Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 533/2020-T
Data da decisão: 2022-01-03  IRC  
Valor do pedido: € 162.198,52
Tema: IRC - Tributações autónomas. Despesas não documentadas. Art. 88.º, n.º 1 CIRC. Ónus da prova. Vício de fundamentação.
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DECISÃO ARBITRAL

SUMÁRIO          

 

I.             A inexistência dos meios financeiros evidenciados na conta #11-Caixa, conjugada com a não contabilização de qualquer saída, configura um caso de despesas não documentadas, enquadrável no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC.

II.            Não sendo demonstrados pelo contribuinte erros no lançamento das suas disponibilidades monetárias a débito na conta #11-Caixa, passíveis de abalar a credibilidade dos correspondentes registos contabilísticos, deve assumir-se que, conforme contabilizado, tais valores chegaram a ingressar na sua esfera patrimonial.

III.          Tendo sido constatada a divergência entre o saldo de caixa e os meios financeiros disponíveis, cabia ao contribuinte o ónus de provar as saídas de valores da empresa e evitar a incidência de tributação autónoma.

IV.          A explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar é a de que saíram desse património. Esta presunção (natural), derivada da experiência comum, não foi afastada ou sequer abalada pelo sujeito passivo.

V.           Quando os sujeitos passivos, incumprindo os seus deveres declarativos, omitem a contabilização das saídas de caixa, é inviável a determinação da data da saída de caixa, pelo que terá de recorrer-se como indicador supletivo à data da contagem física de Caixa.

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), A. Sérgio de Matos e Nuno Cunha Rodrigues, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 5 de janeiro de 2021, acordam no seguinte:

 

                I.             RELATÓRIO

 

A A..., LDA., doravante “Requerente”, pessoa coletiva com o número único de matrícula e de identificação fiscal ..., com sede na Rua da ..., n.º ..., ...-... Fânzares, em Gondomar, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

A Requerente pretende que seja anulado o despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada contra o ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2019 ..., de 21 de fevereiro de 2019, reportado ao período de tributação de 2017, no valor total a pagar de € 162.198,52, incluindo juros compensatórios, em resultado da tributação autónoma a título de despesas não documentadas, bem como anulado o próprio ato de liquidação referido, por falta de fundamentação, por erro nos pressupostos de facto e direito e ainda por caducidade do direito à liquidação do imposto.

 

Em 14 de outubro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, de seguida, notificado à AT.

 

Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (v. artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 5 de janeiro de 2021.

 

Com a aprovação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, foram suspensos os prazos procedimentais e processuais, no âmbito das medidas da pandemia Covid 19. Esta suspensão cessou com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, prosseguindo a tramitação processual a partir de 6 de abril de 2021.

 

                Em 26 de abril de 2021, a Requerida apresentou Resposta com defesa por impugnação e juntou subsequentemente o processo administrativo (“PA”). Conclui que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, por não provado, e absolvida a Requerida de todos os pedidos, com as legais consequências.

 

Em 3 de maio de 2021, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por desnecessidade, ao que as Partes não se opuseram. De seguida, foram as Partes notificadas para apresentarem alegações, facultativas e sucessivas, fixando-se o prazo de 10 dias. Foi ainda indicada a data limite para a decisão e advertida a Requerente da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

Em 7 de julho de 2021, a Requerente apresentou alegações, tendo a Requerida contra-alegado em 8 de setembro de 2021.

 

Por despachos de 8 de setembro e de 12 de novembro de 2021, o Tribunal Arbitral determinou a prorrogação por dois meses do prazo de prolação da decisão arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, derivada da tramitação processual, da interposição de períodos de férias judiciais e da situação pandémica. 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da liquidação de IRC/Tributação Autónoma (com as legais consequências no ato de segundo grau que sobre esta recaiu), à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

 

                III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

                1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A.           A sociedade A..., LDA., aqui Requerente, inscreveu-se no cadastro fiscal em 6 de fevereiro de 2001, sob o CAE 86220 – Atividades Prática Médica Clínica Especializada, Ambulatórios, e exerce a atividade de medicina, nomeadamente na área da ginecologia – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) que consta do Processo Administrativo (“PA”).

B.            A Requerente é um sujeito passivo enquadrado no regime geral de IRC – cf. RIT.

C.            A Requerente possui uma médica ao seu serviço – Dra. B... – sócia-gerente, titular de 50% do capital social, que não recebe qualquer remuneração da sociedade, a título de trabalho dependente ou independente. O restante capital social (50%) é detido pelo sócio C... – cf. RIT.

D.           No âmbito do Despacho n.º DI2017..., foi a Requerente visitada por funcionário da Requerida, no dia 26 de abril de 2017, com o objetivo de se proceder à contagem física dos valores de Caixa, tendo-se reunido com um dos sócios da sociedade, C..., e com o Contabilista Certificado – cf. RIT.

E.            Nesta reunião (de 26 de abril de 2017), foi a Requerente questionada sobre:

             “Quais as pessoas encarregadas do caixa, tendo sido respondido que são B... e C...

             Se possuíam folhas de caixa, tendo sido respondido que não

             Se nessa data (26/04/2017) foi efetuado algum depósito, levantamento, recebimento ou pagamento com influência nos valores físicos de caixa, tendo sido respondido que não

             Que o montante total de valores em caixa ascendia nessa data a 0,00€.

Analisados os elementos disponibilizados pelo sujeito passivo, verificou-se o seguinte:

             Em 31/03/2017 a conta 11 – Caixa – evidenciava um saldo de 395.871,86€

             Em 26/04/2017 a contagem física de caixa apurou um montante de 0,00€

             Em 31/12/2017 a conta 11 – caixa – evidenciava um saldo de 400.139,57€,

Assim se conclui que a saída do dinheiro que se encontrava em caixa, que em 31/12/2016 apresentava um valor de 394.607,05€ (valor declarado na IES e espelhado na contabilidade) terá necessariamente ocorrido entre 01/01/2017 e 26/04/2017, data em que se efetuou a contagem de caixa.” – cf. RIT.

F.            No dia 11 de outubro de 2018, foi iniciada uma ação inspetiva externa

ao exercício de 2017 da Requerente, de âmbito parcial – IRC e Retenções na Fonte de IRS –, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2018..., de acordo com o artigo 14.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCIPTA”), de forma a dar seguimento aos elementos recolhidos em execução do despacho supra referido (n.º DI2017...), relativo à ação de controlo de caixa, bem como quantificar com exatidão os montantes divergentes no saldo de caixa. Nesse mesmo dia, o funcionário da Requerida reuniu com o sócio da sociedade, C..., e com o Contabilista Certificado D..., nas instalações deste último, tendo sido nesta data sido disponibilizadas as pastas com os documentos de suporte contabilístico – cf. RIT.

