Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Vasco António Branco Guimarães e Dra. Mariana Vargas (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23-08-2021, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., LDA., sociedade com sede em ..., n.º ..., ..., ..., ...-... Lisboa, titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva e de matrícula na Conservatória de Registo Comercial ... (doravante “Requerente”), apresentou, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”) pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a apreciação da legalidade e anulação da liquidação adicional de IRS n.º 2021..., no montante de € 107.240, e da correspetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., no montante de € 8.167,86, ambas de 25-01-2021.
A Requerente pede ainda indemnização por prestação indevida de garantia.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 16-06-2021.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 03-08-2021 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 23-08-2021.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.
Por despacho de 18-10-2021, foi dispensada reunião e alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
Mostram os autos o seguinte:
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A Requerente iniciou a sua actividade em 2010;
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A Requerente labora com um prestador de serviços (B...), que é seu sócio-gerente desde a sua constituição;
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A Requerente é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à prestação de serviços médicos e cujo capital social é detido pelos sócios B... e C..., bastando a assinatura de um gerente para obrigar a sociedade (Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Foi efectuada uma inspecção à Requerente ao abrigo das Ordens de Serviço n.ºs OI2019..., OI2019... e OI2020...;
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Nessa inspecção foi elaborado o projecto de Relatório da Inspecção Tributária que consta do documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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A Requerente exerceu o direito de audição nos termos que constam do documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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Na sequência do exercício do direito de audição foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:
III- Descrição dos factos e fundamentação das correções meramente Aritméticas
III.1 Correções propostas em sede de Retenções na Fonte (IRS)
Ao abrigo do princípio da colaboração e das prerrogativas da inspeção tributária nos termos dos artigos 59º e 63º da Lei Geral Tributária (LGT) e dos n.ºs 3 e 4 do artigo 29º do RCPITA, foi o sujeito passivo notificado através do ofício n.º... de 2019-10-29 para indicar o número de estabelecimentos onde é exercida a atividade identificando a respetiva morada e remeter o balancete analítico reportado a 201 8-12-31, antes de apuramento de resultados.
Em resultado da Informação dada foi aberto o Despacho OI2019..., no âmbito do qual, reunimos com o, Dr. B..., no dia 2019-11-22, no sentido de serem recolhidos alguns elementos relacionados com a sociedade A..., Lda., na qual este exerce a gerência. A ação tinha como objetivo, efetuar a contagem física da caixa daquela sociedade.
Foi elaborado o "Termo de Declarações/Contagem" constante no anexo 1 em que foi questionado o sócio-gerente acerca de:
> Descrição do funcionamento do caixa
o Pessoas encarregues do caixa:
• Tendo respondido que -"Não existe caixa."
o Localização física e existência de outros locais onde existam valores relevantes para a contagem de caixa:
• Tendo respondido que - "Não existe"
> Contagem física de valores em caixa: zero euros
Na mesma data foi ainda notificado pessoalmente o respetivo gerente para apresentação de elementos, como constante no anexo 2.
O pedido de elementos era respeitante a:
1. Balancete analítico reportado a 2018-12-31;
2. Balancete analítico o mais recente possível;
3. Folhas de caixa relativas ao período de tempo que medeia entre a data do balancete referido no ponto 2 desta notificação e a data da contagem do saldo de caixa;
4. Extratos da contabilidade das contas Caixa (11), Bancos (12), e Acionistas/sócios (26) (exercícios de 2018 e 2019 o mais recente possível);
5. Extratos bancários de todas as contas de depósitos à ordem ou outras, que reflitam os movimentos financeiros da firma supra identificada, para os anos de 2018 e 2019, até à atual data,
6. Cópias das atas de todas as deliberações em assembleia geral da sociedade, desde a data da matrícula da sociedade na Conservatória do Registo Comercial.
7. Envio do Ficheiro SAFT de 2018
8. Documentos de suporte contabilístico aos movimentos registados na conta de Acionistas/sócios (26), nos anos de 2018 e 2019, até à presente data.
9. Cópia dos contratos de mútuo eventualmente celebrados entre a sociedade e o sócio.
De referir que o sujeito passivo no exercício de 2018, entregou a IES ... em 2019-07-05, na qual declarava que o sujeito passiva detinha em caixa e depósitos bancários o montante de 502.848,72 € e em outros ativos correntes o montante de 420.626,72 €, conforme anexo 3.
Posteriormente, em 2019-11-08 veio entregar uma IES de substituição ..., tendo declarado a existência em caixa e depósitos bancários o montante de 100.135,71€ e em outros ativos correntes o valor de 803.626,72€, conforme anexo 4.
Devido a estes factos foi ouvido em termo de declarações em 2019-11-22 o sócio-gerente do sujeito passivo (anexo 5).
Foi assim inquirido sobre:
"1 - Qual o destino dado ao montante de € 404.566,42 que estava contabilizado em caixa em 31-12-2018 uma vez que, de acordo com a contagem física realizada no passado dia de hoje o valor em caixa era nulo?
2 - Alguma vez foi efetuada uma distribuição de lucros por parte da sociedade?
3 -Qual a origem e a que se referem, os montantes contabilizados na conta 26 - no balancete geral acumulado de dezembro de 2018, entretanto facultado anexo 6?
4 - Existem contratos de mútuo entre a sociedade e o sócio?
5 - Concretize para o ano de 2018 e anteriores, qual a sua função na sociedade e como é que foi remunerado?
Tendo afirmado:
"1 - Erros de registo contabilístico, dado que todos os movimentos foram efetuados através de bancos.
2 - Não. Nunca houve distribuição de lucros.
3 - Os 383.000,00€ são empréstimos efetuados ao sócio, com o devido documento de suporte e deste valor já houve uma devolução em 2019 para a sociedade. Dos 420.000,00€, também é um empréstimo devidamente titulado, cuja devolução se inicia em 2020.
4 - Sim, existem.
5-A minha função na sociedade é sócio-gerente e tenho sido remunerado como trabalhador dependente.
No âmbito das Ordens de Serviço OI2019..., OI2019... e OI2020..., foi o sujeito passivo notificado por carta registada para anexo 7:
a) Balancete analítico antes e após apuramento à data de 31/12/2017, 31/12/2018 e 31/12/2019 (em pdf);
b) Balancete analítico inicial de 2017, 2018 e 2019 (em pdf);
c) Extratos de todas as contas correntes de 2017. 2016 e 2019 (em formato excel e pdf);
d) Cópia do livro de actas (completo);
e) Extratos bancários de todas as contas de depósito à ordem ou outras, que reflitam os movimentos financeiros do sujeito passivo para os exercícios de 2017, 2018 e 2019.
f) Relatório de gestão e anexos, certificação legal das contas e parecer do Conselho Fiscal de 2017, 2018 e 2019;
g) Cópia dos contratos dos celebrados relativos aos financiamentos e créditos concedidos pelo sujeito passivo aos sócios, juntando ainda prova efetiva dos fluxos financeiros transferidos no âmbito dos referidos contratos;
2. Justifique:
a) Tendo presente os valores elevados em 2018 na IES nas rubricas do Balanço de "Outros ativos correntes" (A5124 = € 803.626.73 €) deverão:
1- Identificar todas as contas SNC associadas a cada rubrica, justificando ainda as razões da formação dos saldos devedores de cada uma das contas correntes;
2- Juntar todos os elementos comprovativos dos referidos montantes.
b) Tendo presente os valores elevados de empréstimos e créditos relevados em 2019 na IES nas rubricas do Balanço de "Acionistas" (A5118 = € 643.500,00) deverão:
1- Identificar todas as contas SNC associadas a cada rubrica, justificando ainda as razões da formação dos saldos devedores de cada uma das contas correntes;
2- Enviar cópia dos extratos das contas correntes respeitantes aos empréstimos e outros créditos sobre os acionistas desde a formação do saldo devedor;
3- Para cada financiamento e outros créditos concedidos pelo sujeito passivo aos acionistas, deverão precisar de forma individualizada por financiamento concedido, a seguinte informação: a entidade financiada com o respetivo NIF, tipo e data do contrato celebrado, montante financiado, taxa de juro praticada, finalidade do financiamento, conta do SNC associada;
Veio em 23-10-2020 através de email a Contabilista Certificada do sujeito passivo (D... NIF...) remeter a documentação solicitada, bem como prestar alguns esclarecimentos, anexo nº 8.
Desde logo, dos elementos enviados, constatámos que quanto à resposta da questão 3 do termo de declarações (anexo 5), apesar do sujeito passivo ter respondido "os 383.000,00€ são empréstimos efectuados ao sócio, com o devido documento de suporte e deste valor já houve uma devolução em 2019 para e sociedade...", o que de facto foi espelhado na contabilidade, foi uma devolução de 160.000,00€ na conta "2682 - NÃO CORRENTE", ou seja, uma devolução do empréstimo que tinha sido reconhecido na contabilidade em 2016, de 420.500,00€ e não os 383.000,00€ da conta "2683 - Não correntes", que estará em análise nos pontos seguintes. Foi confirmado de facto, através do extrato bancário do sócio-gerente e da sociedade que houve uma transferência de 160.000,00€ no dia 20/11/2019. Aliás, o reconhecimento da devolução no empréstimo reconhecido em 2016 faz todo o sentido, na medida em que se trataria (se se considerassem os 383.000,00€ um empréstimo) da amortização do empréstimo da sociedade ao sócio cronologicamente mais antigo.
