SUMÁRIO:
I – A verificação do preenchimento dos requisitos para a dedutibilidade fiscal de um gasto (art. 23º CIRC) é feita com referência ao momento em que ocorreu o negócio jurídico que o originou.
II- O art. 23º do CIRC não pode ser utilizado como “norma antiabuso” sob pena de ser dar azo a situações de intolerável violação da segurança jurídica.
DECISÃO ARBITRAL
A….., SA, NIPC …, com sede em …, …, ... Vila Nova de Gaia, apresentou, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I - RELATÓRIO
A) O pedido
A Requerente pede a anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2018 …, relativa ao exercício de 2015, no valor de €518.388,17, bem como das correspondentes liquidações de juros compensatórios (n.º 2018… e 2018…) e do “acerto de contas” n.º 2018 …, incluindo a compensação operada, dos quais resultou um total a pagar de € 615.637, 78.
Consequentemente, pede a anulação do ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa com o n.º …, por si apresentada.
B) Posição das partes
Está em causa uma correção ao lucro tributável declarado de € 1.873.122,84 em resultado da não-aceitação de encargos financeiros nesse valor.
A Requerente entende, em suma, que a liquidação de imposto é ilegal por: (i) errónea aplicação do disposto no art. 23º do CIRC (dedutibilidade de gastos); (ii) violação do princípio da neutralidade das fusões; (iii) violação do princípio da tributação das empresas pelo lucro real; (iv) violação dos princípios da igualdade e da prevalência da substância sobre a forma; (v) violação do art. 67º do CIRC (limites aos gastos de financiamento líquidos).
Na sua resposta, a Requerida sustenta a legalidade das correções efetuadas, ao abrigo do disposto no art. 23º do CIRC, uma vez que: (i) não se trata de gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC; (ii) nem trata de gastos e perdas de natureza financeira, aplicados na exploração; (iii) estes gastos de financiamento decorrem de um empréstimo contraído, não no interesse das sociedades que participaram da fusão, mas sim dos seus acionistas.
C) Tramitação processual
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 19/04/2021.
A Requerente procedeu à nomeação de árbitro, tendo para o feito indicado o Sr. Prof. Rui Duarte Morais. A Requerida indicou, para idênticas funções, o Sr. Dr. Jorge Carita. A pedido destes, o Conselho Deontológico nomeou, para presidir a este coletivo arbitral, o Sr. Dr. Juiz José Poças Falcão.
Os árbitros designados aceitaram tempestivamente as nomeações, que não mereceram oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 09/08/2021.
A requerida apresentou, oportunamente, resposta e juntou aos autos o PA.
Por despacho arbitral de 08/10/2021, foi decidido prescindir, por falta de objeto, da realização da reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT e fixado prazo para alegações. Nenhuma das partes se opôs a este despacho arbitral.
As partes apresentaram, oportunamente, alegações.
II - SANEAMENTO
O Tribunal é competente e a ação é tempestiva. O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não existem exceções de que cumpra conhecer
III – PROVA
III.1 - Factos provados:
a) A Requerente atua nos setores “valorização de resíduos metálicos” e “comércio por grosso de minérios e de metais”;
b) Desde 24/07/2008, a Requerente era detida, a 100%, pela sociedade B…, SA, a qual era detida, a 100%, pela C…, SGPS, S. A., a qual, por sua vez, era detida, a 100%, pelo D…;
c) A B… adquiriu, em tal data, a totalidade das ações representativas do capital da Requerente;
d) A B… detinha também, a 100%, a sociedade E…, Ldª, cujos gerentes eram os mesmos da Requerente;
e) Em 24/07/2008, com efeitos em 01/01/2009, a Requerente incorporou, por fusão, as sociedades B… e E…;
f) A motivação de tal fusão, segundo o respetivo projeto, foi: (i) as sociedades envolvidas desenvolverem a mesma atividade; (ii) a existência de três entidades jurídicas implicar custos acrescidos; (iii) as sinergias possíveis de obter pela concentração dos negócios numa única sociedade; (iv) o facto de as sociedades intervenientes terem, indiretamente, a mesma sócia, a C…;
g) A B… foi criada em 10/07/2008 e cessou em 11/12/2009, mediante a fusão por incorporação na Requerente;
h) Em 2008, a B… declarou um volume de negócios de cerca de 1 milhão de euros, decorrente de uma atividade operacional de compras e vendas;
i) O seu ativo, aquando da fusão, constituído essencialmente pelas participações sociais no capital da Requerente e da E…;
j) Na sua contabilidade não figuram custos com pessoal;
k) No passivo, figuravam financiamentos bancários, no valor total de € 61.200.000,00, e suprimentos feitos pela sua acionista (única) C…, no valor total de € 36.000.000,00;
l) Tais financiamentos foram obtidos com o propósito de adquirir a totalidade do capital da Requerente;
m) Os encargos financeiros incorridos pela Requerente, em resultado dos empréstimos bancários contraídos originalmente pela B…, SA, ascenderam, no exercício ora em causa (2015), a € 1.873.122,84.
