Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 159/2021-T
Data da decisão: 2021-12-02  IRS  
Valor do pedido: € 57.912,62
Tema: IRS. Imputação especial – transparência fiscal. Fundamentação.
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SUMÁRIO:

I – Da apresentação de uma declaração de substituição no decurso de um procedimento inspetivo não resulta “nenhuma confissão dos contribuintes de deverem o IRS apurado”, permanecendo sobre a Administração Tributária, o ónus de alegar e provar os factos em que sustentou a liquidação que emitiu na sequência daquela declaração de substituição.

II – Não se podem considerar suficientemente fundamentadas as correções propostas pelos Serviços de Inspeção Tributária, incluídas nas declarações de substituição apresentadas em nome da Requerente e do seu ex-marido, se os critérios objetivos a que deve obedecer o relatório da inspeção tributária não cumprem o disposto no artigo 55.º, do RCPITA, não foram disponibilizados à Requerente, nem a Requerida os fez juntar aos autos.

 

DECISÃO ARBITRAL

I.             RELATÓRIO

Em 18 de março de 2021, A………, com o NIF … … …, residente na Rua ………, nº …., …………, …..-…… Carapelhos (adiante designada por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com o artigo 99.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

 

A.           Objeto do pedido:

A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e a consequente anulação das liquidações adicionais de IRS e juros compensatórios dos anos de 2015, 2016 e 2017, no valor global de € 57 912,62, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que as manteve.

 

Mais pede a Requerente a condenação da Requerida no reembolso da quantia de € 57 912,62, por si indevidamente paga em 4 de dezembro de 2019, acrescida de juros indemnizatórios nos termos legais.

 

B. Síntese da posição das Partes

a. Da Requerente:

Como fundamentos do pedido, a Requerente alega, em síntese, que as liquidações de IRS emitidas em seu nome e do seu ex-marido padecem dos de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, e de falta de fundamentação, pois não foi notificada da motivação das correções que lhes deram origem, apesar de ter requerido a sua certificação, nos termos do artigo 37.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

São as seguintes as razões de facto e de direito invocados no PPA:

             O casamento da Requerente com B……… foi dissolvido por divórcio decretado em 7 de fevereiro de 2019, estando o seu ex-marido emigrado em Angola desde 2007, onde veio a falecer em 13 de abril de 2019.

             O ex-marido da Requerente constituiu, em 2012, a sociedade C…….. Unipessoal, Lda., registada na Conservatória do Registo Comercial de ….. e objeto de um procedimento de inspeção tributária para os exercícios de 2015 a 2018.

             Já após o falecimento do ex-marido da Requerente, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de …… alertaram o Contabilista Certificado da sociedade inspecionada para alegadas irregularidades na contabilidade dos exercícios de 2015 a 2017, bem como da verificação dos pressupostos para o enquadramento da mesma sociedade no regime da transparência fiscal, de que resultaria a necessidade de proceder à entrega de declarações de substituição de IRS do sócio, para aqueles anos.

             Apresentadas as declarações de substituição em nome do ex-marido da Requerente, na qualidade de não residente, os Serviços da Inspeção Tributária contactaram o Senhor Contabilista Certificado da sociedade C…….. Unipessoal, Lda., no sentido da retificação das declarações de substituição apresentadas, por entenderem não poder ser aceite a condição de não residente para os anos em causa, pelo que deveriam ser submetidas declarações conjuntas para o agregado familiar, “adicionando o anexo D relativo à imputação dos rendimentos da sociedade enquadrada no regime de Transparência Fiscal” e incluindo as correções apuradas no procedimento inspetivo.

             Os factos constantes das novas declarações de substituição, na origem das liquidações objeto do pedido de pronúncia arbitral, que não foram apresentadas espontaneamente pela Requerente, mas antes por solicitação da Requerida, não correspondem à verdade.

             A Requerente não foi notificada das correções efetuadas à matéria tributável da sociedade C…….. Unipessoal, Lda., pois o relatório da inspeção tributária que corrigiu os valores declarados nas declarações modelo 3 de IRS inicialmente apresentadas para os anos de 2015 a 2017, apenas foi elaborado em 14.01.2020, data posterior à da emissão das liquidações que ora se impugnam.

             Entende a Requerente que, no caso em apreço, embora as liquidações impugnadas tenham tido por base as declarações de substituição apresentadas em seu nome e do seu ex-marido, no âmbito de um procedimento de inspeção tributária, a AT tinha o ónus de demonstrar: (i) Que se encontravam verificados os critérios para que a sociedade “C……, Unipessoal, Lda.” pudesse ser enquadrada, no regime da transparência fiscal; (ii) Que a matéria coletável imputada ao ex-marido da Requerente havia sido apurada pela sociedade de que o mesmo era sócio ou apurada pela própria AT, em sede inspetiva, e notificada a essa mesma sociedade e (iii) A factualidade que levou a AT a qualificar o Sr. B……. como residente em território português.

             Desconhecendo a Requerente como terá sido apurada essa «Mat.Colect.Corrigida» da sociedade “C…….., Unipessoal, Lda.”, os factos em que a AT se terá baseado e as normas legais tidas em consideração no seu apuramento, depois de não lhe ter sido permitida a consulta do processo, solicitou, através de requerimento apresentado em 11/02/2020 no Serviço de Finanças de ……, que lhe fosse passada certidão contendo todos os fundamentos das liquidações que constituem o objeto deste pedido, bem como de todos e quaisquer documentos que integrassem o procedimento que levou às liquidações em crise.

             Não tendo sido emitida a certidão requerida, apesar de em 03/03/2020 ter reiterado o pedido, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra as liquidações adicionais de IRS dos anos de 2015, 2016 e de 2017;

             A reclamação graciosa viria a merecer decisão de indeferimento expresso.

             Apesar do ónus que sobre si impendia ex vi do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, a AT não logrou demonstrar os pressupostos de facto e de direito em que se baseou para efetuar as liquidações objeto do presente pedido, inquinando-as de ilegalidade, por erro nos respetivos pressupostos.

 

A Requerente juntou 30 documentos e requereu a produção de prova testemunhal e por declarações de parte.

 

b. Da Requerida

Notificada por despacho arbitral de 1 de junho de 2021, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou Resposta, em 5 de julho de 2021, na qual veio defender a legalidade e a manutenção dos atos de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:

             Relativamente à matéria de facto com interesse para a boa decisão da causa a mesma encontra-se devidamente documentada nos elementos juntos aos autos.

             A Requerente e o seu marido, foram alvo de procedimentos inspetivos internos, ao abrigo das ordens de serviço OI 2019….., OI2019…… e OI2019……, da Direção de Finanças de ……., de âmbito parcial, ao IRS dos anos 2015, 2016 e 2017.

             As referidas ações de inspeção surgiram no seguimento de ação inspetiva externa à sociedade D…… – Comércio, Construção e Obras Públicas, Lda., NIF ………, com sede na …………, a coberto das ordens de serviço n.ºs OI2018….. e OI2018….. em que se constatou que nos anos 2015 a 2017 a sociedade C……. Unipessoal, Lda., tinha faturado prestações de serviços relacionadas com a intermediação nas vendas da D…… para clientes de Angola.

             Os Serviços de Inspeção Tributária concluíram que os montantes faturados correspondiam a comissões pagas a B……, administrador da E……, sociedade de direito angolano, com relações especiais com a D…….

