SUMÁRIO:
Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, a norma do art.º 11.º do CISV, na redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28.12, mostra-se incompatível com o direito comunitário, por violação do art.º 110.º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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No dia 15 de Julho de 2020, A..., Lda., NIPC ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ..., MAFRA, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos seguintes actos de liquidação de Imposto sobre Veículos Automóveis, referentes aos anos de 2017, 2018 e 2019, no valor de € 252.580,44:
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Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que a tabela constante do n.º 1, do artigo 11.º do Código do ISV, é ilegal, por violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento de União Europeia, ao não aplicar a redução de anos de uso (depreciação) à componente ambiental.
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No dia 16-10-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 03-09-2020 as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 06-10-2020.
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No dia 11-11-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.
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Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
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Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
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Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
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A Requerente é uma sociedade que se dedica ao comércio de veículos automóveis usados.
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Nos anos de 2017, 2018 e 2019 a contribuinte comprou diversos veículos usados em vários países da União Europeia.
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Nos anos de 2017, 2018 e 2019, a Requerente apresentou as Declarações Aduaneiras de Veículo (DAV), juntas como documento 1 do Requerimento Inicial, que aqui se dá por reproduzido, por transmissão eletrónica de dados, para introdução no consumo dos veículos, ligeiros de passageiros, usados, provenientes de outros Estados-membros da União Europeia, com referência aos veículos automóveis com as características descritas nessas declarações, foram as DAV apresentadas.
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Com referência às mencionadas DAV, apresentadas pela ora Requerente, operador sem estatuto, foram declarados os veículos das marcas indicadas no Quadro E, atinente às “características do veículo” e atribuídas as matrículas que constam do Quadro M.
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Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, os veículos declarados inserem-se nos escalões correspondentes com indicação das percentagens de redução em função dos anos de uso, conforme resulta da referida tabela (cf. teor das DAV junto ao PA).
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Do Quadro E das DAV, constam, na casa 50, quanto à Emissão de Gases CO2, os valores respectivos.
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O cálculo do ISV, que consta do Quadro R das DAV, foi efectuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e calculado o ISV atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo.
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Foi efectuada a liquidação do imposto, relativa aos veículos identificados nas DAV, conforme indicado no Quadro T das declarações, constando destas, igualmente, a identificação dos actos de liquidação e data da liquidação, montante, termo final do prazo de pagamento, data de cobrança e a identificação do autor do acto.
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A Requerente pagou as liquidações referidas.
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Em 23-12-2019, a Requerente apresentou junto da Alfândega do Jardim do Tabaco, pedido de revisão oficiosa dos actos de liquidação de imposto, não tendo o mesmo sido decidido no prazo legal.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
i. da matéria de excepção
Começa a Requerida a sua defesa, arguindo a extemporaneidade do pedido arbitral, na medida em que, conforme aponta, “o prazo previsto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT só é aplicável se o fundamento de revisão do ato tributário consistir em erro e esse erro for imputável aos serviços, o que não se verifica no presente caso”, pelo que o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, terá sido extemporâneo para a grande maioria das liquidações objecto da presente acção arbitral, sendo, consequentemente, extemporâneo o pedido arbitral.
A este propósito, dispõe o artigo 10.º/1 do RJAT que:
“O pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado:
a) No prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico;”
Já o artigo 102.º do CPPT, dispõe que:
“1 - A impugnação será apresentada no prazo de três meses contados a partir dos factos
seguintes:
a) Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas
ao contribuinte;
b) Notificação dos restantes atos tributários, mesmo quando não deem origem a qualquer
liquidação;
c) Citação dos responsáveis subsidiários em processo de execução fiscal;
d) Formação da presunção de indeferimento tácito;
e) Notificação dos restantes atos que possam ser objeto de impugnação autónoma nos termos
deste Código;
f) Conhecimento dos atos lesivos dos interesses legalmente protegidos não abrangidos nas alíneas anteriores.”
Como resulta da norma transcrita, conjugada com a alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, a presente acção será tempestiva se apresentada no prazo de 90 dias, contados da formação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, se apresentado no prazo legal, já que, desde logo, não o tendo sido, inexiste dever legal de decisão e, consequentemente, indeferimento tácito.