n) A Requerente sempre teve uma intensa atividade operacional, correspondente ao seu objeto social, apresentando resultados líquidos significativos e capacidade suficiente para cumprir com encargos financeiros, nomeadamente os referidos em k);
o) A Requerente não procedeu ao pagamento dos valores liquidados.
Os factos dados por provados resultam da documentação que integra os autos, não sendo questionados pelas partes.
III.2 - Factos não provados
Não existem factos não provados relevantes para a decisão a causa.
IV- O DIREITO
Começamos por lembrar que a legalidade de uma liquidação se aprecia à luz da sua fundamentação, tal como expressa do RIT, não sendo admissível qualquer alteração ou complemento (vg. ac. STA proc. 915/17, de 30/01/2019).
1 – Há, pois, que atentar na fundamentação da liquidação ora posta em crise. Aproveitamos, para tal, alguns passos da resposta da Requerida, que reproduzem/sintetizam o essencial do constante do RIT:
- o que se verificou é que, através da fusão, a A… passou a deter um Passivo, correspondente ao financiamento da B… para aquisição das suas próprias ações (por € 100.000.000,00), em contrapartida de uma Ativo Intangível sem qualquer tipo de valor real, e do qual não se espera nem nunca se esperou que gerasse rendimentos ou ganhos geradores de imposto (IRC); Certo é, que a A…, está a suportar gastos com um financiamento que nada tem a ver com a atividade que desenvolve, ou seja, com a sua exploração.
- nesta operação, o único beneficiário foi, e é, tão somente e apenas, a sua única acionista C…, ficando esta, através deste esquema, titular de 100% do capital da A…, sem no entanto despender meios financeiros de 61,2% do valor da aquisição dessas participações sociais.
- este empréstimo não foi contraído no interesse da A…, da E… ou da B…, mas sim no interesse dos seus acionistas. Em parte alguma, o sujeito passivo, demonstra em que medida é que o financiamento obtido iria beneficiar (ainda que de modo potencial) a atividade da A… ou da B…, ou incrementar a sua capacidade de gerar proveitos ou ganhos sujeitos a imposto;
- antes pelo contrário, a A…. viu a sua capacidade de endividamento significativamente reduzida, o que poderá condicionar a realização de novos investimentos, e por outro lado os encargos financeiros suportados terão um peso significativo na sua estrutura de gastos, situações que conduzirão inevitavelmente a uma redução da sua capacidade de gerar proveitos sujeitos a imposto.
- estando a B… condenada à extinção, com sua fusão na A…, também nunca poderia vir esta gerar proveitos (designadamente mais-valias e dividendos) sujeitos a imposto;
- os únicos beneficiários com a obtenção do financiamento terão sido os acionistas da A… que terão adquirido uma sociedade lucrativa sem o dispêndio de meios financeiros relevantes
- a demonstração de que a operação foi realizada por motivos fiscais não é essencial para efeitos da aplicação do disposto no artigo 23.º do CIRC, tendo em consideração que para efeitos do referido artigo, apenas haverá que analisar se os gastos e perdas foram incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC;
- torna-se sempre necessário aferir casuisticamente, em cada período económico, da pertinência dos gastos relevados fiscalmente na esfera das sociedades beneficiárias, de modo a consentir apenas aqueles que cumpram os requisitos da dedutibilidade fiscal exigidos pelo disposto pelo art.º 23.º do CIRC.
