SUMÁRIO:
Para efeitos de aplicação do artº 67º do CIRC, apenas relevam as diferenças de câmbio relativas a mútuos em moeda estrangeira que impliquem um ajustamento do custo dos juros implicados por tais empréstimos.
DECISÃO ARBITRAL
A..., S.A., NIPC ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Vila Nova de Famalicão, apresentou, nos termos legais, pedido de constituição do tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
A) O pedido
A Requerente pede a anulação da liquidação de IRC, demonstração de liquidação de IRC n.º 2020..., relativa ao ano de 2017, da liquidação de juros compensatórios n.º 2020 ... e do acerto de contas n.º 2020... .
B) Posição das partes
B.1) A Requerente entende, em suma, que, para efeitos do cálculo do limite à dedutibilidade dos gastos de financiamento (art. 67º CIRC) devem relevar as diferenças cambiais (que, no caso, lhe foram favoráveis) quer no tocante ao valor do capital mutuado, quer no tocante a juros.
Invoca, também, a “insuficiência de fundamentação e vício de fundamentação” e violação do princípio da tributação pelo lucro real.
A Requerida, por seu lado, fundamentou a liquidação de imposto ora impugnada no entendimento de que são considerados no apuramento do GFL as diferenças de câmbio associadas à remuneração de capitais alheios, que estejam relacionados com os empréstimos obtidos. Entende-se assim, que são de relevar no apuramento, as diferenças cambiais associadas aos juros e não ao capital em dívida (…) Assim, a existirem diferenças positivas de câmbio, concorreram para o apuramento se as mesmas respeitarem unicamente a ajustamento dos juros.
Na sua Resposta, conclui pela legalidade da liquidação impugnada e inexistência dos demais vícios alegados pela Requerente
B.2) A Requerente insurge-se, também, quanto à correção efetuada relativamente ao valor da mais-valia realizada em propriedades de investimento.
Está em causa a consideração, neste cálculo, das depreciações aceites fiscalmente no valor de 4.459,77 €, relativas a cada um dos dois imóveis, relativas aos anos de 2014 a 2016.
A Requerente alega, em suma, que, em 2016, quando alterou o critério de mensuração de tais ativos (do método do custo para o método do justo valor), “anulou” as depreciações antes efetuadas, registando o respetivo valor como rendimento, na conta de proveitos 7611000000 – reversão de depreciações – propriedades de investimento.
C) Tramitação processual
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 01/03/2021.
A Requerente procedeu à indicação de árbitro, tendo indicado para o exercício de tais funções o Prof. Doutor Rui Duarte Morais. A Requerida indicou, para o exercício de idênticas funções, o Prof. Doutor Henrique Fiúza. Estes, por consenso, indicaram para presidir a este coletivo arbitral o Senhor Conselheiro Carlos Cadilha.
Os árbitros aceitaram tempestivamente as nomeações, as quais não suscitaram oposição.
Em 06/04/2021, a Requerida veio, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, informar que, por despacho da Exma. Sra. Subdiretora-Geral com competências delegadas na área do IRC, Dr.ª..., proferido a 07/04/21, foi revogado, parcialmente, no que toca à correção fiscal de €9.008,72, relativa à mais-valia fiscal apurada pela ITA, e ao ajustamento da derrama estadual prevista no art.º 87.º -A do CIRC, em consequência da anulação da correção fiscal de €9.008,72, o ato de liquidação impugnado nos presentes autos, requerendo o prosseguimento do processo quanto ao demais.
O tribunal arbitral ficou constituído em 16/07/2021.
A Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o PA.
Em 14-09-2021 teve lugar a audição das testemunhas arroladas pela Requerente, conforme consta da respetiva ata. Na ocasião foi, também, aceite a correção de um lapso material de que enfermava o requerimento inicial e prorrogado o prazo para ser proferida a decisão arbitral.
As partes apresentaram alegações escritas em que reiteraram as posições que haviam assumido nos articulados.
II - SANEAMENTO
. O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não existem exceções de que cumpra conhecer.