No caso, haverá que concluir pela tempestividade do pedido de revisão oficiosa e, consequentemente, da presente acção arbitral.
Com efeito, ao contrário do que sustenta a Requerida, a situação configurada no pedido de revisão enquadra-se, abstractamente, no conceito de erro imputável aos serviços.
Como se explicava já no Acórdão do STA de 21-01-2009, proferido no processo 0771/08:
“O “erro imputável aos serviços” concretiza qualquer ilegalidade, não imputável ao contribuinte mas à Administração, com ressalva do erro na autoliquidação que, para o efeito, é equiparado aos daquela primeira espécie artigo 78.°, n. 2 in fine ( Acórdão citado de 17/5/2006).
É o que este STA tem uniforme e reiteradamente afirmado, a propósito do artigo 43.° da LGT.
Como se refere no acórdão de 12 de Dezembro de 2001, recurso n. 26.233: “havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte.”[1].
Deste modo, e pelo exposto, haverá que concluir pela improcedência da excepção ora em apreço.
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ii. da redução do pedido
No seu contraditório relativo à matéria de excepção contida na resposta da Requerida, veio a Requerente reduzir o pedido para o montante de € 233.987,59, desistindo da pretensão anulatória relativa às liquidações contidas nos documentos 26, 46, 54, 109, e 114 juntos com o Requerimento Inicial (por respeitarem a outro sujeito passivo), bem como reconhecendo que a liquidação contida no documento 87 constitui uma duplicação da contida no documento 85, também ambos juntos com o Requerimento inicial.
Assim, nos termos dos artigos 277.º/d), 285.º/1, e 286.º/2 do CPC, deverá ser admitida a requerida redução do pedido, absolvendo-se a Requerida do mesmo, nessa parte.
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iii. do fundo da causa
A questão de fundo que cumpre dirimir nos presentes autos prende-se com saber se a tabela constante do n.º 1, do artigo 11.º do Código do ISV, é ilegal, por violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento de União Europeia, ao não aplicar a redução de anos de uso (depreciação) à componente ambiental.
Esta questão foi já objecto de vasta jurisprudência arbitral, nos tribunais constituídos sob a égide do CAAD, tendo sido dada resposta, unanimemente, no sentido positivo, ou seja, que se verifica efectivamente a arguida violação do direito da UE.
Assim, e como se escreveu no acórdão proferido no processo arbitral n.º 317/2020T, do CAAD, em termos que se subscrevem integralmente, julga-se que:
“O artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV, objeto de discussão nos presentes autos, foi objeto de alterações posteriores à decisão, desfavorável para Portugal, da ação por incumprimento movida pela Comissão Europeia (processo C-200/15).
Com efeito, a Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, passou a admitir a desvalorização do veículo incidente sobre o critério cilindrada tendo em conta uma percentagem de redução de 10% no decurso primeiro ano de utilização, a qual aumenta de forma progressiva até 80% para veículos com mais de 10 anos (anteriormente não era tida em conta qualquer desvalorização dos veículos usados importados com menos de 1 ano e a desvalorização dos veículos era limitada a 52% o que, como acima referido, o Tribunal de Justiça julgou desconforme ao artigo 110.º do TFUE, no processo C-200/15).
Por outro lado, a Requerida afirma que a jurisprudência europeia não se pronuncia especificamente sobre a questão da percentagem de redução de ISV aplicável a um veículo usado “importado” apenas incidir seletivamente sobre um elemento específico de tributação, a cilindrada, e não sobre a componente ambiental. Assim, parece defender que o Tribunal de Justiça ainda não tomou posição sobre a particular questão de direito que é suscitada nesta ação arbitral.
Sem prejuízo da alteração legislativa referida e de a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por ser anterior, não ter apreciado a específica redação do artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV, na versão em vigor à data dos factos [2017 a 2019], afigura-se que a questão que se suscita é análoga às que foram objeto de pronúncia por parte daquele Tribunal e atrás assinaladas.