Assim em face dos elementos contabilísticos remetidos pela Contabilista certificada verificamos que: anexo 9
O sujeito passivo apresentou como justificação para os saldos das contas 2682 e 2683 é justificada e originária em empréstimos da sociedade ao sócio, devidamente tituladas por contrato mútuo.
Assim o sujeito passivo em relação à conta 2683 juntou 17 alegados contratos mútuos celebrados entre a sociedade e o sócio, os quais se juntam como anexo 10, conforme quadro resumo:
Por sua vez para justificar o saldo da conta 2682, foi remetido um contrato mútuo celebrado em 2016 no valor de 420.500,00.
Por forma a demonstrar os fluxos financeiros, relativos aos contratos mútuos, e analisando os extratos contabilísticos enviados constata-se que na conta "III - Caixa", não se encontram registados os movimentos relativos aos mútuos estando os mesmos registados na conta "120001 - E..." datados de 2017 e 2018 e no extrato bancários assinalados os movimentos alegadamente respeitantes aos mútuos datados desses períodos.
Como se demonstra de seguida a explicação dos fluxos financeiros que o sujeito passivo tentou fazer tem várias incongruências.
Analisando todos os extratos bancários da conta da sociedade no E... dos exercícios de 2017 e 2018, anexo 11 verificamos que as saídas de dinheiro relativas aos mútuos não estão demonstradas, senão vejamos:
Nota: A tabela referente aos "contratos de mútuo" teve como base a tabela enviada pela C … do S. P. a folhas 1/57 do anexo 10.
Relativamente à tabela acima, dos supostos "contratos de mútuo", não nos foram enviados os documentos com datas de 18-05-2017, 01-03-2017, 01-04-2017 e 12-04-2017. Foi-nos enviado, no entanto um documento com o valor semelhante ao de 12-04-2017, datado de 07-04-2017, folhas 20/57 do anexo 10. No que toca ao documento referido como "contrato de mútuo" de 05-09-2018, a folhas 49/57 do anexo 10, o mesmo não se encontra assinado pela sócia C... .
Verifica-se que os contratos mútuos não representam efetivamente as saídas de dinheiro da sociedade para o sócio, conforme o quadro acima descrito.
Vejamos em janeiro de 2017, foram nos remetidos dois contratos de mútuo, um celebrado a 01-01-2017 no valor de 10.000,00 € e outro a 31-01-2017, no montante de 25.000,00€, ora verifica-se pelo extrato bancário que nesse mês foram efetuadas duas transferências da conta da sociedade para o sócio uma de 10.000,00 € no dia 09-01-2017 e outra de 10.000,00€ no dia 31-01-2017, valores nada coincidentes com os contratos mútuos alegadamente celebrados entre o sujeito passivo e o sócio.
No mês de fevereiro de 2017 foi alegadamente celebrado um contrato mútuo no dia 01-02-2017 no montante de 25.000,00€, ora nesse mesmo dia foi efetuada uma transferência bancária da sociedade para o sócio no montante de 55.000,00€.
O mesmo acontecendo no restante ano de 2017 bem como no exercício de 2018, isto é, os contratos mútuos alegadamente celebrados entre a sociedade e o sócio não tem a respetiva evidência nos extratos bancários.
Por outro lado, da análise a todos os extratos contabilísticos do ano de 2017, constata-se que não há nenhum registo contabilístico da existência dos contratos mútuos nem da correspondente saída de dinheiro da sociedade.
Aliás no exercício de 2017, a conta 2683 ainda nem sequer existia, os valores respeitantes aos alegados contratos de mútuo e às saídas de dinheiro foram contabilizadas a débito na conta 2683 a 31-12-2018 no montante de 383.000,00€ e lançadas a crédito na conta 11999Caixa -Outras contas de Caixa, Anexo 12, extratos da Contas de Caixa e contas 268.
Por outro lado, as contas relativas a cada exercício foram aprovadas nas respetivas Assembleias Gerais em que estiveram presentes todos os sócios (anexo 13):
- Em 2018-03-16 (ata n.º 10) foram aprovadas as contas do exercício de 2017;
- Em 2019-11-08 (ata n.º 11) foram aprovadas as contas do exercício de 2018.
Em ambas as atas destas Assembleias Gerais é referido que "A reunião teve como como ponto único aprovar as contas referentes ao exercício findo ... tendo sido aprovadas por unanimidade".
A IES relativa ao exercício de 2017 foi apresentada em 12-07-2018 não havendo nas demonstrações financeiras qualquer valor na conta de sócios. Por sua vez o sujeito passivo apresentou a primeira IES de 2018 em 15-07-2019, sendo que em 08-11-2019 o sujeito passivo apresentou uma IES de substituição relativa ao exercício de 2018 que reflete os valores dos mútuos contabilizados em 31-12-2018 (€ 383.000,00€).
Assim, quando os exercícios de 2017 e 2018 foram encerrados e as contas aprovadas não tinham sido contabilizados quaisquer contratos de mútuo sendo que, nas Assembleias Gerais de aprovação de contas esteve presente o sócio a quem os contratos de mútuo se referem terem sido concedidos empréstimos e que de acordo com as atas, aprovou as contas sem referência a quaisquer empréstimos pelo que, a existirem de facto os empréstimos nas datas que os contratos referem, pelo menos esse sócio teria obviamente conhecimento (até porque era uma das partes desses contratos).
Tendo as contas sido aprovadas sem incluir qualquer valor dos empréstimos apenas se pode concluir que, apesar dos contratos estarem datados de 2017 e 2018, à data de encerramento e aprovação das contas dos exercícios de 2017 e 2018 os contratos não existiam.
Acresce a isto que, como se pode verificar na contabilidade (alterada em novembro de 2019), os valores dos contratos apenas foram registados em dezembro de 2018.
Acresce ainda que os contratos de empréstimo a sócios, estão sujeitos a imposto de selo nos termos do n.º 1 do artigo 1º e alínea b) do n.º 1 do artigo 2º do Código do Imposto de Selo (CIS). Prevê a Tabela Geral do Imposto de Selo (TGIS), sob a epígrafe "17 - Operações financeiras", na verba "17.1 pela utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título exceto nos casos referidos na verba 17.2, incluindo a cessão de créditos, o factoring e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente ou devedor, considerando-se, sempre, como nova concessão de crédito a prorrogação do prazo do contrato - sobre o respetivo valor, em função do prazo:" definindo de seguida, nas verbas 17.1.1 a 17.1.4, a taxa aplicável e a forma de determinação do imposto devido.
Conclui-se assim que, a utilização do crédito por parte dos sócios está sujeita a imposto de selo, o sujeito passivo de imposto neste caso é a "entidade concedente de crédito", nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2º do CIS, sendo ainda esta entidade a competente para a liquidação e pagamento como prevêem os artigos 23º, 41º e 44º do mesmo diploma.
No entanto, da consulta ao sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) constatou-se que o sujeito passivo não pagou qualquer imposto de selo relativo aos recibos de mútuo apresentados, nem na data que consta dos contratos nem em momento posterior, facto que vem reforçar a impossibilidade de ter em conta a referida documentação na análise de 2017 e 2018.
De salientar ainda que, todos os alegados contratos mútuos não são superiores a 25.000,00, para evitar que os mesmos estivessem sujeitos a escritura púbica conforme o disposto no artigo 1143º do Código Civil, sendo que como atrás se referiu, há transferências bancárias da sociedade para o sócio de valores superiores a 25.000,00€, não se verificando qualquer aderência com a realidade.
Face ao exposto, considera-se que não podem ser tidos como válidos os contratos de mútuo apresentados.
Em conclusão
O sujeito passivo iniciou a sua atividade em 2010 verificando-se que:
- Esta sociedade labora com um prestador de serviços (B...);
- Pratica uma política de retenção de lucros, daí a acumulação dos mesmos em resultados transitados e reservas ao longo dos vários anos de existência da sociedade (entre 2010 e 2019 obteve resultados líquidos superiores a € 900.000,00);
- Os saldos de depósitos bancários/caixa aumentam à medida que aumentaram os resultados transitados e reservas, pois, em termos contabilísticos, os primeiros são a contrapartida dos segundos, ou seja, os resultados transitados e reservas estão refletidos em ativo da sociedade expressos nas contas 11 e 12.
- Nas contas de resultados transitados e reservas, são registados por transferência no início do ano imediato os lucros ou prejuízos apurados no exercício anterior e evidenciados na conta de resultado líquido do período;
- Os resultados transitados acumulados por esta ao longo de vários anos, efetivamente não se encontram na sociedade.
- Na IES do exercício de 2016, foram declarados no balanço da sociedade, um saldo devedor na conta de empréstimos a sócios, em "Outros Activos não Correntes conta 2682", de €420.000,00, o qual resultou de um mútuo da sociedade ao sócio efetuado no exercício de 2016, o mesmo não se analisou em virtude das ordens de serviço, não abrangerem esse exercício.
-A partir de 2017 são alegadamente celebrados mútuos para justificar as saídas de dinheiro da sociedade para o sócio, no entanto verifica-se que as datas dos contratos mútuos, bem como os montantes contratualizados, não correspondem às saídas de dinheiro da conta bancária da sociedade para o sócio.