G.           No decurso desta ação inspetiva, ocorreu uma troca de correspondência eletrónica entre a Requerente e a AT, tendo esta última remetido àquela um e-mail, em 27 de novembro de 2018, do seguinte teor:

“1) O valor da regularização proposta (referente as variações positivas nos saldos da conta caixa) será tomado em linha de conta no cálculo da tributação do saldo de caixa em falta. (ou seja, por exemplo no exercício de 2014 será sempre considerado os 10.332,83€).

2) No entanto, sem prejuízo da regularização voluntária, é nosso entendimento que a retenção não deve ser feita por “dentro”, conforme propõe, e sim “por fora” (isto é, a base em questão seria aplicado os 28%).

3) O restante valor da divergência será tributado nos termos que foram indicados em reunião anterior.” – cf. Documento 3 junto pela Requerente.

H.           Através do Ofício n.º 2018..., de 6 de dezembro de 2018, a Requerente foi notificada do projeto de relatório de inspeção tributária, com proposta de correções de tributação autónoma, no termos do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, por diferença do saldo de caixa do exercício de 2017, cifrada em € 330.453,15, tendo em conta a regularização já feita pela Requerente (a título de adiantamento por conta de lucros assumidos no valor de € 65.418,71), resultando no imposto a pagar de € 165.226,58, bem como para, pretendendo, exercer o seu direito de audição, à luz do princípio da participação previsto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e no artigo 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”). O projeto de relatório continha ainda correções a tributação autónoma incidente sobre despesas com viaturas ligeiras de passageiros, que não constituem objeto da presente ação arbitral – cf. RIT.

I.             O direito de audição foi exercido em 4 de janeiro de 2019, após prorrogação de 10 dias, tendo a AT concluído pela manutenção das correções propostas e emitido o Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), em 9 de janeiro de 2019 , com os fundamentos que infra se transcrevem na parte relevante – cf. RIT:

“III.        DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA COLETÁVEL E AO IMPOSTO EM FALTA

[…]

III.1 - Saldo de Caixa

Assim e em função dos balancetes e dos extratos de conta-corrente da conta 11 – Caixa, do exercício de 2017, poderemos verificar que:

             Em 30-03-2017, o saldo de caixa apresentava um montante de 395.871,86€;

             Em 31-12-2016, o saldo de caixa apresentava um montante de 394.607,05€, constante do balancete de 2016 que nos foi disponibilizado no âmbito do despacho nº DI2017... e da IES relativa ao ano de 2016

Desta forma, o apuramento da divergência do saldo de caixa, será efetuado apenas pelos valores contabilizados no extrato da conta 11 – caixa, do exercício de 2017, como mostra o quadro seguinte:

Apuramento da divergência de caixa em 26-04-2017

Data      Descritivo            Saldo

31-03-2017         Saldo de caixa    395.871,86 €

26-04-2017         Contagem de caixa          - €

Divergência total a tributar                         395.871,86 €

 

Assim, e uma vez que não existia qualquer valor em caixa no dia da contagem física de valores, o montante da divergência total do valor contabilizado na conta 11 – caixa e a referida contagem física de valores é de 395.871,86€.

Esse mesmo valor contabilizado na conta 11 – caixa, representaria grande parte do ativo que suportava o montante contabilizado nas contas de capital da sociedade, mais especificamente na conta 56 — Resultados Transitados.

Questionado acerca dessa divergência, o sujeito passivo referiu que as importâncias que não se encontravam em caixa foram objeto de retirada por parte dos sócios, a título de adiantamento por conta de lucros. Para o efeito, entregou em 03/12/2018 guias de retenção na fonte referentes aos períodos de Dezembro de 2014, 2015, 2016 e 2017, na qual calculou retenção a taxa de 28% (taxa prevista na al. a) do n.º 1 do art. 71º do CIRS), tendo obtido os valores que abaixo se indicam:

Ano       Base de incidência (1)    Imposto (2)=(1)*28%

2014      8.072,52 €           2.260,31 €

2015      8.435,76 €           2.362,01 €

2016      39.724,84 €        11.122,96 €

2017      9.185,59 €                          2.571,96 €

Total      65.418,71 €        18.317,24 €

 

Ora, o montante contabilizado em caixa, mas que efetivamente não existe, e que constitui um exfluxo de caixa sobre o qual não foram encontrados documentos de suporte na contabilidade da sociedade, nem nos foi explicada o destino, ou apresentado outro tipo de elementos de prova, quer por parte do sujeito passivo, quer por parte do CC, representam aquilo que em termos fiscais se designa de Despesas não Documentadas, na medida em houve uma efetiva saída de meios monetários da sociedade, sem que para tal haja documentos que suportem a saída de tais valores.

 Senão veja-se,

1.            O sujeito passivo apresentou em 14/07/2017 a IES onde declarou no balanço que a 31/12/2016, a sociedade possuía em Caixa o valor de 394.607,05€;

2.            A prestação de contas foi elaborada pela sociedade, dando a conhecer a informação sobre a gestão e a situação patrimonial da sociedade e foi objeto de deliberação e aprovação pelos sócios.

3.            Em 26/04/2017 foi realizada inventariação de caixa, tendo sido corroborado pelo sócio, C..., que naquela data o valor de caixa era de 0,00€;

4.            Ainda em 26/04/2017, foi notificado a sociedade e obtida informação sobre os registos contabilísticos efetuados nas contas de Caixa (11) e Bancos (12), bem como os extratos bancários, para o ano de 2017;

5.            Confirmámos que o saldo contabilístico de caixa em 31/03/2017 era de 395.871,86€, situação que se alterou até ao dia 26/04/2017 em que a contagem realizada naquela data, evidencia um valor nulo em caixa, desconhecendo-se o destino do saldo existente em 31/03/2017 (395.871,86€).

6.            Decorre do artº 75º, nº 1 da Lei Geral Tributária, a presunção legal de veracidade declarativa:

"1- Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal".