             A sociedade C……. Unipessoal, Lda. está enquadrada desde o início da atividade no CAE 82990 – Outras atividades serviços apoio prestados às empresas, N.E., embora a sua atividade se cinja à intermediação em negócios, cobrando uma comissão por esse serviço, ou seja, na essência exerce, através do seu sócio, a atividade de comissionista, atividade expressamente prevista na lista a que se refere o artigo 151.º, do Código do IRS.

             Os SIT consideraram que a matéria coletável da sociedade C……. Unipessoal, Lda., nos anos de 2015 a 2017 deveria ter sido imputada como rendimento profissional do seu único sócio B…… e tributada em sede de IRS, integrando-se como rendimento líquido da categoria B, nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 20.º, do CIRS.

             Os montantes a corrigir em sede de IRS correspondem à imputação da matéria coletável da sociedade em regime de transparência fiscal, de € 31.087,23 em 2015, € 51.502,59 em 2016 e € 38.553,04 em 2017, montantes que deveriam ter sido acrescidos no campo 401 do Q4 do anexo D da declaração modelo 3 de IRS de cada um dos anos.

             Confrontado o sujeito passivo com este novo enquadramento e as propostas de correção elaboradas pelos SIT, o mesmo aceitou a indicação dos SIT e regularizou voluntariamente a sua situação, e, em 2019/07/30, submeteu as declarações de substituição mod.3 do IRS relativas aos anos de 2015, 2016 e 2017, fazendo nelas incluir a totalidade das correções propostas.

             Considera-se devidamente provada e demonstrava a ocorrência dos factos de que deriva o direito à liquidação (os factos-pressupostos da existência, qualificação e quantificação do facto tributário), conforme dispõe o n.º 1 do artigo 74.º, da LGT, cabendo à Requerente o ónus de demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito à liquidação.

             As liquidações impugnadas não tiveram origem nas correções efetuadas pelos SIT nos procedimentos de inspeção realizados ao abrigo das ordens de serviço OI 2019……, OI2019…… e OI2019….., da DF de …….; resultaram das regularizações efetuadas pela requerente e seu ex-marido, mediante a submissão de declarações de substituição no decorrer das ações inspetivas.

             Uma vez que o IRS é liquidado com base nas declarações de substituição submetidas pelos sujeitos passivos, os dados e apuramentos aí mencionados presumem-se verdadeiros e prestados de boa-fé, nos termos do disposto no artigo 75.º, da LGT, não cabendo à AT provar os elementos declarados nas declarações de substituição, mas sim ao Requerente, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 74.º, da LGT.

             Salientando-se que o ex-marido da requerente teve pleno conhecimento da matéria coletável da sociedade, porquanto, relativamente ao período de tributação de 2015, submeteu declaração de substituição mod.22 de IRC em 2019/07/30 (declaração de substituição n.º 2019-….-C….-..) e, relativamente aos períodos de tributação de 2016 e 2017, igualmente submeteu declarações de substituição mod.22 de IRC em 2019/07/30 (declaração de substituição n.º 2019-….-C……-.., relativa ao ano de 2016, e declaração de substituição n.º 2019-…..-C…..-.., relativa ao ano de 2017), fazendo nelas incluir a totalidade das correções propostas pelos SIT no procedimento inspetivo credenciado pelas ordens de serviço n.º OI2019……/….. e Despacho n.º OI2019……, da DF de …...

             Quanto à imputação da matéria coletável, nos termos do artigo 6.º, do CIRC, no decurso das ações inspetivas credenciadas pelas Ordens de Serviço nºs. OI 2019….., OI2019…… e OI2019……., da Direção de Finanças de ……, o sujeito passivo, não só teve conhecimento do novo enquadramento no regime de transparência fiscal e das propostas de correção ao IRS dos anos de 2015, 2016 e 2017, como procedeu à regularização voluntária da sua situação tributária, com a entrega de declarações de substituição e de pedido de redução de coima nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º, do RGIT, pelo que foi elaborado relatório sucinto nos termos do n.º 3 do aludido artigo.

             Caso a Requerente e o seu ex-marido quisessem invocar qualquer erro nas declarações de rendimentos apresentadas anteriormente, nomeadamente, a residência fiscal, dispunham de dois anos para o fazer, nos termos do n.º 2 do artigo 140.º, do CIRS, sendo de realçar, que apenas das primitivas declarações poderiam vir a reclamar da residência fiscal, na medida em que, da apresentação das declarações de substituição entregues posteriormente não pode resultar a ampliação dos prazos de reclamação graciosa, impugnação judicial ou revisão do ato tributário, que seriam aplicáveis caso não tivessem sido apresentadas.

             A Requerente e o seu ex-marido submeteram declarações de substituição em 2019/07/30 (que ficaram no sistema informático com “erros”, e que os SIT convidaram a retificar por o ex-marido da requerente constar como não residente), o pedido seria intempestivo para o IRS dos anos 2015 e 2016 e tempestivo para o ano de 2017.

             Na situação em apreço, a Requerente e o seu ex-marido apresentaram declarações mod.3 de IRS para os anos de 2015, 2016 e 2017, voluntariamente, como casados e residentes em território português, incluindo anexos H, no qual indicaram benefícios fiscais relativos a habitação própria e permanente em Portugal, pelo que, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º, da LGT, presumem-se verdadeiros os factos indicados nas declarações apresentadas.

             Sendo o ex-marido da Requerente residente em Angola, teria que designar um representante com residência em território nacional, nos termos do n.º 6 do artigo 19.º, da LGT, o que não se verificou.

             Os documentos apresentados para comprovar a residência em Angola (passaporte, faturas de agência de viagens, boletim de nascimento e assento de óbito), não demonstram que o ex-marido estava incorretamente considerado como residente em território português, mas apenas que passou parte dos anos em questão em Angola, o que não impede que face à lei portuguesa, seja considerado residente em território português, e como tal aqui tributado pelos seus rendimentos (cfr. n.º 1 do artigo 13.º, n.º 1 do artigo 15.º e n.º 1 do artigo 16.º, do CIRS).

             E, mesmo que se considerasse o ex-marido da Requerente como residente em território português, nada obstava que fossem submetidas as suas declarações de rendimentos mod.3 com opção pela tributação em separado, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 13.º, do CIRS, o que não se verificou, pois foi exercida a opção pela tributação conjunta.

             No caso em apreço, e como já se demonstrou, não se verifica qualquer “erro imputável aos serviços” que determine o pagamento de juros indemnizatórios.

 

Não tendo a Requerida feito juntar o processo administrativo, foi emitido o despacho arbitral de 23 de julho de 2021, notificando a AT para que, no prazo de 10 dias e para efeitos do disposto no n.º 5, do artigo 110.º, do CPPT, remetesse aos autos “o processo administrativo instrutor, contendo os elementos necessários à tramitação processual”.

 

Na mesma data anterior, deu entrada nos autos o requerimento da Requerente, datado de 22 de julho de 2021, de “Contraditório à Resposta da FP”, no qual impugnou os factos contidos em diversos artigos da Resposta da AT, que considera não corresponderem à verdade, reiterando e desenvolvendo a posição expressa no pedido de pronúncia arbitral.

 

O processo administrativo (adiante, de forma abreviada, PA), do qual não constam os Relatórios da Inspeção Tributária dos procedimentos inspetivos abertos em nome da sociedade C……. Unipessoal, Ld.ª e do seu sócio, B…….., ex-marido da Requerente, deu entrada nos autos em 30 de agosto de 2021.