- Nunca foi deliberado pela sociedade em Assembleia-geral, a decisão de realização de "empréstimos aos sócios", como se impunha. Logo, a existência dos aludidos "empréstimos" e a consequente disponibilização de liquidez da sociedade aos sócios não foi mencionada até então, em qualquer prestação de contas comunicada quer à Administração Tributária, quer à Conservatória do Registo Comercial, ou outra entidade.
- Os contratos de mútuos celebrados em 2017 e 2018 (17 contratos no total, havendo meses em que foram celebrados 2, no valor de €383.000,00) constituem contratos celebrados por simples documento particular, assinados pelo sócio-gerente, o Dr. B..., sempre como primeiro outorgante (mutuante), e segundo outorgante e como terceiro outorgante C... .
- Note-se que em relação a estes contratos de mútuo não foi pago qualquer imposto do Selo, que sempre seria devido se a verdadeira natureza fosse essa, nem foi contabilizado qualquer pagamento de juros decorrente dos mesmos. Ainda que previsto no Código Civil, importa considerar que não é comum a inexistência de juros num contrato de mútuo, pois se os contratos fossem firmados entre entidades independentes, não seriam certamente esses os pressupostos. Por outro lado, ao disponibilizar aos sócios a liquidez gerada pela empresa, impediu que esta beneficiasse dos juros associados a qualquer aplicação que pudesse ter efetuado;
- Não podemos deixar de mencionar que os alegados "contratos de mútuo", celebrados entre entidades relacionadas, deveriam tê-lo sido por escritura pública, como dispõe o artº 1143º do Código Civil, ficando assim atacada a sua validade.
- Em complemento, verifica-se que através dos extratos bancários da sociedade os exfluxos financeiros subjacentes às operações descritas nos documentos que titularam os empréstimos de mútuo da sociedade aos sócios (contratos), não consubstanciam as saídas relacionadas com os mútuos conforme o quadro acima descrito;
- Estas operações relacionadas com os contratos mútuos apenas foram registadas contabilisticamente em dezembro de 2018, sendo que as saídas de dinheiro da sociedade iniciaram-se em 2017, independentemente da natureza que assumiram, deveriam sempre pressupor uma deliberação societária, a constar em acta dos órgãos decisores, justificando e identificando as operações, decisão essa que nunca ocorreu;
- Finalmente, refletindo os valores evidenciados na contabilidade, o SP com a entrega da IES/DA respeitante ao exercício de 2019, no balanço da empresa, vem declarar que, em 31/12/2018, detinha ativos respeitantes a empréstimos concedidos a sócios.
Enquadramento legal dos rendimentos atribuídos aos sócios em 2018
No seguimento da análise efectuada no âmbito do presente procedimento inspetivo, de todos os factos observados, dos documentos avaliados e dos esclarecimentos prestados, conclui-se que a empresa não concretizou quaisquer empréstimos aos sócios. O que as entregas de recursos financeiros efetuadas pela empresa ao sócio refletem objetivamente, com origem em "Depósitos à ordem", é a colocação à disposição dos sócios de rendimentos, constituindo um incremento patrimonial dos seus rendimentos.
Também não estão reunidos os pressupostos para que tal colocação à disposição seja considerada rendimentos do trabalho (nomeadamente, o facto de não haver qualquer conexão dos valores em causa com o trabalho prestado). Com efeito, apenas se pode concluir que se está perante rendimentos de capitais, sob a forma de distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros;
Tendo-se demonstrado a inexistência de mútuos da sociedade aos sócios, face à inexistência de outro fundamento válido para fazer afastar a presunção prevista no artº 6, nº 4 do CIRS (como resultarem da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais), terão que prevalecer as datas de lançamento dos mútuos expressas pela contabilidade;
Note-se que o registo contabilístico, gera em si mesmo o facto tributário.
A este respeito o Acórdão do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), no processo nº 3/2017-T refere:
"deliberações de distribuição de lucros (ou reservas), como as adotadas pelos sócios da Requerente em 2012 e 2013, geram um facto tributário na data em que tais saídas de caixa são contabilizadas, sobre o qual não tendo havido anteriormente liquidação de IRS, quando das apropriações ou levantamentos deve haver liquidação, (...) pois que a Requerente incumpriu a obrigação de retenção na fonte de IRS devido em função dos factos tributários que se tinham verificado nos exercícios anteriores." (sublinhado nosso).
No caso em análise, as saídas da conta bancária da sociedade com destino ao sócio, apenas foram reconhecidas na contabilidade em dezembro de 2018, sendo aqui gerado o facto tributário.
Neste sentido, ficou provado que no exercício em análise, a sociedade reconheceu no seu balanço, o montante total de empréstimos concedidos ao sócio de € 383.000,00, lançados contabilisticamente em 31-12-2018 na conta corrente de empréstimos a sócios conta 2683, declarando-os na IES/DA do exercício de 2018, declaração esta que transpõe os documentos de prestação de contas da sociedade daquele exercício, que foram objecto de deliberação e aprovação pelos sócios em Assembleia-geral, já comunicadas quer à Administração Tributária, quer à Conservatória do Registo Comercial, dando a conhecer a informação financeira sobre a gestão e a situação patrimonial da sociedade daquele exercício.
Desta forma, encontram-se reunidos os elementos necessários, em função dos quais, se conclui que a colocação à disposição dos sócios das Importâncias que a sociedade detinha em "Depósitos à Ordem" se refere a distribuição de lucros ou adiantamentos por conta de lucros, não podendo de forma alguma ser caracterizada como empréstimos/mútuos ou rendimentos do trabalho.
Conclui-se que o SP procurou fazer sair da sociedade a favor do sócio, os seus resultados, evitando a tributação dos mesmos, quer ao nível da sociedade, quer dos sócios.
A distribuição de lucros e de adiantamento por conta de lucros ocorreu no momento em que, de uma forma objectiva, se reconheceu contabilisticamente a sua colocação à disposição dos sócios, o que sucedeu mediante o crédito dos "depósitos à ordem" por débito dos sócios.
No seguimento do que se referiu anteriormente, conclui-se que os rendimentos assim distribuídos aos sócios constituem rendimentos de capitais (categoria E) por força do nº 1 do artº 5.º do CIRS, cujo enquadramento está especificado na alínea h) do nº2 do mesmo artº 5º do CIRS. Segundo este normativo, estão sujeitas a IRS, por enquadramento na categoria E, os "Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros...".
Assim, com base na alínea h) do nº 2 do artº 5º do CIRS, a disponibilização da sociedade aos sócios de importâncias que a empresa tinha registado em "depósitos à ordem" e que totalizaram o montante de € 383,000,00€, será de considerar que ocorreram a título de distribuição de lucros ou de adiantamento por conta de lucros.
Recolhida a prova contabilística, deu-se por preenchido o fundamento legal base da presunção estatuída no artº 6, nº 4 do CIRS, segundo o qual "Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros."
Neste sentido, o montante de € 383.000,00 constitui o montante dos rendimentos lançados na contabilidade do SP em 31-12-2018, em conta corrente do sócio, que tiveram por base transferências de valores de contas de "caixa 11999" assumindo a natureza de distribuição de lucros ou adiantamentos por conta de lucros enquadráveis como rendimentos da categoria E (artº5, nº2, al. h) do CIRS.
A distribuição de lucros e os adiantamentos por conta de lucros estão sujeitos a retenção na fonte, a título definitivo, à taxa liberatória de 28%, em sede de IRS, conforme dispõe o artº 71º, nº1, al. a) do CIRS, que conforme o indicado no nº 3 do artigo 98º do mesmo diploma deverá ser entregue nos cofres do Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que se reporta.
Note-se que a sociedade inspecionada não procedeu à retenção do IRS devido, a que estava obrigada nos termos do artigo nº 2, al. a) do CIRS.
Momento da tributação e repartição dos rendimentos de capitais a tributar por período
Sintetizando, € 383.000,00 constitui o montante das entregas totais da sociedade aos sócios contabilizadas no exercício de 2018, que foram considerados pelo SP como empréstimos aos sócios, qualificação essa que deve ser desconsiderada, tal como se comprovou anteriormente, por configurarem uma distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros (facto tributário), enquadráveis no disposto artº5, nº2, al. h) e no artº6, nº4, ambos do CIRS.
Os factos descritos traduzem a existência de valores contabilizados em contas de "caixa e bancos" que indubitavelmente foram entregues aos sócios, consumando-se a transferência de propriedade dos mesmos em benefício dos sócios, que assim viram o seu património aumentar.
No que respeita aos montantes sujeitos a tributação, foi fixado o valor correspondente às importâncias colocadas à disposição dos sócios, conforme relevam as contas da contabilidade da sociedade, como se de empréstimos aos sócios se tratassem.
O artº7º, nº1 e nº3, alínea a), nº2 do CIRS consagram que o momento a partir do qual ficam sujeitos os rendimentos de capital (categoria E) corresponde à data da colocação à disposição.
Assim, em função dos factos já apresentados e comprovado o facto tributário, todas as eventuais dúvidas quanto ao momento da entrega dos rendimentos de capitais aos sócios são dissipadas tendo em conta que a informação constante nas demonstrações financeiras declaradas pelo SP ao longo dos anos (seja respeitante aos seus activos, onde se encontram os "saldos bancários", seja a que se reporta às "reservas" e aos resultados obtidos, ou ainda as operações que se referem a entregas de valores de "depósitos à ordem" aos sócios) constitui uma informação aprovada e certificada pelos sócios anualmente, em Assembleia-geral e comunicada a várias entidades.