- não se vislumbra quais os rendimentos que poderão advir da assunção destes encargos financeiros, cujos ativos (participações sociais da A…), adquiridos por outrem com financiamento oneroso (com a agravante de o património da A… servir de garantia ao credor bancário e de onde os encargos financeiros ora controvertidos emergem, pertencem indubitavelmente a entidade distinta da Requerente.
- os gastos financeiros em causa não cumprem os pressupostos do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, para serem considerados fiscalmente dedutíveis, porquanto não respeitam à atividade desenvolvida pela Requerente; não foram constituídos no seu interesse empresarial, mas sim no interesse dos investidores, Fundo e banca.
- não pode aceitar-se que seja consequência lógica e legal da fusão a manutenção, nos exercícios posteriores à fusão, da relação de causalidade económica entre os encargos e o interesse da empresa que se verificava na esfera da sociedade incorporada;
- o regime fiscal especial aplicável às fusões não deixa de ser neutro pelo facto de os gastos financeiros que na esfera da sociedade incorporada eram considerados dedutíveis para efeito da determinação do lucro tributável deixarem de o ser na esfera jurídica da sociedade incorporante, quando o não preenchimento dos requisitos da indispensabilidade, previstos no art.º 23.º, n.º1 e n.º 2 al. c), do CIRC, é induzido pelos efeitos de uma operação de fusão inversa que, por alguma razão, é designada pela doutrina por fusão contra natura
Concluindo: Assim, procederam os SIT à correção respeitante à desconsideração como gastos para efeitos do apuramento do resultado tributável do período de 2015, no montante € 1.978.971,32, atinente a gastos financeiros que não passam pelo “crivo” do artigo 23.º do CIRC, e, consequentemente, foi efetuada uma correção favorável à Requerente, no montante de € 123.918,12.
Desta fundamentação ressalta a AT entender que:
- o pretenso carácter fiscalmente abusivo do conjunto de operações em causa (nomeadamente da fusão inversa), embora amplamente alegado, não foi elemento fundamentador da liquidação impugnada;
- haver que aferir, em cada exercício, da dedutibilidade fiscal dos gastos, mesmo que decorrentes de operações acontecidas em períodos anteriores, no caso a manutenção de tal direito relativamente a encargos financeiros resultantes de negócios jurídicos celebrados pelas sociedades incorporadas e que, por força da fusão, passaram para a titularidade da sociedade incorporante, a ora Requerente.
- a aceitação da neutralidade da fusão não prejudica o referido no ponto anterior;
- os gastos em causa não correspondem, para a Requerente, a um propósito empresarial legitimador da sua dedutibilidade fiscal.
Resta acrescentar que nunca aparece questionado o interesse empresarial (a indispensabilidade, na terminologia da lei então vigente) de tais gastos de financiamento enquanto as obrigações que os geraram permaneceram na titularidade da sociedades incorporada (B…).
2- A questão do direito à dedução de encargos financeiros contraídos por uma sociedade com o fito de obter meios para adquirir o capital de outra sociedade, a qual, de seguida, incorpora a primeira (fusão inversa) é conhecida, tendo dado já origem a jurisprudência numerosa, mormente dos tribunais arbitrais, muitas vezes contraditória, a qual ambas as partes referem abundantemente. Da posição não partilhada pela maioria dos membros deste coletivo nos dá conta do douto voto de vencido que integra esta decisão arbitral.
Este tribunal arbitral assume, por maioria, o ensinamento do STA, tal como consta do acórdão que pôs termo ao proc. 0208/17, de 22-03-2018 . Citamos:
Com efeito, a aferição da conexão dos gastos com os proveitos deve ser feita com referência ao seu facto gerador, em especial tratando-se de gastos que dependem da verificação de condições temporais.
Destarte, para aferir da admissibilidade da consideração da relevância fiscal do pagamento de juros é mister analisar a operação subjacente que a eles deu origem, ou seja, esta vai depender, não do momento em que estes se vencem ou são pagos, mas da eventual conexão com os proveitos existente no momento em que a obrigação destes nasce - a contração do mútuo oneroso que a eles dá lugar.
Afigura-se pacífico que uma empresa que obtenha um financiamento para desenvolver um novo ramo de atividade, díspar do até aí seguido, se o vier a abandonar posteriormente por concluir que não é rentável, continua a ter o direito de considerar fiscalmente os juros relativos a esse financiamento, mesmo após esse abandono.
