DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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Requerente
A Requerente é A... LDA., com sede em Rua ..., n.º ..., ..., ...-... SACAVÉM, e número único de pessoa coletiva e de identificação fiscal ...,
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Requerida
Autoridade Tributária (doravante também apenas AT) representada pela dr.ª B... e pela dr.ª C...
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Tramitação
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A Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral a 21 de abril de 2021, que foi aceite no dia imediato;
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Nem a Requerente nem a Requerida designaram árbitro, pelo que o Tribunal foi constituído por despacho do Presidente do CAAD de 29 de Junho de 2021, que designou o coletivo signatário, tendo todos os membros aceite a designação em tempo oportuno;
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A Requerida apresentou a sua resposta em 17 de setembro de 2021 e juntou o processo administrativo (PA) na mesma data;
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As testemunhas foram ouvidas no dia 3 de Novembro de 2021.
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A Requerente apresentou as suas alegações em 15 de Novembro de 2021.
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A Requerida apresentou as suas alegações em 25 de Novembro de 2021.
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Pedido
A Requerente veio pedir a declaração de anulação do ato tributário de liquidação adicional de IVA estruturado pela Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira sob o n.º ..., no valor de € 74.857,66, devendo em consequência ser restituído à Requerente o valor que indevidamente pagou a esse título, acrescido de juros indemnizatórios que se mostram devidos nos termos peticionados, com todas as consequências legais.
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Posição das partes
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Da Requerente
A Requerente defende a sua posição com base nos seguintes argumentos:
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A liquidação adicional ora contestada resulta de erro dos Serviços de Inspeção da Requerida, porque corrigiu a regularização em causa exclusivamente na preterição de um suposto requisito formal não previsto na lei – designadamente uma hipotética «sentença de verificação e graduação de créditos»;
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O CAAD já se pronunciou num caso nas exatas circunstâncias, de facto e direito agora em causa, precisamente relativo a créditos das mesmas datas e sobre o mesmo devedor insolvente D..., S.A.’ (anteriormente denominada ‘E... S.A.’), cujos créditos foram considerados incobráveis para efeitos de regularização de IVA - em acórdão proferido, por unanimidade do colectivo de árbitros, no processo 12/2019-T;
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é, aliás, jurisprudência constante do CAAD, pelo menos desde o Acórdão Arbitral de 25.05.2018, proferido no processo n.º 635/2017-T, em que estavam em causa: i) créditos vencidos antes de 1.1.2013; e trânsito em julgado da sentença que ditou a insolvência em Dezembro de 2014 (tal como sucedeu no caso presente);
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nas circunstâncias do caso concreto, a incobrabilidade dos créditos em causa ocorreu antes da entrada em vigor da lei que previa tal requisito;
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Importa referir que, tal como no caso presente, nos citados processos arbitrais n.ºs 635/2017-T e 12/2019-T, a Requerida não questionava “a observância, pela Requerente, da generalidade dos requisitos essenciais à regularização do IVA, designadamente tratar-se de imposto liquidado em créditos vencidos e não pagos, relativos a devedor declarado insolvente por sentença transitada em julgado, certificados por ROC e objeto da devida comunicação ao devedor, pelo que “a única condição que a Requerida não considera satisfeita e que subjaz às liquidações de IVA e juros contestadas é a do trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos” (destacado da Requerente) – tal como sucede no caso presente;
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Os Serviços de Inspeção elegeram como critério ou “facto relevante” a sentença de verificação e graduação de créditos, incorrendo assim numa série de contradições: “(i) – nessa determinação factual, à luz da lei vigente ao tempo dos factos, já que a incobrabilidade dos créditos em causa se verificou com a sentença transitada em julgado que decretou a insolvência em Novembro de 2014, ao abrigo do artigo 78.º do Código do IVA – que aliás apenas viria a acolher o critério ou “facto relevante” invocado pela AT posteriormente, na redação da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, com entrada em vigor em 1.1.2015, e não ao abrigo do artigo 78.º-A do Código do IVA; (ii) – na invocação do próprio Ofício circulado 30161, que apenas se refere à sentença de verificação e graduação de créditos no seu ponto III – “NOVO REGIME DOS CRÉDITOS CONSIDERADOS DE COBRANÇA DUVIDOSA E INCOBRÁVEIS – Artigos 78°-A a 78°-D”, ou seja, no âmbito de créditos vencidos após 1.1.2013. (iii) – e por fim numa confusão ininteligível entre legislação e o ofício interno da AT, como parece resultar da pretensão “como não se encontrava prevista no CIRE a homologação de nenhuma das deliberações possíveis no quadro do seu artigo 156º (e, em consequência, a 2ª parte da alínea b)” necessitava de clarificação por parte do legislador, para as insolvências de carácter pleno), veio o ‘Ofício Circulado nº 30161/2014, de 08- 08-2014’ estabelecer o tal critério da sentença de verificação e graduação de créditos, ou seja: a atuação da Requerida assentou em critérios “legais” estabelecidos pela própria;
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a fórmula usada pela AT é inaplicável a créditos vencidos antes de 1.1.2013, por nada ter a ver com a lei (que em parte alguma se referia a qualquer sentença de verificação e graduação de créditos) e que no caso concreto, face ao momento da incobrabilidade dos créditos em causa, deve ter-se por inaplicável a qualquer das situações em apreço. A Requerente não compreende assim minimamente a estruturação da liquidação em crise;
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Os elementos existentes nos autos confirmam a incobrabilidade dos créditos em causa, nos termos seguintes: i) O crédito da Requerente foi reconhecido pelo Administrador da Insolvência, nos termos do art.º 129.º do CIRE, não tendo a Requerente recebido até à data qualquer valor (cf. certidão judicial anexa como anexo 2 ao RIT, doc. n.º 2 cit.) ; ii) O crédito da Requerente não foi impugnado nos termos do artigo 130.º do CIRE, por qualquer interessado; iii) A sentença de verificação e graduação dos créditos, prevista no artigo 140.º do CIRE, consubstancia, no que ao crédito da Requerente respeita, uma mera formalidade desprovida de relevância material, já que, conforme dispõe o artigo 130.º, n.º 3, do CIRE, se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo Administrador da Insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista;
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Defende a Requerente que a AT cometeu várias violações da lei, a saber:
Erro sobre os pressupostos de aplicação do artigo 78.º e 78.º-A do Código do IVA.
Em relação aos créditos ocorridos até 1 de Janeiro de 2013
Até 31 de Dezembro de 2012, o artigo 78.º, n.º 7, alínea b) do Código do IVA dispunha o seguinte "Artigo 78.º Regularizações 1 – (...) 7 – Os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis: a) (...) b) Em processo de insolvência quando a mesma seja decretada."
A Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro (LOE2013), alterou o citado preceito, que passou a ter a seguinte redacção, que vigorou 1 de Janeiro de 2013: "Artigo 78.º Regularizações 1 – (...) 7 – Os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis: a) (...) b) Em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado ou após a homologação da deliberação prevista no artigo 156.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;"
O artigo 198.º da Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro estabeleceu, porém, o seguinte regime transitório: - o disposto nos n.ºs 7 a 12, 16 e 17 do artigo 78.º do Código do IVA aplica-se apenas aos créditos vencidos antes de 1 de Janeiro de 2013 (cf. n.º 6); - o disposto nos artigos 78.º-A a 78.º-D, aditados ao Código do IVA aplica-se aos créditos vencidos após a entrada em vigor da mesma lei, i.e. após 1.1.2013.