Atendendo a todas as evidências anteriormente expostas, considera-se que a distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros ocorreu no momento em que se reconheceu contabilisticamente a sua colocação à disposição dos sócios, que aconteceu a 31-12-2018, sendo este o facto tributário.
Nos termos do artigo 5º do CIRS "Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.
Dispõe por sua vez, o artº 6º do mesmo compêndio legal, sob a epígrafe "Presunções relativas a rendimentos da categoria E", "Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros."(nº4), sendo que "As presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira."(nº 5).
Nestas condições, tendo em conta a previsão do art6º nº4 do CIRS para que a AT aplique a presunção de que os lançamentos em conta corrente do sócio são feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros, deverá demonstrar que estes valores não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
Analisando os pressupostos para aplicação da presunção supra referida verificamos que:
Em relação à existência ou não de mútuos, os mesmos já foram anteriormente analisados tendo-se verificado que não correspondem à realidade.
Por outro lado, analisado o livro de atas da sociedade, verifica-se que nenhuma deliberação foi tomada nesse sentido, não existindo ao longo dos anos qualquer referência ou tomada de posição sobre contratos de mútuo.
Sobre se estes lançamentos poderiam ter origem na prestação de trabalho ou pelo exercício de cargos sociais pelo sócio gerente, também nestas situações isso não acontece.
Por seu lado, nenhum valor está refletido contabilisticamente, tendo como referência o exercício de cargos sociais.
O lançamento efetuado no exercício de 2018, anexo 12, no valor de € 383.000,00 feito em conta corrente do sócio não resultou de mútuos, de prestação de trabalhos ou do exercício de cargos sociais.
Assim verifica-se que a repartição dos rendimentos de capitais - lucros e adiantamento por conta de lucros - distribuídos ao sócio, contabilizados a 31-12-2018, sujeitos a uma taxa de retenção na fonte à taxa de 28%, sem que tivesse sido efetuado pelo SP, apurando-se o respetivo montante de retenção em falta. A sociedade inspecionada não procedeu à retenção do IRS devido, a que estava obrigado nos termos do artigo 101º nº2 do CIRS, pelo que se propõe a liquidação da retenção na fonte devida à taxa liberatória em vigor 28% (383,000,00 x 0,28) obtendo-se um montante de imposto de € 107.240,00 apurado a favor do Estado.
Concluímos que os montantes de retenção em falta apurados no exercício de 2018, por terem sido colocados à disposição dos sócios, enquanto rendimentos de capitais, ascendem a € 107.240,00.
Referência a Jurisprudência relacionada com os factos em apreço
- Acórdão do TCA Sul - Processo nº 02371/08 de 15/07/2008;
- Acórdão do TCA Sul - Processo nº 02544/08 de 25/11/2008;
- Acórdão do TCA Sul - Processo nº 03221/09 de 13/10/2009;
- Acórdão do TCA Sul - Processo nº 04357/10 de 11/01/2011;
- Acórdão do TCA Sul - Processo nº 04487/11 de 22/02/2011;
- Decisão Arbitral do CMD - Processo nº 130/2012-T 14/06/2013;
- Decisão Arbitral do CAAD - Processo nº 131/2012-T 25/06/2013.
- Acórdão do TCA Sul - Processo nº 07384/14 de 27/03/2014;
- Decisão Arbitral do CAAD - Processo nº 205/2018 de 01/02/2019
- Decisão Arbitral do CAAD - Processo nº 117/2019 de 07/07/2019.
(...)
IX - Direito de audição
(...)
Sobre as alegações do SP, passamos a resumir e a identificar os argumentos apresentados pelo SP:
1. Do artigo 1º ao 7º do direito de audição o sujeito passivo faz o enquadramento do projeto de relatório, não apresentado nenhum facto ou documento que releve para a situação em concreto.
2. Seguidamente do n.º 8 ao 32º faz sobretudo referência à aplicação da presunção prevista no artigo 6º nº4 do CIRS, bem como às condições de aplicabilidade da referida presunção
3. Do nº 33 ao 62º o sujeito passivo tenta demonstrar a natureza jurídica dos contratos mútuos.
4. Posteriormente e até ao nº 74º o sujeito passivo faz referência aos preços de transferência.
5. Do nº 75 ao 92º o sujeito passivo tenta demonstrar que em face do que descreveu não se pode aplicar a presunção do artigo 6º nº 4 do CIRS.
6. Do 93º ao fim, o sujeito passivo coloca em questão as correções propostas da tributação autónoma.
(...)
PONTO 1
Em relação a este ponto, o sujeito passivo apenas faz o enquadramento do projeto de relatório, não invocando nenhum facto pelo que nada há a dizer sobre este ponto.
PONTO 2
O sujeito passivo neste ponto faz referência às condições de aplicabilidade da presunção estabelecida no artigo 6º nº 4 do CIRS, o qual se transcrevem:
20º
"A presunção legal do artigo 6º nº 4 do CIRS encontra-se estabelecida a Favor da autoridade tributária".
21º
"No entanto para que a mesma se repute aplicável em determinada situação, a Autoridade Tributária terá sempre de demonstrar, em primeiro lugar, o facto base da presunção - qual seja, a existência de lançamentos a favor dos sócios (...) em quaisquer contas correntes dos sócios e em segundo lugar que esses lançamentos não resultem (...) de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
22º
Só deste modo pode aquela fazer-se valer da presunção e, por conseguinte, considerar como lucros ou adiantamento dos lucros determinados rendimentos que primitivamente não teriam essa qualificação.
23º
Isto é, apenas após a demonstração das duas condições (cumulativas) exigidas pelo nº 4 do artigo 6º do CIRS pode a Autoridade Tributária presumir legitimamente um facto com base noutro.
Ora sobre o descrito a Autoridade Tributária não levanta nenhuma objeção, aliás a aplicação da presunção teve em conta estas duas condições cumulativas que o sujeito passivo identifica.
Conforme iremos mais adiante descrever, a aplicação da presunção descrita teve como condição o lançamento a débito em 31 de dezembro de 2018 numa conta de sócios (2683) o montante de 383.000,00€, bem como a demonstração que esse lançamento não resultou de mútuos, uma vez que os mesmos foram desconsiderados, nem de prestação de trabalho, ou do exercício de cargos sociais.
PONTO 3
Em relação aos contratos mútuos o sujeito passivo termina o raciocínio explanado confirmando a natureza dos contratos mútuos.
Dos argumentos apresentados pela Autoridade Tributária no projeto de relatório de forma a desconsiderar os contratos mútuos, constata-se que o sujeito passivo, não os coloca objetivamente em causa.
Assim e em conformidade com o que foi referido no projeto de relatório foi firmado que a data da celebração dos contratos mútuos que se encontram em anexo, não correspondem às saídas de dinheiro através da conta do E..., conforme o quadro que se encontra explanado no presente relatório.
Alias o próprio sujeito passivo em relação a um dos meses, refere que:
36.º
"Nessa medida apenas um residual de EUR 20.000 não tem efetivamente correspondência com aqueles contratos mútuos, resultando de uma saída da sociedade para o sócio de EUR 55.000 ao invés de EUR 35.000 - no passado 1 de fevereiro de 2017.
Verifica-se no entanto que o sujeito passivo não refere, nem coloca em causa, nem apresenta nenhuma justificação para o facto à data da celebração dos contratos mútuos não corresponde uma saída de dinheiro tal como estipulado no contrato mútuo.
Vejamos em janeiro de 2017, foram nos remetidos dois contratos de mútuo, um celebrado a 01-01-2017 no valor de 10.000,00 € e outro a 31-01-2017, no montante de 25.000,00€, ora verifica-se pelo extrato bancário que nesse mês foram efetuadas duas transferências da conta da sociedade para o sócio uma de 10.000,00 € no dia 09-01-2017 e outra de 10.000,00€ no dia 31-01-2017, valores nada coincidentes com os contratos mútuos alegadamente celebrados entre o sujeito passivo e o sócio.
No mês de fevereiro de 2017 foi alegadamente celebrado um contrato mútuo no dia 01-02-2017 no montante de 25.000,00€, ora nesse mesmo dia foi efetuada uma transferência bancária da sociedade para o sócio no montante de 55.000,00€.
O mesmo acontecendo no restante ano de 2017 bem como no exercício de 2018, isto é, os contratos mútuos alegadamente celebrados entre a sociedade e o sócio não tem a respetiva evidência nos extratos bancários.
Os extratos bancários que se encontram como anexo não demonstram os fluxos financeiros correspondentes aos contratos mútuos.
De referir ainda que em relação aos "contratos de mútuo", não nos foram enviados os documentos com datas de 18-05-2017, 01-03-2017, 01-04-2017 e 12-04-2017. Foi-nos enviado, no entanto um documento com o valor semelhante ao de 12-04-2017, datado de 07-04-2017, folhas 20/57 do anexo 10. No que toca ao documento referido como "contrato de mútuo" de 05-09-2018, a folhas 49/57 do anexo 10, o mesmo não se encontra assinado pela sócia C..., o que muito se estranha o sujeito passivo não ter junto nem justificado esta situação no direito de audição.