 

Em 7 de setembro de 2021, foi a AT notificada para, no prazo de 15 dias, se pronunciar, querendo, sobre o teor do requerimento apresentado pela Requerente com data de 22 de julho de 2021.

 

A AT apresentou as suas Alegações escritas em 24 de setembro de 2021, remetendo para quanto havia dito quanto à matéria de facto em sede de Resposta e concluindo que “os factos agora impugnados foram apurados e comprovados em sede de procedimentos inspetivos internos, ao abrigo das ordens de serviço OI 2019….., OI2019…… e OI2019……, da Direção de Finanças (DF) de ……., de âmbito parcial, ao IRS dos anos 2015, 2016 e 2017”, cujos relatórios beneficiam de força probatória plena, nos termos do artigo 76.º, da LGT.

Mais entende a AT que os atos impugnados não padecem de qualquer ilegalidade, devendo ser considerada improcedente a pretensão da Requerente, absolvendo-se a Requerida de todos os pedidos.

 

Nesta sequência, foi emitido o despacho arbitral de 6 de outubro de 2021, no qual, atendendo a que a Requerente havia exercido o direito de contraditório sobre a Resposta da Requerida, e esta, o direito de contraditório sobre as Alegações da Requerente e, tendo sido carreada para os autos prova documental suficiente à decisão da causa, se afigurou desnecessária a realização de outras diligências instrutórias, tendo-se dispensado a reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, bem como, dada a posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados, a produção de novas Alegações. No mesmo despacho se indicou que a decisão arbitral seria proferida dentro do prazo estabelecido pelo n.º 1 do artigo 21.º, do RJAT, advertindo-se a Requerente de que deveria, até essa data, proceder ao pagamento da taxa arbitral remanescente.

 

Por requerimento da mesma data anterior, veio a Requerente discordar da tramitação processual definida.

 

Notificada pelo despacho arbitral de 11 de outubro de 2021, para no prazo de 10 dias se pronunciar sobre o requerimento apresentado pela Requerente em 6 de outubro de 2021, a Requerida nada disse.

 

Em novo requerimento com entrada nos autos em 18 de outubro de 2021, veio a Requerente reiterar o pedido de produção de prova testemunhal e por declarações de parte.

 

Não se afigurando necessária tal prova complementar, por suficiência da prova documental junta aos autos e, vigorando no processo arbitral tributário os princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade e da livre apreciação da prova (artigos 16.º, alíneas c) e e), 19.º e 29.º, n.º 2, do RJAT), foi mantido o despacho arbitral de 6 de outubro de 2021.

 

II. SANEAMENTO

1.            O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 1 de junho de 2021, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;

2.            As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;

3.            A cumulação de pedidos, ainda que relativos a diferentes atos, é expressamente admitida pelo n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito;

4.            O processo não padece de vícios que o invalidem;

5.            Não foram invocadas exceções que ao tribunal arbitral cumpra apreciar e decidir.

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as

suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral

tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).

 

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA), fixa-se como segue:

 

A – Factos provados:

1.            A Requerente foi casada com B…… entre 30/07/1994 e 07/02/2019, data em que o casamento foi dissolvido por divórcio (Doc. 18 junto ao PPA que se dá como reproduzido);

2.            O ex-marido da Requerente era titular de um “Visto Privilegiado do Tipo A”, da República de Angola, credenciado pela E……., LDA, inicialmente concedido em 14/03/2012, válido até 14/03/2014 e sucessivamente prorrogado, de 26/05/2014 a 25/05/2016, de 08/07/2016 a 08/07/2018 e de 13/07/2018 a 12/07/2020 (Docs. 26 e 27 juntos ao PPA, que se dão como reproduzidos);

3.            Através do Despacho n.º DI2019……, da Direção de Finanças de ……, datado de 23/02/2019, foi aberto um procedimento de inspeção externo à sociedade C……..Unipessoal, Ld.ª, com o NIPC ……… e com sede na Rua ……, n.º …., …….. – …..-…. Carapelhos, concelho de Mira, tendo por objetivo a “Consulta, recolha e cruzamento de elementos” relativos aos exercícios de 2015 a 2018 (Doc. n.º 20, junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

4.            Em 28/02/2019, o Inspetor Tributário credenciado pelo Despacho referido no ponto precedente, dirigiu mensagem de correio eletrónico ao Contabilista Certificado da sociedade C……… Unipessoal, Ld.ª, na qual solicitou o envio de documentos contabilísticos da mesma, relativos aos anos de 2015, 2016 e 2017 (Doc. n.º 21 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

5.            Por e-mail de 07/03/2019, o mesmo Senhor Inspetor Tributário pediu ao Contabilista Certificado da sociedade C…….. Unipessoal, Ld.ª, novos elementos da contabilidade desta sociedade referentes aos anos de 2015, 2016 e 2017 (Doc. 21 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

6.            O ex-marido da Requerente, sócio único da sociedade C…….. Unipessoal, Ld.ª faleceu em Angola, em 13/04/2019 (Doc. 19 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

7.            A imputação da matéria coletável da sociedade C…….. Unipessoal, Ld.ª ao sócio B………, nos termos do artigo 6.º, do CIRC, foi efetuada no decurso das ações inspetivas credenciadas pelas Ordens de Serviço n.ºs OI2019…… e OI2019……., da Direção de Finanças de ……. (cfr. artigo 35 da Resposta da Requerida);

8.            As ações inspetivas credenciadas pelas ordens de serviço n.ºs OI2019……. e OI2019……. tiveram início em 18/06/2019 (facto invocado pela Requerente e não contestado pela Requerida);

9.            Em 12/07/2019, o Inspetor Tributário credenciado no procedimento antes referido, enviou ao Contabilista Certificado da sociedade B…….. Unipessoal, Ld.ª mensagem eletrónica sob o assunto “Correções – C…….. Unip, Lda. e B………..”, com o seguinte teor: “No seguimento da análise efetuada e dos vários contactos havidos relativamente aos sujeitos passivos em epígrafe, caso pretendam efetuar a regularização voluntária, poderão proceder ao envio das declarações retificativas até ao dia 31-7-2019.

Após esta data, o processo seguirá os seus trâmites normais com a notificação dos respetivos projetos de relatório de inspeção, nos termos do art.º 60.º do RCPITA e art.º 60.º da LGT.” (Doc. 22 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

10.          Em 30/07/2019, foram submetidas declarações modelo 22 de substituição da sociedade C……… Unipessoal, Ld.ª relativamente aos período de tributação de 2015, 2016 e 2017 – declarações de substituição n.ºs 2019-…..-C…..-..), 2019-…..-C…..-.. e 2019-……-C……-.., incluindo as correções proposta pelos SIT no procedimento inspetivo credenciado pelas ordens de serviço n.º OI2019……/…. e Despacho n.º OI2019….., da DF de ….. (artigos 33.º e 34.º da Resposta da AT);

11.          Foram apresentadas declarações modelo 3 de substituição para os anos de 2015, 2016 e 2017, em nome do ex-marido da Requerente, na qualidade de não residente, face às quais, em 06/08/2019, o Senhor Inspetor Tributário credenciado no procedimento antes referido, enviou ao Contabilista Certificado da sociedade C……. Unipessoal, Ld.ª mensagem eletrónica sob o assunto “Processo B…….”, com o seguinte teor: “No seguimento do contacto da passada sexta-feira, deverá proceder de imediato à retificação das declarações de IRS enviadas para os anos de 2015 a 2018, que se encontram com erro desde 31-7-2019, sob pena de as mesmas ficarem sem efeito.