No entanto, se aferida a conexão entre os juros pagos e a atividade da empresa, no momento em que estes se venceram ou foram pagos, estes não mostram, no preciso momento em que são suportados, qualquer conexão com os proveitos gerados pela sociedade na medida em que não respeitam ao ramo de atividade da empresa naquele instante temporal, na medida em que o outro foi anteriormente abandonado.
Assim, seguindo o raciocínio expendido pela Fazenda Pública, tal determinaria a inadmissibilidade da sua consideração, o que não se concebe.
Donde assoma a conclusão que essa conexão entre a fonte geradora dos gastos e a potencial formação de proveitos tributáveis em sede de IRC, manutenção da fonte produtora, deve ser aferida tendo como referência o momento em que são contraídos os empréstimos e não no momento de vencimento dos juros.
ln casu, essa conexão existe e é inquestionada pela Autoridade Tributária. Emergindo, assim, a evidência que os gastos devem ser considerados.
Acresce que é incontroverso nos autos que a «B… SA» antes da incorporação podia deduzir os encargos/gastos dos financiamentos obtidos, porquanto a aquisição do capital social da Impugnante era suscetível de gerar proveitos na sua esfera tributável, quer sob a forma de dividendos quer sob a forma de eventuais mais-valias de uma eventual alienação da sua participação.
Com a operação de fusão esse direito à consideração fiscal dos gastos não se extingue, por efeito da fusão, pelo contrário, ope legis, mantém-se e surge, desta feita, na esfera jurídica da Impugnante.
Há ainda uma terceira ordem de razões que determinam a consideração de tais gastos na determinação da matéria tributável: a neutralidade do regime da fusão.
Subscrevendo-se aquela opinião, afigura-se manifesto que, mesmo antes das alterações ao CIRC, vigorava um regime de neutralidade das operações de fusão, não só por consentâneo com o espírito do Diploma (recorde-se o preâmbulo do Decreto-Lei 132/92) mas com as Diretivas comunitárias.
Argumenta a Fazenda Pública que o que está aqui em causa é a mera desconsideração dos custos nos termos do art.º 23.º do CIRC e não a neutralidade da fusão.
Até certo ponto tem razão. Contudo, se os gastos que anteriormente eram considerados para efeitos da determinação da matéria coletável de cada uma das sociedades incorporadas deixam de o ser na esfera jurídica da sociedade incorporante, em resultado da operação de fusão, então é manifesto que a fusão é tudo menos neutral.
Mesmo que possa ter havido «neutralidade fiscal» no que concerne aos «movimentos patrimoniais», o certo é que ao deixar de se permitir a consideração fiscal de gastos anteriormente admissíveis, se chega a um resultado que se afigura contrário ao espírito da Diretiva, isto é, de impedir que questões fiscais distorçam o mercado no sentido de favorecer, restringir (ou mesmo impedir) operações de reorganização empresarial, com as inerentes consequências ao nível da concorrência no mercado único.
Ressalta, assim, da sentença recorrida que as correcções de IRC levadas a cabo pela recorrente não podem ser aceites porque o momento temporal para aferir da admissibilidade dos custos para efeitos tributários deve ser determinado pelo instante em que estes são gerados e não pelo momento em que são suportados no sentido de que se vencem ou são pagos, tendo a sociedade incorporada o direito a relevar tributariamente os gastos na sua matéria tributável, em sede de IRC, esse direito persiste, pela fusão, ope legis, na esfera jurídica da incorporante e entendimento diverso redundaria na violação do princípio comunitário da neutralidade fiscal das fusões.
Ou seja, na sentença recorrida analisou-se a questão tal como colocada pela AT no relatório da inspecção, isto é, na relação (in)existente entre os custos dos empréstimos concedidos à "B…" e a actividade operacional da impugnante.
3 - Transposto este dictum para o presente caso, temos que, não tido sido questionado o interesse empresarial da contração dos mútuos em causa (financiamento bancário e suprimentos) pela originária mutuária (a B…) no momento em que tais contratos foram celebrados, o direito à dedutibilidade fiscal dos inerentes encargos financeiros ficou consolidado relativamente aos exercícios futuros em que aconteçam, independentemente de quaisquer vicissitudes posteriores, incluindo a transmissão da posição de mutuário por efeito da fusão inversa.