A evolução do regime das regularizações de IVA respeitante a créditos considerados incobráveis nos termos do artigo 78.º e seguintes do Código do IVA foi analisado, detalhada e aprofundadamente, no já citado Acórdão Arbitral de 25.05.2018, proferido no processo n.º 635/2017-T, perante uma situação de facto que em parte (quanto a créditos vencidos antes de 1.1.2013) é precisamente igual à aqui presente. Nesse aresto, escreveu-se o seguinte: “Em conclusão, à data dos factos relevantes, sejam como tais entendidos o vencimento dos créditos, ou a incobrabilidade dos mesmos (aferida pelo trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência do devedor) a lei vigente não previa que a regularização se efetivasse após a sentença (transitada em julgado) de graduação e verificação de créditos, mas sim, com o decretamento da insolvência, transitado em julgado em dezembro de 2014, ou, no limite, "após a homologação da deliberação prevista no artigo 156.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas".
Verificou-se estarem cumpridos estes pressupostos em maio de 2016, data com referência à qual a regularização de IVA foi exercida pela Requerente, pois, por um lado, nesse momento havia (há muito) transitado em julgado a sentença que declarou a insolvência do devedor, que remonta a 16 de dezembro de 2014” […] Em síntese, em maio de 2016, a Requerente reunia todos os pressupostos constitutivos de que o artigo 78.º, n.º 7, alínea b) do Código do IVA fazia depender o exercício do direito à regularização do IVA a seu favor, pelo que lhe assiste razão, sendo os atos de liquidação de IVA (e, em consequência, os inerentes juros) anuláveis, na íntegra, por vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito.”
Relativamente aos créditos posteriores a 1 de Janeiro de 2013
Defende a Requerente que com estes créditos passa-se rigorosamente o mesmo do que se passa com os anteriores.
Com efeito, em 1 de Janeiro de 2015, data de entrada em vigor da LOE2015, que introduziu o critério de incobrabilidade invocado pela AT no caso (a dita sentença de verificação e graduação de créditos), e não obstante a regularização do IVA de créditos vencidos após 1.1.2013 passar a ser feita nos termos do artigo 78.º-A do Código do IVA – conforme a Requerente fez – a verdade é que a incobrabilidade dos mesmos se verificara já em Dezembro de 2014, com a sentença que decretou a insolvência, aliás transitada em julgado ainda nesse mês de Dezembro de 2014.
A circunstância de o procedimento de regularização dever observar, em relação a créditos vencidos após 1.1.2013, o disposto no artigo 78.º-A do Código do IVA não tem o condão, nem a lei refere o que quer que seja a esse respeito, de reverter a incobrabilidade já verificada em relação a estes créditos – cujo IVA a Requerente poderia ter até regularizado logo em 2014, imediatamente apos a sentença que decretou a insolvência do devedor. Na verdade, a Requerente poderia tê-lo feito antes da entrada em vigor da LOE2015, não fora a condição, exigida pela AT– conquanto que também ilegalmente, como se decidiu no Acórdão do STA de 25 de Junho de 2015 – de que o sujeito passivo estivesse na posse de certidão do respetivo trânsito em julgado, e que a Requerente apenas viria a obter posteriormente (cf. certidão judicial anexa ao RIT, doc. n.º 2).
Neste aresto do STA afirma-se que escreveu-se: “O artigo 78.º do Código do IVA, na redacção aplicável, não impunha – como não impõe – como requisito da regularização de imposto a favor do credor o trânsito em julgado da sentença de reclamação de créditos na qual tenha sido graduado o crédito incobrável reclamado –, como, aliás, também não impõe que a prova do decretamento da insolvência do devedor tenha de ser feita por certidão do Tribunal, como exige a Administração fiscal.”
Dos vícios de forma, por ausência da fundamentação legalmente devida em violação do disposto nos artigos 77.º da LGT e 268.º da CRP em face das disposições relevantes do Código do IVA, violação de normas e princípios fundamentais da ação inspetiva
Defende a Requerente que não se se vislumbra como possa a AT «clarificar» a lei por ofício interno, aliás distorcendo o seu sentido, como acabou por suceder, do mesmo passo que pretendeu fundar a sua atuação na «legislação» sem explicitar a que legislação se refere.
O formalismo invocado pela AT é acima de tudo ilegal, não constando do Código do IVA na redação do artigo 78.º n.º 7 b) aplicável à data dos factos (como aliás hoje não consta, face ao novo regime de regularizações de IVA respeitante a créditos incobráveis - cf. artigo 78.º-A, n.º 4, do Código do IVA, na redação da LOE2018). Além de ser totalmente omisso a este respeito, em parte alguma do Relatório de Inspeção é sequer apontada razão para tal interpretação, nem se compreenderia.
Não pode aceitar-se uma tese segundo a qual os requisitos exigidos pelos Serviços da AT devam ser “equiparados” aos requisitos legais, pois tal tese, além de desprovida de fundamento legal, não tem justificação aceitável. Assim, as apreciações manifestadas em ‘ofícios-circulados’ não podem sobrepor-se à lei a que os contribuintes devem obediência – tal como a AT, que está subordinada ao princípio da legalidade.
Em qualquer caso, sendo certo que tais ofícios em caso algum vinculam os contribuintes, muito menos quando aplicados de forma contrária à lei, a verdade é que o próprio ofício circulado invocado reconhece a inaplicabilidade, aos créditos vencidos antes de 1.1.2013, do requisito invocado pela AT (que acabaria por ser vertido na letra da lei, é certo, mas apenas temporária e inexplicavelmente, como viria a ser reconhecido) – confirmando assim a atuação irrepreensível da Requerente, bem ao contrário do que pretendem as conclusões dos Serviços de Inspeção.
De acordo com o disposto no artigo 268.º, n.º 3 da CRP: «[o]s atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados […] e carecem de fundamentação expressa e acessível, quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos» Fundamentação que é exigida e garantida por lei ordinária, nomeadamente pelo artigo 77.º n.º 1 da LGT que prescreve que «a decisão de procedimento é sempre fundamentada».
Ora, no caso concreto e em rigor, a Administração fiscal alheou-se dos citados imperativos constitucionais e legais ao fundamentar os seus atos de forma incongruente, obscura nos critérios utilizados, absolutamente contraditória com os factos em que se baseia, e meramente conclusiva, não clarificando porque decidiu como decidiu, o que a jurisprudência tem entendido como equivalente a falta da fundamentação.
Na verdade, «é também pacificamente aceite que é equivalente à falta de fundamentação, a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência não esclareçam, concretamente, a motivação do ato por forma a permitir ao seu destinatário a apreensão do iter volitivo e cognoscitivo que determinou a Administração a praticá-lo com o sentido decisório que lhe conferiu» – como desde há muito vem, da vasta jurisprudência do STA sobre o tema (cf. a título de exemplo o acórdão do STA de 19 de Março de 2009, proferido no processo n.º 890/09).
Continua a Requerente, afirmando que, independentemente dos critérios – diferentes dos critérios legais – em que se baseou a AT, a Requerente não foi notificada das concretas razões de facto e de direito, que devem estar expressas em qualquer ato de liquidação de imposto, para a exigência de requisitos inaplicáveis ao caso em apreço, que a AT nunca explicou se aplicou por estar vinculada a circulares, como afirmou, ou à legislação (e qual legislação) como também afirmou, num discurso incongruente e contraditório, como ficou demostrado.