Tal como lhe transmitimos, a opção pela tributação como não residente não poderá ser agora exercida para os períodos de 2015 a 2018. Assim, deverá retirar a referência à situação de “não residente”, apresentando uma declaração de substituição conjunta para o agregado, adicionando o anexo D relativo à imputação dos rendimentos da sociedade enquadrada no regime de Transparência Fiscal – n.º 1 do art.º 6.º do CIRC (…)” (cfr. Doc. 23 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

12.          Foram apresentadas novas declarações modelo 3 de substituição, em nome da Requerente e do ex-marido, com base nas quais foram emitidas as liquidações impugnadas:

a.            para o ano de 2015 – Declarações n.ºs …..-2015-……-.., de 27/09/2019 (cfr. págs. 103 a 111 do PA) e …..-2015-…..-.., de 14-10-219 (cfr. págs. 112 a 120 do PA);

b.            para o ano de 2016 – Declaração n.º …..-2016-……-.., de 13/08/2019 (cfr. págs. 128 a 136 do PA);

c.            para o ano de 2017 – Declaração n.º ….-2017-……-.., de 13/08/2019 (cfr. págs. 144 a 152 do PA);

13.          Foram emitidas, em nome de B…….., representado por F….., e da Requerente, de que esta foi notificada, as liquidações adicionais de IRS dos anos de 2015, 2016 e 2017:

a.            Liquidação n.º 2019 ……….., de 02/10/2019, referente ao ano de 2015, no valor global de € 13 827,96, com data limite de pagamento voluntário em 09/12/2019 (cfr. Docs. 1 a 3 juntos ao PPA, que se dão como reproduzidos);

b.            Liquidação n.º 2019 …………, de 18/10/2019, referente ao ano de 2015, de que, por estorno da liquidação anterior, resultou um valor de € 911,95, a pagar até 11/12/2019 (cfr. Docs. 4 a 6 juntos ao PPA, que se dão como reproduzidos);

c.            Liquidação n.º 2019 ………., de 16/08/2019, referente ao ano de 2016, na quantia global de € 25 248,93, com prazo para pagamento voluntário até 09/12/2019 (cfr. Docs. 7 a 9 juntos ao PPA, que se dão como reproduzidos);

d.            Liquidação n.º 2019 ……….., de 16/08/2019, referente ao ano de 2017, no montante global de € 17 923,78, com data limite para pagamento voluntário em 09/12/2019 (cfr. Docs. 10 a 12 juntos ao PPA, que se dão como reproduzidos);

14.          A Requerente procedeu ao pagamento das liquidações de IRS identificadas no ponto precedente, no valor total de € 57 912,62, em 04/12/2019 (cfr. Docs. 13 a 16 juntos ao PPA, que se dão como reproduzidos);

15.          O Relatório da Inspeção Tributária referente às ações inspetivas abertas em nome do ex-marido da Requerente, credenciadas pelas ordens de serviço nºs OI2019…… e OI2019……, referidas supra, em 7., elaborado em 14/01/2020, foi notificado à Requerente através do “ofício n.º ….” (facto invocado no artigo 42.º, do PPA e na petição da reclamação graciosa apresentada contra as liquidações objeto dos autos – cfr. págs. 2 e seguintes do PA –, não contestado pela Requerida);

16.          Em 11/02/2020, a Requerente apresentou, no Serviço de Finanças de ….., um pedido de certidão da fundamentação das liquidações adicionais de IRS, de que constassem “todos os elementos referentes ao processo de inspeção (…), todas as notificações que tiverem sido feitas, quer no âmbito do procedimento de inspeção quer no âmbito do procedimento de liquidação (…) a certidão ora requerida deverá conter, designadamente, todos e quaisquer autos, termos, declarações, relatórios, comunicações escritas, despachos, informações, notificações, cotas, registos postais e impressos de Avisos de Receção respeitantes ao procedimento de liquidação e aos atos que o tenham antecedido (…)” (Doc. 24 junto ao PPA e pág. 29 do PA, que se dá como reproduzido);

17.          Por requerimento dirigido ao mesmo Serviço de Finanças, em 03/03/2020, a Requerente reiterou o pedido de certidão anterior (Doc. 25 junto ao PPA e pág. 32 do PA, que se dá como reproduzido);

18.          Em 27/05/2020, foi instaurado no Serviço de Finanças de ….. o procedimento de reclamação graciosa n.º …………….., tendo em vista a anulação das liquidações de IRS identificadas na PI (cfr. pág. 1 do PA);

19.          Da informação sobre que assentou a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º …………….. consta, designadamente, o seguinte (cfr. Doc. n.º 17 junto ao PPA e págs.  85 e seguintes do PA):

“II – DOS FACTOS

Consultadas as aplicações informáticas da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), e os demais elementos do processo, verifica-se que:

II.1. Foram entregues, em nome da ora reclamante, as declarações de rendimentos, mod. 3 de IRS, relativas ao ano de 2015, identificadas no quando infra:

 

II.2. Foram entregues, em nome da ora reclamante as declarações de rendimentos, mod. 3 de IRS, relativas ao ano de 2016, identificadas no quando infra:

 

II.3. Os Serviços de Inspeção Tributária, no âmbito da ação inspetiva determinada pelas ordens de serviço n.º OI2019……/OI2019…….., verificaram, com repercussões em sede de IRS, dos exercícios de 2015 e 2016, que:

“As presentes ações de inspeção surgem no seguimento de ação de inspetiva externa desencadeada à sociedade D…… – Comércio, Construção e Obras Públicas, Lda., NIF ………., com sede na ………., concelho de Vagos, a coberto das ordens de serviço n.ºs OI2018…… e OI2018……., e que se dedica principalmente à fabricação e montagem de estufas e sistemas de rega e comercialização de artigos para rega.

Constatou-se que nos anos de 2015 a 2017, a sociedade C…….. Unipessoal, Lda., tinha faturado prestações de serviços nos montantes de € 51.163,60 em 2015, € 106.049,74 em 2016 e € 58.641,79 em 2017, relacionadas com a intermediação desta entidade nas vendas da D……. para clientes de Angola.

Após uma análise mais aprofundada do objeto e condições destes serviços prestados, com audição dos intervenientes, quer na D……., quer com o gerente B……., concluímos que os montantes faturados correspondiam a uma comissão paga a B…….., administrador da E……., sociedade de direito angolano, ex-funcionário da D……., e sociedade com relações especiais com a D…… já que possuem sócios comuns, comissão essa que incidia sobre os montantes cobrados pelas vendas efetuadas pela D…….. à E……...

Levantando-nos algumas dúvidas a intervenção desta sociedade, no âmbito do despacho externo n.º DI2019……. de 2019-02-27, procedemos a uma verificação dos valores contabilizados pela C…… Unipessoal, Lda. Dessa análise surgiram elementos que motivaram as correções que a seguir se apresentam no capítulo III.

III. DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS

EM SEDE DE IRS

III.1.1 Imputação de rendimentos – regime da transparência fiscal – art.º 6.º do CIRC

Conforme referimos anteriormente, a atividade da sociedade C……… Unipessoal, Lda., NIF ………, cujo único sócio-gerente e único colaborador é B…….., NIF ………, nos períodos de 2015 a 2017 cingiu-se à prestação de serviços de intermediação nas vendas efetuadas pela sociedade D……..– Comércio, Construção e Obras Públicas, Lda., NIF ………, para Angola, mais concretamente para o cliente E………., uma sociedade de direito Angolano de que B……. era administrador, cujo capital social é, em parte, detido pelos mesmos sócios da D…….

Pela prestação de serviços a C………, Lda., cobrava à D……., a título de comissão, uma percentagem variável de acordo com as cobranças (recebimentos) efetuadas relativas às vendas à E…….

No âmbito das ordens de serviço n.ºs OI2019…… e OI2019….. e do Despacho n.º DI2019…… foi analisada a documentação contabilística da sociedade C……. Unipessoal, Lda. e constataram-se uma série de irregularidades nos registos contabilísticos dos anos de 2015 a 2017, designadamente o reconhecimento na atividade da sociedade de gastos de carácter pessoal do sócio e do agregado familiar, ou o reconhecimento de gastos que não se confinavam à atividade exercida.

Estes gastos não foram aceites para efeitos da determinação do resultado tributável daqueles anos. Apuraram-se as seguintes correções ao resultado tributável.

                2015      2016       2017

Result. Trib. Declarado

Correção             8.286,89

22.800,34            7.054,16

44.448,43           - 15.909,58

54.462,62

Result. Trib. Corrigido

Prejuízos a deduzir         31.087,23

-              51.502,59

-              38.553,04

-

Mat. Colect. Corrigida    31.087,23            51.502,59            38.553,04

 

Estando esta sociedade enquadrada no regime geral de tributação em sede de IRC, apurar-se-ia normalmente à liquidação de IRC e cálculo do imposto em falta de acordo com as regras estabelecidas no Código do IRC, aplicando-se as deduções e taxas nele plasmadas.

Acontece que esta sociedade reúne todos os critérios para se encontrar enquadrada no regime de transparência fiscal a que alude o art.º 6.º do CIRC, senão vejamos:

A al. b) do n.º 1 do art.º 6.º do CIRC impõe (ou seja, não é de aplicação opcional) que a matéria coletável das sociedades de profissionais, com sede ou direção efetiva em território português, é imputável aos sócios no seu rendimento tributável para efeitos de IRS (ou IRC se for o caso) ainda que não tenha havido distribuição de lucros.

Acrescenta ainda o n.º 1 da al. a) do n.º 4 do mesmo artigo que se considera, entre outras: “(…) a) Sociedade de profissionais:

1) A sociedade constituída para o exercício de uma atividade profissional especificamente prevista na lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, na qual todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa atividade (…)”.

Vejamos então em pormenor as razões para que o enquadramento da sociedade devesse ser o regime de transparência fiscal:

1 – A sociedade, para efeitos fiscais, está enquadrada desde o início da atividade no CAE 82990 – Outras atividades serviços apoio prestados às empresas, N.E., ou seja, uma classificação genérica. Como referimos anteriormente, a sua atividade cinge-se à intermediação em negócios, cobrando uma comissão por esse serviço, ou seja, na essência exerce a atividade de comissionista. Na lista a que se refere o art.º 151.º do CIRS consta, expressamente contemplada, a atividade “1319 – Comissionistas”, pelo que a sociedade exerce uma atividade especificamente prevista na referida lista;

2 – A sociedade unipessoal em causa é detida por um único sócio – B……., o qual é também o único gerente e colaborador, sendo na verdade ele que exerce toda a atividade em nome da sociedade, pelo que não obstante não estar coletado para o efeito, considera-se assim para este fim o sócio profissional dessa atividade;

3 – A sociedade tem sede e direção efetiva em território nacional.

Em suma, a matéria coletável da sociedade C……. Unipessoal Lda. naqueles anos 2015 a 2017 não seria tributada em sede de IRC, mas antes deveria ter sido imputada como rendimento profissional do seu único sócio B……. e tributada em sede de IRS, integrando-se como rendimento líquido da categoria B, nos termos do n.º 1 e 2 do art.º 20.º do CIRS.

(…)

Os montantes a corrigir em sede de IRS correspondem à imputação da matéria coletável da sociedade em regime de transparência fiscal, de € 31.087,23 em 2015, € 51.502,59 em 2016 e € 38.553,04 em 2017.

Estes montantes deveriam ter sido acrescidos no campo 401 do Q4 do anexo D da declaração modelo 3 de IRS de cada um dos anos.

VI – REGULARIZAÇÕES EFETUADAS PELO SUJEITO PASSIVO NO DECUSRO DA AÇÃO DE INSPEÇÃO

Confrontado o sujeito passivo com este novo enquadramento e as propostas de correção acima referidas e a necessidade daquela regularização em sede de IRS referente aos anos de 2015, 2016 e 2017, este aceitou a nossa indicação e prontificou-se a enviar declarações de substituição mod. 3 de IRS fazendo nelas incluir a totalidade das correções propostas, o que veio a concretizar-se em 2019-07-30 através da submissão das seguintes declarações (…):

Modelo 3 - IRS  Declaração de substituição         Data da receção

2015      ….-….-……-..        2019-10-14

2016      …..-…..-……-..     2019-08-19

2017      ….-….-……-..        2019-08-13

As correções efetuadas originaram um rendimento coletável corrigido para os anos de 2015, 2016 e 2017 de, respetivamente, € 85.549,00, € 106.642,67 e € 93.932,26 (…)”

III – ANÁLISE DA RECLAMAÇÃO

O n.º 1 do art.º 75º da Lei Geral Tributária estabelece que: “1 – Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”.

Face ao disposto na referida norma, e salvo prova em contrário, deve entender-se que os factos tributários expressos nas declarações apresentadas pelo contribuinte são verdadeiros e que nenhuns outros podem relevar, relativamente a esse contribuinte, para efeitos de incidência tributária e, por conseguinte, de sujeição a imposto.

No entanto, tratando-se de uma presunção legal, o legislador admite a sua ilisão através de prova em sentido contrário.

(…)

Face ao exposto supra, e analisando os argumentos avançados pela R., (…) não tendo sido carreada qualquer prova aos autos de que os elementos constantes das declarações apresentadas pela R. não são verdadeiros e/ou que padecem de erros de facto ou de direito.

Por sua vez, considerando ainda a pretensão da R. relativa à composição do agregado familiar, defendendo que o ex-marido da R. não devia fazer parte do mesmo, urge chamar à colação o disposto no art.º 59.º n.º 6 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

(…)

Do teor desta norma conclui-se que os factos que influenciaram a liquidação resultante da apresentação da declaração de substituição, e que já incorporavam a declaração que se pretende substituir, bem como a subsequente liquidação, apenas podem ser contestados no prazo da reclamação graciosa ou da impugnação desta primeira liquidação, e já não no âmbito da liquidação resultante da declaração de substituição, pois por via da apresentação de declarações de substituição não pode resultar aa alteração ou ampliação dos prazos de reclamação graciosa, impugnação judicial ou de revisão oficiosa do ato tributário, que seriam aplicáveis caso não tivessem sido apresentadas, não podendo o sujeito passivo beneficiar de prorrogação dos respetivos prazos, tendo-se por consolidadas as situações que não foram naqueles prazos contestadas pelo contribuinte.