7.            Assim, de acordo com o art 75.º n.º 1, da LGT, deve a AT aceitar que em 31/12/2016, a sociedade possuía em caixa um total de 394.607,05€, de acordo com os valores declarados em 14/07/2017 na IES pelo sujeito passivo;

8.            O saldo da conta caixa possuía, a data de 31/03/2017, um saldo de 395.871,86€.

9.            Como em 26/04/2017 realizámos a inventariação de caixa, tendo-se naquela data constatado que o seu valor era 0,00€, então o exfluxo, pagamento e/ou aquisição de bens e/ou serviços ou ainda liberalidade ou conjunto de liberalidades ocorreu entre 31/03/2017 e 26/04/2017;

10.          Segundo o sujeito passivo, terão sido pagos aos sócios 65.418,71€ referentes a adiantamento por conta de lucros (2014: 8.072,52 €, 2015. 8.435,76 €, 2016: 39.724,84€ e 2017: 9.185,59€)

11.          Mantém-se desconhecido o destino dado a 330.453,15€ evidenciado pelo saldo da caixa em 31/03/2017.

12.          Tendo a sociedade iniciado a sua atividade em 2003-11-05, o seguinte quadro revela algumas informações pertinentes sobre a sociedade para o período de 2010 a 2017:

                                               Informação com base na IES/Declaração Anual                                

Ano       2010      2011       2012      2013      2014      2015      2016       2017

Serviços prestados          66.004,84 €        73.367,72 €        73.435,67 €        69.900,38 €        66.786,95 €        75.927,12 €                73.746,03 €        68.651,61 €

Gastos com o pessoal    0             0             0             0             0              0             0             0

Res. Liquído Exercício     17.298,98 €        27.253,67 €        31.537,62 €        21.774,31 €        18.918,59 €        27.871,15 €                25.798,75 €        18.734,64 €

N.º de trabalhadores     1             1             1             1             1              1             1             1

Reservas             10.000,00 €        10.000,00 €        10.000,00 €        10 000,00 €        10.000,00 €        10.000,00 €                10.000,00 €        10.000,00 €

Resultados transitados  275 020,36 €      292.319,34 €      319.573,01 €      351.110,63 €      372.884,94 €      391.803,53 €                419.674,68 €      445.473,43 €

Dep. Bancários + Caixa  328.984,16€        338 477 23 €      342.607,90 €      329.251,27 €      347.358,49€        378.359,29 €                429.177,41 €      445 456,13 €

Distribuição de lucros    -

             -

             -

             -

             -

             -

             -

             -

 

Ou seja,

             Pratica uma política de retenção de lucros, daí a acumulação dos mesmos em resultados transitados ao longo dos vários anos de existência da sociedade;

             Os Dep. Bancários/Caixa crescem à medida que os resultados transitados também vão crescendo, pois os primeiros são a contrapartida dos segundos em termos contabilísticos, ou seja, os resultados transitados estão refletidos num ativo da sociedade expressos nas contas 11 e 12.

             Nas contas de resultados transitados, são registados por transferência no início do ano imediato os lucros ou prejuízos apurados no exercício anterior e evidenciados na conta de resultado líquidos do período.

             Donde se conclui que esta sociedade labora com um prestador de serviços (B...), no entanto, o dinheiro que deveria estar em caixa (pertença da sociedade), como forma de justificar os resultados transitados acumulados desta ao longo de vários anos, efetivamente não se encontra na sociedade.

13.          O Código do IRS, apenas permite a presunção de distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros quando se encontrem lançados em quaisquer contas correntes de sócios (art 6.º do CIRS) o que não ocorreu no caso em apreço.

14.          Assim, a situação em apreço apenas tem enquadramento na figura de despesa não documentada, que no caso em análise se traduz.

a.            Na saída efetiva de valores monetários existentes em caixa, nomeadamente, “notas de banco ou moedas metálicas de curso legal, cheques ou vales postais, nacionais ou estrangeiros”

b.            Estes movimentos de saída de dinheiro, traduzem-se necessariamente em pagamentos, e/ou a aquisição de bens e/ou serviços, e/ou ainda, uma liberalidade ou conjunto de liberalidades

De facto a situação em apreço configura uma despesa: «1. Ato de gastar dinheiro, de despender. 2. Quantia que se gasta, montante a pagar a outro (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa).

A tributação autónoma das despesas não documentadas, traduz-se numa medida anti-abuso, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011, de 12 de Janeiro de 2011, Processo n.º 204/2010, que passamos a citar: «A lógica fiscal do regime [não consideração como custo - o que agora não se coloca - e tributação autónoma] assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal»

De acordo com o nº 1 do art. 88º do Código do IRC, «As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da al. b) do n.º1 do artigo 23-A.º», sendo que o número 14 do mesmo artigo, refere ainda, «As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC.»

No caso em análise, apenas se aplicará a taxa de tributação autónoma de 50%, uma vez que o sujeito passivo apresentou lucro fiscal no exercício de 2017, não havendo também qualquer montante a acrescer em termos de matéria tributável, uma vez que não foi contabilizado qualquer gasto como contrapartida do referido exfluxo monetário.

 

Assim, propõe-se que sobre a sociedade recaia uma taxa de tributação autónoma de 50% (nº 1 do art. 88º do CIRC), relativamente à divergência apurada no saldo de caixa, pelos motivos já anteriormente expostos:

             Divergência de caixa – 395.871,86€

             Adiantamento por conta de lucros (assumidos) – 65.418,71€

             Despesas não documentadas – 330.453,15€

             Taxa de tributação autónoma 50% (nº 1 do art. 88º do CIRC)

             Imposto a entregar – 165.226,58€

[…]

IX.          DIREITO DE AUDIÇÃO

[…]

A petição do sujeito passivo assenta essencialmente em 3 aspetos, que passaremos a comentar

1.  A petição começa por referir preambularmente que consta do relatório que o Sujeito passivo confirmou que (todas) as importâncias que não se encontram em caixa foram objeto de retirada de sócios, e que portanto o SP confirmou que a totalidade do valor em falta foi entregue aos sócios ao longo do tempo, o que levou a um aumento gradual do saldo de caixa.

Refere também que a AT confirmou essa realidade da análise da documentação contabilística do sujeito passivo: Adiantamentos por conta de lucros ao longo do tempo, como confirmou por escrito.

Estas conclusões tiradas pelo sujeito não decorrem do conteúdo do Projeto de Relatório. Senão, vejamos:

Em 26/11/2018, em reunião efetuada na Direção de Finanças do ..., o sujeito passivo foi confrontado com a questão da divergência de caixa, tendo referido que os valores foram saindo ao longo do tempo para os sócios. O que foi referido nessa reunião (e reforçado no referido e-mail) é que a AT teria em consideração eventuais regularizações efetuadas sem prejuízo de tributar a restante diferença do saldo de caixa como despesa não documentada, dado que o sujeito passivo não facultou qualquer elemento que evidenciasse que as saídas foram efetuadas ao longo dos anos a título de adiantamento por conta de lucros.

O sujeito passivo propôs-se regularizar as variações positivas entre os saldos (finais e iniciais) da conta caixa dos anos de 2014 a 2017, alegando que os restantes anos já estariam fora de tributação ao coberto do instituto da caducidade. Para esse efeito, enviou por correio eletrónico no mesmo dia (26/11) uma proposta de valores a corrigir. Assim, foi respondido em 27/11 que o valor por si regularizado seria tido em linha de conta na tributação do saldo de caixa em falta.