Com efeito, a parametria fundamental subjacente à jurisprudência constante do Tribunal de Justiça é a de o artigo 110.º não admitir a diferenciação fiscal entre os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros e os veículos nacionais usados com características equiparadas.
Ora, tal critério não pode julgar-se satisfeito se uma das componentes da tributação do imposto automóvel nacional aplicada a veículos novos – a componente ambiental – não sofre qualquer desvalorização ou redução quando se trata da admissão de veículos usados provenientes de outros Estados-Membros. Assim, na componente ambiental, estes veículos acabam por comportar uma tributação equivalente à de um veículo novo, sem atender à normal depreciação que um usado forçosamente tem. Pelo que, desta forma, o tratamento dos usados provenientes da União Europeia acaba por ser desfavorável quando comparado com o dos usados nacionais, atento imposto (meramente) residual contido nestes últimos, concluindo-se que o 11.º, n.º 1 do Código do ISV é, por essa razão, incompatível com o comando anti discriminatório que o artigo 110.º do TFUE contém.
Este é também o sentido da jurisprudência arbitral, conforme se pode constatar das decisões proferidas nos processos do CAAD n.ºs 572/2018-T, de 03.04.2019; 346/2019-T, de 02.11.2019; 350/2019-T, de 27.01.2020; 348/2019-T, de 31.01.2020; 498/2019-T, de 31.01.2020; 466/2019-T, de 06.03.2020; 660/2019-T, de 15.06.2020; 872/2019-T, de 25.06.2020; e 98/2020-T, de 30.10.2020.
Neste âmbito, transcrevem-se os seguintes excertos ilustrativos:
“[…] o art. 11.º do CISV está em clara desconformidade com o disposto no art. 110.º do TFUE, visto que, por via da exclusão de qualquer redução quanto à componente ambiental, se sujeitam os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional – o que, como se viu, é contrário ao que tem sido a orientação do TJUE no que diz respeito à interpretação do referido art. 110.º.”
Ou:
“62. Ora, ao conferir a percentagem de redução apenas sobre a componente de cilindrada, o legislador português está a tratar os veículos usados provenientes de outro EM como veículos novos na parte relativa à tributação da componente ambiental, não refletindo o respetivo tempo de uso.
63. O que, só por si, faz com que a tributação destes veículos usados seja superior ao montante da taxa residual de ISV incorporada em veículos usados já matriculados em território nacional com o mesmo tempo de uso.
64. E leva a que Portugal esteja a cobrar imposto sobre os veículos usados “importados” de outros EM, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.”
Ou ainda:
“[…] a tributação automóvel pode assentar em critérios objetivos, como sejam o tipo de motor, a cilindrada e, inclusivamente, uma classificação assente em considerações ambientais. Porém, quando aplicados a veículos usados importados de outros Estados-Membros, o montante de imposto cobrado não pode exceder o montante que se contém no valor residual de veículos usados similares já registados no Estado-Membro de importação. É, pois, constante a orientação do Tribunal de Justiça, no que concerne à interpretação daquele artigo 110.º quando referido a tributação automóvel: um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados-Membros do que os produtos nacionais similares. […]
Nestes termos, julga-se incompatível com o direito comunitário a norma do artigo 11.º do Código do ISV, na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional.”
Impõe-se, desta forma concluir que a não redução da componente ambiental no cômputo do ISV devido pela admissão de veículos usados provenientes de outros Estados-Membros da União Europeia inquina o n.º 1 do artigo 11.º do Código do ISV por constituir uma discriminação (negativa) desses veículos, desconforme ao disposto no artigo 110.º do TFUE.
Esta conclusão não é afastada pelo argumento, trazido pela Requerida, de que o legislador nacional atendeu, no artigo 11.º, n.º 1 do CISV, a que a componente ambiental se destina a compensar os efeitos nefastos que os veículos automóveis causam ao ambiente, em linha com a política da União no domínio do ambiente, definida no artigo 191.º do TFUE, e com o disposto no artigo 66.º da CRP sobre o direito ao ambiente e qualidade de vida. Acrescenta que o regime fiscal visa, de forma idêntica, o cumprimento das responsabilidades ambientais assumidas no âmbito do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris.