Assim, a reclamação graciosa, impugnação judicial, ou revisão do ato tributário, relativos a uma liquidação de uma declaração de substituição, apenas poderão ter por objeto os elementos nela alterados ou corrigidos, não podendo ser debatida a parte não corrigida, pois que, relativamente a essa parte, os prazos para reclamar ou impugnar contam-se da notificação ou do termo do prazo para pagamento da liquidação originária.

Atendendo ao caso em análise, verifica-se o seguinte:

- Relativamente ao ano de 2015, foi entregue inicialmente uma declaração apenas em nome da ora R., que foi, posteriormente corrigida/eliminada, tendo a R. apresentado a declaração de rendimentos, conjuntamente com B…….., NIF ………, em 2016-05-28, identificada com o n.º …. – …. – …… – .., a qual deu origem à liquidação n.º 2016………., em 2016-08-26;

- Relativamente ao ano de 2016, a R. apresentou a declaração de rendimentos, conjuntamente com B…….., NIF ……….., em 2017-05-18, identificada com o n.º ….. – …. – …… – .., a qual deu origem à liquidação n.º 2017……….., em 2017-05-18;

Assim sendo, e atento o exposto supra, a tempestividade da presente reclamação, na parte em que respeita a composição do agregado familiar, será aferida atendendo, não às últimas liquidações efetuadas, mas sim às liquidações sequentes à entrega das supra referidas declarações de rendimentos.

(…)

IV – CONCLUSÃO

Nestes termos, não obstante o pedido ser legal e feito com legitimidade, afigura-se que as liquidações reclamadas não enfermam de qualquer ilegalidade, pelo que o pedido deverá ser indeferido.

Considerando o disposto no art.º 57.º da LGT, que proíbe a prática de atos inúteis ou dilatórios, e ainda o disposto na Circular n.º 13/1999, de 8 de Julho, de acordo com a qual a audiência pode ser dispensada quando a AT “apenas, aprecie os factos que lhe foram dados pelo contribuinte, limitando-se, na sua decisão a fazer a interpretação das normas legais aplicáveis ao caso” encontrando-se “nesta situação todas as decisões sobre (…) reclamações (…) em que a administração se limita a concluir, face aos factos e argumentos invocados pelo contribuinte e a lei aplicável, pela improcedência da sua pretensão (…) pratique um ato com base em factos já submetidos, noutra fase do procedimento, a audiência dos contribuintes”, referindo, ainda expressamente, “ Assim, por exemplo,  não  haverá direito de audição (…) nos procedimentos de segundo grau, de que são exemplos as reclamações (…) sempre que não existam factos novos capazes de influenciar a decisão final e o contribuinte já tenha sido ouvido sobre os factos em discussão, no procedimento objeto de (…) reclamação”, será de dispensar o direito de audição”.

20.          A decisão de indeferimento do procedimento de reclamação graciosa n.º …………. foi notificada à Requerente a coberto do ofício n.º …. da Direção de Finanças de ……., de 14/12/2020, rececionado em 18/12/2020 (cfr. págs. 93 a 95 do PA).

 

B – Factos não provados:

Com interesse para a decisão da causa, não se considera provado:

1.            Que os Relatórios de Inspeção Tributária relativos aos procedimentos de inspeção abertos pelo Despacho n.º DI2019……, da Direção de Finanças de ……., de 23/02/2019, em nome da sociedade C……. Unipessoal, Ld.ª e pelas ordens de serviço n.ºs OI2019…… e OI2019….., em nome do ex-marido da Requerente tivessem sido notificados a qualquer dos sujeitos passivos em data anterior à da emissão das liquidações de IRS dos anos de 2015, 2016 e 2017, objeto do presente processo arbitral;

2.            Que tenha sido emitida a certidão contendo a fundamentação das liquidações de IRS impugnadas, a que se referem os pontos 15 e 16 dos “Factos Provados”.

 

C – Fundamentação da matéria de facto provada e não provada:

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos dados como provados e como não provados decorrem da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, e da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados, face princípio da livre valoração da prova (artigo 110.º, n.º 7, do Código de Procedimento e de Processo Tributário).

 

De facto, no artigo 3.º da sua Resposta, afirma a Requerida que “Relativamente à matéria de facto com interesse para a boa decisão da causa a mesma encontra-se devidamente documentada nos elementos juntos aos autos”.

 

Novamente notificada pelo despacho arbitral de 23 de julho de 2021, para remessa “[d]o processo administrativo instrutor, contendo os elementos necessários à tramitação processual”, enviou a AT o PA, do qual não constam os Relatórios da Inspeção Tributária dos procedimentos inspetivos abertos em nome da sociedade C……. Unipessoal, Ld.ª e do seu sócio, B…….., ex-marido da Requerente, nem cópias de outras notificações aos sujeitos passivos, à exceção da notificação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, mencionado no ponto 19 dos factos dados como provados.

 

III.2 DO DIREITO

1.            As questões a decidir

São essencialmente duas as questões colocadas pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral: a falta de fundamentação substancial das liquidações que dele são objeto, recondutível ao vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito e a falta de fundamentação formal, a que se reporta o dever de fundamentação dos atos tributários e em matéria tributária que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos, nos termos do artigo 77.º, da Lei Geral Tributária (LGT), cuja eficácia depende de notificação (artigos 268.º, n.º 3, da CRP e 77.º, n.º 6, da LGT) e que consubstancia vício de forma.

 

1.1 – Apreciação dos vícios imputados pela Requerente às liquidações impugnadas

Embora ambos os vícios imputados pela Requerente às liquidações impugnadas, a verificar-se, sejam invalidantes das mesmas, determinantes da sua anulação, impõe o artigo 124.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, que, quanto aos vícios geradores de anulabilidade do ato impugnado, o tribunal aprecie prioritariamente os “vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos”.

 

O que justifica a apreciação prioritária do vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito, uma vez que a anulação fundada em vícios de forma não impede a renovação do ato anulado, com supressão do vício.

 

1.2 – Do erro sobre os pressupostos

Quanto à falta de fundamentação substancial, alega a Requerente que, não obstante as liquidações adicionais de IRS dos anos de 2015, 2016 e 2017 terem sido efetuadas na sequência das declarações de substituição apresentadas em seu nome e do seu ex-marido, a entrega das mesmas não foi voluntária, mas antes por insistência dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de ….. junto do Contabilista Certificado da sociedade C…… Unipessoal, Ld.ª, da qual o seu ex-marido foi sócio-gerente e único colaborador e que cabe à Autoridade Tributária e Aduaneira a prova dos factos na origem das ditas liquidações.

 

Segundo a Requerente, caberia à Requerida provar, designadamente, (i) Que se encontravam verificados os critérios para que a sociedade “C……, Unipessoal, Lda.” pudesse ser enquadrada, no regime da transparência fiscal; (ii) Que a matéria coletável imputada ao seu ex-marido havia sido apurada pela sociedade de que o seu ex-marido foi sócio ou apurada pela própria AT, em sede inspetiva, e notificada a essa mesma sociedade e (iii) A factualidade que levou a AT a qualificar o Sr. B……. como residente em território português.

 

A Requerida contrapõe que as liquidações impugnadas não tiveram origem nas correções efetuadas pelos Serviços de Inspeção tributária, mas antes resultaram das regularizações efetuadas pela Requerente e seu ex-marido, mediante a submissão de declarações de substituição no decorrer das ações inspetivas realizadas ao abrigo das ordens de serviço OI2019…… e OI2019……, da Direção Finanças de …… e que os dados e apuramentos mencionados em tais declarações se presumem verdadeiros e prestados de boa-fé, nos termos do disposto no artigo 75.º, da LGT.

