SUMÁRIO:
I - A possibilidade de derrogação a que se refere o n.º 2 do art.º 90.º da Directiva IVA, refere-se a situações de simples não pagamento, total ou parcial do preço, e não a situações que indicam, com um razoável grau de probabilidade, uma incobrabilidade definitiva;
II- O n.º 1 do mesmo artigo 90.º obriga os Estados-Membros à redução do valor tributável do IVA, no caso de se confirmar o não pagamento definitivo da totalidade ou parte do preço;
III - As derrogações ao art.º 90.º permitidas aos Estados-Membros, estão funcionalizadas a combater a incerteza quanto ao não pagamento de uma factura ou ao caráter definitivo deste;
IV- Os Estados‑Membros devem permitir a redução do valor tributável do IVA se o sujeito passivo provar que o crédito que detém sobre o seu devedor é definitivamente incobrável;
V- O n.º 1 do artigo 90.º da Directiva IVA é susceptível de aplicação directa, pelo que os sujeitos passivos podem invocar o artigo 90.°, n.° 1, da diretiva IVA contra o Estado perante os tribunais nacionais para obter a redução do seu valor tributável do IVA.
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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No dia 13 de Agosto de 2020, A…, S.A., NIPC …, com sede na Avenida …, … Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos seguintes actos de liquidação de IVA, e juros compensatórios, no valor total de € 405.597,33, bem como as decisões das reclamações graciosas com os n.ºs … e … que tiveram tais actos como objecto:
i. n.º 2019… e 2019…, relativas ao período 201601;
ii. n.º 2019…, 2019…, 2019…, 2019…, 2019…, 2019…, 2019…, 2019…, 2019…, 2019… e 2020…, relativas ao período 201602;
iii. n.º 2019…, relativa ao período 201603;
iv. n.º 2019…, relativa ao período 201606;
v. n.º 2019…, relativa ao período 201607;
vi. n.º 2019…, relativa ao período 201608;
vii. n.º 2019…, relativa ao período 201609;
viii. n.º 2019…, relativa ao período 201610;
ix. n.º 2019… e 2020… relativas ao período 201611; e
x. n.º 2019…, relativa ao período 201612.
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Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese:
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Falta de fundamentação;
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Ilegalidade da utilização de créditos disponíveis na conta corrente da A…;
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Ilegalidade por violação do Direito Europeu, em particular do disposto nos artigos 73.º e 90.º da Directiva IVA;
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Ilegalidade por enriquecimento sem causa do Estado e violação do princípio da neutralidade, aplicável em sede de IVA; e
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Ilegalidade por violação do direito fundamental à propriedade previsto no artigo 17.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
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No dia 14-08-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 29-09-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 29-10-2020.
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No dia 21-11-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
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Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
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Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
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Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente é uma sociedade anónima, cujo objeto social consiste no estabelecimento, concepção, construção, gestão e exploração de redes e infraestruturas de comunicações eletrónicas, bem como na prestação de serviços de comunicações eletrónicas e de transporte e difusão de sinal de telecomunicações.
2- A Requerente é um sujeito passivo de IVA cuja actividade tributável consiste maioritariamente na prestação de serviços de comunicações eletrónicas.
3- A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal mensal, em conformidade com o disposto no artigo 41.º n.º 1 alínea a) do Código do IVA.
4- A Requerente é considerada um “Contribuinte de Elevada Relevância Económica e Fiscal” ou “Grande Contribuinte”, constando do Cadastro Especial de Contribuintes, conforme Despacho do Director Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) n.º 6999/2013, de 30 de Maio.
5- No âmbito da sua actividade de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, a Requerente emite mensalmente mais de dois milhões de facturas, liquidando e entregando ao Estado o IVA constante dessas mesmas faturas.
6- Atendendo ao seu elevado volume de facturação e ao enorme número de facturas emitidas diariamente, é, de um ponto de vista prático, inviável para a Requerente (como o é, na verdade para a generalidade dos sujeitos passivos), proceder à validação de todos os dados referentes a cada cliente (como sejam o número de identificação fiscal, a morada, a sua situação jurídica ou cadastro fiscal actualizado, etc.), antes da emissão de cada factura.