É importante referir que o sujeito passivo faz menção aos pontos 1) e 2) do e-mail supracitado, mas não faz qualquer menção ao ponto 3), em que é referido que «O restante valor da divergência será tributado nos termos que foram indicados em reunião anterior» (i.e, ser considerada como despesa não documentada).

Ou seja, em nenhum momento a AT assume que aceita que o saldo de caixa não encontrado na contagem efetuada em 26/04/2017 tenha saído ao longo do tempo a título dos anos da forma sugerida pelo sujeito passivo.

É o próprio sujeito passivo que afirma que fez retiradas de valores do saldo de caixa ao longo dos anos, para além do prazo de caducidade, sem, contudo, apresentar qualquer prova do afirmado – nem contabilística, nem extra-contabilística. Aliás, estas afirmações contrariam todas as aprovações de contas da gerência ao longo dos anos, que validaram os saldos de caixa constantes dos sucessivos balanços.

2.  Refere ainda que a única divergência entre sujeito passivo e a AT, nos anos de 2014 a 2017, era se o imposto era calculado "por fora" ou "por dentro. Ora, embora tenha sido sugerido ao sujeito passivo o cálculo "por fora", o sujeito passivo optou por reter e entregar o imposto nos termos a que se propôs inicialmente

Aproveitou a petição para solicitar à AT a correção oficiosa das declarações de retenção apresentadas. Assim como o sujeito passivo optou por classificar as referidas retiradas de valores do saldo de caixa como de adiantamentos por conta de lucros, retendo e entregando o respetivo imposto, da mesma forma poderá corrigir as opções tomadas, efectuando as correções que entender devidas. Não compete à AT classificar as retiradas que o sujeito passivo decidiu tributar como de adiantamento por conta de lucros.

3.  Argumenta posteriormente que não é verdade o constante nos pontos 10) e 11) do ponto III. 1 do cap. III do Projeto, nomeadamente que a AT desconhece o destino dado a 330.453,15€. Afirma o sujeito passivo que o restante diferencial diz respeito a adiantamentos por conta de lucros ocorridos ao longo de vários anos até 31/12/2013, e que a própria AT demonstrou expressamente a determinação dos valores adiantados por conta de lucros por ano (exemplificando), tendo-se concluído em sede de inspeção que os lucros ou adiantamento por conta de lucros foram colocados a disposição dos sócios nos anos constantes do Quadro I.

Ora, em nenhum ponto do projeto de relatório tais conclusões são vertidas pela AT. Quanto ao quadro referido como Quadro I (que presume-se evidenciar a variação entre saldo inicial e final de cada ano do saldo da conta contabilística Caixa), em momento algum tal quadro foi indicado pela AT, e nem o mesmo serve para justificar o saldo de caixa em falta.

Conforme referido no projeto de relatório, e de acordo com o princípio da verdade declarativa «Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal».

As contas, apresentadas pelo sujeito passivo até ao período de 2016 e aprovadas pelo mesmo, não foram postas em causa pela AT nem beliscada a sua presunção de verdade. É muito conveniente aprovar contas com um elevado saldo na conta caixa e depois vir afirmar que, afinal, tal saldo não existia porque foi sendo retirado, na sua maior parte, em anos anteriores ao do período de caducidade, sem, contudo, apresentar uma única prova do afirmado.

Assim, e conforme referido no capítulo III do presente, a saída do restante montante terá ocorrido entre 31/03/2017 (data do último balancete antes da contagem de caixa) e 26/04/2017 (data da contagem de caixa), pelo que neste caso não se coloca a questão da caducidade do direito a liquidação, pois o facto tributário ocorre em 2017, e não como refere o sujeito passivo em 2013 e anos anteriores.

Face ao exposto, propõe-se a manutenção das correções propostas no projeto de relatório de inspeção.” – cf. RIT.

J.             Subsequentemente, foi elaborada pela Requerida uma informação complementar ao RIT, datada de 4 de fevereiro de 2019, em virtude de uma regularização voluntária adicional superveniente por parte da Requerente, tendo sido aceite que o valor de despesas não documentadas se reduziu “de € 330.453,15 para € 314.396,73, o que consubstancia uma redução de imposto a entregar de € 165.226,58 para € 157.198,36”, nos seguintes termos:

“2. Análise

No âmbito da ordem de serviço externa OI2018..., ao SP foi elaborado o Relatório de Inspeção Tribut[á]ria (doravante RIT), remetido para o mandatário constituído do contribuinte, por carta registada de 2019-01-23, que se presume recebida no dia 2019-01-28.

À data da elaboração do RIT foi expressamente mencionado o facto de o contribuinte, face ao projeto de correções, ter procedido [à] regularização voluntária parcial da situação tributária (em respeito pelo disposto no n.º 2 do artigo 58º do RCPITA).

Esta conduta, que materializou a confissão do facto de os sócios terem sido os beneficiários daqueles montantes, através das declarações entregues, conduziu à tributação do SP em sede de retenção na fonte de IRS. O restante valor, pelas razões constantes do RIT, dever[á] ser tributado em sede de IRC, com recurso a tributação autónoma.

A possibilidade de regularização da situação tribut[á]ria de forma voluntária tem expresso acolhimento legal no artigo 58º do RCPITA, determinando-se no seu n.º 1 que é uma faculdade ao dispor do SP “no decurso do procedimento de inspeção”, tendo este início com a assinatura da ordem de serviço e término com a notificação do RIT.

J[á] depois de elaborado e expedido o RIT, veio o SP proceder à «correção às “regularizações já efetuadas”», entregando para o efeito novas declarações a que correspondeu um valor de imposto superior (liquidação de retenção na fonte de IRS) e dando disso conhecimento à AT, por correio eletrónico, no dia 2019-01-28, data em que se considera concluído o próprio procedimento inspetivo.

Deste modo, quer o teor do RIT, quer as liquidações de imposto promovidas pela inspeção em conformidade, não podiam ter tido em consideração os valores finais do conjunto das duas regularizações da autoria do SP, por serem documentos elaborados anteriormente [à]s segundas regularizações.

Quantificando as alterações introduzidas, cuja fundamentação se encontra no ponto III.1 do RIT, a regularização voluntária em sede de retenção na fonte de IRS tinha subjacente adiantamentos por conta de lucros que passaram de €65.418,71 para €81.475,13 após a referida correção, pelo que o valor das despesas não documentadas se reduziu de €330.453,15 para €314.396,73, o que consubstancia uma redução de imposto a entregar de € 165.226,58 para €157.198,36, por força da aplicação da taxa de tributação autónoma de 50% prevista no artigo 88º, n.º 1 do CIRC.