 

Considera ainda a AT que a ocorrência dos factos pressupostos da existência, qualificação e quantificação do facto tributário se encontram devidamente provados e demonstrados no Relatório da Inspeção Tributária, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 74.º da LGT, cabendo à Requerente o ónus de demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito à liquidação.

 

Sobre o ónus da prova relativamente aos factos tributários inscritos em declarações de substituição entregues no decurso de procedimentos inspetivos, já a jurisprudência dos Tribunais Superiores se pronunciou no sentido de que da apresentação de uma declaração de substituição não resulta “nenhuma confissão dos contribuintes de deverem o IRS apurado” , “porque essa apresentação pode ter sido condicionada ou determinada por uma inspeção ou investigação criminal e, nessa medida, apenas formalmente constituir uma apresentação voluntária”, e que, através da presunção de veracidade consagrada no artigo 75.º, da LGT, “não se pode pretende fazer recair sobre o contribuinte o ónus de alegar e provar de que não é verdade o que consta da sua declaração, permanecendo sobre a Administração Tributária, mesmo nas situações referidas em I, o ónus de alegar e provar os factos em que sustentou a liquidação que emitiu na sequência da apresentação daquela declaração de substituição e cuja manutenção na ordem jurídica defende.” .

 

Na situação em análise, a resposta a algumas, mas não a todas as dúvidas suscitadas pela Requerente encontra-se vertida na informação de suporte à decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra as liquidações objeto dos presentes autos, na qual se transcreve parcialmente o relatório de inspeção tributária referente ao procedimento inspetivo aberto pelas ordens de serviço n.ºs OI2019….. e OI 2019…….

 

De acordo com a mesma informação, no relatório de inspeção tributária a que ali se alude, concluiu-se que a sociedade C…… Unipessoal, Ld.ª, de que o ex-marido da Requerente foi “único sócio-gerente e único colaborador”, prestou, nos anos de 2015 a 2017, “serviços de intermediação nas vendas efetuadas pela sociedade D….. – Comércio, Construção e Obras Públicas, Lda. (…), para Angola, mais concretamente para o cliente E……, uma sociedade de direito Angolano de que B……. era administrador, cujo capital social é, em parte, detido pelos mesmos sócios da D…….”.

 

A conclusão de que os serviços faturados pela sociedade C….., Unipessoal, Ld.ª à sociedade D…… correspondiam a “uma comissão paga a B……, (…), comissão essa que incidia sobre os montantes cobrados pelas vendas efetuadas pela D……. à E……”, terá decorrido de “uma análise mais aprofundada do objeto e condições desses serviços prestados, com audição dos intervenientes, quer na D……, quer com o gerente B…….”.

 

Tal conclusão levou a que, embora a sociedade C……, Unipessoal, Ld.ª estivesse “enquadrada desde o início da atividade no CAE 82990 – Outras atividades serviços apoio prestados às empresas, N.E.”, tivesse sido reenquadrada no regime de transparência fiscal, como sociedade de profissionais, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, alínea a), do Código do IRC, pois “a sua atividade cinge-se à intermediação em negócios, cobrando uma comissão por esse serviço, ou seja, na essência exerce a atividade de comissionista. Na lista a que se refere o art.º 151.º do CIRS, consta expressamente contemplada, a atividade Código 1319 - Comissionistas”, exercida pelo sócio único, “não obstante não estar coletado para o efeito” e determinada a sua matéria tributável para os anos de 2015, 2016 e 2017, tendo por base as faturas emitidas à sociedade D…… e a não aceitação de determinados custos, relativos a “gastos de natureza pessoal do seu sócio e agregado familiar, ou (…) de gastos que não se confinavam à atividade exercida”.

 

Notificada do relatório da inspeção tributária elaborado em 14/01/2020, relativo às correções à matéria tributável de IRS dos anos de 2015 a 2017, via da imputação especial da matéria coletável da sociedade C…….., Unipessoal, Ld.ª ao seu ex-marido, nos termos dos artigos 6.º, n.º 1, do Código do IRC, e 20.º, n.ºs 1 e 2, do Código do IRS, a Requerente, por considerar que  tais correções se não encontravam devidamente fundamentadas, requereu, dentro do prazo aplicável, lhe fosse emitida certidão, nos termos do artigo 37.º, do CPPT, da qual constassem “todos os elementos referentes ao processo de inspeção (…), todas as notificações que tiverem sido feitas, quer no âmbito do procedimento de inspeção quer no âmbito do procedimento de liquidação (…) designadamente, todos e quaisquer autos, termos, declarações, relatórios, comunicações escritas, despachos, informações, notificações, cotas, registos postais e impressos de Avisos de Receção respeitantes ao procedimento de liquidação e aos atos que o tenham antecedido (…)”.

 

Porém, não consta dos autos que tivesse sido emitida a certidão requerida em 11/02/2020, nem a transcrição parcial do relatório da inspeção tributária na informação sobre que incidiu a decisão de indeferimento da reclamação graciosa esclarece, objetivamente, como se procedeu à determinação da matéria coletável da sociedade C…….., Unipessoal, Ld.ª a imputar ao sócio.

 

Designadamente, o relatório transcrito naquela informação não identifica as faturas alegadamente emitidas pela sociedade C……., Unipessoal, Ld.ª à sociedade D……., os respetivos valores individualizados e datas de emissão, quais os gastos não aceites por respeitarem a despesas pessoais do sócio e do agregado familiar ou não se relacionarem com a atividade exercida (v. g. saúde, educação, habitação, viagens, estadias, etc.), bem como os respetivos valores individualizados e datas de realização.

 

Ora, sabendo-se que o procedimento tributário segue a forma escrita (artigo 54.º, n.º 3, da LGT), e que, no âmbito do procedimento de inspeção tributária a recolha de elementos de suporte ao relatório final e correções nele propostas ou efetuadas deve obedecer aos critérios objetivos enunciados no artigo 55.º, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), devendo conter (a) “A menção e identificação dos documentos e respetivo registo contabilístico, com indicação, quando possível, do número e data do lançamento, classificação contabilística, valor e emitente” e (b) “A integral transcrição das declarações, com identificação das pessoas que as profiram e as respetivas funções, sendo as referidas declarações, quando prestadas oralmente, reduzidas a termo.”, mal se compreende que a AT não tenha fornecido tais elementos quando solicitados pela Requerente e que nem sequer os tenha disponibilizado em sede arbitral.

 

Não se podem, por isso, considerar suficientemente fundamentadas as correções propostas pelos Serviços de Inspeção Tributárias e incluídas nas declarações de substituição apresentadas em nome da Requerente e do seu ex-marido, nem se afigura suficiente a argumentação da Requerida, em sede de Alegações, sobre a força probatória do relatório da inspeção tributária, nos termos do n.º 1 do artigo 76.º, da LGT, segundo o qual “As informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei.”, se os critérios objetivos a que deve obedecer o relatório da inspeção tributária não cumprem o disposto no artigo 55.º, do RCPITA, não foram disponibilizados à Requerente, nem a Requerida os fez juntar aos autos.