Contrariamente ao sustentado pela Requerida, não, há pois, que aferir, em cada exercício, da verificação dos pressupostos da dedutibilidade fiscal de um gasto, quando decorrente de operações acontecidas em períodos anteriores.
Também entendemos que o art. 23º do CIRC não é uma norma suscetível de legitimar reações a práticas tidas por fiscalmente abusivas. Atribuir-lhe tal conteúdo, permitir a sua aplicação com tal finalidade – que é o que, no seu âmago, pretendeu a Requerida – introduziria um fator de insegurança extremamente grave (o interesse empresarial do gasto, inicialmente estabelecido, poderia, posteriormente, ser posto em causa em decorrência de eventos subsequentes) não conforme os dos valores próprios de um estado-de-direito.
Podemos compreender (e até partilhar) as razões últimas que motivaram a AT a praticar a liquidação impugnada, mas não podemos esquecer que os tribunais arbitrais fiscais (tal como os estaduais) decidem segundo o direito vigente.
Para reagir contra situações fiscalmente abusivas existem, no nosso sistema fiscal, instrumentos próprios, que, ao arrepio das normas normalmente aplicáveis, permitem à AT eliminar as vantagens fiscais que os contribuintes pretendem obter através de “construções” ou “séries de construções “que devam merecer a qualificação de “fiscalmente abusivas”. No caso, o n.º 10 do artº 73º do CIRC, norma que – a nosso ver - a AT deveria ter invocado para fundamentar a liquidação que praticou.
Do exposto decorre, logicamente, a desnecessidade de apreciação dos demais fundamentos da liquidação impugnada porque a ilegalidade cometida (reapreciação a posteriori do direito à dedução fiscal de um gasto) é causa suficiente para a ferir de irremediável ilegalidade e, portanto, determinar a sua anulação.
Pela mesma razão, resulta também prejudicada a apreciação dos demais vícios de ilegalidade alegados pela Requerente como (outros) possíveis fundamentos de anulação da liquidação impugnada.
V- Decisão
Julgando totalmente procedente o pedido, anulam-se, por ilegais, as liquidações impugnadas.
VALOR: € 615.637, 78.
O árbitro presidente,
José Poças Falcão
O árbitro vogal (relator)
Rui Duarte Morais
O árbitro vogal (vencido pelas razões constantes da declaração em anexo)
Jorge Carita
DECLARAÇÃO DE VOTO
À semelhança do que já aconteceu noutros processos, votei vencido, porque os argumentos para dar suporte à tese da não indispensabilidade dos custos referentes ao preço que uma sociedade paga para se adquirir a si própria, continuam a não me convencer. Importa desde logo referir que, neste caso estamos perante um preço de aquisição de € 100.000.000,00 (cem milhões de euros), a que corresponde idêntico endividamento perante terceiros (bancos e acionistas), estes últimos financiados pela própria Requerente).
Mas revejo-me na primeira onda de Decisões Arbitrais (Proc. 14/2011-T, 87/2014-T) e do mesmo modo nos votos de vencido (Proc. nº. 92/2015-T, 93/2015-T e 88/2016-T) que não conseguiram vislumbrar a absoluta indispensabilidade de tais gastos, suportados relativamente a um ativo de uma sociedade, a propriedade dela própria, infelizmente desaparecido aquando da fusão face à sua própria natureza.
Apesar das diversas decisões entretanto proferidas, continuo sem conseguir compreender que numa empresa que, antes da fusão, revelava modestos custos financeiros mensais, passe, após uma operação de fusão invertida de um grupo (para além de tudo o que foi feito antes para ali se chegar), a suportar milhares de euros ano, e que a Autoridade Tributária tenha que continuar a aceitar como dedutíveis para efeitos fiscais, nos anos seguintes até integral amortização dos mesmos – o que poderá nem vir a acontecer face à situação financeira que a Requerente atualmente atravesso, que pode levar à sua própria insolvência.
Tratou-se de uma operação com tamanho justificado interesse e virtualidades económicas e financeiras tais, que a Requerente pode acabar insolvente, naturalmente por virtude do esforço ou melhor do sacrifício financeiro que teve que desenvolver para se pagar a si própria!!!