Em segundo lugar, ainda que a AT tivesse baseado a sua atuação na lei, e atendesse às circunstâncias de facto, i.e. às operações concretas – fornecimentos da Requerente não acompanhados de qualquer pagamento que lhes sirva de base tributável – e direito aplicável aos mesmo factos, também nunca poderia considerar a regularização indevida, transformando créditos incobráveis em cobráveis sem a mínima justificação, posto que tal nem corresponde à realidade material, nem tem base legal na redação da norma aplicável aos factos, senão por aplicação da sua versão posterior aos factos, de forma retroativa ou porventura analógica ou ainda interpretativa (o que a AT nunca explicou!... ) e que sempre seriam proibidas, salvo se, no último caso, se a LOE2015 tivesse atribuído carácter interpretativo à alteração do preceito, o que não sucedeu, apesar da improcedente alegação da AT nesse sentido no âmbito dos citados processos n.ºs 635/2017-T e 12/2019-T.
E se dúvidas existissem a este respeito, bastaria atender ao elemento sistemático e ao teor inequívoco da citada disposição transitória no âmbito do Código do IVA (artigo 198.º da Lei n.º 66-B/2012, n.º 1 a contrario (sublinhado da Requerente): «A redação da alínea c) do n.º 4 do artigo 88.º do Código do IVA, dada pela presente lei, tem natureza interpretativa»).
Em qualquer caso, ao prever expressamente a possibilidade de a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária, a LGT exige (cf. n.º 3 do art.º 77.º) sempre que o atos tributários se fundem nas conclusões de Relatório de Inspeção, que o próprio Relatório contenha – e no caso não contém, como se demonstrou – a respetiva fundamentação, clara, expressa e suficiente, sob pena de a sua falta contaminar os atos subsequentes praticados com base naquelas conclusões, maxime os atos de liquidação de imposto.
Violação de normas e princípios de ação inspetiva
Decorre diretamente da Lei que «o procedimento de inspeção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adotar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objetivo» (cf. artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 413/98 de 31 de Dezembro, doravante RCPITA). Ora, alega a Requerente, a AT agiu sempre à margem da lei, e em violação das mais elementares normas e princípios a que devia respeito: violação das normas e dos princípios da inspeção, da colaboração, da verdade material, da fundamentação dos atos tributários e da participação na decisão.
Violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal
Na tentativa de impor requisitos que apenas passaram a constar da lei em momento posterior ao dos factos tributários em causa nos autos, relativos a créditos vencidos antes de 1.1.2013, a AT ignorou por completo o regime expressamente estabelecido para estes casos, incorrendo em violação do regime transitório previsto no artigo 198.º, n.ºs 6 e 7 da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (LOE2013), aplicando retroactivamente as disposições. Violou, assim, segundo a Requerente, o disposto no artigo 12.º, n.º 1 da LGT e o princípio da não retroatividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Errónea quantificação da matéria coletável
No caso dos autos, não pode deixar de atender-se ao disposto no artigo 100.º do CPPT, que determina que «[s]empre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado».
Violação do disposto no artigo 16.º do Código do IVA – regras de determinação do valor tributável
Dispõe o artigo 16.º, n.º 1 do Código do IVA que “Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 10, o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro” – o que está demonstrado não ter existido no caso das liquidação contestadas.
Ora, se a lei fiscal estabelece os requisitos da regularização do imposto que não corresponda a uma entrega de bens a título oneroso, por via da qualificação da contraprestação como incobrável nos termos da lei, esta qualificação não pode ser transformada em contraprestação “cobrável” por ‘ofício circulado’ como a AT pretende in casu a todo o custo… “seja qualquer for a lei aplicável” na sua própria expressão.
Com a sua atuação, a AT impôs oficiosamente à Requerente a liquidação de IVA sobre operações que se vieram a revelar sem base tributável (cf. artigo 16.º cit.) ao desconsiderar a regularização que se integra no da dedução a favor do sujeito passivo. Acabando, deste modo, por consumar atos de liquidação em ofensa do princípio do direito à dedução – erigido a essa categoria como verdadeiro princípio garante do princípio da neutralidade na génese deste imposto de matriz comunitária, e em que se inserem as regularizações de IVA comprovadamente liquidado em excesso.
Confirmando a inteira conformidade legal do procedimento seguido pela Requerente e a ilegalidade da correções fundadas em meras circulares, convoca a Requerente o julgado no Acórdão de 25 de Junho de 2015 do Supremo Tribunal Administrativo: “O artigo 78.º do Código do IVA, na redacção aplicável, não impunha – como não impõe – como requisito da regularização de imposto a favor do credor o trânsito em julgado da sentença de reclamação de créditos na qual tenha sido graduado o crédito incobrável reclamado –, como, aliás, também não impõe que a prova do decretamento da insolvência do devedor tenha de ser feita por certidão do Tribunal, como exige a Administração fiscal.”
Além disso, decorre expressamente do regime de regularizações previsto no artigo 78.º e seguintes do Código do IVA que os créditos incobráveis para esse efeito não têm necessariamente de assentar numa incobrabilidade absoluta, posto que o próprio regime prevê que as regularizações sejam revertidas na medida em que de tais créditos vierem a ser total ou parcialmente satisfeitos (cf. artigo 78.º, n.º 12 – “Nos casos em que se verificar a recuperação dos créditos, total ou parcialmente, os sujeitos passivos são obrigados a proceder à entrega do imposto, no período em que se verificar o seu recebimento, sem observância, neste caso, do prazo previsto no n.º 1 do artigo 94.º”).
Violação do direito da U.E. e das normas que consagram o direito à dedução
O artigo 73.° da Diretiva IVA determina que: «Nas entregas de bens e prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.° a 77.°, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente relacionadas com o preço de tais operações.»
Nos termos do artigo 90.° da mesma Diretiva: «1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados‑Membros. 2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados‑Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.»
Ora, Portugal não derrogou a referida disposição do n.º 1 do artigo 90.º, tendo pelo contrário estabelecido as condições de regularização, incluindo os mecanismos de controlo que contam hoje dos artigos 78.º e seguintes do Código do IVA.
A este propósito a Requerente convoca o Acórdão do Tribunal de Justiça de 23 de Novembro de 2017, proferido no processo C‑246/16, que começa por sublinhar que “a Administração Fiscal não pode cobrar um montante de IVA superior ao que foi recebido pelo sujeito passivo” (no caso, a Requerente nada recebeu, impondo-se a regularização total do IVA que entregou em excesso ao Estado), tornando hoje absolutamente claro que “um Estado‑Membro não pode fazer depender a redução da matéria coletável do IVA do caráter infrutífero de um processo de execução coletiva, quando esse processo for suscetível de durar mais de dez anos.
Mais se afirma neste aresto que “admitir a possibilidade de os Estados‑Membros excluírem qualquer redução da matéria coletável do IVA seria contrário ao princípio da neutralidade do IVA, do qual resulta, designadamente, que, na sua qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado, o empresário deve ficar totalmente aliviado do peso do imposto devido ou pago no âmbito das suas atividades económicas sujeitas ao IVA. “ E relativamente a matéria de regularizações por via de redução do valor tributável diz: “em conformidade com o princípio da proporcionalidade, que faz parte dos princípios gerais do direito da União, os meios empregados para aplicação da Sexta Diretiva devem ser aptos a realizar os objetivos visados por esta legislação e não devem ir para além do que é necessário para os alcançar»
Deste modo, ao suprimirem o direito à dedução do IVA com base numa pretensa «dedução indevida de IVA» (cit.) por suposta omissão de alegados «requisitos» constantes de circulares administrativas internas, em circunstâncias em que está assegurada a entrega do imposto e o controle da sua regularização, os atos de liquidação ora contestados violaram as normas reguladoras do exercício do direito à dedução consagradas na Diretiva 2006/112/CE, tal como vêm sendo interpretadas pela jurisprudência constante e reiterada do TJUE.