Assim e porque este facto se verificou quando ainda estava em curso o procedimento inspetivo, dever[á] a liquidação de IRC, em sede de imposto referente a tributações autónomas ser anulada e substituída por outra, que reflita a sua redução em coerência com as segundas regularizações volunt[á]rias operadas pelo SP.

3. Conclusão

Nestes termos, somos de parecer que as liquidações de IRC emitidas em consequência do RIT, e objeto de notificação ao SP, deverão ser anuladas e substituídas por outras que reflitam a correção às regularizações entretanto efetuadas, ambas da iniciativa do SP.

Propõe-se que esta informação passe a constituir complemento do próprio RIT, para dar cumprimento ao disposto no artigo 58º, n.º 2 do RCPITA, integrando-se no processo inspetivo n.º OI2018... e dela se dando conhecimento ao SP, de modo a que o mesmo tenha acesso [à] fundamentação integral das notificações que serão geradas em consequência desta informação, com a anulação das liquidações de imposto que tiveram origem no tratamento dos primitivos documentos de correção de imposto elaborados e nos que agora vão ser produzidos.” – cf. Documento constante de páginas 185 a 192 do PA.

K.            A Requerente foi notificada da liquidação de IRC n.º 2019 ..., de 21 de fevereiro de 2019, reportada ao período de tributação de 2017, no valor total a pagar de € 162.198,52, incluindo juros compensatórios de € 3.359,55, em resultado da tributação autónoma de despesas não documentadas à taxa de 50%, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC – cf. Documento 2 junto pela Requerente. 

L.            Inconformada com a liquidação acima identificada, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa da mesma, ao abrigo do disposto nos artigos 68.º, 69.º e 70.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), autuada sob o n.º ...2019..., solicitando a sua anulação com fundamentos idênticos aos do presente pedido de pronúncia arbitral (“ppa”), por considerar ser a mesma ilegal – cf. Documento 1 junto pela Requerente e PA.

M.          A Reclamação foi indeferida por despacho datado de 22 de julho de 2020, da Chefe de Divisão de Justiça Administrativa e Contenciosa da Direção de Finanças do ..., por subdelegação, após notificação para exercício do direito de audição que a Requerente optou por não exercer – cf. Documento 1 junto pela Requerente e PA.

N.           Em discordância com a liquidação adicional de IRC/Tributação Autónoma e juros compensatórios relativa ao período de 2017, supra identificada, nos moldes acima enunciados, a Requerente apresentou no CAAD, em 13 de outubro de 2020, o requerimento de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.

                2.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão não se provou que a totalidade da divergência do saldo da conta Caixa da Requerente identificado na contagem física se tivesse ficado a dever a retiradas de valores em dinheiro, desde o início da atividade da Requerente, a título de sucessivos adiantamentos por conta de lucros não relevados contabilisticamente.

 

Não se provou de igual forma que a divergência entre o saldo da conta Caixa e as disponibilidades financeiras existentes fosse maioritariamente proveniente de exercícios anteriores a 2017. 

 

Por fim, não ficou demonstrando que a Requerida tivesse validado ou confirmado por escrito os factos não provados supra descritos.

 

Não foram identificados outros factos que devam considerar-se não provados.

 

                3.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

A convicção dos árbitros fundou-se unicamente na análise crítica da prova documental junta aos autos, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente.

 

Importa sublinhar que, exceção feita aos montantes objeto de regularização pela Requerente, reportados pela Requerente aos anos 2014, 2015, 2016 e 2017, e em relação aos quais esta juntou documentos (documentos 4 e 5 a) e b)), não constam do procedimento administrativo, nem foram juntos aos presentes autos, quaisquer elementos de prova dos alegados adiantamentos por conta de lucros, por forma a que pudessem ser considerados e situados temporalmente em períodos anos antecedentes a 2014 nos moldes pretendidos pela Requerente.

 

Não existe qualquer dificuldade em compreender, pois é uma evidência, que o movimento de abertura, em 1 de janeiro de 2014, do extrato da conta 11 – Caixa, no valor de € 322.628,63, implica que as disponibilidades financeiras a que se refere esse valor fossem provenientes de anos anteriores. O que daí não resulta de modo algum é que tenham sido “retirados” esses meios monetários em anos anteriores, seja por via de despesas (não documentadas), de adiantamentos por conta de lucros, ou por qualquer outra razão.

 

Do acumulado do saldo da conta Caixa não se produz a prova que a Requerente insiste em dele extrair, que é a de que os meios monetários não existiam/tinham sido retirados, precisamente nas datas em que foram sendo consecutivamente registados na contabilidade como ingressos no ativo da Requerente. O que se infere é a ilação contrária, pois se iam sendo acumulados valores na conta caixa, ano após ano, é porque esses valores entravam no património da Requerente, aumentando-o, em linha com a presunção de veracidade estabelecida pelo artigo 75.º, n.º 1 da LGT. É isso que crescimento do saldo da conta Caixa reflete e não o oposto.

 

 

               

                IV.          FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

 

                1.            QUESTÕES A DECIDIR

 

São três as questões fundamentais a apreciar, de seguida enumeradas:

a)            A qualificação, a título de despesas não documentadas, ou como adiantamentos por conta de lucros, da divergência apurada, de € 314,396,73, entre o saldo de Caixa contabilístico da Requerente e a contagem presencial efetuada em 26 de abril de 2017, após dedução das regularizações supervenientes efetuadas pela Requerente e aceites pela Requerida;

 

b)           A aferição do critério temporal definidor dessa tributação e a caducidade do direito à liquidação;

 

c)            O vício de falta de fundamentação (formal) das correções efetuadas.

 

                2.            REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO APLICÁVEL E NATUREZA DA TRIBUTAÇÃO AUTÓNOMA DE DESPESAS NÃO DOCUMENTADAS

 

Está em discussão nos presentes autos a aplicação do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, na redação vigente em 2017, que determina a tributação autónoma das despesas não documentadas à taxa de 50 %, independentemente da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A do mesmo diploma.

 

                Como referido em múltiplas decisões arbitrais , este regime sucedeu à disciplina das então denominadas “despesas confidenciais ou não documentadas”, que foi iniciada pelo artigo 4.º do Decreto-lei n.º 192/90, de 9 de junho .

                A tributação autónoma incide sobre distintas tipologias de despesas, com diferentes objetivos e “as considerações a respeito de certo tipo de tributações autónomas, podem não ser pertinentes e válidas relativamente a outro tipo de tributações autónomas” (cf. decisão arbitral proferida no processo n.º 256/2018, de 12 de fevereiro de 2019).

