SUMÁRIO:
I - Quando seja impossível comprovar a matéria tributável directa e exactamente a partir dos elementos da contabilidade, a Administração está legalmente vinculada a eleger a avaliação indirecta como método de apuramento dessa matéria, porque assim lhe impõe o artigo 90.º, n.º 1, da LGT, gerando o acto tributário que procede, nessas circunstâncias, ao apuramento da matéria tributável por métodos directos, fundadas dúvidas sobre a existência e quantificação daquela, que justificam a anulação daquele, nos termos do art.º 100.º, n.º 1, do CPPT.
II – A fundamentação exigível a um acto tributário, deve ser aquela que funcionalmente é em concreto necessária para que aquele não se apresente perante o contribuinte como uma pura demonstração de arbítrio.
III – Uma acção inspectiva instaurada com o propósito de fiscalizar a escrita do contribuinte, nas instalações deste, deve ser qualificada como externa, mesmo quando tal fiscalização não chega a ocorrer por aquela escrita ter sido, previamente, objecto de furto.
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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No dia 27 de Agosto de 2020, A... Unipessoal, Lda., NIPC ..., com sede na ... ...-... ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos seguintes actos de liquidação IVA e respectivos juros compensatórios dos anos de 2015 e 2016, abaixo devidamente identificadas, no montante total de 333.374,25 €, sendo o valor de 287.969,01 € referente a IVA e de 45.405,24 € respeitante a juros compensatórios:
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Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese:
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A errónea qualificação e quantificação das correcções efectuadas, nos termos das alíneas a), c) e d) do artigo 99.º do CPPT, e a existência dúvidas sobre a existência e quantificação do facto tributário, nos termos do art.º 100.º do CPPT;
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A falta de fundamentação das liquidações;
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Que o procedimento inspectivo a que foi sujeita foi de natureza interna, pelo que se verifica a caducidade do direito à liquidação, relativamente ao ano de 2015.
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No dia 28-08-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 14-10-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 13-11-2020.
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No dia 16-12-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se (por excepção e) por impugnação.
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Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
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Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pela Requerente, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
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Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
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A Requerente tem como objecto social o exercício da “Montagem de alvenarias, tijolo e rebocos, e de pedreiro-construção civil”, sendo a sua actividade principal a “Construção de Edifícios (Residenciais e não Residenciais”, a que corresponde o Código de Classificação de Atividade Económica (CAE) 41200.
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Em sede de IVA a Requerente esteve enquadrada no regime normal trimestral desde 2001.05.17 até 2015.12.31, tendo a partir de 2016.01.01, ficado enquadrada no regime mensal, ou seja, à data dos factos encontrava-se abrangida pelo regime trimestral do IVA e do regime mensal, respectivamente nos anos de 2015 e 2016.
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A Requerente foi sujeita a procedimentos externos de inspecção tributária, relativamente aos anos 2015 e 2016, de âmbito parcial, que tiveram por objecto a verificação da Serviços de Inspecção Tributária em sede de IVA e Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), ao abrigo das Ordens de Serviço n.º OI2018... e OI2018..., respectivamente, levadas a cabo pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, com início em 09/10/2019.
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O procedimento inspectivo foi credenciado com data de 21/02/2018.
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Em 12/04/2018, foi enviada à Requerente notificação prévia (carta aviso) para procedimento de inspecção.
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Os procedimentos inspectivos apenas se iniciaram no decurso do ano de 2019, motivo pelo qual, atendendo ao lapso de tempo decorrido desde o envio da carta aviso referida anteriormente, foi enviada nova carta aviso à ora Requerente em Setembro desse ano.
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Tendo em vista iniciar o procedimento externo de inspecção, os Serviços de Inspecção Tributária contactaram, telefonicamente, o representante legal da ora Requerente, acordando, para o efeito, o dia 09/10/2019.
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Os Serviços De Inspecção Tributária enviaram mensagem de correio electrónico para a ora Requerente (endereço por esta indicado), solicitando que fosse preparado/fotocopiado um acervo documental essencialmente constituído por documentos de índole contabilística.
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Na data agendada, os Serviços de Inspecção Tributária deslocaram-se às instalações do escritório de advogados B..., RL, local que havia sido indicado pela Requerente, tendo o seu representante legal, Sr. C..., assinado as duas Ordens de Serviço.