7- Devido à natureza da sua actividade e ao volume de facturas emitidas mensalmente, a Requerente depara-se com um nível considerável de incumprimento, já que uma parte relevante das facturas por si emitidas nunca chega a ser paga.
8- Este incumprimento resulta numa quantidade avultada de créditos em mora ou incobráveis, gerando discrepâncias entre os valores facturados e os valores efectivamente recebidos.
9- Uma parte desses créditos tidos como incobráveis ou em mora por parte da Requerente decorre de facturas emitidas a pessoas coletivas (sociedades) que se encontram dissolvidas, para efeitos societários.
10- Ora, nestes casos de créditos incobráveis envolvendo facturas emitidas a sociedades dissolvidas, verifica-se uma de duas situações possíveis:
i. A sociedade (cliente da Requerente) encontrava-se já dissolvida ou em dissolução aquando da emissão da factura pela Requerente e nunca procedeu ao respectivo pagamento; ou
ii. A sociedade (cliente da Requerente) entrou em dissolução ou dissolveu-se em momento posterior à emissão da factura pela Requerente, mas nunca procedeu ao respectivo pagamento.
11- Sempre que as facturas emitidas pela Requerente não chegam a ser pagas pelas sociedades dissolvidas (clientes da Requerente), o IVA constante das mesmas é suportado directamente pela Requerente quando esta o entrega ao Estado, sem que tenha recebido a contrapartida dos serviços prestados, acrescida de IVA, dos clientes incumpridores.
12- Como tal, a Requerente fica recorrentemente obrigada a adiantar ao Estado o IVA liquidado (mas não recebido, à semelhança do próprio pagamento dos serviços) aos seus clientes.
13- A Requerente procure monitorizar a verificação dos requisitos que lhe possibilitam a regularização a seu favor do IVA relativo a créditos incobráveis ou de cobrança duvidosa, a fim de proceder à sua dedução.
14- No ano de 2016, a Requerente apresentou, no campo 40 das declarações periódicas de IVA, regularizações de imposto a seu favor no montante total de € 25.006.853,01, sendo que uma parte dessa importância – € 541.716,40 – diz respeito a créditos sobre sociedades dissolvidas.
15- Ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2018…, de 22.06.2018, foi realizado um procedimento de inspecção externa, de âmbito geral, com vista a verificar o cumprimento da situação tributária global da Requerente, com referência ao ano de 2016.
16- No âmbito deste procedimento inspectivo, em 11.06.2019, a Requerente foi notificada do Projecto de Relatório de Inspecção Tributária, no qual a AT propunha uma correcção, em sede de IVA, no montante de € 541.716,40, relativa à regularização a favor da A… de IVA referente a créditos incobráveis ou de cobrança duvidosa sobre sociedades dissolvidas.
17- Não tendo a Requerente exercido o direito de audição prévia sobre a proposta de correcção identificada no Projecto de Relatório, a mesma tornou-se definitiva e foi notificada à Requerente, em 03-07-2019, através do Relatório Final de Inspecção Tributária.
18- Do referido Relatório consta, para além do mais, o seguinte:
19- Na sequência desta correcção em sede de IVA, a Requerente foi notificada dos actos de liquidação de IVA e juros compensatórios objecto da presente acção arbitral, referentes aos meses de Janeiro a Março e Junho a Dezembro de 2016.
20- A Requerente apresentou garantia bancária número …, no montante de € 512.013,75, emitida pela B…, com o intuito de suspender os processos de execução fiscal … e apensos, referentes às liquidações inicialmente recebidas, com data de pagamento de 16-08-2019.
21- A Requerente procedeu ao pagamento dos actos de liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios recebidos em data posterior ao momento da prestação da garantia, no valor de € 1.115,48.
22- A 16-12-2019, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra as liquidações até aí emitidas pela AT.
23- Posteriormente, a Requerente apresentou nova reclamação graciosa a 28-02-2020, contestando as liquidações adicionais recebidas desde a data de apresentação da primeira reclamação graciosa.
