamado Projeto de Tratado  que  estabelece uma Constituição para a Europa aprovado pelo Conselho Europeu de Roma de 29/10/2004, esse  carácter constitucional.

 

Deste modo, as  normas dos Tratados da União, como é o caso desse art. 110º do TFUE, : não são aplicáveis diretamente, mas têm efeito direto na medida em que a sua incompatibilidade com o Direito Comunitário pode ser invocada perante os  tribunais para efeito da remoção da  aplicação do direito interno contrário. Não são, no entanto, fundamento de invalidade de qualquer norma desse direito interno.

 

Na verdade, falta à ordem jurídica comunitária um dos traços fundamentais do federalismo consistente no princípio “Bundesrecht bricht Landsrecht”, de que decorre a nulidade da norma estadual que contrarie a norma federal. Em conformidade, o Tribunal de Justiça, mesmo quando exerça os poderes previstos no art.  234º do TFUE  no âmbito do reenvio prejudicial, não tem as características de um tribunal federal , caso em que disporia de competências para julgar da validade das normas estaduais que contrariassem o Direito Comunitário.  

 

No entanto, as normas dos Tratados e direito derivado   não são aplicáveis em Portugal sempre que a sua aplicação contrarie princípios fundamentais do Estado de direito democrático, hipótese de momento meramente académica, já que tais princípios fundamentais foram incorporados pelos Tratados, incluindo na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

Está, assim, apenas afetada   pelo que alguns autores chamam de “inconstitucionalidade indireta”, por contrariar esse nº 3 do art. 8º. a norma de direito nacional incompatível a aplicação de normas de tratados internacionais vinculativos do Estado português ou do próprio direito derivado da União Europeia.

 

No entanto, para a  jurisprudência consolidada do TC, não sofre de inconstitucionalidade direta ou indireta   uma   medida normativa nacional  da qual resulte a inaplicabilidade das normas de tratados internacionais vinculativos do Estado português, incluindo o TFUE (Jorge Miranda, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra, 2005, pg 95), que, deste modo, não está sujeita ao controlo abstrato da constitucionalidade referido no art 281º da CRP, mas apenas a um controlo de legalidade, nos termos dos nºs 2 e 3 do art. 280º, por iniciativa respetivamente dos particulares ou do Ministério Público .

 

Eventual violação indireta de normas constitucionais por norma interposta em que se enquadra a  vulgarmente chamada “inconstitucionalidade indireta “ só cabe, segundo o TC. ,   na figura da inconstitucionalidade quando a violação da norma interposta  implicar igualmente a violação direta e autónoma de normas constitucionais diversas para além da que fixam as regras da hierarquia ( Acórdão do Tribunal Constitucional de 31/10/84, Proc. 84-0043).

 

Assim as normas de direito interno que contrariem   direito convencional, vinculativo nos termos dos nºs 2 e 4 do art. 8º da CRP,  de acordo com a chamada Lei Orgânica do Tribunal Constitucional ( LOTC. Lei nº 28/82, de 15/11), alínea i) do n.º 1 do  artigo 70.º:, são passíveis  de um juízo de ilegalidade por esse Tribunal.

 

Do mesmo modo, as decisões judiciais que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, são passíveis, nos termos dos nºs 2 e 3 do art. 280º da CRP, de recurso para o Tribunal Constitucional, obrigatório para o Ministério Público.

 

Não  cabe , no entanto, à Administração Pública, particularmente à Administração  Tributária, sob pena de subversão do princípio da separação de poderes, usurpando a função dos  tribunais nacionais aos quais cabe em primeira linha garantir a aplicação do Direito da União, recusar  a aplicação de medidas  de natureza legislativa  legitimamente aprovadas pelo Governo ou pela Assembleia da República, com fundamento em  inconstitucionalidade ou ilegalidade, ainda que esta resulte da contrariedade com tratado internacional.

 

Por isso, de acordo com os critérios gerais de interpretação das leis previstos na lei civil e na lei fiscal, o resultado da interpretação dessas normas seja o da sua inconstitucionalidade, ou ilegalidade, a Administração Tributária  não pode deixar, mesmo assim,  de as aplicar, deixando para os tribunais o controlo da constitucionalidade ou ilegalidade que a estes exclusivamente  cabe.

 

Essa é a jurisprudência consolidada do STA (Acórdão do Pleno de 30/1/2019, proc. 564/18.2BALSB), a propósito do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, quando, nos termos do nº 1 do art. 43º da LGT, se determine em reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços de que tenha resultado pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Citando esse Acórdão.   “Para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, nos termos do disposto no art. 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da Administração Tributária qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da Administração Tributária  decidir de modo  de modo diferente daquele que decidiu ,por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. nº 2 do art. 266.º da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr.  nº 1 do art. 18º   da CRP)”.

 

Tal Acórdão abrange não apenas a  inconstitucionalidade mas a ilegalidade das normas : não faria sentido ,aliás,  que o efeito direto negado às normas constitucionais fosse reconhecido às normas ilegais, colocadas num plano inferior na hierarquia das   normas jurídicas. Abrange igualmente as normas de Direito Comunitário que, apesar de terem efeito direto, sejam desprovidas de aplicabilidade direta.

 

Traduz  jurisprudência consolidada , de acordo com os critérios que têm vindo a ser definidos pela Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo no preenchimento do conceito de “jurisprudência mais recentemente consolidada do STA”: esta deve transparecer ou do facto de a pronúncia respetiva constar de acórdão do Pleno assumido pela generalidade dos Conselheiros em exercício na Secção consoante prevê o  nº 2 do atual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais(ETAF)   ou do facto de existir uma sequência ininterrupta de várias decisões no mesmo sentido, obtidas por unanimidade em todas as formações da Secção, como são particularmente, entre outras, as citadas na Decisão nº 362- 2020/T, do CAAD (Vide, por todos, o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, 12 /12/2012, proferido no processo com o n.º 932/12).