 

                Como salienta o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de setembro de 2017, no processo n.º 0146/16, há que ter “presente o tipo de tributações autónomas em causa […], uma vez que, como veremos adiante, sob esta denominação cabem realidades com teleologia e finalidade distintas, a reclamarem tratamento diverso. Desde logo, porque a par das tributações autónomas sobre gastos, as mais frequentes, existem também tributações autónomas sobre rendimentos. Mas também, e essencialmente, porque há tributações autónomas que podem ser deduzidas para efeitos de determinação do lucro tributável e outras insuscetíveis de dedução” – em idêntico sentido vide os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 21 de março de 2012, processo n.º 0830/11, e de 31 de março de 2016, processo n.º 0505/15.

 

Refere ainda o aresto citado [processo n.º 0146/16] que as “tributações autónomas, inicialmente previstas como meio de combater a evasão e fraude fiscais, designadamente as despesas confidenciais e não documentadas, reportavam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis; ulteriormente, na prossecução da obtenção de receita fiscal, o seu âmbito foi progressivamente alargado a despesas cuja justificação do ponto de vista empresarial se revela duvidosa e a despesas que podem configurar uma atribuição de rendimentos não tributados a terceiros, relativamente às quais a dedutibilidade só era admitida se acompanhada pela tributação autónoma. […] “a ratio legis parece ser, não só a de obviar à erosão da base tributável e consequente redução da receita fiscal, mas também a de tributar (na esfera de quem os distribui) rendimentos que de outro modo não conseguiriam ser tributados na esfera jurídica dos seus beneficiários.”

 

                Ressalta notória a finalidade anti elisiva da tributação autónoma das despesas não documentadas, que se reconduzem a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que assegura o sentido útil e o objetivo regulatório (anti-abuso) do preceito em causa, e que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.

 

Também o Tribunal Constitucional se pronuncia sobre a caracterização da tributação autónoma de despesas não documentadas, fazendo-o nos seguintes moldes :

 

“[…] estamos perante despesas que são incluídas na contabilidade da empresa, e podem ter sido relevantes para a formação do rendimento, mas não estão documentadas e não podem ser consideradas como custos, e que, por isso, são penalizadas com uma tributação de 50%. A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal.” – acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011, de 12 de janeiro de 2011.

 

Com relevância para a determinação da natureza da tributação autónoma, afirma ainda o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 197/2016, de 13 de abril de 2016, que:

 

“A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa «zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial» e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).

Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.

Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas. […] como se fez notar, o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período de tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC - segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012).

Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa (acórdão do STA de 12 de abril de 2012, Processo n.º 77/12).”

 

Resulta das considerações expostas que as tributações autónomas têm diversas finalidades além da reditícia, destacando-se no caso das despesas não documentadas, a de prevenção da fraude e evasão fiscais (anti abuso) e a sancionatória ou penalizadora, associadas ao facto de, provavelmente, ou em muitos casos, aquelas despesas terem conexão com a distribuição de proventos que não serão tributados na esfera dos beneficiários (embora devessem sê-lo), ou que escapam à tributação em IVA, presumindo-se o inerente prejuízo para a Fazenda Pública e a desigualdade na repartição dos encargos públicos. A que acresce, eventualmente, poderem respeitar a atuações ilícitas, designadamente a práticas ilegais de corrupção .

 

Por outro lado, da jurisprudência constitucional citada infere-se que o facto gerador da tributação autónoma corresponde à “realização da despesa” e é caracterizado como um facto tributário instantâneo que gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso, de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos.

 

                3.            ANÁLISE CONCRETA: QUALIFICAÇÃO COMO “DESPESAS NÃO DOCUMENTADAS”

 

                O significado de despesas não documentadas reconduz-se, como acima dito, a saídas de meios financeiros do património empresarial, por movimentação da conta caixa ou de contas bancárias (onde esses meios financeiros estavam registados), desprovidas de suporte documental.

 

                Na situação sub iudice, a Requerente aceita a divergência identificada no procedimento inspetivo, i.e., que o valor contabilizado na Conta Caixa desta não consta, tendo ocorrido um exfluxo de caixa que não foi, como devia, objeto de relevação contabilística. Porém, invoca que as saídas de meios financeiros se realizaram, na íntegra, a título de adiantamento por conta de lucros, enquadradas como rendimentos de capitais e sujeitas a retenção na fonte à taxa de 28%, justificando ser, desta forma, conhecido o seu destino e os respetivos destinatários, pelo que considera afastada a qualificação de “despesas não documentadas” e a tributação, como tal, da mencionada divergência.

 

                Neste contexto, a Requerente procedeu à declaração fiscal, mediante entrega das correspondentes declarações de retenções na fonte, do valor de € 81.475,13 de lucros distribuídos, que imputou aos anos 2014 a 2017, [numa primeira fase efetuou uma regularização voluntária de € 64.418,71 e já após a emissão do RIT, mas antes da emissão da liquidação controvertida, regularizou o valor adicional de € 16.056,42, pagando o imposto correspondente].

 

                Relativamente à diferença, cifrada em € 314.396,73, entre a quantia (tardiamente) declarada de lucros distribuídos (de € 81.475,13) e o remanescente da divergência de caixa (de € 395.871,86), a Requerente mantém que se trata, de igual modo, de adiantamentos por conta de lucros, justificando não ter procedido a qualquer regularização por se reportarem a anos anteriores a 2014, pelo que já tinha decorrido o prazo de caducidade, nos termos e para os efeitos dos artigos 45.º e 46.º da LGT.

 

                No entanto, a Requerente não faz qualquer prova do que alega. Na verdade: (i) não relevou contabilisticamente as mencionadas distribuições (a título de adiantamento) de lucros; e (ii) também nunca exibiu à data da contagem física, ou posteriormente, quaisquer elementos que evidenciem os referidos adiantamentos de lucros e, em especial, as datas em que os mesmos se verificaram.

 

                Aliás, sublinha-se que os documentos que a Requerente carreou para os autos referem-se todos às regularizações retrospetivas que imputa aos períodos de 2014 a 2017, que foram aceites pela Requerida e que, portanto, não são contestadas ou objeto da presente ação. Já no tocante às pretensas distribuições de lucros que a Requerente atribui a anos precedentes a 2014, e em relação às quais alega a caducidade do direito à liquidação, não indicou qualquer elemento que suporte as mesmas, seja quanto à natureza dos dispêndios ocorridos, seja quanto ao momento em que se verificaram (períodos de tributação anteriores a 2014).  

 

                Convém referir que o facto de não se ter apurado a que se ficou a dever a elevada divergência entre a conta Caixa e a caixa física deriva unicamente de incumprimento dos deveres acessórios declarativos do contribuinte. É sobre este que recai o dever de declarar as suas operações com verdade e rigor, declarações que se presumem válidas nos termos do artigo 75.º, n.º 1 da LGT. Acresce que, no decurso do procedimento, a Requerente teve a possibilidade de fazer essa prova, não se constatando qualquer violação do disposto nesta norma e, bem assim, no artigo 58.º, n.º 1 da LGT.