A Requerente passou a ter uma dívida colossal, por contrapartida de um ativo intangível, como nos diz o RIT neste processo “… sem qualquer tipo de valor real.”
Fácil seria constatar a evolução do lucro tributável da Requerente antes da fusão e depois da fusão, para melhor se confirmara “grande” evolução que tais resultados tiverem, e quem sabe, até ao seu fim de vida.
E pagar os juros devidos pelos empréstimos contraídos pela “mãe” para comprar a “filha” e aceitar fiscalmente como custo da filha, é tal e qual o mesmo que comprar matéria prima para fabricar e vender sucatas e desperdícios metálicos!!!
Tudo se passa, efetivamente, como se a atividade da Requerente fosse a sua própria aquisição e não a venda de sucata, como diz a AT noutros processos em que está em causa igual situação, ou melhor, os custos “dizem respeito à sua auto-aquisição”.
E a situação dos presentes autos assume contornos absolutamente únicos, se também tivermos presente que o empréstimo que ajudou a financiar a B… para comprar a Requerente, foi obtido junto da C…, que por sua vez se financiou junto da Requerente. (Vd. Artº. 29º. do RI)
Não está aqui em causa apenas o empréstimo diretamente solicitado junto da banca, mas o facto da Requerente ter financiado uma empresa (C… - a sua acionista), que depois financiou outra (B…), para que com o dinheiro indiretamente emprestado pela Requerente esta última a comprasse.
Ou seja, foi com seu próprio dinheiro (obtido não sabemos como, mas provavelmente contraindo mais dívida junto da banca) que a acionista da Requerente a comprou…
Ficamos sem palavras…
Mas toda a gente diz que isto é mesmo assim e que é próprio, é inerente a qualquer uma aquisição de leveraged buyout (LBO), que constitui um mecanismo utilizado para tornar custos inadmissíveis em eficiência fiscal. (Não é preciso ir pela aplicação do CGAA, bastava não aceitar estes juros como custo, razão pela qual se me oferece, muito respeitosamente, como desnecessário o tempo e o espaço que nesta Douta Decisão se ocupa com este assunto, quando se sabe que a AT refere especificamente que não está em causa a aplicação de qualquer norma anti-abuso, que o artº. 23º-. do CIRC não é uma delas, e que apenas pretende desconsiderar os custos em causa ao abrigo desse mesmo artigo do CIRC).
E também não se diga que o caráter de indispensabilidade dos custos, deve ser aferido quando a dívida é contraída, esquecendo por completo o momento em que os juros são efetivamente suportados (adeus princípio da especialização dos exercícios, e para já não falar do sempre necessário nexo de causalidade entre custos e proveitos).
Efetivamente, tenho dificuldade em aceitar que os juros contraídos por uma sociedade para adquirir outra sociedade na qual ela própria se veio a incorporar, possam vir a ser aceites para efeitos fiscais.
E, se não tenho dúvidas de que no momento em que a dívida foi contraída os respetivos encargos eram um custo para efeitos fiscais – o que a AT não nega - , já tenho dúvidas que o possam continuar a ser após a fusão (invertida) e que ainda para mais haja quem entenda que se o eram nesse momento, em que foram contraídos “terão que o ser para sempre…” (posição da Requerente no Proc. n.º 88/2016-T, pág. 7), independentemente das mudanças que ocorrerem, incluindo a fusão, ainda para mais invertida (ninguém dúvida que a fusão é uma operação prevista na lei e não está aqui em causa a aplicação de uma CGAA, mas sim a aplicação do art.º 23 do CIRC).
Como é que se pode referir que “… os gastos com juros em questão, correspondem a capitais alheios que foram aplicados na exploração da entidade que os suporta” (Proc. n.º 88/2016-T, pág. 9), quando eles serviram para que terceiros adquirissem precisamente a sociedade que atualmente os suporta.
Seria o mesmo que no âmbito de uma reestruturação societária, abrangida pelos benefícios fiscais no art.º 60.º do Estatutos dos Benefícios Fiscais, da qual constam uma fusão invertida, depois das isenções de IMT, IS, etc., ainda se viessem a considerar os juros de um idêntico endividamento, como custo fiscal da sociedade filha, que incorpora a mãe que a comprou.