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Dos juros indemnizatórios a favor do sujeito passivo
A Requerente pede que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, com fundamento no disposto artigo 43.º, n.º 1, da LGT. Tais juros indemnizatórios devem ser contados, nos termos do artigo 61.º, n.º 5, do CPPT, desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do seu integral reembolso.
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Da Requerida
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Verificando-se que, uma parte dos créditos se venceu antes de 1 de janeiro de 2013 e a outra parte se venceu depois de 1 de janeiro de 2013, a 1.ª parte será regida pelo art.º 78º do CIVA, e a 2ª parte pelo art.º 78-A do mesmo código. No caso dos créditos cujo vencimento ocorreu até 2012/12/31 e, tratando-se de um processo de insolvência, será de aplicar a al. b) do n.º 7 do art.º 78º do CIVA.
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A possibilidade de regularização prevista naquela al. b) do n.º7 do art.º 78º vigorou de 1 de janeiro de 2013 a 31 de dezembro de 2014, passando a fazer depender do tipo de declaração de insolvência. Para as insolvências decretadas de caráter limitado (por inexistência ou insuficiência da massa insolvente) o IVA poderia ser regularizado no momento em que a respetiva sentença com caráter limitado tivesse transitado em julgado, para todos os créditos em dívida e, desde que estivessem na posse da correspondente certidão judicial, de onde constassem estes elementos, bem como a data do respetivo trânsito. Neste tipo de processos não há sequer lugar à reclamação de créditos.
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Para as insolvências plenas, apenas se poderia regularizar o IVA dos créditos considerados incobráveis após a homologação da deliberação prevista no art.° 156.° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). Nesta deliberação, a Assembleia de Credores pode deliberar sobre o encerramento ou manutenção em atividade (por plano de recuperação ou por liquidação da massa insolvente). Em simultâneo, foram aditados os artigos 78.°-A a 78.°-D do Código do IVA que instituíram uma disciplina inovadora e agilizada de recuperação do IVA relativo a créditos de cobrança duvidosa ou incobráveis.
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O novo regime aplicável (somente) a créditos vencidos após 1 de janeiro de 2013, também manteve a possibilidade de regularização do IVA em créditos sobre (devedores) insolventes se, em momento prévio ao decurso dos prazos de mora exigidos para a regularização dos créditos considerados de cobrança duvidosa, fosse decretada a insolvência de caráter limitado ou após a "homologação da deliberação prevista no artigo 155.° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 53/2004, de 18 de março" (art.° 78.° A, n.° 4, alínea b) do Código do IVA), em condições similares às que vigoravam para os créditos vencidos antes de 1 de janeiro de 2013 e, portanto, regidos pelo art.° 78.°, n.° 7, alínea b) do mesmo Código. Assim, para as insolvências de caráter pleno, a regularização do IVA passou a ter lugar, seja pelo artigo 78.°, n.° 7, alínea b), seja pelo artigo 78.° A, n.° 4, alínea b), ambos do Código do IVA, por remissão para um momento específico: "após" a homologação da deliberação prevista no artigo 156.° do CIRE, pelo que, naquele tipo de insolvências apenas se pode regularizar o IVA dos créditos considerados incobráveis no âmbito da deliberação da Assembleia de Credores (por plano de recuperação ou por liquidação da massa insolvente).
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De acordo, ainda, com o entendimento da AT - Autoridade Tributária e Aduaneira (Ofício-Circulado n° 30161/2014, de 08/07), tal regularização apenas poderia ser sido efetuada no momento do trânsito em julgado da sentença da verificação e graduação de créditos. A partir de 1 de janeiro de 2015, existe ainda uma distinção na parte finai da alínea b) do n.º 4 do art.º 78.º-A, remetendo o momento da regularização do IVA considerado incobrável em insolvências plenas, para o momento da homologação da deliberação do plano de recuperação na Assembleia de Credores, ou se for deliberada a liquidação da massa insolvente para o trânsito em julgado da sentença da verificação e graduação de créditos. Com o OE 2018, nos processos de insolvência, a regularização do IVA passa a ser efetuada nos seguintes momentos:
• Se o processo determinar a insolvência do devedor: - Quando a sentença de insolvência for decretada de caráter limitado;
• Quando for determinado o encerramento do processo por insuficiência de bens, ao abrigo da alínea d) do n.º 1 do artigo 230.º e do artigo 232.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
•Ou após a realização do rateio final, do qual resulte o não pagamento definitivo do crédito;
• Se o processo determinar a recuperação do devedor:
• Em processo de insolvência ou em processo especial de revitalização (PER), quando seja proferida sentença de homologação do plano de insolvência ou do plano de recuperação que preveja o não pagamento definitivo do crédito.
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Para a AT, face às sucessivas alterações legislativas no âmbito do IVA, torna-se necessário saber em que momento deve ser considerada a data da incobrabilidade convocada para a verificação das condições e momentos da regularização do IVA: se a respeitante ao momento em que foi decretada a insolvência ou se a vigente à data em que o sujeito passivo reportou a regularização do IVA a seu favor.
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A AT defende que a data é a do trânsito em julgado da sentença de insolvência do devedor (16/12/2014), tendo a incobrabilidade ocorrido a partir de 1 de janeiro de 2013.
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Apenas se poderia efetuar a regularização do IVA se estivéssemos perante uma insolvência de caráter limitado, ou seja, se a empresa insolvente já não possuísse bens ou os mesmos se tornassem insuficientes. Contudo, como estamos perante uma insolvência de caráter pleno que, relativamente à lei em vigor à data da incobrabilidade dos créditos, tanto para os créditos vencidos antes de 2013/01/01 (al. b) do n.º 7 do art.º 78.º do CIVA), como para os créditos vencidos depois de 2013/01/01 (al. b) do n.º 4 do art.º 78.º A) contém a mesma redação, o momento para a regularização do imposto reporta-se ao momento da homologação da deliberação prevista no art.º 156.º do CIRE.
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Porém, acrescenta a AT, que não tendo sido apresentado pela Requerente qualquer documento justificativo da deliberação decorrente da assembleia de credores prevista no art.º 156.º do CIRE, nem constar no Portal qualquer publicação respeitante às fases processuais seguintes, inexiste o direito ao reembolso do IVA pela regularização efetuada, tendo a mesma tido indeferimento pela sua totalidade, ou seja, pelo montante de € 74.857,68. 31.
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A possibilidade de efetuar a regularização com o decretamento da insolvência já não existia na Lei à data da incobrabilidade dos créditos – essa possibilidade vigorou até 2012/12/31. Assim, o momento específico para efetuar a regularização é “após a homologação da deliberação prevista no artigo 156.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)”.
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A AT baseia a sua posição não apenas na interpretação que faz da lei, nomeadamente da que é feita através do Ofício-Circulado n° 30161/2014, de 08/07, mas também no facto de constar do Portal Citius, um anúncio efetuado em 2014/11/25, que fixa o prazo da reclamação de créditos em 30 dias e designa o dia 2015/01/07, às 10h00, para a realização da reunião de assembleia de credores de apreciação do relatório, prevista no referido artigo 156.º do CIRE. Nestes termos, não pode ser aceite que o momento para a regularização do imposto seja a data do decretamento da insolvência – possibilidade esta que vigorou até 2012/12/31 -, pois se foi marcada a reunião da assembleia de credores para janeiro de 2015, tal significava que existia património para satisfazer as dívidas da massa insolvente.