Segundo este raciocínio, do artigo 191.º do TFUE extrair-se-ia uma norma de adequação ao artigo 110.º do TFUE, pelo que estaríamos perante uma discriminação permitida.
Na verdade, a preservação do ambiente constitui um objetivo fundamental, devendo a política fiscal compatibilizar-se com a mesma e, na medida do possível, contribuir para este desiderato. No entanto, segundo entendemos, na presente ação arbitral não é posto em crise esse ponto de vista.
A questão que se coloca nos autos não é a da escolha entre uma solução ambientalmente responsável e outra que não o seja. O legislador nacional pode (e deve) adotar medidas fiscais que promovam e salvaguardem o ambiente. Dito isto, terá, contudo, de o fazer na mesma medida para os produtos nacionais e para aqueles que são procedentes de outros Estados-Membros da União Europeia, não lhe sendo lícito discriminar desfavoravelmente os veículos de outros Estados-Membros por razões ambientais sem que faça recair o mesmo agravo sobre os veículos nacionais. Foi, aliás, este entendimento que o Tribunal de Justiça claramente subscreveu no caso Ioan Tatu, C-402/09.
Perfilhando idêntica posição, refere a decisão arbitral 98/2020-T:
“44. […] a preocupação ambiental pode ser entendida diversamente pelos diferentes Estados-membros, conduzindo a regimes mais ou menos exigentes, inclusivamente em termos fiscais, mas esses regimes hão-de respeitar o princípio da igualdade e não discriminação.
45. A leitura do art. 191.º TFUE (e bem assim das regras constitucionais relativas ao ambiente) não impõe qualquer adequação do princípio da neutralidade fiscal, pela simples razão que não existe qualquer conflito entre elas.
46. A invocação do princípio da equivalência merece a mesma apreciação: pode o legislador entender deve onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária – tal como refere a Requerida -, mas isso não lhe permite taxar de forma agravada os veículos usados importados.”
É a própria Requerida que, ao defender que a aplicação do disposto no artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV “não obsta à admissão de veículos usados em território nacional”, acaba por afirmar que se pretende “orientar os consumidores na escolha de veículos com menores emissões de dióxido de carbono”, o que conduz implicitamente, e de forma inevitável, à conclusão de que há uma tributação mais gravosa dos veículos usados adquiridos em transações intracomunitárias, o que é vedado pelo artigo 110.º do TFUE.
De notar que a redação do artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV foi recentemente modificada pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro (LOE2021), passando a prever percentagens de redução, não só tendo em conta a componente cilindrada, mas também a componente ambiental .
3.4. Sobre a Alegada Inconstitucionalidade da Interpretação da Requerente
Violação do Princípio da Legalidade
Na tese da Requerida, a conclusão pela desconformidade do artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV com o artigo 110.º do TFUE consubstancia um benefício fiscal que não se encontra previsto na lei, pelo que a mesma viola o princípio da legalidade, constante do n.º 2 do artigo 103.º, n.º 2 da CRP.
Contudo, não se pode acolher a premissa usada no silogismo da AT, pois a desaplicação de um regime (fiscal) nacional incompatível com o Direito Europeu não representa um benefício fiscal, mas a correção de um parâmetro imperativo para o Estado português que não foi respeitado. Estamos, assim, perante a aplicação do princípio da neutralidade fiscal ínsito no artigo 110.º do TFUE e não face à atribuição de um benefício fiscal. Deste modo, não se verifica a necessidade de uma intervenção legislativa, sendo suficiente o quadro legal preexistente, que inclui o Direito Europeu, para fundar o princípio da não discriminação que consta do TFUE que determina a desaplicação das soluções que o legislador ordinário adote e não se coordenem ao mesmo princípio.