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Para além dos inspectores tributários credenciados para a acção, encontravam-se no local o representante legal da Requerente, o advogado Dr. D... e o Sr. E... .
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Este último foi designado representante para as relações com a administração tributária no âmbito dos procedimentos em causa.
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Paralelamente, nesta mesma deslocação, os Serviços De Inspecção Tributária foram informados que não existiam quaisquer elementos contabilísticos, em suporte de papel, informático (incluindo backups) ou outro tipo de suporte, relativamente aos exercícios de 2015 e 2016, porquanto os mesmos, em meados de outubro de 2017, teriam sido furtados do escritório de contabilidade que prestava serviços à ora Requerente.
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A Requerente apresentou prova documental do ocorrido (cópia da denuncia efectuada pelo contabilista, perante a autoridade policial em 25 de Outubro de 2017), verificando então os Serviços de Inspecção Tributária o furto da contabilidade.
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A inspecção tributária questionou o representante legal da Requerente sobre quais as diligências entretanto promovidas com vista à reconstituição da contabilidade desses exercícios (2015 e 2016), nomeadamente, solicitação de segundas vias de documentos, junto de clientes e fornecedores, tendo sido informada que "não havia nada".
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Por isto ter sido assim, os inspectores informaram a Requerente, na pessoa do seu representante legal, bem como os demais presentes, da possibilidade de a Requerente solicitar, junto dos terceiros com quem tinham mantido relações comerciais nesses exercícios, segundas vias dos documentos de suporte às operações.
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A ora Requerente foi alertada pelos Serviços de Inspecção Tributária para a necessidade de lhes serem apresentados, no decurso do procedimento de inspecção, os documentos de suporte com vista à sua posterior análise para efeitos de aferição da efectiva dedutibilidade fiscal dos gastos contabilizados que contribuíram para o apuramento do lucro tributável, em sede de IRC, bem como do exercício ao direito de dedução do IVA, como tal considerado (dedutível) nas declarações periódicas por si entregues, em sede de IVA.
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A Requerente foi notificada, através do seu representante legal, para fazer chegar aos Serviços de Inspecção Tributária os diversos documentos contabilísticos dos anos em questão.
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A Requerente, durante todo o tempo do procedimento inspectivo, apenas entregou os elementos mencionados no Relatório de Inspecção Tributária.
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Não foi apresentado qualquer documento de suporte contabilístico, com excepção dos extractos bancários.
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Do imposto que a ora Requerente fez constar nas declarações periódicas por si entregues, em sede de IVA, nos montantes de € 309.461,38 e € 166.217,16, em 2015 e 2016, respectivamente, não foi apresentada qualquer documentação de suporte.
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Em 21-02-2020, a Requerente foi notificada pessoalmente, nas instalações da Direção de Finanças de Lisboa, pelo Ofício n.º ..., datado de 20-02-2020, para querendo exercer o direito de audição sobre o Projecto de Relatório da Inspecção Tributária.
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A Requerente, 10-03-2020, requereu a prorrogação do prazo por 10 dias, mediante requerimento apresentado pelo seu mandatário, acompanhado da respectiva procuração, para efeitos do referido exercício do direito de audição, tendo o mesmo sido deferido, pelo Ofício n.º ... de 11-03-2020.
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O prazo para o exercício do direito de audição terminou em 19-03-2020, não tendo a impugnante exercido o respectivo direito.
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Em 26-03-2020, a Requerente foi notificada do relatório de inspecção tributária contendo as correcções, de natureza meramente aritmética, em sede de IVA, referente aos anos de 2015 e 2016.
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As correcções efectuadas pela inspecção tributária, relativas a IVA deduzido no montante de 193.696,79 € (Quadro XVIII a fls. 21 do RIT) e 39.981,14 € (Quadro XVIII/XIX a fls. 21 e 24 do RIT), nos períodos de 2015 e 2016 respectivamente, encontram-se assim discriminadas:
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As referidas correcções assentaram nas seguintes situações (ponto III.1.3 – Conclusões da análise a fls. 26 do RIT):
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Fornecedores circularizados para os quais não se obteve documentação (conforme Quadro XVIII a fls. 21 do RIT): “atendendo a que não foram apresentados os documentos que originariam o direito à dedução, o imposto não é dedutível pela conciliação da alínea a), do n.º 1 do artigo 19.º do CIVA com a alínea a) do n.º 2 e com o n.º 6 do mesmo artigo”;
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Fornecedores circularizados com IVA suportado não aceite fiscalmente (conforme Mapa XIX a fls. 24 do RIT): “por força da exclusão do direito à dedução da alínea d) do n.º 1 do artigo 21º em conjugação com a alínea a) do n.º 1 do artigo 20º, ambos, do CIVA; e “por força da conciliação da alínea a) do n.º 1, com a alínea a) do n.º 2 e com o n.º 6 do artigo 19º do CIVA, bem como com o n.º 5 do artigo 36º do mesmo diploma legal”.