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Este entendimento obedece ao princípio que o legislador tem incutido com as sucessivas alterações àquelas disposições legais. Ou seja, como podemos constatar, a possibilidade de regularizações numa insolvência de caráter pleno, passou da data do decretamento da insolvência (até dezembro de 2012) para, atualmente, apenas ocorrer após a realização do rateio final, do qual resulte o não pagamento definitivo do crédito.
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Finalmente, conclui a AT que o que está em causa nos autos é a regularização do IVA que porventura não terá sido pago pela insolvente. A Requerente pretende com esta afirmação, a par com a regularização do IVA “regularizar” também a base tributável inerente? Os serviços faturados foram ou não foram prestados? Mais uma vez, a Requerente apresenta um discurso incompreensível e sem ligação com os factos ocorridos
II- Saneamento
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As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas.
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O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer o pedido.
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O processo não enferma de nulidades;
III – Fundamentação
Matéria de facto
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Factos provados
Com base nos documentos juntos pelas partes e nas declarações das testemunhas ouvidas, o Tribunal considera provados os seguintes factos:
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A Requerente iniciou a atividade em 2005/07/05, encontrando-se registada para o exercício da atividade de Out. Act. Limpeza Edifícios e Equipamentos Industriais - código de CAE 81220.
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Em sede de IVA encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral e, em sede de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC), no regime geral de tributação, verificando-se o cumprimento das suas obrigações tributárias, tanto em sede de IVA como em sede de IRC.
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Em 19 de Agosto de 2020 a Requerente procedeu à entrega da declaração periódica do IVA de 2020/06T, em que regularizou o imposto em causa, inscrevendo no campo 49 o valor de €74.857,66 respeitantes a créditos considerados incobráveis.
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A Requerente foi sujeita a uma ação inspetiva levada a cabo pelos Serviços de Inspeção Tributária da Requerida, ao abrigo da «ordem de serviço» n.º 0I2020... .
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No decurso daquela ação inspetiva, foi imputada à Requerente a dedução de imposto, alegadamente indevida, com respeito a regularizações de IVA efetuadas em virtude da incobrabilidade de créditos detidos sobre a sociedade ‘D..., S.A.’.
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As faturas incobráveis foram emitidas pela prestação de serviços de limpeza e fornecimento de produtos de higiene e limpeza entre 24 de agosto de 2012 e 24 de maio de 2013.
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As faturas venceram-se entre outubro de 2012 e julho de 2013.
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A referida sociedade D... SA foi declarada insolvente por sentença de 18.11.2014 – transitada em julgado em 16.12.2014.
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A Requerente reclamou os créditos junto do Administrador de Insolvência tendo os mesmos sido devidamente reconhecidos no Processo .../14...TYLSB, que transitou em julgado em 2014/12/16, no montante total de € 457.884,57: - Valor total faturas S/IVA: € 325.468,16; - Valor total IVA: € 74.857,68; - Incluindo € 57.558,73 respeitante a juros de mora reclamados junto da insolvência.
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No Portal Citius (Publicidade dos processos especiais de revitalização, dos processos especiais para acordo de pagamento, dos processos extraordinários de viabilização de empresas e dos processos de insolvência) consta, respeitante à empresa insolvente, o anúncio efetuado em 2014/11/25, que fixa o prazo da reclamação de créditos em 30 dias e designa o dia 2015/01/07, para a realização da reunião de assembleia de credores de apreciação do relatório, prevista no referido art.º 156.º do CIRE.
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O crédito da Requerente foi reconhecido pelo Administrador da Insolvência, nos termos do art.º 129.º do CIRE, não tendo a Requerente recebido até à data qualquer valor.
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O valor em dívida colocou em causa a continuação da atividade da Requerente.
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Em 19.08.2020, a Requerente procedeu à entrega da declaração periódica do período de 2020/06T, em que regularizou o imposto em causa, inscrevendo, no campo 40, o valor do € 74.857,66 respeitante a IVA créditos considerados incobráveis, sendo devedora a sociedade D... SA.
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A liquidação contestada foi integralmente cobrada no valor € 74.857,66.
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No âmbito do CAAD, sob o número 12/19-T, foi decidido um litígio em tudo semelhante ao presente, quer de facto, quer de direito.
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Com efeito, no processo identificado no número anterior, a Requerente fez pedido igual ao da ora Requerente, sendo o mesmo o devedor, a sociedade D... SA, e os mesmos os períodos a que se referiam e referem os créditos vencidos, que são uns anteriores outros posteriores a 1 de janeiro de 2013.
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No processo 12/19-T, o Tribunal Arbitral decidiu:
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Julgar totalmente procedente o pedido de declaração de anulação de todas as liquidações de IVA impugnadas;
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Condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir à requerente o montante de imposto e demais importâncias indevidamente pagas, nele se incluindo os juros compensatórios e moratórios, restituição a que acrescerão juros indemnizatórios nos termos nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 43.º e n.º 10 do artigo 35.º da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
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Factos não provados
Com relevância para os autos, a Requerida não provou que se tenha realizado a assembleia de credores cuja convocatória fez juntar.
IV – QUESTÕES DECIDENDAS
A questão principal a decidir refere-se aos pressupostos exigidos pela lei para a regularização de créditos considerados incobráveis em processo de insolvência, consignados no art.º 78º, n.º 7, b) do CIVA, devido às várias alterações de que foi objeto entre 2012 e 2015. Neste contexto, há que determinar se a AT observou os pressupostos que deveria ter respeitado ou se preteriu algum, nomeadamente através da violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal.
Complementarmente, e no caso de o Tribunal reconhecer razão à Requerente, tem de decidir se a mesma tem direito a juros indemnizatórios, como pediu.
V - FUNDAMENTAÇÃO
Os presentes autos integram o segundo pedido de pronúncia efetuado perante o CAAD em que é pedida a declaração de anulação de liquidação oficiosa de IVA por créditos considerados incobráveis, que os Requerentes tentaram regularizar, em que é devedora sociedade D... SA, declarada insolvente por sentença de 18.11.2014, transitada em julgado em 16.12.2014,
O primeiro pedido tramitou sob o n.º 12/2019-T e nele foi decidido, como se viu, reconhecer razão à Requerente.
Já antes havia sido apreciado um pedido de pronúncia muito idêntico ao dos presentes autos e ao do proc. n.º 12/2019-T, que recebeu o n.º 635/2017-T, decidido em 25 de maio de 2018. Também deste processo foi dada razão à Requerente.
Nestes termos, convocar-se-ão os identificados arestos sempre que o Tribunal considere que tal se justifica.
Vejamos então a posição do Tribunal no presente caso
Face aos vários vícios atribuídos pela Requerente ao acto da Requerida impugnado, o Tribunal optou, à semelhança, aliás, do que sucedeu no Proc. do CAAD 12/2019-T, por debruçar-se primeiro sobre as questões suscetíveis de ditarem a anulação do acto, já que se procedentes, tornam desnecessária a pronúncia sobre as demais. Neste mesmo sentido pronunciou-se recentemente o Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 7 de maio de 2020, proferido no âmbito do proc. n.º 141/19OBCLSB (www.dgsi.pt) Compete ao Tribunal Arbitral conhecer de todas as questões que as partes hajam suscitado nos seus articulados tendo em vista o reconhecimento da sua pretensão, sem prejuízo de lhe ser permitido não conhecer de uma questão nas situações em que a sua apreciação esteja já prejudicada pela decisão dada a outra anteriormente decidida.