 

Não é verosímil que a LGT tenha utilizado conceitos diferentes, se não opostos em duas normas distintas, o nº 1 do art. 43º e o nº 1 do art. 78º da LGT, com total menosprezo do princípio da unidade da ordem jurídica, nem é sustentável que a solução da intempestividade viole qualquer princípio da proporcionalidade ou adequação.

 

Com efeito, o direito comunitário não uniformizou  nem sequer  harmonizou  os meios de reação judicial dos sujeitos passivos perante uma liquidação incompatível com as suas normas ,  nem determinou   que a sanção dessa incompatibilidade  não fosse a mera anulabilidade, sujeita aos prazos de anulação previstos no direito nacional mas a mais gravosa  nulidade..

Com efeito, de acordo com os nºs 32 e 33 do Acórdão do TJUE de 15/9/98, proc. C-231/96, o chamado Caso Edis, o problema da contestação de taxas ilegalmente reclamadas ou da restituição de taxas indevidamente pagas é resolvido de modo diferente nos diversos Estados-Membros e mesmo, no interior do mesmo Estado, consoante os diversos tipos de imposições em causa.

Em certos casos, as contestações ou pedidos deste tipo estão sujeitos, pela lei, a condições precisas de forma e de prazo no que respeita tanto às reclamações apresentadas à administração fiscal como às ações judiciais. Noutros casos, as ações para restituição de taxas indevidamente pagas devem ser intentadas nos órgãos jurisdicionais ordinários, sob a forma, designadamente, de ações para restituição do indevido, podendo essas ações ser intentadas dentro de prazos mais ou menos longos, em certos casos durante o prazo de prescrição de direito comum

 

Segundo admite o nº 34 desse Acórdão, essa diversidade dos sistemas nacionais resulta, nomeadamente, da falta de regulamentação comunitária em matéria de restituição de taxas nacionais indevidamente cobradas.

 

Em tal situação, como se recordou no n.° 19 desse Acórdão, compete com efeito à ordem jurídica interna de cada Estado-Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos que decorrem, para os cidadãos, do direito comunitário, desde que, por um lado, essas modalidades não sejam menos favoráveis do que as das ações análogas de natureza interna (princípio da equivalência) e, por outro, não tornem praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efetividade)

O TJUE  reconheceu, no nº 35 desse Acórdão Edis  C- 231/96,,  a compatibilidade com o direito comunitário da fixação de prazos razoáveis de recurso, sob pena de caducidade, no interesse da segurança jurídica que protegem simultaneamente o contribuinte e a administração interessada.

 

A doutrina desse Acórdão C- 231/96 viria a ser completada pela doutrina do Acórdão C-30/02, de 17/4/2004, o chamado Caso Recheio, sobre a compatibilidade com o Direito Comunitário do prazo de caducidade de 90 dias para a interposição de um recurso de impugnação do ato que fixa a prestação tributária, contados a partir do seu pagamento voluntário, consagrado  por essa .

 

Segundo o nº 20 desse Acórdão, se  o  acórdão Edis, já referido, dizia respeito a um prazo de caducidade de três anos a contar da data do pagamento do imposto, ou seja, um prazo claramente mais longo que o que está em causa no processo principal, também resulta desse acórdão e de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que os Estados Membros são livres de estabelecer prazos mais ou menos longos para a restituição do indevido, desde que não tornem impossível ou excessivamente difícil na prática o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária.

 

No caso vertente, completa o nº 21 do Acórdão C-30/02, deve considerar se que um prazo de 90 dias a contar do termo do prazo de pagamento voluntário do imposto, acolhido pelo direito processual português.  constitui um período de tempo suficientemente longo para permitir ao contribuinte tomar, com todo o conhecimento de causa, a decisão de interpor um recurso de impugnação e para reunir para o efeito todos os elementos de facto e de direito necessários.

 

Assim, as referidas normas do CPT, além de respeitarem o princípio da equivalência, não consagram um prazo de reclamação ou impugnação de tal modo exíguo que inviabilize ou dificulte excessivamente o exercício dos direitos que reconhecem.

Não violam, assim, isoladamente ou no seu conjunto, o nº 4 do art. 268º da CRP que reconhece  aos administrados a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas.

Assim, apenas se a norma do nº 1 do art. 11º do CISV tivesse tido ou eventualmente venha a ser objeto de declaração de ilegalidade com caráter geral, que não  limitasse os seus efeitos nos termos do nº 4 do art. 282º, o ato tributário impugnado seria suscetível de revisão com fundamento em nulidade e não com fundamento em mera anulabilidade.

 

8-Decisão:

 

a)            Não declarar a ilegalidade, ainda que parcial do ato de liquidação de ISV da autoria da Alfândega de Leixões   com o nº 2018/..., de 17/7/2018 resultante da apresentação da Declaração Aduaneira de Veículos (  DAV) nº  2018/...,  relativa a  veículo automóvel ligeiro de passageiros usado   marca ..., variante...,  movido a gasóleo, matrícula  ..., procedente da Alemanha;

b)           - Julgar  totalmente improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios 

 

9. Valor do processo

 

 Fixa-se o valor do processo, nos termos da alínea a) do nº 1 do 97.º-A, n.º 1, do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), em € € 795,24 

 

10. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e do nº 2 do art. 12.º, n.º 2, e do nº 4 do 22.º ambos do RJAT, a pagar por Requerente.

Registe-se e notifiquem-se as partes.

 

Lisboa, 10 de Janeiro de 2022

O Árbitro Singular

 

(António de Barros Lima Guerreiro)