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Do Relatório de Inspecção (“RIT”), consta, para além do mais, o seguinte:
- “Os montantes relativos à faturação comunicada pelo sujeito passivo no Sistema de Gestão de Documentos Comerciais (E-fatura), quer ao nível da base tributável quer ao nível do inerente imposto liquidado, encontram-se em consonância com os declarados em sede de IVA bem como na IES” (fls. 13 do RIT);
- “Apesar destes serviços de inspeção não terem acesso à contabilidade do sujeito passivo, dos balancetes ou extratos de contas correntes, nem os ficheiros SAFT da contabilidade e faturação, após terem sido analisados todos os elementos contabilísticos obtidos e esclarecimentos prestados junto dos seus clientes e fornecedores, bem como extratos bancários enviados pela A..., verifica-se que esta nos exercícios de 2015 e 2016 exerceu efetivamente uma atividade, essencialmente de prestação de serviços de construção civil” (fls. 17 do RIT);
“Como anteriormente referido, o sujeito passivo apesar de notificado, não apresentou a respetiva contabilidade, pelos motivos apresentados pelo mesmo no anterior ponto 11.5.1.3. Por outro lado, com base na informação constante do sistema informático à disposição destes serviços, verifica-se que nos exercícios em causa o sujeito passivo fez constar nas declaracões periódicas de IVA por si entregues imposto dedutível nos montantes seguidamente identificados (imposto deduzido por período) (...)” (fls. 18 do RIT);
- “Os montantes acima identificados estão, de modo geral, em consonância com os comunicados no Sistema de Gestão de Documentos Comerciais (E-Fatura), e seriam dedutíveis nos termos dos artigos 19° a 26° e 78°, todos do CIVA, desde que devidamente documentados.” (fls. 18 do RIT);
-“Contudo, prescreve a alínea a) do nº 1 do artigo 19º do CIVA que: "Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram:
a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;" Por outro lado, de acordo com a alínea a) do nº 2 e com o nº 6 do mesmo artigo:
"2- Só confere direito a dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo:
a) Em faturas passadas na forma legal"
6- Para efeitos do exercício do direito à dedução, consideram-se passadas na forma legal as
faturas que contenham os elementos previstos nos artigos 36.º ou 40.º, consoante os casos".
Ou seja, como condição formal o imposto suportado deve constar em fatura emitida nos termos do CIVA, e a mesma deve estar emitida em nome do sujeito passivo e estar na sua posse. Acresce ainda que, de acordo com o nº.1 do artigo 20.º do CIVA que: "Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes: a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas:"
Como tal, e como condição material, só confere o direito à dedução os bens e serviços adquiridos para utilização efetiva na atividade tributada do sujeito passivo. ou atividade isenta que confere direito à dedução (exportações e operações assimiladas).
Portanto, não havendo acesso à contabilidade do sujeito passivo, há um impedimento de confirmação e validação do direito à dedução por parte da AT, através dos documentos previstos no nº 2 do art. 19° do CIVA.” (fls. 19 do RIT);
- “Realça-se que muitos fornecedores circularizados prestaram serviços de construção civil ao abrigo da alínea i) do nº 1 do artigo 2º do CIVA. e como tal, não liquidaram IVA, sendo autoliquidação, cabendo assim ao adquirente liquidar e deduzir simultaneamente o IVA. Salienta-se no entanto que todas as declarações periódicas de IVA entregues pelo sujeito passivo para ambos os exercícios, apresentam o campo 102 do quadro 06A em branco, quando nele deveria constar os valores da base tributável das aquisições de serviços de construção civil com autoliquidação. (...)