Como referido na decisão arbitral n.º 660/2019-T, o artigo 11.º, n.º 1 do Código do ISV leva a que “Portugal esteja a cobrar imposto sobre os veículos usados «importados» de outros EM, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional (ou seja, ao contrário do que alega a AT, não existe qualquer benefício fiscal que decorra do reconhecimento do número de anos de uso do veículo na tributação da componente ambiental; trata-se de uma mera equiparação da tributação de produtos similares).” (realce nosso)
Posição que a decisão arbitral n.º 98/2020-T secunda, nos seguintes termos:
“51. A liberdade argumentativa da AT assume mesmo algum excesso quando pretende que uma eventual aplicação dos níveis de redução previstos para a componente cilindrada à componente ambiental redundaria numa subversão da tributação da componente ambiental, resultando na atribuição de um benefício.
52. Se, do que se trata, é sempre e apenas da neutralidade fiscal, desta não pode, por definição, resultar a atribuição de qualquer benefício.”
Nestes termos, não se identifica a violação do princípio da legalidade que a Requerida imputa à interpretação preconizada.
Violação do Direito ao Ambiente
Neste ponto, continua a não assistir razão à Requerida. Com efeito, não se infere do princípio da neutralidade fiscal e da não discriminação qualquer violação dos objetivos ambientais ou do disposto no artigo 66.º, n.º 2, alíneas a), f) e h) da CRP, nem a Requerida logra explicar porque chega a tal conclusão, pelo que também se conclui pela improcedência do alegado pela Requerida.
Violação dos Princípios do Estado de Direito e do Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional Efetiva
Por fim, a Requerida considera que a interpretação da Requerente viola o disposto nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4 e 266.º da CRP, partindo do pressuposto, novamente erróneo, de que uma decisão que desaplique norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia, não é passível de recurso para o Tribunal Constitucional, pois não é enquadrável nas alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.
A este respeito convém, antes de mais, notar que os tribunais arbitrais fazem parte das categorias de tribunais previstas no artigo 209.º da CRP, pelo que as suas pronúncias são emitidas mediante processo equitativo e têm natureza jurisdicional, a que se soma o facto de as suas decisões serem emitidas em prazo razoável.
Por outro lado, a faculdade de submissão de atos de liquidação de ISV à jurisdição arbitral foi expressamente determinada pelo legislador ordinário no artigo 4.º, n.º 1, conjugado com o artigo 2.º, n.º 1, ambos do RJAT, e concretizada na Portaria de Vinculação.
Acresce não se perceber invocação pela Requerida do artigo 266.º da Constituição, que versa sobre os princípios fundamentais da atuação da administração pública e não sobre o princípio da tutela jurisdicional efetiva.
Por fim, no tocante ao regime de recursos (duplo grau de decisão), contrariamente ao que é afirmado pela Requerida, o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões arbitrais não se restringe às situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, abrangendo também as da alínea i) do mesmo número, relativas às decisões que “recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional”.
Neste sentido, compulsa-se o acórdão n.º 711/2020, de 09.12.2020, do Tribunal Constitucional, de que se transcreve o seguinte excerto com relevo para a questão:
“[…] é de aplicar aos tribunais arbitrais as vias de recurso de decisões judiciais para o Tribunal Constitucional previstas na Constituição e na LTC, incluindo a estabelecida na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. É certo que a letra do artigo 25.º, n.º 1, do RJAT refere que a «decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é suscetível de recurso para o Tribunal Constitucional na parte em que recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada». No entanto, a ausência de uma referência expressa à via de recurso prevista na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC não pode ser interpretada como restringindo o acesso ao Tribunal Constitucional, nesse contexto. Efetivamente, estando os recursos para o Tribunal Constitucional estabelecidos na Constituição e na LTC, que é uma lei orgânica, com valor reforçado (artigo 164.º, alínea c), e artigo 166.º, n.º 2, da Constituição), nunca poderia o RJAT – que é um decreto-lei autorizado – pretender eliminar uma ou mais dessas vias, sob pena da sua inconstitucionalidade. Assim, o artigo 25.º, n.º 1, RJAT deve ser interpretado, à luz da Constituição, como reafirmando que das decisões arbitrais, como de quaisquer outras decisões judiciais em Portugal, cabe recurso para o Tribunal Constitucional nos termos e condições previstos no artigo 280.º da Constituição e nos artigos 70.º e seguintes da LTC.”
Conclui-se, desta forma, que a interpretação preconizada pela Requerente não enferma das inconstitucionalidades apontadas pela AT.”