Por outro lado em relação à contabilização dos referidos contratos mútuos, em direito de audição o sujeito passivo refere:
"39º
Acresce que a contabilidade da expoente evidencia essa concessão de mútuos aos sócios e não qualquer distribuição de lucros, ao contrário do invocado pelos serviços de inspeção tributária com fundamento na presunção prevista no nº 4 do artigo 6º do CIRS.
40º
Com efeito relativamente aos contratos mútuos em questão, no exercício de 2018 foram registados ativos nas contas da Exponente - em concreto, na rubrica #2688 - correspondentes precisamente àquelas dívidas do sócio à sociedade.
58º
Com efeito, afirmam os serviços da inspeção tributária que estas operações relacionadas com os contratos de mútuo apenas foram registadas contabilisticamente em dezembro de 2018, sendo que as saídas de dinheiro da sociedade iniciaram-se em 2017 (...)Finalmente, refletindo os valores evidenciados na contabilidade, o SP com a entrega da IES/DA respeitante ao exercício de 2019, no balanço da empresa, vem declarar que, em 31-12-2018 detinha ativos respeitantes a empréstimos concedidos a sócios (...)" (cfr.p.19.do projeto de relatório de inspeção).
59º
Como se reputa evidente, tal registo tardio deve-se a mero lapso do Exponente, do qual não pode resultar a consequência extraída pelos serviços de inspeção tributária."
O sujeito passivo confirma que os registos contabilísticos apenas foram lançados em dezembro de 2018, o que corresponde ao alegado pelos serviços de Inspeção Tributária.
Quanto ao resto alegado neste ponto, consta-se que apenas são alegadas ilações, interpretações de cariz doutrinal sem qualquer referência aos factos em concreto e evidenciados no Projeto de Relatório.
Por outro lado, quando os exercícios de 2017 e 2018 foram encerrados e as contas aprovadas, não tinham sido contabilizados quaisquer contratos de mútuo, sendo que, nas Assembleias Gerais de aprovação de contas esteve presente o sócio, a quem os contratos de mútuo se referem terem sido concedidos empréstimos e que de acordo com as atas, aprovou as contassem referência a quaisquer empréstimos pelo que, a existirem de facto os empréstimos nas datas que os contratos referem, pelo menos esse sócio teria obviamente conhecimento (até porque era uma das partes desses contratos). Tendo as contas sido aprovadas sem incluir qualquer valor dos empréstimos apenas se pode concluir que, apesar dos contratos estarem datados de 2017 e 2018, à data de encerramento e aprovação das contas dos exercícios de 2017 e 2018 os contratos não existiam.
Ora sobre esta factualidade o sujeito passivo não se pronunciou, aliás o que aconteceu sobre muitos dos factos alegados em fase de projeto relatório.
O que o sujeito passivo alega, é que a falta do pagamento do Imposto de Selo e a falta eventual de requisitos dos contratos mútuos não implica que os mesmos não se tivessem concretizado. Ora como é evidente e como já foi explanado não foram só estes argumentos que os serviços de Inspeção Tributária invocou, foi toda a factualidade que está plasmada no projeto de relatório.
Não obstante, em nenhum momento é afirmado no projeto de relatório, que a falta de pagamento do Imposto associado a determinado negócio jurídico gera a sua inexistência ou o transforma em negócio distinto.", como alega o SP. Conforme descrito no projeto de relatório, é um conjunto de requisitos que levam a desconsiderar os contratos mútuos, utilizados pelo SP.
A contabilidade continua a constituir um elemento fulcral e legalmente obrigatório na esfera societária, determinante para apurar a situação patrimonial e fiscal da sociedade, conforme dispõe os artigos 3º e 17º do CIRC, existindo ainda uma presunção legal de boa-fé, quer quantos aos dados inscritos na contabilidade, executada e aprovada pela gerência, quer nas declarações fiscais entregues pelo SP ao longo dos anos, conforme dispõe o art, 75º, nº1 da LGT. Desta forma, a AT baseou-se em todos os documentos contabilísticos dos exercícios 2017 e 2018 e em elementos extra contabilísticos para elaborar a sua análise e respetivas conclusões, tendo como objetivo a descoberta da verdade material, na observância do princípio do inquisitório previsto no art. 58.º da LGT e na sua relevância como princípio constitucional da tributação.
Ponto 4
Neste ponto o sujeito passivo alega que a autoridade tributária invocou critérios próprios dos preços de transferência, nomeadamente no que respeita ao facto de no projeto de relatório ter sido referido, que dos contratos mútuos não estava previsto o pagamento de juros.
Ora em conformidade com o alegado em todo o projeto, este argumento que os serviços da inspeção tributária utilizaram, nada mais é, do que mais um facto para a desconsideração dos contratos mútuos que foram juntos pelo sujeito passivo, uma vez que não é comum nos contratos mútuos a inexistência de juros e foi só isto o alegado no projeto de relatório em relação aos juros. Pelo que nada mais há a referir sobre este ponto.
Ponto 5
Em relação a este ponto o sujeito passivo, refere que não estão preenchidas as condições para a aplicação da presunção estabelecida no artigo 6º nº 4 do CIRS.
Transcreve-se os principais argumentos invocados pelo sujeito passivo:
77º
Efetivamente no que concerne, à aplicação da presunção do nº 4 do artigo 6º do CIRS, o que revela é a natureza da operação conforme já se descreveu supra.
79º
Efetivamente, importa ter presente que a proposta de correção sub judice assenta na inequívoca existência de "lançamentos" a favor dos sócios, em "contas correntes dos sócios "- in casu. numa conta #26-Acionistas/sócios.
80º
A verdade é que não se verifica tão-somente a segunda das condições legalmente exigidas - de índole cumulativa - para acionar a presunção, uma vez que aqueles lançamentos se encontram suportados pelos contratos mútuos.
85º
Deste modo, e atenta a existência d& mútuos que suportam os registos efetuados na contabilidade da Exponente, o requisito exigido pela parte final do nº 4 do artigo 6" do CIRS, não se verifica no caso sub judice, o que obsta à aplicação de tal presunção no que respeita ao montante de EUR 383.000.
86º
Acresce que, a Autoridade Tributária, para além da aplicação do nº 4 do artigo 6.º do CIRS, desconsidera para efeitos fiscais, a natureza jurídica dos contratos de mútuo, requalificando-os como distribuições de dividendos e, por consequência determina a sua tributação.
91º
Em face de todo o exposto e ao contrário do pretendido pela Autoridade Tributária, a aplicação da presunção legal prevista no nº 4 do artigo 6º do CIRS sempre se afigurará ilegal, sendo evidente o erro sobre os pressupostos de direito em que incorrem os serviços inspetivos.
Ora com todo o devido respeito não deixam os serviços de inspeção da Autoridade Tributária, discordar completamente do alegado pelo sujeito passivo.
As incongruências verificadas em relação aos contratos de mútuo, já expostas no projeto de relatório e na resposta ao direito de audição do SP, conclui-se que a interpretação vertida no direito de audição prévia exercido pelo SP não reproduz fielmente as conclusões da Inspeção Tributária, e que conforme se provou, os argumentos apresentados apenas reforçam a conclusão da AT de que se está perante uma tentativa de formalização de empréstimos, a posteriori, pretendendo o SP o reconhecimento como mútuos dos valores lançados a favor do sócio (contas 2683).
Por outro lado, na argumentação apresentada, o SP não ilidiu, como lhe competia, a presunção legal prevista no art.º 6º, nº 4 do CIRS, ou seja, demonstrar que os lançamentos efetuados em contas de sócios resultam efetivamente de mútuos, prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais para justificar o não cumprimento da obrigação fiscal de retenção de IRS na fonte (artigos 71º, nº1 al. c) e 98º nº3 do CIRS).
O SP, para justificar a não retenção na fonte, procurou demonstrar que os lançamentos contabilísticos registados no exercício de 2018 e as respetivas entregas aos sócios ocorreram na sequência de mútuos firmados entre a sociedade e os sócios. Contudo, estando provado que as entregas aos sócios não ocorreram na sequência de mútuos, nem de qualquer outro fundamento válido para se poder considerar ilidida a presunção prevista no artº 6º, nº 4 do CIRS, tem que prevalecer essa presunção legal conjugada com o facto da contabilidade evidenciar que no exercício de 2018 a 31 de dezembro foi efetuado lançamento em contas correntes dos sócios, no montante total de € 383.000,00, pelo que se presumem como recebidos pelos sócios a título de lucros ou adiantamento de lucros.
Sobre a presunção legal prevista no art.º 6, n.º 4 do CIRS, veja-se por exemplo, as decisões proferidas no âmbito dos processos arbitrais n.º 130/2012-T e 131/2012-T, que vão no mesmo sentido da decisão deste relatório.
O sujeito passivo parte de pressupostos errados, pois o artigo 6.º, n.º 4, do CIRS não estabelece uma ficção legal, que se consubstancia na atribuição pelo legislador a um facto das consequências jurídicas de outro, com indiferença em relação à realidade. Nesta norma não é isso que sucede, pois estabelece-se uma presunção que, de harmonia com o artigo 349.º do Código Civil, se traduz numa ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
Neste caso, com base em factos conhecidos, que foi o lançamento nas contas de sócios referentes ao exercício de 2018, firmam-se factos desconhecidos, que são a disponibilização de lucros ou adiantamento de lucros nesse exercício.