Conclui-se assim que nas aquisições, por parte do sujeito passivo, de serviços de construção civil em que este se encontrava obrigado a autoliquidar IVA, através do mecanismo denominado reverse charge, por força da alínea i) do nº 1 do artigo 2º e n.º 8 do artigo 19° ambos do CIVA. efetivamente não o fez, isto é, não procedeu à liquidação e dedução em simultâneo do imposto, pois não só o referido campo das declarações periódicas por si entregues se encontra em branco, como o IVA deduzido/liquidado nas mesmas teria de, obrigatoriamente, ser superior ao comunicado no E- fatura. Todavia, e pese embora resultar evidente que o sujeito passivo não cumpriu com as normas relacionadas com o reverse charge, como deveria. o que é facto é que em termos de apuramento de imposto aquele mecanismo não influencia o IVA efetivamente a entregar nos cofres do Estado, e como tal, não afeta as conclusões obtidas no âmbito do presente procedimento inspetivo, no que ao nível dos totais de correções propostas diz respeito.” (fls. 20 do RIT);
“Relativamente aos do quadro XVIII, e atendendo a que não foram apresentados os documentos que originariam o direito à dedução, o imposto não é dedutível pela conciliação da alínea a) do nº 1 do artigo 19° do CIVA com a alínea a) do nº 2 e com o nº 6 do mesmo artigo;
Relativamente ao fornecedor "F... Unipessoal Lda.", constante do quadro XIX, o IVA constante nas faturas por este emitidas não é fiscalmente dedutível por força da exclusão do direito à dedução da alínea d) do nº.1 do artigo 21º em conjugação com a alínea a) do nº.1 do artigo 20°, ambos, do CIVA; e
Relativamente à faturação emitida pela sociedade "G..., Lda.", igualmente constante do quadro XIX, o IVA nela constante não é fiscalmente dedutível por força da conciliação da alínea a) do nº 1, com a alínea a) do nº 2 e com o nº 6 do artigo 19° do CIVA bem como com o do nº 5 do art.º 36° do mesmo diploma legal.” (fls. 26 do RIT)
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A Requerente foi notificada, em 04-05-2020, para efectuar até 02-06-2020, os pagamentos, referentes às liquidações adicionais do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), objecto da presente acção arbitral, nos montantes de 203.630,20 € e 84.338,81 €, acrescidos dos juros compensatórios nos valores de 34.070,98 € e 11.334,26 €, respestivamente, relativas aos anos de 2015 e 2016.
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A Requerente apresentou, atempadamente, as Declarações periódicas de IVA (DP ́s) relativamente aos períodos de imposto dos exercícios de 2015 e 2016.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
Conforme atrás já exposto, alega a Requerente, em síntese:
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A errónea qualificação e quantificação das correcções efectuadas, nos termos das alíneas a), c) e d) do artigo 99.º do CPPT, e a existência dúvidas sobre a existência e quantificação do facto tributário, nos termos do art.º 100.º do CPPT;
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A falta de fundamentação das liquidações;
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Que o procedimento inspectivo a que foi sujeita foi de natureza interna, pelo que se verifica a caducidade do direito à liquidação, relativamente ao ano de 2015.
Vejamos, então cada uma destas questões.
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Começa a Requerente por sustentar que a circunstância de os serviços de inspecção não disporem das informações necessárias para verificar se os pressupostos legais relativos ao exercício do direito à dedução se encontravam preenchidos, não permite sustentar as correcções aritméticas operadas.
Já a Requerida, por seu lado, invoca as regras relativas ao ónus da prova, referindo que à Requerente assiste o dever de demonstrar os pressupostos do seu direito à dedução, o que não fez.
Antes de prosseguir, cumpre notar, desde logo, que embora a Requerente reporte o vício ora sindicado à totalidade das liquidações objecto da presente acção arbitral, a sua argumentação apenas tem cabimento quanto às correcções relativas a IVA deduzido sem documentação, e já não quanto às relativas a IVA suportado não aceite fiscalmente.
Efectivamente, estas últimas não assentam na circunstância de os serviços de inspecção não disporem das informações necessárias para verificar se os pressupostos legais relativos ao exercício do direito à dedução se encontravam preenchidos, tendo, quanto a tal matéria, os serviços de inspecção recolhido os elementos que considerou necessários e adequados a sustentar as correspondentes correcções, nos termos detalhados no RIT.
Posto isto, será de julgar que, na parte restante (correcções relativas a IVA deduzido sem documentação), assistirá razão à Requerente.