Atribui a Requerente ao acto impugnado vícios de violação dos pressupostos da lei substantiva, concretamente do Código do IVA e da própria Constituição da República, aqui por desrespeito do princípio da não retroatividade da lei fiscal, consagrado no art.º 103º, n.º 3 e ali, por interpretação incorreta do disposto no artº. 78º., nº. 7, al. b) do CIVA na redação que vigorou até 31/12/2012 e do artº. 78º.-A do CIVA, aditado para vigorar a partir de 1/1/2013.
Para aplicação das normas legais identificadas no parágrafo anterior, a Requerida obedeceu à interpretação que lhes foi dada através do Ofício-Circulado n.º nº. 30161/2014, de 8 de Julho de 2014, situação que remete de imediato para a já muito debatida questão da natureza vinculativa ou não vinculativa para os contribuintes das disposições contidas nas circulares administrativas emanadas da AT.
A questão encontra-se muito bem tratada na decisão do CAAD n.º 12/2019-T, que começa por explicar as razões que levam à desconsideração do aludido ofício circulado. Afirma essa decisão que:
como muito bem já decidiu o STA e constitui corrente unânime, de que se cita o Ac. do STA de 21/6/2017, proferido no Procº. 0364/14, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta, foi decidido que “as orientações administrativas veiculadas sob a forma de circular da Administração Tributária, não se impondo ao juiz senão pelo valor doutrinário que porventura possuam e carecendo de força vinculativa heterónoma para os particulares, não constituem normas que possam ser objecto de declaração de inconstitucionalidade formal”. Como se refere neste acórdão, “o problema da relevância normativa das Circulares da Administração Tributária foi já colocado e apreciado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 583/2009 e 42/14, de 18.11.2009 e de 09.012.2014, respectivamente, tendo aquele Tribunal decidido, com o que concordamos, que as prescrições contidas nas Circulares da Administração Tributária, independentemente da sua irradiação persuasiva na prática dos contribuintes, não constituem normas para efeitos do sistema de controlo de constitucionalidade cometido ao Tribunal Constitucional.
Como se sublinhou naquele primeiro aresto (Acórdão 583/2009) “[…] Esses atos, em que avultam as “circulares”, emanam do poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração. Contêm ordens genéricas de serviço e é por isso e só no respetivo âmbito subjetivo (da relação hierárquica) que têm observância assegurada. Incorporam diretrizes de ação futura, transmitidas por escrito a todos os subalternos da autoridade administrativa que as emitiu. São modos de decisão padronizada, assumidos para racionalizar e simplificar o funcionamento dos serviços. Embora indiretamente possam proteger a segurança jurídica dos contribuintes e assegurar igualdade de tratamento mediante aplicação uniforme da lei, não regulam a matéria sobre que versam em confronto com estes, nem constituem regra de decisão para os tribunais. A circunstância de a Administração Tributária ficar vinculada (n.º 1 do artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária) às orientações genéricas constante de circulares que estiverem em vigor no momento do facto tributário e de ter o dever de proceder à conversão das informações vinculativas ou de outro tipo de entendimento prestado aos contribuintes em circulares administrativas, em determinadas circunstâncias (n.º 3 do artigo 68.º da LGT), não altera esta perspetiva porque não transforma esse conteúdo em norma com eficácia externa. É certo que o administrado pode invocar, no confronto com a administração, o conteúdo da orientação administrativa publicitada e, se for o caso, fazê-lo valer perante os tribunais, mesmo com sacrifício do princípio da legalidade (cfr. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, comentada e anotada, 3.ª ed., pág. 344). Mas é ao abrigo do princípio da boa fé e da segurança jurídica, não pelo seu valor normativo, que o conteúdo das circulares prevalece. O administrado só as acata se e enquanto lhe convier, pelas mesmas razões que justificam que possa invocar informações individuais vinculativas que o favoreçam (artigo 59.º, n.º 3, alínea e) e artigo 68.º da LGT).
Consequentemente, faltando-lhes força vinculativa heterónoma para os particulares e não se impondo ao juiz senão pelo valor doutrinário que porventura possuam, as prescrições contidas nas “circulares” da Administração Tributária não constituem normas para efeitos do sistema de controlo de constitucionalidade da competência do Tribunal Constitucional.” Deste modo, será desconsiderado no presente acórdão aquele ofício circulado.
É igualmente este o entendimento doutrinário sobre o mesmo assunto.
Assim, cita-se Casalta Nabais (Direito Fiscal, 6.ª ed., Almedina, pág. 197), que afirma que as chamadas orientações administrativas, tradicionalmente apresentadas nas mais diversas formas como instruções, circulares, ofícios-circulares, ofícios-circulados, despachos normativos, regulamentos, pareceres, etc.”, que são muito frequentes no direito fiscal constituem “regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois, obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão autor dos mesmos.
Por isso não são vinculativos nem para os particulares nem para os tribunais. E isto quer sejam regulamentos organizatórios, que definem regras aplicáveis ao funcionamento interno da administração tributária, criando métodos de trabalho ou modos de atuação, quer sejam regulamentos interpretativos, que procedem à interpretação de preceitos legais (ou regulamentares).
É certo que eles densificam, explicitam ou desenvolvem os preceitos legais, definindo previamente o conteúdo dos atos a praticar pela administração tributária aquando da sua aplicação. Mas isso não os converte em padrão de validade dos atos que suportam. Na verdade, a aferição da legalidade dos atos da administração tributária deve ser efetuada através do confronto direto com a correspondente norma legal e não com o regulamento interno, que se interpôs entre a norma e o ato.
Ainda na mesma orientação, sintetiza Sérgio Vasques: Seguramente que as circulares constituem normas jurídicas, que projetam os seus efeitos na esfera da administração, vinculando o subalterno à interpretação da lei ditada pelo superior hierárquico, mas não se pode dizer que representem em si mesmas fontes do direito fiscal por não constituírem parâmetro de validade dos atos praticados pela administração, que hão de encontrar esse parâmetro nas normas legais que as circulares visam interpretar. Significa isto que os tribunais não estão obrigados a fazer da lei a mesma interpretação que a administração fixa no seu direito circular e que os contribuintes não estão obrigados a aplicar a lei seguindo as orientações que através das circulares se dirigem aos serviços (v. Manual de Direito Fiscal, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2019, p. 161).
Com quanto fica dito, afastada ficou a vinculação da Requerente e deste Tribunal à interpretação contida no Ofício Circulado n.º 30161/2014, de 08/07 (ou em qualquer outro emanado da AT).
Vejamos agora se e como a Requerida violou, como alega a Requerente, as normas contidas nos art.ºs 78º., nº. 7, al. b) do CIVA na redação que vigorou até 31/12/2012 e do artº. 78º.-A do igualmente do CIVA, aditado para vigorar a partir de 1/1/2013.
Até 31 de dezembro de 2012 a alínea b) do n.º 7 do art. 78º do CIVA dispunha o seguinte:
7 - Os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis: b) Em processo de insolvência quando a mesma seja decretada.
Esta disposição é clara no sentido de considerar que o momento que conta para a dedução do imposto por créditos incobráveis é aquele em que é decretada a insolvência do devedor e não o do trânsito em julgado da sentença que a decide.