Como é que se afirma que os capitais alheios foram aplicados na exploração pela sociedade incorporante, quando ela não comprou o capital social de qualquer outra sociedade!!!
Não serviram os financiamentos para pagar o preço de aquisição da Requerente por parte da sociedade que nela se veio a incorporar. Os juros decorrem do endividamento de terceiros, tendo a dívida sido contraída antes da fusão.
Desse modo, a sociedade está a pagar aos seus próprios acionistas (ou parte deles, dependendo da relação de troca de fusão) o preço de aquisição das ações dela própria.
Nos processos do CAAD que analisei não posso, por isso, deixar de subscrever a Declaração de Voto subscrito pelo Dr. António Brás Carlos (Proc. n.º 88/2016-T), nomeadamente quando ele manifesta a sua discordância relativamente à tese do prolongamento da existência da sociedade incorporante.
Por seu turno, a síntese factual ali efetuada deixa a nu o propósito de toda a operação, colocando naturalmente em causa que os juros suportados possam continuar a ter relevância fiscal no período pós-fusão.
Categórico o ponto 8 desta declaração de voto, que aqui transcrevo, com a devida vénia:
“8. Todos os passos da operação estão inseridos na mesma “unidade de intenção e ação” e são, desde o início, unicamente dirigidos ao objectivo referido no número anterior. Objetivo esse estranho ao interesse empresarial da Requerente, não sendo o financiamento e o pagamento dos concomitantes encargos necessários à sua atividade, nem indispensáveis para a prossecução do seu interesse empresarial específico concretizado na produção dos seus rendimentos sujeitos a imposto ou na manutenção da sua fonte geradora. A obrigação de pagamento dos encargos em análise nunca foi, desde a primeira hora, contraída no interesse empresarial da Requerente, sendo para mim claro que não poderia, após a fusão, passar a considerar-se que tais financiamentos eram para si indispensáveis para efeitos do nº 1 do artigo 23º do CIRC.”
Razão tem o Dr. António Brás Carlos quando refere em síntese final (ponto 10) que a decisão ali em causa naquele processo não respeita, antes contrariando ostensivamente, a jurisprudência dos Tribunais Superiores (STA/TCA).
“10. Em consequência, tendo presente o acima referido, os encargos respeitantes àqueles empréstimos, suportados pela Requerente, não preenchem o requisito da indispensabilidade a que se refere o nº 1 do artigo 23º do CIRC, porque, em síntese:
a) Não respeitam à actividade por si desenvolvida (Ac. STA, proc. 171/11);
b) Os gastos correspondentes aos juros suportados por uma sociedade incorporante em virtude da aquisição de capitais alheios por parte da sociedade incorporada para adquirir 100% das ações da primeira, não são indispensáveis para esta sociedade (incorporante), porque não foram constituídos no seu interesse empresarial, não sendo, assim, necessárias para a prossecução do seu escopo societário (Ac. STA, proc. 164/12 e Acs. TCA-Sul, proc. nº 5327/12 e proc. nº 8137/14);
c) Não existe qualquer nexo causal entre aqueles gastos e os seus proveitos ou ganhos, explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica (Ac. TCA-Sul, proc. nº 6754/13);”
Importa, igualmente, ter em conta neste contexto o Voto de Vencido do Prof. João Menezes Leitão nos Processos n.ºs 92/2015-t e 93/2015-T.
Aqui se reitera a referência à jurisprudência dos Tribunais Tributários que consagram que “os custos (…) não podem deixar de respeitar, desde logo, à própria sociedade contribuinte. Ou seja, para que determinada verba seja considerada custo daquela é necessário que a actividade respectiva seja por ela própria desenvolvida, que não por outras sociedades” (Acórdão do STA de 30.05.2012, Proc. 0171/11).
É por isso vasta a análise da jurisprudência que fazendo uso da leitura correta do princípio da indispensabilidade de custos, leva a que da sua aplicação resulta a não indispensabilidade daqueles que em tais Decisões estão em causa (92/2015-T e 93/2015-T)
“… que esses gastos não respeitam à actividade desenvolvida pela própria sociedade contribuinte, carecem de relação com a actividade prosseguida pelo sujeito passivo, não foram incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respectivas actividades, são estranhos à actividade da empresa, não é possível descortinar neles qualquer nexo causal com os proveitos ou ganhos, explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica, foram incorridos para além do objectivo social, ou seja, na prossecução de outro interesse que não o empresarial.” (sublinhado meu). Será que não chega!!!