24- As reclamações graciosas foram objecto de despacho de indeferimento, notificados, respectivamente, a 05-06-2020 e a 27-07-2020.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
Imputa a Requerente às liquidações impugnadas vários vícios, designadamente:
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Falta de fundamentação;
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Ilegalidade da utilização de créditos disponíveis na conta corrente da A…;
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Ilegalidade por violação do Direito Europeu, em particular do disposto nos artigos 73.º e 90.º da Directiva IVA;
-
Ilegalidade por enriquecimento sem causa do Estado e violação do princípio da neutralidade, aplicável em sede de IVA; e
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Ilegalidade por violação do direito fundamental à propriedade previsto no artigo 17.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Dispõe o art.º 124.º do CPPT que:
“1 - Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.
2 – Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:
a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;
b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.”
Deste modo, e não tendo sido expressamente estabelecida pela Requerente qualquer relação de subsidiariedade entre os vícios arguidos, passar-se-á à apreciação do vício de ilegalidade por violação do Direito Europeu, em particular do disposto nos artigos 73.º e 90.º da Directiva IVA, por ser aquele cuja procedência determina a mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos.
***
A questão essencial que se apresenta a dirimir nos presentes autos de processo arbitral tributário, é se, a dissolução de uma sociedade que não liquidou uma factura, confere ao emitente desta o direito à regularização do IVA contido naquela e não recebido.
No caso, e antes de mais, cumpre esclarecer que, como resulta dos factos dados como provados, se dá por assente que as facturas subjacentes às liquidações objecto da presente acção arbitral não foram pagas e que as sociedades destinatárias das mesmas se encontravam, no exercício de 2016, dissolvidas, dado que em fase alguma, quer do procedimento de inspecção, quer dos procedimentos de reclamação graciosa, a AT questionou que assim fosse.
Posto isto, o cerne da questão ora em apreço, situa-se no art.º 90.º da Directiva IVA (2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006), e nos artigos 78.º a 78.º-D do CIVA aplicável (2016).
A primeira daquelas normas dispõe que:
“1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efectuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.
2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.”.
Do conjunto das referidas normas do CIVA, resulta, em suma, que relativamente a créditos incobráveis, está prevista a possibilidade de regularização nas seguintes situações (n.º 7 do artigo 78.º e do n.º 4 do artigo 78.º-A):
- Existindo processo de execução (após a sua extinção por falta de bens penhoráveis);
- Existindo processo de insolvência (após ser determinado o não pagamento definitivo do crédito);
- Existindo processo especial de revitalização (após homologação do plano de recuperação que preveja o não pagamento definitivo do crédito);
- Existindo procedimento de recuperação extrajudicial do devedor no âmbito do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (após celebração do acordo de recuperação).
Essencialmente, o dissídio reside em que a Requerente sustenta que o elenco de situações de incobrabilidade regularizáveis constante do CIVA é exemplificativo, e não contende com a aplicabilidade directa do art.º 90.º da Directiva, enquanto que a Requerida entende, essencialmente, que as alíneas do n.º 7 do art.º 78.º e do n.º 4 do art.º 78.º-A, ambos do CIVA aplicável, devem ser entendidas no sentido de que fora daquelas situações previstas, não existe suporte legal para a dedução dos créditos em causa por parte do sujeito passivo credor.
Para sustentar a sua posição, a Requerida louva-se, essencialmente, no Acórdão do Tribunal de Justiça proferido no processo C‑337/13[2], no qual se pode ler que:
“24 Há que admitir que uma disposição nacional cuja enumeração das situações nas quais o valor tributável é reduzido não contemple a hipótese do não pagamento do preço da operação deve ser encarada como o resultado do exercício pelo Estado‑Membro da faculdade de derrogação que lhe foi concedida pelo artigo 90.°, n.° 2, da diretiva IVA.”.
Lida na sua singeleza, a passagem transcrita parece, efectivamente, corroborar o entendimento da AT, no sentido de que ao não constar das disposições nacionais reguladoras do sistema do IVA, a possibilidade de redução do valor tributável das operações em caso de dissolução das sociedades devedoras, se deverá entender que daí resulta uma derrogação do n.º 1 do art.º 90.º da Directiva, no uso da faculdade concedida pelo n.º 2 da mesma norma.