Esta presunção pode ser ilidida, nos termos do n.º 6 daquele artigo 6.º do CIRS. Mas, não tendo sido Ilidida a presunção, é de considerar provado que os lançamentos referidos foram feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros.
Como salienta a jurisprudência, "com esta presunção o legislador quis resolver a qualificação das quantias escrituradas nas contas correntes dos sócios, cuja «causa» jurídica não tenha sido expressamente declarada, assim conduzindo a que tais montantes tenham o tratamento dos lucros distribuídos" - cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo ("TCA") Sul, de 5 de fevereiro de 2015, processo n.º 8216/14.
A tributação em IRS dos rendimentos provenientes de colocação de lucros à disposição dos sócios é feita através de retenção na fonte, por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS, com remissão para a alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º, retenção que deve ser efetuada pela entidade devedora de rendimentos [alínea a) do n.º 2 do artigo 101º do CIRS], no momento em que ocorre a colocação à disposição [artigo 7.º, n.º 3 alínea a), subalínea 2), do CIRS].
Tratando-se de retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28%, como se estabelece no n.º 1 do artigo 71.º do CIRS, «o substituído é apenas subsidiariamente responsável pelo pagamento da diferença entre as importâncias que deveriam ter sido deduzidas e as que efetivamente o foram», como decorre do n.º 3 do artigo 28.º do LGT e do n.º 3 do artigo 103.IRS
A AT ao longo relatório de Inspeção Tributária descreveu e provou exaustivamente a base da presunção legal estatuída no artigo 6.º nº 4 do CIRS e os fundamentos para a desconsideração dos mútuos da sociedade aos sócios, fazendo prevalecer a natureza real das quantias colocadas à disposição dos sócios e a sua própria contabilização, em detrimento da forma documental que envolveu essa transferência.
(...)
X. Conclusão
Tendo-se concluído que a argumentação apresentada pelo sujeito passivo no documento em que exerce o Direito de Audição prévia não é suscetível de alterar os factos e os fundamentos descritos no capítulo III (ponto 3.1) do projeto de relatório, pelo que devem manter-se as correções propostas no presente Relatório Final de Correções de Inspeção Tributária em sede de retenções na fonte de IRS e tributações autónomas em sede de IRC.
Em face do informado, propõe-se o encerramento das ordens de serviço (OI2019... - exercício 2017, OI2019...- exercício 2018 e OI2020... - exercício 2019), mantendo as correções propostas em sede de retenções na fonte de IRS, e em sede de IRC, conforme factos e fundamentos descritos nos capítulos III e IX do presente Relatório Final de Correções da Inspeção Tributária.
Para o efeito, foram elaborados os documentos de correção em sede de retenções na fonte.
Nos termos dos artigos 62º do RCPITA e 77º da LGT, o sujeito passivo vai ser notificado da conclusão das ações inspetivas.
-
Na sequência da inspecção, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação de retenção da fonte de IRS n.º 2021..., relativa ao ano de 2018, no valor de € 107.240,00 e a respectiva liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., no valor de € 8.167,86 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
-
Com data de 05-05-2021, foi emitida no processo de execução fiscal n.º ...2021... a citação pessoal da Requerente nos termos que constam do documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
-
Em 28-05-2021, a Requerente prestou garantia para suspender a execução fiscal referida (documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
-
A Requerente juntou aos autos cópia de contratos de mútuo em que se indicam terem sido efectuados a B..., seu sócio-gerente, os valores indicados no quadro que segue, nas seguintes datas:
(documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido)
-
A Requerente apresentou as declarações anuais de Informação Empresarial Simplificada (IES/DA) relativas ao período de 2018, que constam das páginas 69 a 82 do processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos;
-
Não foram reconhecidos na contabilidade da Requerente, antes de 2019, mútuos referentes aos contratos apresentados pela Requerente (artigo 96.º do pedido de pronúncia arbitral);
-
A Requerente dispunha de órgãos especializados responsáveis pela elaboração dos documentos contabilísticos (artigo 95.º do pedido de pronúncia arbitral e cópia da IES que consta do processo administrativo);
-
Em 14-06-2021, apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da matéria de facto
2.2.1. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo e afirmações da Requerente não questionadas.
2.2.2. No que concerne ao facto referido na alínea m) da matéria de facto fixada, baseia-se no afirmado no artigo 96.º do pedido de pronúncia arbitral, em que a Requerente informa o alegado «lapso contabilístico em referência foi corrigido assim que detetado» e «foi inclusivamente apresentada (...) uma declaração IES de substituição relativa ao ano de 2018». Como a declaração de substituição foi apresentada em 08-11-2019 e a Requerente diz que o alegado lapso foi corrigido assim que detectado, conclui-se com segurança que, antes de 2019, não foram reconhecidos na contabilidade da Requerente mútuos referentes aos documentos apresentados.
2.2.3. Não se provou que as quantias transferidas para o sócio B... entre 31-01-2017 e 12-09-2018, no valor global de € 403.000,00, tenham sido feitas com base em contratos de mútuo, pelas seguintes razões:
– não houve qualquer deliberação social sobre qualquer mútuo ou qualquer outro acto praticado pela sociedade relativo a mútuos praticado antes de 31-12-2018;
– os mútuos invocados pela Requerente não foram registados na contabilidade da Requerente antes de 2019, conduz à conclusão de que os alegados empréstimos não foram realizados antes desta data;
– nas cláusulas 2.ªs de cada um dos contratos refere-se que a entrega das quantias ocorreu «nesta data», mas não se demonstrou que tenham sido feitas pela sociedade e a favor do sócio B... transferências bancárias ou quaisquer entregas de dinheiro nas datas indicadas nos contratos; de onde decorre que o declarado nos contratos não corresponde à realidade quanto às datas das alegadas entregas das quantias neles indicadas;
– o facto de não estarem reconhecidos na contabilidade da Requerente quaisquer contratos de mútuo quando os exercícios de 2017 e 2018 foram encerrados e as contas aprovadas corrobora a conclusão de que esses alegados empréstimos não existiam nesses momentos, pois ambos os sócios que aprovaram as contas são indicados pela Requerente como intervenientes nos contratos de mútuo;
– não há saídas de dinheiro da sociedade a favor do sócio B... correspondentes aos valores iniciados em cada um dos contratos de mútuo;
– não há qualquer contrato de mútuo que dê cobertura à transferência do valor de € 20.000,00, como a própria Requerente reconhece no artigo 64.º do pedido de pronúncia arbitral;
– na IES/DA relativa a 2018, apresentada em 05-07-2019, a Requerente não tinha reflectido a existência de mútuos e só o veio a fazer em 08-11-2019, através da apresentação de uma declaração de substituição, em que reflectiu os valores dos mútuos contabilizados em 31-12-2018 (€ 383.000,00€), o que corrobora a conclusão de que os mútuos não existiam quando foi apresentada aquela primeira declaração;
– há várias saídas de dinheiro para a conta do sócio B... superiores a € 25.000,00 (€ 55.000,00 em 01-02-2017, € 50.000,00 em 12-04-2017, € 50.000,00 em 18-05-2017, € 50.000,00 em 19-06-2017, € 30.000,00 + € 20.000,00 em 12-01-2018, € 30.000,00 em 28-02-2018, € 35.000,00 + € 31.000 em 12-09-2019) que, a terem sido entregues a título de empréstimos, teriam de ser comprovadas através de escritura pública (artigo 1143.º do Código Civil), pelo que não pode ser dado relevo probatório a documentos particulares.
3. Matéria de direito
A Autoridade Tributária efectuou uma inspecção à Requerente em que efectuou correcções baseadas em falta de retenção na fonte de IRS, relativamente a disponibilização de dinheiro efectuada a favor do seu sócio-gerente B... . ( [1] )
A Requerente defende que essa disponibilização foi feita a título de mútuos, tendo apresentado documentos relativos aos contratos que diz ter efectuado, enquanto a Autoridade Tributária e Aduaneira entende que não foi esse o fundamento dessas transferências e de que deve ser aplicada a presunção de adiantamento por conta de lucros prevista no artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS (“CIRS”), por terem sido disponibilizados ao sócio-gerente montantes da sociedade sem que essa disponibilização se sustentasse em mútuos, na prestação de trabalho ou no exercício de cargos sociais.