 

                Como salienta a decisão arbitral referida (235-2020-T):

                “[…] o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente. De resto, é a Requerente que está em melhor posição probatória, dispondo ou devendo dispor dos elementos documentais e materiais necessários e suficientes para justificar as saídas de valores da empresa e evitar a incidência de tributação autónoma.

                Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada, de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.

[…]

Acresce que, ao não contabilizar tais despesas – daí, o saldo elevado da conta 11-Caixa – a Requerente torna opacas as saídas de caixa, as quais podem ter tido lugar por mero esvaziamento dos meios monetários gerados […]”

 

De igual modo, a decisão arbitral no processo 752/2019-T, de 3 de outubro de 2020, acrescenta que “o Relatório de Inspecção Tributária tem valor probatório próprio que apenas poderia ter sido posto em causa caso a Requerente tivesse logrado pôr em dúvida os resultados probatórios aí coligidos, o que manifestamente não ocorreu. Com efeito a Requerente não prova quais as despesas efetivas que a sociedade teve no ano de 2015 e quais terão sido despesas que possam ter ocorrido nos anos anteriores e que tivessem deixado de passar pela contabilidade.”

 

                No caso, a Requerente não demonstrou erros no lançamento das suas disponibilidades monetárias a débito na conta 11-Caixa, passíveis de abalar a credibilidade dos correspondentes registos contabilísticos, devendo assumir-se que, conforme por aquela contabilizado, tais valores chegaram a ingressar na sua esfera patrimonial. Posto isto, os subsequentes dispêndios ocorridos e não registados na sua contabilidade configuram, como já afirmado, despesas não documentadas, enquadráveis no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, uma vez que também não logrou demonstrar distribuição de lucros aos sócios que alega. 

 

                Em rigor, a Requerente limita-se a esgrimir argumentos, sem os substanciar, invocando um tratamento distinto e discriminatório da Requerida, relativamente à parte da divergência que foi objeto de regularização voluntária, face ao valor remanescente.

                Sem razão, todavia. Pois, em relação ao montante que foi objeto de tributação autónoma, de € 314.396,73, mantém-se desconhecido o seu destino e prevalece a declaração fiscal do contribuinte, que quanto ao mesmo não foi alterada/regularizada, conforme postula o artigo 75.º, n.º 1 da LGT.

 

                Por outro lado, também não resulta da matéria de facto que a Requerida tenha acolhido e confirmado que o mencionado valor respeitasse a adiantamentos por conta de lucros. Pelo contrário, a Requerida afirmou expressamente que quanto ao valor da divergência não regularizado “seria tributado nos termos que foram indicados em reunião anterior”.

 

                Atento o quadro fáctico descrito, continua sem se saber qual o destino dos meios monetários correspondentes à divergência de valores entre o saldo de Caixa e as disponibilidades monetárias daquela. Na conceção perfilhada por este Tribunal, verificada uma saída de valores monetários da sociedade, desprovida de justificação, deve ser qualificada como dispêndio ou desembolso não documentado.

 

                Podem existir múltiplas explicações para a saída não documentada de fundos da sociedade, como a apresentada pela Requerente, de lucros ou adiantamentos por conta de lucros efetuados a sócios, ou ainda tantas outras, nomeadamente empréstimos efetuados a sócios e erros em lançamentos contabilísticos. Todavia, na ausência de documentos de suporte ou outros elementos de prova que possam indicar a respetiva finalidade (dos dispêndios), a saída de fundos permanece na categoria de despesa não documentada.

 

                Como refere a decisão arbitral n.º 235/2020-T, de 20 de outubro de 2020, em caso análogo, a ausência dos meios financeiros que a conta 11- Caixa evidencia, conjugada com a não contabilização de qualquer saída, configura, para os efeitos da lei, uma despesa não documentada. Refere-se aí que:

                “À face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 11-Caixa e na conta 21-Clientes deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.

                A Requerente aventa que a diferença entre os saldos em causa e a realidade dos meios financeiros existentes no património da empresa poderá dever-se a erros e irregularidades contabilísticas, mas não esboça sequer a respetiva prova, pelo que não há qualquer razão para afastar a presunção natural de aqueles meios financeiros existiam no património da empresa e foi-lhes dado destino desconhecido.”

 

                À face do exposto, não pode considerar-se demonstrada a distribuição de lucros alegada pela Requerente em relação à divergência não regularizada, concluindo-se, sem mais, que esta não está justificada.

 

                4.            IMPUTAÇÃO TEMPORAL DAS DESPESAS, ESPECIALIZAÇÃO DOS EXERCÍCIOS E CADUCIDADE

 

                Segundo a Requerente, o facto de o saldo da conta Caixa nos anos precedentes a 2017 ser substancial e crescentemente elevado denota que o saldo de Caixa do período em análise [2017] é oriundo do saldo de anos anteriores, e que a existir tributação esta teria de ter ocorrido nesses anos, regularizando os acréscimos de saldo de caixa dos anos 2014 a 2017, e invocando a caducidade para todo o valor remanescente (artigo 45.º, n.º 1 da LGT).

 

                Porém, como acima assinalado, a Requerente não logrou demonstrar a imputação temporal (anterior a 2014) que alega, nem a premissa, também carecida de prova, de que os saldos de caixa dos últimos exercícios, incluindo o de 2017, eram excessivos.

 

                Desta forma, constatando-se em 2017 a mencionada divergência de saldo de Caixa e face à inexistência de quaisquer elementos de prova, nomeadamente documentais, que permitam inferir o destino específico dos dispêndios e distinto enquadramento temporal da sua ocorrência (elementos que, note-se, só a Requerente estava em posição de facultar, não o tendo feito) é ao momento em que a divergência foi identificada (2017) que tem de se reportar o facto tributário. Por outro lado, a Requerente invoca como premissa que os saldos dos últimos exercícios são excessivos

 

                A tributação autónoma, apesar de inserida do Código do IRC, apresenta uma natureza particular, o seu facto gerador corresponde à realização da despesa, e não ao lucro, e é um facto tributário instantâneo, de obrigação única, e não de formação sucessiva como o IRC.

 

                Como salienta a citada decisão arbitral n.º 235/2020, para a qual se remete, a liquidação das tributações autónomas tem de ser efetuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram as despesas a elas sujeitas. Não revestindo a tributação autónoma a natureza de um imposto periódico afigura-se que não lhe é aplicável o princípio da anualidade e da especialização dos exercícios que pressupõe a abrangência de um período prolongado de formação do facto tributário [o exercício], que em Portugal corresponde, em regra, ao ano civil (artigos 8.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1 do Código do IRC).