Pelos fundamentos expostos, deve, portanto, proceder o pedido arbitral.
Não obstante, e como aponta a Requerida na Resposta, e se tem concluído na maioria das decisões arbitrais que se têm debruçado sobre esta questão, tal procedência deve ser meramente parcial.
Com efeito, e consensualmente, está em causa, no que ora se discute, apenas a componente ambiental do ISV, na parte em que, ao contrário do que acontece para a componente cilindrada, não atende à desvalorização (depreciação) das viaturas usadas importadas.
Ora, nos termos do n.º 3 do art.º 11.º do CISV, o ISV é calculado de acordo com a fórmula (V[valor comercial do veículo]/VR[preço de venda ao público] x Y[componente cilindrada]) + C[componente ambiental], sendo que, como se referiu, a desconformidade com o Direito da União se restringe à consideração da componente ambiental, sem atender, como ocorre relativamente à componente cilindrada, à depreciação da viatura.
Sendo consabido que acto tributário é, por natureza, divisível, tem-se entendido que:
“I - O acto tributário, enquanto acto divisível, tanto por natureza como por definição legal, é susceptível de anulação parcial.
II - O critério para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado passa por aferir se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado, ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.
III - Se a liquidação de juros compensatórios apenas enferma de falta de fundamentação relativamente aos últimos três meses a que se refere, só nessa parte deve ser anulada, pois a conformação do acto após essa anulação resulta de uma mera operação aritmética, não demandando a prática de novo acto tributário.”[2].
No presente caso, está também em causa, unicamente, o refazer de uma mera operação aritmética, pelo que os actos objecto da presente acção arbitral deverão ser anulados apenas parcialmente, na parte relativa à consideração da componente ambiental, sem atender à depreciação das viaturas.
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Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso, o erro que afecta as liquidações parcialmente anuladas é de considerar imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Com efeito, tem sido entendido que:
“II - O facto de a ilegalidade determinante da procedência da impugnação se concretizar em violação de norma comunitária, não implica tratamento similar àquele que equaciona a aplicação de normas que venham a ser declaradas inconstitucionais.
III - Do disposto nos nºs. 1 a 3 do art. 43º da LGT resulta que, em caso de revisão, a diferença temporal relativamente ao termo inicial no pagamento de juros indemnizatórios (não serão devidos juros indemnizatórios entre o momento do pagamento indevido e o da revisão, apesar de haver erro imputável aos serviços) decorre do entendimento legislativo no sentido da culpa do contribuinte na formação dos prejuízos derivados do acto ilegal, por não ter sido diligente em usar, nos prazos normais, os meios de impugnação administrativa e contenciosa que a lei põe ao seu dispor.”[3].
Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do acto parcialmente anulado e, ainda, a ser indemnizada do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º e 35.º, n.º 10, da LGT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
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Julgar improcedente a excepção arguida pela Requerida;
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Admitir a redução do pedido formulada pela Requerente, absolvendo, nessa parte, a Requerida do pedido;
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Anular as restantes liquidações objecto da presente acção arbitral, na parte relativa à componente ambiental, na medida em que não considerou a desvalorização das respectivas viaturas, e absolver a Requerida do pedido de anulação da restante parte daquelas;
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Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos acima indicados;
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Condenar as partes nas custas do processo, fixando-se o montante de € 2.448,00 a cargo da Requerente e de € 2.448,00 a cargo da Requerida.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 252.580,44, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 4.896,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas partes na proporção do respectivo decaimento, acima fixado, uma vez que o pedido foi parcialmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se, incluindo o Ministério Público.
Lisboa
20 de Dezembro de 2021
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Rui M. Marrana)
O Árbitro Vogal
(Raquel Franco)
[1] Jurisprudência que se mantém reiterada e constante, podendo ver-se por todos o Ac. do STA de 03-06-2020, proferido no processo 018/10.5BELRS 095/18.
[2] Cfr. Ac. do STA de 28-10-2020, proferido no processo 01251/06.0BEBRG.
[3] Cfr. Ac. do STA de 18-01-2017, proferido no processo 0890/16.