A controvérsia entre as Partes tem por objecto os contratos de mútuo apresentados pela Requerente que a Autoridade Tributária e Aduaneira defende no Relatório da Inspecção Tributária que não existiam às datas do encerramento das contas de 2017 e 2018, nem podem ser considerados válidos, pelo seguinte, em suma:
– as datas dos contratos mútuos, bem como os montantes contratualizados, não correspondem a saídas de dinheiro da conta bancária da sociedade para o sócio;
– nunca foi deliberado pela sociedade em Assembleia-geral, a decisão de realização de "empréstimos aos sócios", nem a sua realização foi comunicada a qualquer entidade;
– os contratos de mútuo constam de simples documento particular, assinados pelo sócio-gerente, o Dr. B..., sempre como primeiro outorgante (mutuante), e segundo outorgante e como terceiro outorgante C...;
– em relação a estes contratos de mútuo não foi pago qualquer imposto do Selo, que sempre seria devido se a verdadeira natureza fosse essa;
– não foi contabilizado qualquer pagamento de juros decorrente dos mesmos;
– os alegados "contratos de mútuo", celebrados entre entidades relacionadas, deveriam tê-lo sido por escritura pública, como dispõe o artigo 1143º do Código Civil, ficando assim atacada a sua validade;
– estas operações relacionadas com os contratos mútuos apenas foram registadas contabilisticamente em Dezembro de 2018, sendo que as saídas de dinheiro da sociedade iniciaram-se em 2017, independentemente da natureza que assumiram, deveriam sempre pressupor uma deliberação societária, a constar em acta dos órgãos decisores, justificando e identificando as operações, decisão essa que nunca ocorre;
– refletindo os valores evidenciados na contabilidade, o Sujeito Passivo com a entrega da IES/DA respeitante ao exercício de 2019, no balanço da empresa, vem declarar que, em 31/12/2018, detinha activos respeitantes a empréstimos concedidos a sócios;
– quando os exercícios de 2017 e 2018 foram encerrados e as contas aprovadas, não tinham sido contabilizados quaisquer contratos de mútuo, sendo que, nas Assembleias Gerais de aprovação de contas esteve presente o sócio, a quem os contratos de mútuo se referem terem sido concedidos empréstimos e que de acordo com as actas, aprovou as contas sem referência a quaisquer empréstimos pelo que, a existirem de facto os empréstimos nas datas que os contratos referem, pelo menos esse sócio teria obviamente conhecimento (até porque era uma das partes desses contratos);
– tendo as contas sido aprovadas sem incluir qualquer valor dos empréstimos apenas se pode concluir que, apesar dos contratos estarem datados de 2017 e 2018, à data de encerramento e aprovação das contas dos exercícios de 2017 e 2018 os contratos não existiam;
– conclui-se que está-se perante uma tentativa de formalização de empréstimos, a posteriori, pretendendo o Sujeito Passivo o reconhecimento como mútuos dos valores lançados a favor do sócio (contas 2683).
Entendeu ainda a Autoridade Tributária e Aduaneira, no Relatório da Inspecção Tributária, que «as saídas da conta bancária da sociedade com destino ao sócio, apenas foram reconhecidas na contabilidade em dezembro de 2018, sendo aqui gerado o facto tributário» e que «a distribuição de lucros e de adiantamento por conta de lucros ocorreu no momento em que, de uma forma objectiva, se reconheceu contabilisticamente a sua colocação à disposição dos sócios, o que sucedeu mediante o crédito dos "depósitos à ordem" por débito dos sócios».
3.1. Posições das Partes
A Requerente defende o seguinte, em suma:
– para fazer aplicar a presunção constante do n.º 4 do artigo 6.º do CIRS cabe à Autoridade Tributária provar, em primeiro lugar, a existência de lançamentos a favor dos sócios em quaisquer contas correntes e, em segundo lugar, que esses lançamentos não têm justificação, i.e., que não decorrem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais;
– o sócio-gerente tem a obrigação de restituir os capitais mutuados no prazo de 7 anos (cláusulas 2.ª e 3.ª), havendo possibilidade de amortização antecipada do capital (cláusula 5.ª);
– os empréstimos vencem juros, à taxa anual de 0,5%, sobre os valores mutuados, após decurso de um período de carência de 36 meses (cláusula 4.ª);
– ainda que os contratos de mútuo celebrados entre a Requerente e o seu sócio-gerente pudessem ser gratuitos, nunca de tal circunstância se poderia retirar a sua invalidade e muito menos a sua inexistência, sendo a estipulação de juros uma mera faculdade conferida às partes cuja não utilização não é suscetível de desvirtuar a verdadeira natureza do contrato;
– apenas um montante residual de EUR 20.000 não tem efetivamente correspondência com os contratos de mútuo, resultando de uma saída de dinheiro da sociedade para o sócio de EUR 55.000 – ao invés de EUR 35.000 – no passado dia 1 de Fevereiro de 2017;
– a Autoridade Tributária sugere que os contratos de mútuo são falsos e a invocação da falsidade de um documento está sujeita a um procedimento próprio [cfr. artigo 446.º do Código de Processo Civil (“CPC”);
– caso a Autoridade Tributária pretenda invocar a falsidade dos contratos de mútuo, terá de fazê-lo expressamente e nos termos do artigo 446.º do CPC, invocando para o efeito factos que inequivocamente a demonstrem – o que naturalmente não fez no relatório final de inspeção tributária, uma vez que os documentos em causa são genuínos, inexistindo por isso quaisquer circunstâncias das quais decorra a respetiva falsidade;
– no que concerne às datas e montantes transferidos para o sócio-gerente e o conteúdo dos contratos de mútuo, verifica-se que os valores transferidos para o sócio-gerente coincidem globalmente com os montantes mutuados, verificando-se apenas a discrepância de EUR 20.000;
– a existência de um contrato de mútuo não depende de qualquer análise dos fluxos financeiros entre as partes, bastando-se com a verificação da existência de um empréstimo e da correspondente obrigação de devolução por parte do mutuário;
– caso os contratos tivessem sido elaborados a posteriori, o natural seria que a informação constante dos mesmos correspondesse exatamente à situação factual passada, sendo elaborados tantos contratos quantas as transferências individualmente realizadas;
– no que concerne ao contrato que não está assinado pela sócia C..., o mesmo encontra-se por ela rubricado no canto superior direito de cada uma das páginas, resultando a falta de assinatura de um manifesto lapso que naturalmente não indicia a falsidade do contrato em causa;
– não é minimamente plausível que se sustente que os contratos foram elaborados a posteriori com o intuito de justificar as transferências efetuadas – caso em que teriam sido assinados de uma só vez por ambos os sócios –, antes indiciando esta circunstância que os contratos foram sendo elaborados ao longo do tempo nas datas neles indicadas, tendo, a 5 de Setembro de 2018, a sócia C..., por esquecimento, aposto somente a sua rubrica e não também a sua assinatura;
– no que respeita à inscrição contabilística dos mútuos, a Requerente reconheceu expressamente no âmbito da ação de inspeção tributária que só em Dezembro de 2018 a sua contabilidade foi corrigida, padecendo até então de um lapso concernente à falta de contabilização destes empréstimos;
– nem a existência nem a validade de um contrato de mútuo dependem da correção da sua inscrição contabilística, motivo pelo qual nenhum lapso de contabilização poderá sequer sugerir que não se esteja perante verdadeiros contratos de mútuo;
– a inscrição contabilística destes montantes reforça que os mesmos foram disponibilizados ao sócio-gerente a título de empréstimo, não consubstanciando quaisquer adiantamentos por conta de lucros;
– os sócios da Requerente não têm formação na área da contabilidade, razão pela qual não constataram imediatamente que o montante correspondente aos contratos de mútuo não se encontrava devidamente contabilizado, quando aprovaram as contas de 2017 e 2018;
– trata-se de um mero lapso que não foi identificado no momento da aprovação das contas pelos sócios, os quais não dominam – nem têm que dominar – a área da contabilidade, motivo pelo qual a sociedade dispõe de órgãos próprios especializados, responsáveis pela elaboração dos documentos contabilísticos;
– o lapso foi corrigido muito antes da acção de inspecção;
– não sendo os contratos de valores superiores a € 25.000,00 a sua validade depende apenas de serem assinados pelo mutuário, nos termos do artigo 1143.º do Código Civil;
– o facto de os contratos terem sido celebrados entre entidades relacionadas não impõe quaisquer requisitos de forma;
– bastava a assinatura de um dos sócios-gerentes para obrigar a sociedade;
– o facto do contrato ser assinado pela mesma entidade, pessoa física, como mutuário e mutuante, embora em qualidades diferentes, resultará da própria natureza do tipo de sociedade (unipessoal) o que, por si só, não invalidará a sua substância;
– não era necessária qualquer deliberação em Assembleia-Geral, já que a Requerente é uma sociedade por quotas e não uma sociedade anónima e só neste último caso tal se imporia, conforme resulta do artigo 397.º do Código das Sociedades Comerciais;
– se dos negócios jurídicos, ainda que nulos, emerge a obrigação de restituir que importância recebida, a mesma não constituirá, formal e substancialmente, um rendimento de quem a recebeu;
– no que se refere ao não pagamento do Imposto do Selo devido pela utilização do crédito decorrente da celebração dos contratos de mútuo, tal não altera a natureza dos contratos celebrados, metamorfoseando as operações sub judice em distribuições de lucro;
– se a Autoridade Tributária e Aduaneira quisesse dar relevância ao facto de os contratos serem celebrados entre entidade relacionadas e à taxa de juro fixada, teria de fazer aplicação do regime previsto no artigo 63.º do CIRC;
– a requalificação dos contratos de mútuo em distribuições de dividendos apenas seria viável com aplicação do regime da cláusula geral antiabuso;
– a liquidação de juros compensatórios depende de culpa do contribuinte e, neste caso, a Requerente agiu com base numa interpretação legítima, plausível e de boa-fé.