Todavia, julga-se que a jurisprudência europeia, como em geral, não pode ser lida atomisticamente, mas deve ser compreendida no seu contexto, não só no que diz respeito ao conjunto da decisão onde as afirmações são feitas, como, igualmente, no contexto mais vasto da jurisprudência sobre a mesma matéria, ou análogas.
Assim, e começando pela própria decisão do citado processo C‑337/13, verifica-se que, salvo melhor opinião, o Tribunal na passagem transcrita, está a referir-se a meras situações de não pagamento total ou parcial do preço, desacompanhadas de outras circunstâncias que indiciem fundadamente a definitividade de tal não pagamento.
Assim, e para além do mais, o Tribunal esclarece que:
“27 Por outro lado, no que se refere a situações que não digam respeito ao não pagamento do preço, é necessário, pelo contrário, que as disposições nacionais de transposição tenham em consideração todas as situações em que o sujeito passivo não receba, depois de efetuada uma transação, uma parte ou a totalidade da contrapartida, o que cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar.”.
Também no ponto 25 do Acórdão ora em apreço, o Tribunal esclarece que o seu entendimento se reporta a situações em que o não pagamento do preço de compra, “por si só (...) não coloca as partes na situação inicial”.
Ou seja, e salvo melhor opinião, a distinção entre “não pagamento do preço” e “não recebimento da contrapartida da transacção” terá o sentido de, justamente, distinguir o simples incumprimento da obrigação de pagar o preço, de outras situações em que se verifiquem indícios fundados de que o não pagamento do preço (que mais não é do que a contrapartida da transacção para o sujeito passivo) se consolidou, tornando-se incobrável, o que se justificará porquanto no caso concreto julgado pelo Tribunal de Justiça, estava em causa uma simples redução do valor da operação, não se verificando qualquer circunstância que indiciasse uma impossibilidade de pagamento do preço.
Assim, e de resto, no mesmo aresto o Tribunal esclarece ainda que:
“39 É, assim, necessário que as formalidades a cumprir pelos sujeitos passivos perante as autoridades fiscais, para o exercício do direito a uma redução do valor tributável do IVA, se limitem às que são necessárias para provar que, depois de efetuada uma transação, não receberão, definitivamente, uma parte ou a totalidade da contrapartida. Neste contexto, incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar que é esse o caso das formalidades exigidas pelo Estado‑Membro em causa.”.
Com efeito, recorda o Tribunal que:
“38 Decorre, no entanto, da jurisprudência do Tribunal de Justiça que as medidas adotadas para evitar fraudes ou evasões fiscais só podem, em princípio, derrogar as regras relativas ao valor tributável do IVA na medida do estritamente necessário à prossecução desse objetivo específico. Com efeito, essas medidas devem afetar o menos possível os objetivos e os princípios da diretiva IVA e não podem, por isso, ser utilizadas de forma a pôr em causa a neutralidade do IVA (v., neste sentido, acórdãos Kraft Foods Polska, EU:C:2012:40, n.° 28, e Petroma Transports e o., C‑271/12, EU:C:2013:297, n.° 28).”.
Tudo isto, em consonância com o princípio ab initio estabelecido pelo Tribunal de que:
“22 Deve recordar‑se, a este respeito, que o artigo 90.°, n.° 1, da diretiva IVA, que visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, obriga os Estados‑Membros a reduzir o valor tributável e, em consequência, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que este não receba, depois de efetuada uma transação, uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contrapartida efetivamente recebida, e que tem por corolário que a Administração Fiscal não pode cobrar um montante de IVA superior ao que foi recebido pelo sujeito passivo (v., neste sentido, acórdão Kraft Foods Polska, C‑588/10, EU:C:2012:40, n.ºs 26 e 27).”.
Todos estes considerandos estão em consonância com jurisprudência posterior do Tribunal de Justiça, sobre a mesma matéria.