Também tenho que concordar com o Prof. Menezes Leitão quando ele refere que:
“… assumir os indicados gastos de financiamento a Requerente fica obrigada a desviar recursos extraídos do seu património, que deveriam ser destinados à prossecução da sua actividade e à realização do seu objecto social, para o pagamento da dívida e dos encargos financeiros respeitantes à aquisição das participações sociais no seu capital por outrem.” (pág. 62 e 63 da Decisão)
Com aplicação ipis verbis ao caso nos autos!!!
E se a empresa não tiver suporte financeiro para suportar encargos desse montante (juros de milhares de euros) e entrar em processo de insolvência, como parece ser o caso?!!
Por outro lado, importa referir que a questão que aqui nos preocupa não se resolve por força da suposta violação da neutralidade fiscal da fusão, já que, nem nos termos da legislação nacional (artºs 74º e 75º. do CIRC), nem dos da legislação comunitária (Diretiva 2009/113/EU de 19/10, relativa ao regime fiscal da fusão) está prevista que essa neutralidade se alcança reconhecendo amanhã aquilo que apenas podem ser custos hoje (Vd. Argumentação da Requerida (arts 122º. a 127º. da Resposta e importante Acórdão do TJUE citado no artº. 125º. dessa mesma Resposta)
Nada disso.
A neutralidade está especificamente garantida através de outras medidas (regras de valorização das transferências de elementos patrimoniais, depreciações e amortizações, ajustamentos em inventários, perdas por imparidade e mais e menos valias), mas que nenhuma delas se prende com a dedutibilidade fiscal de custos financeiros da operação.
Torna-se mais que evidente que a neutralidade fiscal da fusão não fica em causa se se admitir a legalidade do procedimento da AT neste contexto.
Razão pela qual também não posso aderir ao sentido da presente decisão que considera que está em causa a violação do princípio da neutralidade da fusão.
Operação de fusão essa relativamente à qual nem os mais simples dos objetivos foram alcançados (Vd. Art. 40 do RI, que transcrevo):
“A presente existência das três empresas distintas está a implicar um conjunto de esforços (custos administrativos e de serviços), com despesas acrescidas (…) A gestão das sociedades com a mesma atividade centralizada numa única sociedade gerará sinergias consideráveis, através de uma maior flexibilidade de gestão e planeamento…”
Nobres e meritórias intenções, que disso não passaram.
Nem a atividade das sociedades era a mesma, nem os custos suportados eram relevantes, porque uma delas foi criada e foi extinta de imediato, e as sinergias vieram a redundar na aprovação de um PER, quem sabe antes da insolvência.
Quanto ao momento relativamente ao qual deve ser aferida a indispensabilidade de um custo, para além do que já referi, revejo-me na posição defendida pela Requerida nos artº 140º e segs, onde fundamentadamente se defende que tal apreciação tem que ser feita periodicamente e se remete para jurisprudência relevante, por exemplo aquela que pugna pela seguinte posição:
“… um custo será aceite fiscalmente caso, num juízo reportado ao momento em que foi efectuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros….” (Decisão do STA, transcrita no artº. 144º. da Resposta da AT), ou dito agora pelo TCAS que a propósito do nº. 1 do artº. 23º. do IRC, considera que ”…a indispensabilidade de um custo tem sido interpretada como um conceito indeterminado de necessário preenchimento casuístico, em resultado de uma análise de perspetiva económico-empresarial, na percepção de uma causalidade económica entre a assunção de um encargo e a sua realização no interesse da empresa.” (Transcrito no artº. 146º. da Resposta da AT).
A Requerida considera que este entendimento foi inclusivamente sufragado pelo Tribunal Constitucional ao reconhecer que “o facto tributável em IRC corresponde à percepção de rendimento, sendo o gasto ou custo atendido na sua função instrumental face ao rendimento acréscimo sujeito a tributação (não isento)”. (Transcrito no artº. 147º. da Resposta da AT).
O que aqui deixo é a base das razões pelas quais não posso acompanhar a douta decisão proferida.
Lisboa, 30 de novembro de 2021
(Jorge Carita)