 

Tanto bastará para que se considere provada a falta de fundamentação substancial das correções à matéria coletável da sociedade C……., Unipessoal, Ld.ª, sem necessidade de outras indagações, nomeadamente as relativas à residência do sócio a quem tal matéria coletável foi imputada em sede de IRS, cujo conhecimento fica prejudicado, por inútil à decisão, de harmonia com os artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

1.3 – Da falta de fundamentação formal

Tal como resulta do probatório, também não constam dos autos quaisquer indícios de a AT ter cumprido o dever de fundamentação formal das liquidações de IRS emitidas em nome da Requerente e do seu ex-marido para os anos de 2015, 2016 e 2017.

 

É reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina que a fundamentação formal dos atos tributários cumpre uma dupla função – a de revelar de forma inteligível e transparente o processo de formação da decisão pela autoridade administrativa (função endógena) e a de permitir ao sujeito passivo uma inequívoca compreensão dos motivos determinantes da sua prática e a opção esclarecida entre a conformação e a impugnação administrativa ou contenciosa (função exógena) , permitindo ainda que “o tribunal possa também exercer o efetivo controle da legalidade do ato” .

 

Como se viu, as liquidações de IRS dos anos de 2015, 2016 e 2017, objeto dos presentes autos, resultaram das declarações de substituição apresentadas para aqueles anos em nome da Requerente e do seu ex-marido, em que foram incorporadas as correções propostas pelos Serviços da Inspeção Tributária da Direção de Finanças de ……. à matéria coletável da sociedade C……., Unipessoal, Ld.ª, no âmbito de um procedimento de inspeção, do qual decorreu o enquadramento daquela sociedade no regime da transparência fiscal a que se refere o artigo 6.º, do Código do IRC, a imputar ao respetivo sócio como rendimento líquido da categoria B, nos termos do artigo 20.º, do Código do IRS.

 

De acordo com os artigos 33.º e seguintes da Resposta da AT, “o ex marido da requerente teve pleno conhecimento da matéria coletável da sociedade, porquanto, relativamente ao período de tributação de 2015, submeteu declaração de substituição mod.22 de IRC em 2019/07/30 (declaração de substituição n.º ….-….-…..-..), fazendo nela incluir a totalidade da correção proposta pelos SIT no procedimento inspetivo DI2019…….,da DF de …..”, “Relativamente aos períodos de tributação de 2016 e 2017, igualmente submeteu declarações de substituição mod.22 de IRC em 2019/07/30 (declaração de substituição n.º …..-….-…..-.., relativa ao ano de 2016, e declaração de substituição n.º ….-……-……-.., relativa ao ano de 2017), fazendo nela incluir a totalidade das correções proposta pelos SIT no procedimento inspetivo credenciado pelas ordens de serviço n.º  OI2019……./… e Despacho n.º  OI2019……, da DF de …...” e “Quanto  à imputação da matéria coletável, nos termos do art.º  6.º  do CIRC, no decurso das ações inspetivas credenciadas pelas Ordens de Serviço nºs. OI 2019……., OI2019……. e OI2019……, da DF de ……., o sujeito passivo, não só teve conhecimento do novo enquadramento no regime de transparência fiscal e das propostas de correção ao IRS dos anos de 2015, 2016 e 2017, como procedeu à regularização voluntária da sua situação tributária, com a entrega de declarações de substituição e de pedido para efeitos de redução de coima nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 29.º do RGIT, pelo que foi elaborado relatório sucinto nos termos do n.º 3 do aludido artigo”.

 

                A fim evitar repetições inúteis, diremos que se aplica às declarações de substituição modelo 22 de IRC apresentadas em nome da sociedade C……., Unipessoal, Ld.ª, quanto ficou dito acerca das declarações de substituição modelo 3 de IRS apresentadas no decurso de um procedimento de inspeção tributária – a sua apresentação não dispensa a AT de provar os factos em que assenta a liquidação emitida com base em tais declarações de substituição, incorporando as correções propostas.

 

Para além de que o conhecimento de tais correções sempre implicaria a sua notificação ao sócio, por corresponderem a acréscimos do respetivo rendimento tributável como rendimentos líquidos da categoria B, pois, embora sujeitos passivos de IRC, as entidades transparentes, regime em que foi reenquadrada a  sociedade C…… Unipessoal, Ld.ª, estão dele isentas, salvo quanto às tributações autónomas, nos termos do artigo 12.º, do Código do IRC, sendo o sócio o verdadeiro sujeito passivo, por via da já mencionada imputação especial.

 

Ora, como resulta dos factos dados como provados e como não provados, a Requerida limita-se a afirmar que o sujeito passivo teve pleno conhecimento daquelas correções, não indicando a qual dos sujeitos passivos se refere – se à Requerente, se ao seu ex-marido, falecido em data anterior ao início do procedimento de inspeção aberto pelas ordens de serviço n.ºs OI2019…… e OI2019……e à entrega das declarações de substituição de IRS para os anos de 2015, 2016 e 2017, nem demonstrando por que via o sujeito passivo delas teve conhecimento.

Em conclusão:

Face ao exposto, conclui-se, pois, que as liquidações impugnadas padecem dos vícios que lhes são imputados pela Requerente, de falta de fundamentação, quer substancial, quer formal, o que justifica a sua anulação, nos termos artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

As liquidações de juros compensatórios, enquanto dívida acessória da dívida de imposto, têm como pressupostos as respetivas liquidações de IRS, pelo que enfermam dos mesmos vícios daquelas, que justificam também a sua anulação.

 

Anulados os atos tributários de primeiro grau, consubstanciados nas referidas liquidações de IRS e juros compensatórios, justifica-se igualmente a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que os teve por objeto.

 

2. Dos pedidos de restituição do indevido e juros indemnizatórios

O processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte), da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), devendo entender-se incluídos na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os poderes que, na impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, como é o de apreciar o erro imputável aos serviços.

 

Por outro lado, face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, fica a AT vinculada a, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”.

 

De igual modo, o n.º 1 do artigo 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, estabelece que “1 - A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.

 

O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º da LGT, de acordo com cujo n.º 1 estes são devidos “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Padecendo as liquidações de IRS dos anos de 2015, 2016 e 2017 de vício de violação de lei, por falta de fundamentação das correções que lhe estão subjacentes, imputável aos serviços, há que reconhecer o direito da Requerente à restituição do imposto indevidamente pago, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

 

IV. DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral:

a)            Declarar a ilegalidade das liquidações adicionais de IRS n.ºs 2019 ………, referente ao ano de 2015, no valor de € 13 827,96, n.º 2019 …….., referente ao ano de 2015, no valor de € 911,95, n.º 2019 ………., referente ao ano de 2016, da quantia de € 25 248,93 e n.º 2019 ………., referente ao ano de 2017, no montante de € 17 923,78, assim como a sua consequente anulação;

b)           Declarar a ilegalidade e determinar a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ……………., que teve aquelas liquidações por objeto;

c)            Condenar a Requerida na restituição à Requerente do IRS apurado nas liquidações anuladas, no valor global de € 57 912,62;

d)           Reconhecer o direito a Requerente a juros indemnizatórios sobre a prestação tributária indevidamente paga, desde a data do pagamento até ao processamento da respetiva nota de crédito.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 57 912,62 (cinquenta e sete mil, novecentos e doze euros e sessenta e dois cêntimos).

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 2 142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 2 de dezembro de 2021.

 

O Árbitro,

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.