III – PROVA
III.1 - Factos provados
a) A Requerente celebrou com o Banco B..., S.A. um contrato de abertura de crédito no valor de 7.000.000 de dólares americanos.
b) A Requerente, relativamente ao período de tributação de 2017, apurou gastos de financiamento líquidos no montante de € 1.101.670,00, tendo inscrito no campo 748 do Quadro 07 da Declaração Modelo 22 - Limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento líquidos - a importância de € 101.670,00.
c) Em 2017, verificou-se uma valorização do euro face ao dólar, do que resultou a necessidade de operar os consequentes registos contabilísticos, pelo que
d) A Requerente registou na sua contabilidade uma diferença de câmbio favorável no montante de € 803.998,07, resultante da variação do câmbio do Dólar Americano (USD) face ao Euro (EUR), do ano de 2016 para o ano de 2017, relativa ao mútuo referido em a).
e) A AT não aceitou a consideração de tal valor como constituindo um “ganho de financiamento” e procedeu ao recálculo dos gastos de financiamento líquido, apurando o valor de € 1.905.668,07
f) O que originou a não dedutibilidade fiscal do montante de € 905.668,07, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 67.º do CIRC, ao invés do valor declarado pela Requerente.
g) Em 06/04/2021, a AT revogou as correções que havia efetuado relativamente ao valor da mais-valia realizada em propriedades de investimento, cuja anulação a Requerente havia também peticionado, conforme consta acima em B.2
Os factos dados por provados resultam de documentação junta aos autos, não tendo sido objeto de controvérsia.
III.2 - Factos não provados
Não existem factos não provados relevantes para a decisão a causa.
IV- O DIREITO
IV 1 – Gastos de financiamento líquidos
Começando por um enquadramento geral, temos que, segundo as regras contabilísticas e fiscais, as obrigações dos sujeitos passivos de IRC, nomeadamente os com contabilidade organizada, como é o caso, são registadas, no momento em que são contraídas, pelo seu valor expresso em euros.
Estando em causa obrigações expressas em moeda estrangeira, pode acontecer (acontece frequentemente) que o “valor” de tais obrigações, quando ainda não totalmente cumpridas, aumente ou diminua consoante a evolução do câmbio de tal moeda relativamente ao euro. O que obriga a que, nas contas de cada exercício, se proceda aos necessários ajustes, registando-se como ganho (rendimento) ou perda (gasto) o valor de tal diferença cambial, consoante resultar favorável ou desfavorável ao sujeito passivo. Isto sob pena de a contabilidade (as contas do exercício) não expressar a real situação patrimonial da empresa.
No caso, temos uma obrigação (mútuo) em que a Requerente é devedora e que, no ano em causa, ocorreu uma desvalorização do dólar (moeda em que se encontra expresso o valor de tal mútuo) face ao euro. A Requerente obteve assim um ganho, que registou na sua contabilidade, dado como provado.
A questão que se coloca é a de se saber se todo este ganho, indiscutivelmente associado ao financiamento em causa, deve ser abatido aos gastos de financiamento para efeito do cômputo do limite a partir do qual tais gastos não são fiscalmente dedutíveis, nos termos do art. 67º do CIRC.
A Requerente entende que tal ganho deve ser considerado pelo seu valor total, o que a Requerida não aceita, considerando que só seriam relevantes ganhos cambiais relativos a obrigações de juros.
Comecemos pela ratio do artº 67º do CIRC. Está em causa uma regra relativa a encargos financeiros, uma regra de limitação da aceitação fiscal da dedutibilidade de juros (ou outros encargos de natureza similar) implicados pelo financiamento das empresas com recurso a capitais alheios.
Tais gastos de financiamento não são considerados, para efeitos de apuramento do lucro tributável, no que excedam determinados limites, fixados em tal norma, que não importa aqui considerar por não ser o que está em causa .
O montante dos gastos de financiamento não se confunde com o montante do endividamento.
A contração de um mútuo é neutro em termos patrimoniais: o mutuário recebe determinada importância, ficando adstrito à obrigação de a restituir. O valor do endividamento não é um gasto.
O gasto, nos mútuos, é (apenas) aquilo que o mutuário tem que despender para obter o financiamento, para passar a dispor, ainda que temporariamente, de tal recurso financeiro, tido por necessário à prossecução da sua atividade empresarial, à obtenção do rendimento tributável.
Assim, v. g., um mútuo gratuito não origina gastos, pelo que eventuais variações cambiais resultam irrelevantes para efeitos do artº 67º do CIRC, muito embora se reflitam na situação patrimonial do mutuário, pelo que devem aparecer expressas nas contas do exercício.