Assim, no processo C‑672/17[3], o Tribunal reafirma que:
“29 O artigo 90.°, n.° 1, desta diretiva, que visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, obriga os Estados‑Membros a reduzirem o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que, depois de efetuada uma transação, este não receba uma parte ou a totalidade da contraprestação. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contraprestação efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu (Acórdãos de 26 de janeiro de 2012, Kraft Foods Polska, C‑588/10, EU:C:2012:40, n.os 26 e 27; de 15 de maio de 2014, Almos Agrárkülkereskedelmi, C‑337/13, EU:C:2014:328, n.° 22; e de 20 de dezembro de 2017, Boehringer Ingelheim Pharma, C‑462/16, EU:C:2017:1006, n.° 32).”.
Mais esclarece o Tribunal, na mesma decisão, que:
“34 Importa, assim, que as formalidades a cumprir pelos sujeitos passivos perante as autoridades fiscais, para o exercício do direito a uma redução do valor tributável do IVA, se limitem às que permitem justificar que, depois de efetuada a transação, não receberão, definitivamente, uma parte ou a totalidade da contraprestação. A este respeito, incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar que é esse o caso das formalidades exigidas pelo Estado‑Membro em causa (Acórdãos de 15 de maio de 2014, Almos Agrárkülkereskedelmi, C‑337/13, EU:C:2014:328, n.° 39, e de 12 de outubro de 2017, Lombard Ingatlan Lízing, C‑404/16, EU:C:2017:759, n.° 44).”.
Também no processo C‑146/19[4], o Tribunal de Justiça começa por reafirmar que:
“21 Para responder a esta questão, importa recordar que o artigo 90.º, n.º 1, da Diretiva IVA, que visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, obriga os Estados‑Membros a reduzirem o valor tributável do IVA e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que, depois de efetuada uma transação, este não receba uma parte ou a totalidade da contraprestação. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contraprestação efetivamente recebida e que tem por corolário que a Administração Fiscal não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu (Acórdão de 6 de dezembro de 2018, Tratave, C‑672/17, EU:C:2018:989, n.º 29 e jurisprudência referida).”.
Neste último aresto o Tribunal prossegue, esclarecendo o seu entendimento relativamente à faculdade de derrogação consagrada no n.º 2 do art.º 90.º da Directiva, nos seguintes termos:
“22 É certo que o artigo 90.º, n.º 2, desta diretiva permite que os Estados‑Membros derroguem esta regra em caso de não pagamento total ou parcial do preço da operação. Assim, quando o Estado‑Membro em causa entenda aplicar essa derrogação, os sujeitos passivos não podem invocar, com base no n.º 1 desse artigo, o direito à redução do valor tributável do IVA (v., neste sentido, Acórdão de 15 de maio de 2014, Almos Agrárkülkereskedelmi, C‑337/13, EU:C:2014:328, n.º 23).
23 Contudo, esta faculdade de derrogação, estritamente limitada aos casos de não pagamento total ou parcial, baseia‑se na ideia de que o não pagamento da contrapartida pode, em determinadas circunstâncias e em virtude da situação jurídica existente no Estado‑Membro em causa, ser difícil de verificar ou ser meramente transitório (Acórdão de 22 de fevereiro de 2018, T‑2, C‑396/16, EU:C:2018:109, n.º 37 e jurisprudência referida).
24 Assim, a referida faculdade de derrogação apenas visa permitir aos Estados‑Membros combater a incerteza associada à cobrança dos montantes devidos e não regula a questão de saber se a redução do valor tributável do IVA pode não ser feita em caso de não pagamento definitivo (Despacho de 24 de outubro de 2019, Porr Építési Kft., C‑292/19, não publicado, EU:C:2019:901, n.º 22 e jurisprudência referida).
25 Com efeito, admitir a possibilidade de, nesse caso, os Estados‑Membros excluírem qualquer redução do valor tributável do IVA seria contrário ao princípio da neutralidade do IVA, do qual resulta, designadamente, que, na sua qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado, o empresário deve ficar totalmente aliviado do peso do imposto devido ou pago no âmbito das suas atividades económicas sujeitas ao IVA (Despacho de 24 de outubro de 2019, Porr Építési Kft., C‑292/19, não publicado, EU:C:2019:901, n.º 23 e jurisprudência referida).”.