Acerca desta interpretação não podem restar quaisquer dúvidas, já que é a única compatível com as normas de interpretação das leis contidas no Código Civil, concretamente com a disposição do n.º 3 do art.º 9º (aplicável ex vis art.º art.º 11º da LGT), segundo a qual Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Para além disso, quando o legislador deu nova redação ao art.º 78º do CIVA e simultaneamente acrescentou a este diploma o art.º 78º-A (através da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro) teve o cuidado de introduzir também disposições transitórias que explicitavam que o disposto nos n.ºs 7 a 12, 16 e 17 do artigo 78.º do Código do IVA aplica-se apenas aos créditos vencidos antes de 1 de janeiro de 2013 (art.º 198º, n.º 6 da mesma Lei n.º 66-B, de 31 de dezembro).
Acresce que, como se afirma na decisão do CAAD n.º 12/2019-T, não há qualquer suporte legal para concluir que o sujeito passivo só pode proceder à regularização quando for detentor de uma certidão da decisão de decretamento, pois não existia, em 2012, qualquer norma que directa ou indirectamente previsse tal obrigação…. é evidente que a correcção subjacente à liquidação impugnada assenta num erro de interpretação da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA.
Esta conclusão aplica-se na íntegra ao caso em apreciação nos presentes autos, pelo que só com violação do disposto na alínea b) do n.º 7 do artº 78º do CIVA, na redação que vigorou até 21 de dezembro de 2012, poderia a AT aplicar essa norma da forma que o fez.
Passemos agora à apreciação referente aos créditos vencidos após 1 de janeiro de 2013, mas antes de 1 de janeiro de 2015, data que marca o início da entrada em vigor da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, que alterou a alínea b) do n.º 7 do art.º 78º do CIVA, que passou a ter a seguinte redação: Em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de carácter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no artigo 156º do mesmo código.
A incobrabilidade do crédito vencido constitui neste âmbito, como se viu, o cerne do regime das regularizações do IVA, perfilando-se nesta matéria da escolha da lei aplicável duas possíveis soluções: i) considerar a lei vigente à data do vencimento dos créditos, ou ii) aplicar o regime em vigor no momento em que se constatou a incobrabilidade dos créditos, neste caso, é a data do trânsito em julgado da sentença que decretou a referida incobrabilidade (16 de dezembro de 2014).
Sucede que qualquer das hipóteses identificadas no parágrafo anterior afasta de imediato e liminarmente a aplicação das alterações introduzidas pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, que apenas vigorou a partir de 1 de janeiro de 2015.
Como a AT reconhece na sua Resposta, o momento a que deve atender-se para a apreciação dos requisitos exigidos pela lei para a regularização do IVA no caso de insolvência é o vigente à data da sentença de decretamento da insolvência, que no caso presente transitou em julgado em 16 de dezembro de 2014.
Àquela data era aplicável à regularização de créditos incobráveis no âmbito da insolvência a seguinte redação da alínea b) do n.º 4 do art.º 78º-A do CIVA: Em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado ou após a homologação da deliberação prevista no artigo 156.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”
Sucede, porém, que o pressuposto que se refere à homologação da deliberação era uma figura inexistente no CIRE. A este propósito, o Tribunal considera ser de seguir o raciocínio e a argumentação constantes da Decisão do CAAD n.º 12/2019-T nos termos que passam a transcrever-se.
É verdade que o Código do IVA determinava a possibilidade de regularização do IVA “após a homologação da deliberação” prevista no artigo 156.º do CIRE, sendo que tal homologação não estava prevista no CIRE. Assim, o legislador do IVA tipificou uma condição legal, constitutiva de um pressuposto de incidência tributária (de IVA), cuja verificação era impossível.
Por forma a evitar que ficasse impedida a regularização do IVA relativa a créditos incobráveis de devedores insolventes, que certamente não era o fim visado pelo legislador, não temos, pois, dúvidas de que o texto legal reclamava uma interpretação teleológica e sistemática corretiva, que permitisse retirar sentido útil e salvar o âmbito de aplicação do artigo 78.º, n.º 7, alínea b) do Código do IVA.
Reportando-se a norma do Código do IVA e o artigo 156.º do CIRE à Assembleia de Credores de apreciação do (primeiro) relatório elaborado pelo Administrador da Insolvência, e indicando o texto da norma que a regularização do imposto somente tivesse lugar após a “homologação” (afinal inexistente) da deliberação tomada nessa Assembleia (nota-se também que são várias as possíveis deliberações), pode com alguma razoabilidade considerar-se acautelado esse objetivo (de não ser regularizado o imposto antes desse momento), se a regularização do imposto tiver lugar numa fase posterior do processo de insolvência, subsequente à dessa Assembleia de Credores.
O que não se consegue vislumbrar é uma razão válida para que a interpretação da locução “após a homologação da deliberação” da Assembleia de Credores se fixe no momento específico respeitante a um apenso do processo de insolvência – o trânsito em julgado da sentença de graduação e verificação de créditos – que nem sequer se insere na fase ou tramitação processual da Assembleia de Credores (tipificada como facto de referência selecionado pela norma fiscal à data em vigor).
No processo de insolvência (de caráter pleno), importa ter em conta, que para além de não estar prevista a homologação das deliberações da Assembleia de Credores de apreciação do relatório (no artigo 156.º do CIRE), esta Assembleia frequentes vezes, para não dizermos a maioria, não se realiza, por decisão do juiz em face das circunstâncias concretas (sobretudo associadas à perspetiva de insuficiência da massa insolvente), com a inerente adequação (e simplificação) da marcha processual.
Igualmente, no processo de insolvência (de caráter pleno), é assaz frequente não haver apenso de verificação e graduação de créditos.
Assim, ao erigir-se em pressuposto de regularização do IVA uma condição de verificação impossível (como a inexistente “homologação” da deliberação da Assembleia de Credores prevista no artigo 156.º do CIRE) ou de verificação eventual e contingente (a própria Assembleia de Credores ou a sentença de verificação e graduação de créditos), veda-se, na prática, o ajustamento do imposto a favor dos sujeitos passivos. Com a agravante de que tal ocorre em situações de destacada incobrabilidade, normalmente mais profunda do que aquela constatada quando são realizadas as Assembleias de Credores e/ou verificados e graduados os créditos para regular o concurso de credores, porque nestes casos ainda subsiste a expetativa de existir algum património que satisfaça e exceda as dívidas da massa insolvente para pagamento parcial aos credores.
Para ultrapassar as incongruências do regime de regularizações de IVA de créditos sobre devedores insolventes, deve entender-se que nas situações em que o processo de insolvência termina por insuficiência da massa (muitas delas correspondem aos casos em que o juiz dispensa a Assembleia de Credores de apreciação do relatório ou em que não há apenso de verificação e graduação de créditos) deve existir uma equiparação ao regime das insolvências “decretadas de caráter limitado”, em que o IVA é recuperável logo com o decretamento da insolvência (mesmo após a redação da LOE2015).
É também de afastar o argumento da AT de que a LOE2015 seria aplicável à relação tributária em discussão nos presentes autos, em virtude de a nova redação do artigo 78.º, n.º 7, alínea c) do Código do IVA revestir natureza interpretativa, projetando os seus efeitos para situações pretéritas.