 

                O momento da tributação das despesas deve reportar-se à data em que ocorreu a saída de caixa (o desembolso), sendo as despesas imputadas ao período (exercício) em que essa data se inscreve, assim se articulando com o regime de periodização do IRC.

                Todavia, nos casos em que os sujeitos passivos, incumprindo os seus deveres declarativos, omitem a contabilização das saídas de caixa, como sucede na situação vertente, é inviável a determinação da data saída de caixa, pelo que terá de recorrer-se como indicador supletivo à data da contagem física de Caixa.

 

                Segue-se, de novo, a fundamentação da decisão arbitral n.º 235/2020-T que convoca o disposto no n.º 2.3 do “Anexo - Sistema de Normalização Contabilística” , constante do Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, em relação ao regime de acréscimo (periodização económica): “2.3.1 - Uma entidade deve preparar as suas demonstrações financeiras, exceto para informação de fluxos de caixa, utilizando o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica).” Argumenta a decisão n.º 235/2020-T no seguinte sentido:

“[…] as demonstrações financeiras são preparadas segundo o regime da periodização económica, ou seja o regime de acréscimo, exceto para a informação de fluxos de caixa – à qual portanto tal regime expressamente se não aplica. Para movimentações de caixa, o regime que resta é o da sua reflexão com base na saída (ou na entrada).

E assim deveria ter sido, caso a Requerente as tivesse contabilizado. Aplicar-se-ia aquilo que a AT denomina por critério de ‘competência de caixa’.

Não o fez. Não contabilizou saídas. Pode legitimamente deduzir-se, com base na experiência, que utilizou, de facto, o que na literatura técnica sobre ‘economia não registada’ (também dita ‘informal’), se designa por ‘caixa aberta’, vindo depois alegar, sem ensaio sequer de o procurar demonstrar ou provar, a existência de erros e incorreções.

Não o tendo feito, não tendo contabilizado as saídas de caixa, a verificação do facto gerador da tributação autónoma, que são as despesas não documentadas, fica evidenciada na data da contagem física de caixa.”

 

Conclui-se, desta forma, não assistir razão à Requerente: (i) quer em relação ao momento temporal a que se reporta o facto gerador, não tendo logrado demonstrar que as saídas de Caixa em causa ocorreram em anos anteriores a 2017; (ii) quer em matéria de caducidade do direito à liquidação, pois, sendo o ano de referência 2017, em 2019 ainda não tinha decorrido o prazo de 4 anos, contado nos termos do disposto nos artigos 45.º, n.º 1 e 46.º, n.º 1, ambos da LGT.

 

O facto de o saldo de Caixa também ser elevado em anos antecedentes a 2017, não permite inferir que nesses anos se constatava a divergência, i.e., que já então estavam em falta os meios monetários registados na correspondente conta.

 

                5.            SOBRE A FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO (FORMAL)

 

A Requerente suscita o vício de falta de fundamentação da liquidação em crise que, na sua perspetiva, não reveste os atributos de suficiência, clareza e congruência, enfermando de ilegalidade formal, e consequente anulabilidade, ao abrigo do disposto nos artigos 77.º, n.ºs 1, 2 e 4 da LGT, 125.º do CPA (supomos que se refere ao artigo 153.º do atual CPA) e 99.º, alínea c) do CPPT.

 

                Interessa relembrar que o dever de fundamentação dos atos da Administração Pública que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos dos contribuintes deriva de imperativo constitucional, abrangendo os atos lesivos e impositivos (v. artigo 268.º, n.º 3 da Constituição). Este dever de fundamentação, desempenha a função primordial de permitir que o destinatário do ato se inteire das razões que subjazem à decisão administrativa, permitindo o controlo da sua validade, através da análise dos respetivos pressupostos, e o acesso à garantia contenciosa, dando a conhecer ao sujeito passivo o itinerário cognoscitivo e valorativo para a AT ter decidido no sentido em que decidiu.

 

                Na situação vertente, o Relatório de Inspeção Tributária é explícito em relação às razões que justificam as correções operadas , tendo a Requerida dado a conhecer as razões da sua atuação, pelo que, do ponto de vista formal, e independentemente dos seus méritos, o ato se encontra suficientemente justificado com a enunciação clara e percetível dos motivos que determinaram o autor a proferir a decisão com um concreto conteúdo. Relatório que foi adequadamente compreendido pela Requerente, que o refuta de forma pormenorizada, quer em sede de Reclamação Graciosa, quer na presente ação arbitral.

 

Tendo a Requerente sido notificada do Relatório de Inspeção Tributária contendo a fundamentação circunstanciada das razões subjacentes à liquidação da tributação autónoma aqui discutida, o ato de liquidação sequente não tem de reproduzir, de novo, todos os fundamentos.

 

Atento o exposto, conclui-se que foram observados os requisitos de fundamentação do ato tributário previstos no artigo 77.º da LGT e 153.º do CPA não se constatando a ilegalidade formal suscitada pela Requerente.

 

                Questão distinta, atrás apreciada, é a da validade, já não formal (relativa à enunciação dos motivos), antes substancial dos fundamentos do ato, que “tem já a ver com o mérito da decisão e com a legalidade «stricto sensu» do próprio ato”, quer por os factos não corresponderem à realidade, quer por terem sido extraídas conclusões erradas ou não serem “suficientes para legitimar a concreta atuação administrativa (VIEIRA DE ANDRADE, O Dever de Fundamentação Expressa de Atos Administrativos, Almedina, 2003, pág. 231)” – acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 23 de abril de 2014, processo n.º 1690/13, e de 21 de novembro de 2019, processo 0404/13.9BEVIS.

 

À face do exposto, conclui-se, quer em relação à fundamentação formal, quer no tocante à fundamentação substantiva, serem improcedentes as ilegalidades alegadas pela Requerente, mantendo-se o ato tributário de liquidação de IRC/Tributação Autónoma supra identificado referente ao período de tributação de 2017, por se entender correta a aplicação do regime previsto no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC às despesas não documentadas no período de 2017, no qual se constatou, por contagem física, a falta de correspondência entre as disponibilidades monetárias e o respetivo saldo registado na contabilidade (deduzido dos montantes regularizados voluntariamente pela Requerente).

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – cf. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

V.           DECISÃO

 

                De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, com as legais consequências, mantendo-se o ato impugnado de liquidação de IRC e o ato de segundo grau (indeferimento da Reclamação Graciosa) que o confirmou.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 162.198,52 correspondente ao valor da liquidação de IRC respeitante à Tributação Autónoma impugnada, não contestado pela Requerida – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 3.672,00, a cargo da Requerente, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 3 de janeiro de 2022

 

Os Árbitros,

 

(Alexandra Coelho Martins)

(A. Sérgio de Matos)

(Nuno Cunha Rodrigues)