A ratio do artº 67º do IRC é evidente: pretende-se, desde logo, contrariar o endividamento excessivo das empresas . Para tal deixa de existir comparticipação fiscal (não são aceites como fiscalmente dedutíveis) os montantes dos gastos financeiros (juros e outros) que excedam os limites legais.
A diminuição do valor, em euros, dos encargos suportados pela Requerente (o valor, em euros, dos juros devidos no exercício) em razão da evolução cambial favorável, diminuiu o valor dos encargos de financiamento a ser tido em conta na aplicação do artº 67º do CIRC, como a Requerida aceita.
Porém, a diminuição em euros, do valor da sua dívida não é relevante no contexto da aplicação de tal norma pela simples razão que o valor de uma dívida não é um encargo (gasto) originado por tal dívida.
O elemento literal da norma parece-nos claro. Na definição, constante do nº 12 do artº 67º , gastos de financiamento líquido são quaisquer importâncias devidas ou
Imputadas à remuneração de capitais alheios. A enumeração exemplificativa que se segue limita-se, em nome da tipicidade da lei fiscal, a desenvolver esta noção geral de “quaisquer outras importâncias”. Assim, a referência a diferenças de câmbio provenientes de empréstimos em moeda estrangeira tem que ser, coerentemente, entendida como abrangendo apenas as que afetem o valor das importâncias que remuneram a utilização de capitais alheios, o mesmo é dizer juros .
Pelo que não merece a censura que lhe é imputada pela Requerente a correção efetuada pela AT.
IV. 2 – Insuficiência de fundamentação e vício de fundamentação
A Requerente invoca, como outra causa de pedir, a “insuficiência de fundamentação e vício de fundamentação”.
Lendo o requerimento inicial, constata-se que a Requerente não alega quaisquer factos que possam integrar o vício de insuficiência de fundamentação, factos de onde se pudesse concluir que as razões da decisão da AT de proceder à correção impugnada resultariam, à luz do constante do RIT onde se encontram expressas, incompreensíveis para um normal destinatário. Não é, pois, alegada uma qualquer concreta insuficiência de fundamentação. Aliás, a petição da Requerente mostra bem que compreendeu perfeitamente o que estava em causa.
O “vício de fundamentação” alegado é o erro de direito pretensamente subjacente à correção efetuada (incorre o relatório de inspeção em vício de fundamentação, já que a fundamentação usada é contrária à lei, afirma-se no nº 105 do requerimento inicial) questão que já foi apreciada.
Improcede, pois, a alegação de vício de fundamentação.
IV 3- Violação do princípio da tributação do lucro real
A Requerente invoca ainda a violação do princípio da tributação do lucro real, concluindo (n. 114 e 115 do requerimento inicial) que no caso concreto, a empresa Requerente está a ser tributada por um lucro ou ganho que em concreto não teve! Pelo que as liquidações que ora se impugna são inconstitucionais.
Apreciando:
Temos, em primeiro lugar que inconstitucionalidade é um vício imputável a uma norma ou a uma interpretação da norma, pelo que nunca pode ser imputado a um ato administrativo (a uma liquidação).
A Requerente não identifica concretamente a norma, o segmento normativo ou a interpretação da norma que considera inconstitucional, mormente que a desconsideração fiscal de gastos reais (gastos de financiamento) que excedam determinados limites implique a inconstitucionalidade do art. 67º do CIRC.
O que, só por si, condena à improcedência tal causa de pedir.
Acresce que a decisão da questão colocada implica apenas a interpretação da norma (do n.º 12 do artº 67º do CIRC) e a subsunção à mesma da factualidade concreta dada por provada, questões que se situam num domínio infraconstitucional. Improcede, também por esta razão, tal causa de pedir.
IV 4- Extinção parcial da lide
Relativamente à segunda correção impugnada (correção ao valor da mais-valia realizada em propriedades de investimento), temos que a mesma foi revogada pelo órgão administrativo competente, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT.
O conhecimento de tal questão resultou, assim, prejudicado.
V – Decisão
Conclui-se pela improcedência total do pedido arbitral.
Porém, deverá a liquidação impugnada ser parcialmente reformada como consequência da revogação administrativa das correções relativas a mais-valias em propriedades de investimento.
VALOR: € 222.885,81
Lisboa, 21 de janeiro de 2022,
O Árbitro Presidente
Carlos Cadilha
O árbitro vogal
Rui Duarte Morais
O árbitro vogal
Henrique Fiúza