Para além do facto, não despiciendo, de a LOE2015 não atribuir caráter interpretativo à nova redação do citado preceito do Código do IVA, não são demais todas as cautelas relativamente às leis interpretativas no domínio de normas de incidência fiscal, atenta a natureza impositiva destas e os postulados da legalidade, tipicidade e não retroatividade (que só encontram paralelo no Direito Penal), na esteira da fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 267/17, de 31 de maio de 2017, e do risco de leis interpretativas substancialmente retroativas.
Dito isto, e pelas razões acima expostas, em particular atento o caráter inovador do novo pressuposto legal – a sentença de verificação e graduação de créditos – desprovido de qualquer relação com a anterior previsão normativa relativa à Assembleia de Credores do artigo 156.º do CIRE, não se pode concordar com a qualificação interpretativa reclamada pela AT.
A solução normativa introduzida pela LOE2015 é inovadora e tem um conteúdo mais gravoso para os sujeitos passivos, ao postergar o momento da regularização do IVA, pelo que não pode ser tida como a fixação do sentido correto do ato normativo anterior.
Ainda acerca da circunstância de a AT estribar a sua posição com recurso à interpretação que foi feita no Ofício Circulado n.º 30161/2014, foi defendido no processo do CAAD n.º 365/2017-T que: A interpretação do Ofício Circulado não tem um mínimo de correspondência no texto do artigo 78º, n.º 7, b) do Código do IVA e não serve à teleologia do regime das regularizações do IVA que visa permitir o ajustamento do imposto aos sujeitos passivos que não logram cobrar os seus créditos, quando essa incobrabilidade seja patente e comprovada. Impor um requisito – a sentença de verificação e graduação de créditos – que em casos de indiscutível incobrabilidade é apenas eventual na marcha do processo de insolvência, implicaria admitir que em inúmeros casos fosse impossível aos credores cumprirem tal requisito e de, por conseguinte, recuperarem o IVA, apesar de estar mais do que comprovada a definitiva incobrabilidade dos seus créditos.
Para ultrapassar as incongruências do regime de regularizações de IVA de créditos sobre devedores insolventes, Afonso Arnaldo considera, a nosso ver bem, que nas situações em que o processo de insolvência termina por insuficiência da massa (muitas delas correspondem aos casos em que o juiz dispensa a Assembleia de Credores de apreciação do relatório ou em que não há apenso de verificação e graduação de créditos) deve existir uma equiparação ao regime das insolvências “decretadas de caráter limitado”, em que o IVA é recuperável logo com o decretamento da insolvência (mesmo após a redação da LOE2015) – vide “O Regime de Recuperação de IVA de Créditos de Cobrança Duvidosa ou Incobráveis: Balanço Crítico”, Cadernos IVA, 2017, Almedina p. 19-39).
Segundo este fiscalista “Um dos temas que mais questões tem suscitado prende-se com o caráter pleno ou limitado da insolvência. De facto, na sentença declarativa da insolvência o juiz fixa de imediato o caráter pleno ou limitado do incidente de qualificação. O incidente limitado reporta-se às situações em que existe insuficiência patrimonial do insolvente para satisfazer as dívidas da massa insolvente.
Como tal, por regra, a sentença de insolvência é decretada com caráter pleno.
Sucede que os sujeitos passivos se deparam com diversos casos em que a insolvência é decretada com caráter pleno, sendo, contudo, o processo encerrado por insuficiência da massa insolvente.
De facto, olhando apenas para o disposto na lei, estamos perante um crédito incobrável, sendo o IVA, portanto, recuperável em processo de insolvência quando a mesma for declarada com caráter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no CIRE ou após a homologação do plano de insolvência, quando este exista.
Contudo, neste caso, apesar de a insolvência ter sido decretada com caráter pleno, há uma “convolação” da mesma em limitada, pelo que o imposto deve poder ser recuperado com o encerramento do processo por insuficiência da massa.
Neste contexto interpretativo não pode colher acolhimento o argumento da AT baseado no facto de constar da Portal Citius a convocatória da assembleia de credores. Conforme se deixou explicado e é entendimento da doutrina e da jurisprudência do CAAD, não se justifica a existência de tratamento diverso conferido aos casos em que seja decretada a insolvência limitada daqueles em que se decrete a insolvência plena.
Com efeito, como se viu, o momento que deve ser considerado para efeitos de avaliação da existência de todos os pressupostos de facto suscetíveis de possibilitarem a regularização de créditos incobráveis em processo de insolvência é a data em que foi decretada a insolvência, tenha esta caráter pleno ou limitado. No caso presente essa data foi 16 de dezembro de 2014.
A AT, ao considerar que em 19 de agosto de 2020, data em que a Requerente procedeu à entrega da declaração periódica do período de 2020/06T e em que regularizou o imposto em crise nos autos, esta não reunia todas as condições para a regularização dos créditos que haviam sido declarados incobráveis por sentença transitada em 16 de dezembro de 2014, porque um Ofício Circulado determinava interpretativamente a aplicação de uma lei ainda não vigente àquela data, violou os pressupostos de facto e de direito contidos no ordenamento jurídico àquele tempo, consagrados no artº. 78º., nº. 7, al. b) do CIVA na redação que vigorou até 31/12/2012 e do artº. 78º.-A do CIVA, aditado para vigorar a partir de 1/1/2013. Violou ainda a AT o princípio da não retroatividade da lei fiscal, que tem consagração no art.º 103º, n.º 3 da Constituição da República e no art.º 12º da Lei Geral Tributária.
Quanto ao direito a juros indemnizatórios pedidos pela Requerente, considera o Tribunal que, de acordo com o consignado no n.º 1 do art.º 43º da LGT, no caso ora em apreciação, o erro que afeta a liquidação impugnada é exclusivamente imputável à Requerida, que liquidou o imposto sem qualquer suporte factual ou legal, pelo que dúvidas não existem de que tem a Requerente direito ao recebimento dos juros indemnizatórios.
Tem, assim, a ora Requerente direito a ser reembolsado relativamente à quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e n.º 1 do artigo 24.º do RJAT) e, ainda, a ser indemnizado pelo pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, pela Requerida, desde a data do pagamento da quantia, até reembolso, à taxa legal, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 43.º e n.º 10 do artigo 35.º da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
Neste sentido julgou o Supremo Tribunal Administrativo em acórdão de 6 de maio de 2020, proferido no processo 0928/10.OBESNT (www.dgsi.pt) II - Há lugar a pagamento de juros indemnizatórios, por erro imputável aos serviços, no caso de serem judicialmente anuladas liquidações adicionais de IVA efectuadas de acordo com instruções genéricas da administração tributária, publicadas em circular (art.43º nºs1/2 LGT).
VI – DECISÃO
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar totalmente procedente o pedido de declaração de anulação de todas as liquidações adicionais de IVA impugnadas, com o valor de €74.857,66 e consubstanciadas no documento com o n.º...;
b) Condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir à Requerente o montante de imposto e demais importâncias indevidamente pagas;
c) Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 43.º e n.º 10 do artigo 35.º da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril
VALOR DO PROCESSO: €74.857,66 (setenta e quatro mil, oitocentos e cinquenta e sete euros e sessenta e seis cêntimos)
Custas pela Requerida, nos termos legais: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são fixadas em € 2.448,00 (dois mil quatrocentos e quarenta e oito euros), a cargo da Requerida, conforme condenação supra.
Lisboa, 06 de Dezembro de 2021
Os árbitros
(Manuel Luís Macaísta Malheiros - Presidente)
(Prof. Doutor Diogo Leite Campos – Vogal)
(Dr.ª Ana Teixeira de Sousa – Vogal)