Com efeito, e desde logo, o que se apura no caso é que o incumprimento do ónus probatório que, na matéria em causa, incumbia à Requerente, não é culposo, já que, conforme é pacífico e consensual, a documentação em causa foi objecto de furto, em data substancialmente anterior ao início dos procedimentos de inspecção, e em local outro que não as instalações da Requerente (gabinete externo de contabilidade).
Por outro lado, das próprias diligência encetadas pela AT, resultou, para além do mais e como consta do RIT que:
- “Os montantes relativos à faturação comunicada pelo sujeito passivo no Sistema de Gestão de Documentos Comerciais (E-fatura), quer ao nível da base tributável quer ao nível do inerente imposto liquidado, encontram-se em consonância com os declarados em sede de IVA bem como na IES” (fls. 13 do RIT);
- “Apesar destes serviços de inspeção não terem acesso à contabilidade do sujeito passivo, dos balancetes ou extratos de contas correntes, nem os ficheiros SAFT da contabilidade e faturação, após terem sido analisados todos os elementos contabilísticos obtidos e esclarecimentos prestados junto dos seus clientes e fornecedores, bem como extratos bancários enviados pela A..., verifica-se que esta nos exercícios de 2015 e 2016 exerceu efetivamente uma atividade, essencialmente de prestação de serviços de construção civil” (fls. 17 do RIT);
- “Os montantes acima identificados estão, de modo geral, em consonância com os comunicados no Sistema de Gestão de Documentos Comerciais (E-Fatura), e seriam dedutíveis nos termos dos artigos 19° a 26° e 78°, todos do CIVA, desde que devidamente documentados.” (fls. 18 do RIT);
Ou seja, verifica-se, em suma, que:
- não existem dúvidas que foi efectivamente exercida pela Requerente uma actividade de prestação de serviços de construção civil; e
- Os montantes declarados estão de um modo geral em consonância com os constantes de sistemas de fiscalização auxiliares (E-factura; IES).
Ora, a conjugação destas duas circunstâncias, o exercício efectivo de uma actividade (que necessariamente implica o consumo de bens e serviços sujeitos a IVA, por isso dedutível), e a congruência com os sistemas de fiscalização auxiliares (porventura complementados com os extractos bancários que a Requerente facultou), sustenta não só a conclusão de que inexistem indícios de fraude ou abuso, como, sobretudo, de que, não obstante a ausência de documentação, existiu na realidade IVA dedutível, embora e por causas não imputáveis à Requerente, não precisamente quantificável.
Perante esta situação, julga-se que cumpriria à AT proceder à determinação do IVA devido por métodos indirectos, já que se está, claramente, perante uma situação de impossibilidade de determinação directa da matéria tributável.
Assim, e como se decidiu no Acórdão do TCA-Sul de 22-05-2019, proferido no processo 402/09.7BELRA, “Quando seja impossível comprovar a matéria tributável directa e exactamente a partir dos elementos da contabilidade, a Administração está legalmente vinculada a eleger a avaliação indirecta como método de apuramento dessa matéria, porque assim lhe impõe o artigo 90.º, n.º 1, da LGT.”.
Não tendo a AT decidido pela determinação da matéria tributável por meio de tais métodos, gera-se uma situação de dúvida fundada sobre a existência e quantificação da matéria tributável, que, nos termos do artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, impõe, nesta parte, a anulação das liquidações, procedendo, por isso e nessa mesma parte, o pedido arbitral.
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Como se viu, alega ainda a Requerente a falta de fundamentação das correcções consumadas pela AT.
Contudo, tendo em vista o já decidido, esta questão fica restringida às correcções relativas a IVA suportado não aceite fiscalmente
A fundamentação é uma exigência dos actos tributários em geral, sendo uma imposição constitucional (268.º da CRP) e legal (art.º 77º da LGT).
Resumidamente, pode dizer-se que é hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência nacionais que a fundamentação exigível tem de reunir as seguintes características:
1. Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido;
2. Contemporaneidade: deve ser coeva da prática do acto, não podendo haver fundamentações diferidas;
3. Clareza: deve ser compreensível por um destinatário médio, evitando conceitos polissémicos ou profundamente técnicos;
4. Plenitude: deve conter todos os elementos essenciais e que foram
determinantes da decisão tomada. Esta característica desdobra-se em
duas exigências, a saber: o dever de justificação (normas legais e
factualidade – domínio da legalidade) e de motivação (domínio da
discricionariedade ou oportunidade, quando é preciso uma valoração).