Conclui, o mesmo acórdão, que:
“26 O Tribunal de Justiça declarou, a este respeito, que uma situação caracterizada pela redução definitiva das obrigações do devedor para com os seus credores não devia ser qualificada de «não pagamento», no sentido do artigo 90.º, n.º 2, da Diretiva IVA (Despacho de 24 de outubro de 2019, Porr Építési Kft., C‑292/19, não publicado, EU:C:2019:901, n.º 25 e jurisprudência referida).
27 Assim, nesse caso, os Estados‑Membros devem permitir a redução do valor tributável do IVA se o sujeito passivo provar que o crédito que detém sobre o seu devedor é definitivamente incobrável (Despacho de 24 de outubro de 2019, Porr Építési Kft., C‑292/19, não publicado, EU:C:2019:901, n.º 29).”
Também no Acórdão proferido no processo C‑335/19[5], o Tribunal de Justiça desenvolve as ideias anteriormente afirmadas, referindo, para além do mais, que:
“30 Em particular, embora seja justificado que os Estados‑Membros possam combater a incerteza quanto ao não pagamento de uma fatura ou ao caráter definitivo deste, tal faculdade de derrogação não pode ser alargada para além dessa incerteza, designadamente à questão de saber se a redução do valor tributável pode não ser efetuada em caso de não pagamento (Acórdão de 8 de maio de 2019, A‑PACK CZ, C‑127/18, EU:C:2019:377, n.º 21 e jurisprudência referida).
31 Além disso, admitir a possibilidade de os Estados‑Membros excluírem qualquer redução do valor tributável do IVA seria contrário ao princípio da neutralidade do IVA, do qual resulta, designadamente, que, na sua qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado, o empresário deve ficar totalmente desonerado do encargo do imposto devido ou pago no âmbito das suas atividades económicas sujeitas ao IVA (Acórdão de 8 de maio de 2019, A‑PACK CZ, C‑127/18, EU:C:2019:377, n.º 22 e jurisprudência referida).”.
Neste aresto, e referindo-se à situação de insolvência, o Tribunal admite que se possa ter por definitivo o não pagamento do preço ainda antes da declaração daquela, referindo que:
“48 Ora, não se pode deixar de observar que a incerteza ligada ao caráter definitivo do não pagamento pode igualmente ser tida em conta ao conceder a redução do valor tributável do IVA quando o credor demonstra, antes do termo do processo de insolvência ou de liquidação, uma probabilidade razoável de que a dívida não será paga, mesmo que esse valor tributável seja reavaliado em alta no caso de o pagamento ser, contudo, efetuado. Incumbe assim às autoridades nacionais determinar, respeitando o princípio da proporcionalidade e sob controlo judicial, quais as provas de uma provável duração prolongada do não pagamento a apresentar pelo credor, em função das especificidades do direito nacional aplicável. Essa modalidade seria igualmente eficaz para alcançar o objetivo visado, sendo menos restritiva para o credor, que assegura o pré‑financiamento do IVA, cobrando‑o por conta do Estado (v., por analogia, Acórdão de 23 de novembro de 2017, Di Maura, C‑246/16, EU:C:2017:887, n.º 27).”.
Acrescentando, ainda, em termos que poderão colher no presente caso, que:
“50 A observação feita no n.º 48 do presente acórdão é válida a fortiori no âmbito de processos de insolvência ou de liquidação, nos quais a certeza do caráter definitivamente incobrável do crédito só pode ser adquirida, em princípio, no termo de um longo período. Esse prazo pode, em qualquer caso, ter como consequência que os empresários sujeitos a essa legislação devem suportar, quando são confrontados com o não pagamento de uma fatura, uma desvantagem de tesouraria relativamente aos seus concorrentes de outros Estados‑Membros, que é manifestamente suscetível de prejudicar o objetivo de harmonização fiscal prosseguido pela Diretiva 2006/112 (v., por analogia, Acórdão de 23 de novembro de 2017, Di Maura, C‑246/16, EU:C:2017:887, n.º 28).”[6].