Ora, se a fundamentação é, nos termos referidos, necessária e obrigatória, tal não
pode nem deve ser entendido de uma forma abstracta e/ou absoluta, ou seja, a
fundamentação exigível a um acto tributário, deve ser aquela que funcionalmente é em
concreto necessária para que aquele não se apresente perante o contribuinte como uma pura demonstração de arbítrio. Esta será – julga-se – a pedra de toque do cumprimento do dever de fundamentação: quanto, perante um destinatário médio colocado na posição do destinatário real, o acto tributário se apresente, sob um ponto de vista de razoabilidade, como um produto do puro arbítrio da Administração, por não serem discerníveis os motivos de facto e/ou de direito em que assenta, o acto padecerá de falta de fundamentação.
Neste mesmo sentido, se orienta a jurisprudência do STA que considera que:
“Apesar da não indicação expressa do preceito legal aplicável, a exigível fundamentação de direito do acto tributário será suficiente com a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado, desde que, em qualquer caso, se possa concluir que aqueles eram conhecidos ou cognoscíveis por um destinatário normal colocado na posição em concreto do real destinatário.”[2], e que “A exigência legal e constitucional de fundamentação do acto tributário, decorrente dos arts. 268º da CRP, 77º da LGT e 125º do CPA, visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a Administração a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa.”[3].
O artigo 77.º/1 da LGT refere, assim, que: “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.”.
Descendo ao caso concreto, haverá que concluir que as correcções em causa não se apresentam como mera manifestação de arbítrio da AT. As mesmas estão - bem ou mal, nesta sede não cumpre aferir isso – explicadas, percebendo-se perfeitamente o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela inspecção tributária, em termos de permitir à Requerente aceitar ou contestar tais correcções.
A circunstância, enfatizada pela Requerente, de – eventualmente, dado que também isso não cumpre nesta sede aferir – não haver uma correspondência entre os valores constantes do RIT e os liquidados, não contende com a fundamentação do acto, dado que, justamente por estarem as correcções fundamentadas, a Requerente tem todas as condições para conferir se os valores liquidados a prejudicam ou não.
Assim, e pelo exposto, deve improceder, nesta parte, o pedido arbitral.
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Alega, por fim, a Requerente a ocorrência da caducidade do direito à liquidação, do imposto relativo ao ano de 2015.
Assenta a Requerente, exclusivamente, esta sua alegação, na circunstância de, não obstante o procedimento inspectivo ter sido qualificado como externo, ser antes, na sua opinião, materialmente um procedimento inspectivo meramente interno.
Não lhe assiste razão, todavia.
Com efeito, e como resulta da matéria de facto provada, não só o procedimento implicou a realização de diligências fora das instalações da AT (cfr. ponto 9 dos factos dados como provados), como, sobretudo, era esse o seu propósito.
Efectivamente, com a instauração do procedimento, a AT pretendia inspecionar a contabilidade da Requerente, só não o tendo feito porquanto a mesma terá sido objecto de furto, circunstância desconhecida da AT, à data da instauração do procedimento inspectivo.
Deste modo, considerando-se o procedimento inspectivo como externo, opera a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação, prevista no n.º 1 do art.º 46.º da LGT, pelo que, aquando da notificação dos actos de liquidação, em 04-05-2020, não estava ainda decorrido aquele prazo, que só se completava em 28-06-2020.
Face ao exposto, deve improceder, também nesta parte, o pedido arbitral.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
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Anular os actos de liquidação objecto da presente acção arbitral, na parte em que se fundam nas correcções relativas a IVA deduzido sem documentação;
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Manter a restante parte daqueles actos, absolvendo, nessa parte, a Requerida do pedido;
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Condenar as partes nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento, fixando-se o montante de € 470,00, a cargo da Requerente, e de € 5.344,00, a cargo da Requerida.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 333.374,35, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 5.814,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas partes na proporção do respectivo decaimento, acima fixado, uma vez que o pedido foi parcialmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 24 de Janeiro de 2022
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(José Nunes Barata)
O Árbitro Vogal
(Rita Guerra Alves)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.
[2] Cfr., p. ex., Ac. do STA de 08-06-2011, proferido no processo 068/11
[3] Ac. do STA de 21-06-2017, proferido no processo 068/17.