Em suma, resulta da jurisprudência que se vem de analisar que:
- A possibilidade de derrogação a que se refere o n.º 2 do art.º 90.º da Directiva, se refere a situações de simples não pagamento, total ou parcial do preço, e não a situações que indicam, com um razoável grau de probabilidade, uma incobrabilidade definitiva;
- O n.º 1 do mesmo artigo 90.º obriga os Estados-Membros à redução do valor tributável do IVA, no caso de se confirmar o não pagamento definitivo da totalidade ou parte do preço;
- As derrogações ao art.º 90.º permitidas aos Estados-Membros, estão funcionalizadas a combater a incerteza quanto ao não pagamento de uma factura ou ao caráter definitivo deste;
- Os Estados‑Membros devem permitir a redução do valor tributável do IVA se o sujeito passivo provar que o crédito que detém sobre o seu devedor é definitivamente incobrável.
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Compreendido o sentido das normas comunitárias tal como interpretadas pelo Tribunal de Justiça, cumpre então aferir da possibilidade de o artigo 90.º, n.º 1, da Directiva poder ser objecto de aplicação directa, tal como pretendido pela Requerente.
Também esta questão tem já resposta cabal pelo TJUE, que, no supra-citado processo C‑337/13, esclareceu que:
“30 O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, assim, em primeiro lugar, se o artigo 90.°, n.° 1, da diretiva IVA preenche as condições para produzir efeito direto relativamente aos sujeitos passivos.
31 Importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, em todos os casos em que, atento o seu conteúdo, as disposições de uma diretiva sejam incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar contra o Estado perante os órgãos jurisdicionais nacionais, quer quando este não tenha feito a sua transposição para o direito nacional nos prazos previstos na diretiva quer quando tenha feito uma transposição incorreta (v. acórdãos Pfeiffer e o., C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.° 103, e Association de médiation sociale, C‑176/12, EU:C:2014:2, n.° 31).
32 Uma disposição de direito da União é incondicional quando prevê uma obrigação que não é acompanhada de condições nem subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à intervenção de qualquer ato das instituições da União ou dos Estados‑Membros (v., neste sentido, acórdão Pohl‑Boskamp, C‑317/05, EU:C:2006:684, n.° 41).
33 Neste caso, o artigo 90.°, n.° 1, da diretiva IVA dispõe que, nas situações aí previstas, o valor tributável é reduzido correspondentemente, nas condições fixadas pelos Estados‑Membros.
34 Embora este artigo deixe aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação para fixarem as medidas necessárias para determinar o valor da redução, essa circunstância não afeta o caráter preciso e incondicional da obrigação de admitir a redução do valor tributável nos casos previstos no referido artigo. Este reúne, por conseguinte, as condições para produzir efeito direto (v., por analogia, acórdão Association de médiation sociale, EU:C:2014:2, n.° 33).
35 Consequentemente, (...) os sujeitos passivos podem invocar o artigo 90.°, n.° 1, da diretiva IVA contra o Estado perante os tribunais nacionais para obter a redução do seu valor tributável do IVA”.
Conclui-se, assim, que o artigo 90.º, n.º 1, da directiva é susceptivel, no caso, de aplicação directa.
Tal aplicação, não prejudica, obviamente, o cumprimento das medidas necessárias para a AT fiscalizar o não pagamento definitivo da totalidade ou parte do preço, e, designadamente, a previsão do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA aplicável.
No caso, todavia, estamos perante uma correcção oficiosa da AT, verificando-se que na fundamentação das liquidações objecto da presente acção arbitral não é feita qualquer menção relativamente ao incumprimento de tal preceito.
Daí deverá inferir-se, em princípio, que não a AT não verificou qualquer incumprimento a esse nível.
Não obstante, e mesmo que assim não se entendesse, o certo é que o STA tem reiteradamente afirmado que:
“I - No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial previsto no art. 99.º e segs. do CPPT, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori.
II - Assim, não pode a AT, em sede de recurso jurisdicional, pretender que se aprecie a legalidade da correcção que esteve na base da liquidação impugnada à luz de outros fundamentos senão aqueles que constam da declaração fundamentadora que oportunamente externou”[7].
Daí que não se fundando as correcções ora sindicadas no incumprimento da norma do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA aplicável, não poderia, em caso algum, o Tribunal confirmar as mesmas com base em tal fundamento.
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Descendo mais ao caso concreto, e conforme ab initio se expôs, no caso, não se tem por controverso que os valores corrigidos pela AT, não foram recebidos pela Requerente.
Não se tem por controverso, igualmente, que os destinatários das facturas que mencionam o imposto liquidado pela AT, estavam, no exercício de 2016, em liquidação.
Neste contexto, e tendo presente tudo quanto previamente se expôs, julga-se que, por aplicação directa do art.º 90.º, n.º 1, da Directiva, haverá que reconhecer o direito da Requerente à redução do preço das operações em causa, concluindo-se pela ilegalidade das correcções operadas pela AT, e subsequentes liquidações objecto da presente acção arbitral, que deverão, consequentemente, ser anuladas, procedendo integralmente o pedido e ficando prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas pela Requerente.
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No seu Requerimento inicial, a Requerente sugeriu a possibilidade de reenvio prejudicial, sugestão essa que foi corroborada pela Requerida, na sua Resposta.
No entanto, e conforme resulta do excurso jurisprudencial previamente encetado, tem-se por clara a leitura das normas de direito comunitário aplicáveis ao caso, não se justificando qualquer reenvio.
Acresce que, conforme o Tribunal de Justiça tem afirmado claramente, é aos tribunais nacionais que incumbe verificar se a legislação nacional abrange todas as situações em que, de acordo com o n.° 1 do artigo 90.º da Directiva, o sujeito passivo não receba, depois de efectuada uma transacção, uma parte ou a totalidade da contrapartida (processo C‑337/13), bem como se as formalidades a cumprir pelos sujeitos passivos perante as autoridades fiscais, para o exercício do direito a uma redução do valor tributável do IVA, se limitam às que permitem justificar que, depois de efectuada a transacção, não receberão, definitivamente, uma parte ou a totalidade da contraprestação (processo C‑146/19).
Assim, e face ao exposto, não se procede ao reenvio prejudicial.
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Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso, o erro que afecta as liquidações anuladas é de considerar imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do artigo 43.º/2 da LGT, que, por sua iniciativa, os praticou sem suporte legal.
Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do acto anulado e, ainda, a ser indemnizada do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data daquele pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
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A Requerente formulou, ainda, o pedido acessório de ser indemnizada pela prestação de garantia que apresentou para suster os processos de execução fiscal.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito do pedido de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT].
Embora as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT utilizem a expressão declaração de ilegalidade, para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, é entendimento pacífico e corrente que se enquadram nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que melhor se adequa com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, e onde se proclama, como primeira directriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
No caso em apreço, é manifesto que a ilegalidade dos actos de liquidação é imputável à Administração Tributária, que, por sua iniciativa, os praticou sem suporte legal.
Tem, por isso, a Requerente direito a indemnização pela garantia prestada, nos termos do artigo 53.º da LGT.
No entanto, não foram alegados nem provados os encargos que a Requerente suportou para prestar a garantia, pelo que é inviável fixar aqui a indemnização a que aquela tem direito. Tal poderá ser concretizado, se necessário, em execução da presente decisão.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Não proceder ao reenvio prejudicial;
b) Anular as liquidações objecto da presente acção arbitral, bem como as decisões de indeferimento das reclamações graciosas que as tiveram como objecto;
c) Condenar a AT no pagamento de indemnização pela prestação de garantia indevida, bem como na devolução do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, tudo nos termos acima indicados;
d) Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 405.597,33, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 6.732,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa
11 de Janeiro de 2021
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Fernando Rocha Andrade – não assina por justo impedimento de ordem pessoal – a sanar nos termo do art.º 615.º/2 do CPC)
O Árbitro Vogal
(Alexandre Andrade)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.
[7] Acórdão de 28-10-2020, proferido no processo 02887/13.8BEPRT.