No presente processo, a Autoridade Tributária e Aduaneira reafirma a posição assumida no Relatório da Inspecção Tributária, dizendo ainda o seguinte:
– o princípio do ónus da prova consubstancia-se no princípio de que quem alega um determinado facto constitutivo de um direito, tem a necessidade de prová-lo (cf. art.º 342.º do Código Civil – CC e n.º 1 do art.º 74.º da LGT);
– a Requerente alega factos que servem de fundamento e que substancialmente configuram a alegada posição jurídica de que se arroga, sem que o prove;
– apesar de os contratos de mútuos exibirem datas reportadas aos anos de 2017 e de 2018, como se veio a verificar pelas IES desses anos, “à data de encerramento e aprovação das contas dos exercícios de 2017 e 2018 os contratos não existiam;
– acresce a isto que, como se pode verificar na contabilidade (alterada em Novembro de 2019), os valores dos contratos apenas foram registados em Dezembro de 2018;
– a conjugação de todos os elementos a que se aludiu, leva a concluir que a cobertura legal encontrada para extemporaneamente justificar as transferências bancárias para o sócio-gerente, por via do recurso à figura do contrato de mútuo, enfermam de falta de credibilidade e eficácia, características reforçadas, desde logo, pela desconformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 397.º do CSC;
– a validade dos contratos de mútuo, na ausência de qualquer justificação, é inquinada, por falta de capacidade jurídica da Requerente para os celebrar, em face do disposto no n.º 1 artigo 6.º do CSC e da proibição aplicável à concessão de empréstimos ou crédito a administradores (artigo 397.º do CSC), que deve ser aplicado por analogia às sociedades por quotas;
– as datas apostas nos contratos não coincidem com aquelas em que foram realizadas as transferências monetárias para o sócio gerente, embora nesses documentos (cláusula 2.ª) se refira que as entregas das quantias em causa foram feitas nas datas neles mencionadas;
– esta prática, tem carácter atípico desta prática, estranha ao objecto social;
– nada garante que a amortização do empréstimo não será feita à custa de novos mútuos;
– a fixação do regime de juros e sua taxa reflectem o estabelecimento de condições e termos privilegiados;
– em nenhum momento, foi alegada uma necessidade premente e inadiável, por parte do sócio-gerente, como eventual justificação para recorrer aos sucessivos “empréstimos” de meios financeiros da sociedade;
– não subsistem dúvidas no tocante a concluir que os contratos mútuos não representam efectivamente a causa das saídas de dinheiro da sociedade para o sócio gerente, pelo que é de aplicar a presunção prevista no n.º 4 do artigo 6.º do CIRS;
– a presunção não pode considerar-se ilidida mediante a apresentação dos contratos de mútuo, pois, como já foi afirmado, enfermam de nulidade, que advém não apenas de inobservâncias de um outro requisito formal a que se alude no RIT mas, sendo, sobretudo, resultante de uma proibição legal de natureza substantiva e de mais não serem do que expedientes para a formalização a posteriori, como mútuo, das saídas de meios financeiros para a esfera do sócio gerente;
– os valores e datas não encontram respaldo com a realidade;
– o movimento contabilístico registado na conta 2683 – Accionistas/Sócios-Outras Operações não correntes, com data de 31.12.2018, não consubstancia operações de mútuo mas sim regularizações dos meios monetários disponibilizados ao sócio gerente, em datas anteriores, sem que a Requerente tivesse praticado e exteriorizado qualquer acto nesse sentido, mormente, reflectindo-o nas demonstrações financeiras aprovadas em Assembleia Geral ou declarando-o na Informação Empresarial Simplificada (IES);
– o referido lançamento contabilístico concretiza o acto jurídico em que a Requerente reconheceu as saídas dos meios financeiros do património social e o concomitante direito ao sócio-gerente a dispor das quantias que já se encontravam em seu poder, pelo que indica objetivamente a data da colocação de adiantamentos de lucros à sua disposição, no sentido do previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º e na subalínea 2), alínea a), n.º 3 do artigo 7.º, do Código do IRS.
3.2. Objecto do processo
O processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].
Por isso, os actos tributários têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos. ( [2] ).
Pela mesma razão, a fundamentação sucessiva ou a posteriori não é relevante para aferir a sua suficiência, quando não acompanhada de revogação e prática de um novo acto. ( [3] )
É uma solução que se compreende à luz dos direitos de defesa ínsitos no princípio constitucional da tutela judicial efectiva (arts. 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4 da CRP), pois, se a Autoridade Tributária e Aduaneira tivesse invocado outros fundamentos da liquidação, a fundamentação da impugnação poderia ser diferente.
No caso em apreço, constata-se que a Autoridade Tributária e Aduaneira vem invocar na sua Resposta um fundamento de invalidade dos contratos de mútuo que não foi invocado no Relatório da Inspecção Tributária, que é a nulidade por violação do artigo 397.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, que a Autoridade Tributária e Aduaneira defende ser aplicável a sociedades por quotas.
Assim, este novo fundamento não pode ser considerado para apreciar a legalidade do acto de liquidação.
3.3. Apreciação dos vícios imputados pela Requerente às liquidações impugnadas
A Autoridade Tributária e Aduaneira baseou a correcção em causa no presente processo no artigo 6.º, n.º 4, do CIRS, que estabelece que «os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros».
Para aplicação da presunção é necessário que e verifique o requisito positivo da existência de lançamento em favor de sócios, em quaisquer contas correntes destes, e o requisito negativo de esse lançamento não resultar de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
No caso em apreço não é controvertido que, em 31-12-2018, ocorreu lançamento do valor de € 383.000,00 em conta corrente do sócio B..., nem que esse valor não resulte da prestação de trabalho ou exercício de cargos sociais.
Assim, apenas é controvertido que o lançamento resulte de mútuos, pois a Requerente defende que ele resulta dos contratos de mútuo que apresentou, enquanto a Autoridade Tributária e Aduaneira defende que não correspondem à realidade os mútuos referidos nesses contratos, nem eles são válidos.
Nos processos arbitrais, vigora o princípio da «livre apreciação dos factos (...) de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros», como preceitua a alínea e) do artigo 16.º do RJAT, pelo que é a sua luz que há que efectuar juízo probatório.
3.4. Relevância dos erros sobre os pressupostos de acto com vários fundamentos
Antes de mais, constata-se que a fundamentação que consta do Relatório da Inspecção Tributária inclui várias razões que conduziram às conclusões de que à data de encerramento e aprovação das contas dos exercícios de 2017 e 2018 os contratos não existiam e os contratos apresentados são inválidos, essencialmente:
– falta de correspondência entre as datas dos mútuos e as saídas de dinheiro da conta bancária;
– não ter havido decisão da assembleia geral da sociedade no sentido de realizar empréstimos nem ter sido comunicada a sua realização a qualquer entidade;
– os contratos constarem de documentos particulares assinados pelo sócio gerente em representação da sociedade e como mutuário (além de serem assinados por outro sócio);
– não ter sido pago Imposto do Selo;
– não ter havido pagamento de juros;
– os contratos serem celebrados entre entidades relacionadas, pelo que deveriam ser celebrados por escritura pública;
– as operações relacionadas com os contratos mútuos apenas terem sido registadas contabilisticamente em Dezembro de 2018 e as saídas de dinheiro ocorrerem desde 2017;
– ter sido reflectida na 1.ª IES/DA respeitante ao exercício de 2019 a existência de empréstimos;
– foram aprovadas as contas de 2017 e 2018 sem ter havido contabilização de empréstimos, o que leva à conclusão de que não existiam.
Sendo invocadas várias razões como suporte da conclusão a que a Autoridade Tributária e Aduaneira chegou no sentido de os empréstimos invocados pela Requerente não serem o fundamento das transferências para a conta do sócio, não é relevante para infirmar a conclusão a eventualidade de algum desses fundamentos ser errado.
Na verdade, como vem entendendo o Supremo Tribunal Administrativo, quando um acto administrativo ou tributário tem mais que um fundamento, cada um deles com potencialidade para, só por si, assegurar a legalidade de um acto tributário (ou administrativo) é irrelevante que um deles seja ilegal, pois "o tribunal, para anular ou declarar a nulidade da decisão questionada, emitida no exercício de actividade vinculada da Administração, não se pode bastar com a constatação da insubsistência de um dos fundamentos invocados, pois só após a verificação da improcedência de todos eles é que o tribunal fica habilitado a invalidar o acto". ( [4] )
Tendo em mente esta limitação da relevância de erros de fundamentação, passar-se-á a apreciar os vícios imputados pela Requerente.
3.5. Contratos assinados pelo sócio em nome pessoal e em representação da sociedade
A circunstância de os contratos serem assinados pelo sócio gerente em representação da sociedade e como mutuário (além de serem assinados por outro sócio), pode, eventualmente, ser fundamento de anulabilidade, que só releva se for tempestivamente arguida (designadamente à face do artigo 261.º do Código Civil), mas não é fundamento de nulidade.
Neste contexto, há que notar que o artigo 397.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais ( [5] ), que a Autoridade Tributária e Aduaneira defende na sua Resposta dever ser aplicado analogicamente às sociedades por quotas, não foi invocado no Relatório da Inspecção Tributária, pelo que, como se refere no ponto 3.2. deste acórdão, não pode ser considerado para aferir a legalidade do acto impugnado, por se estar perante fundamentação a posteriori.
No entanto, se é certo que o facto de os contratos serem assinados pelo sócio em nome pessoal e em representação da sociedade não afecta necessariamente a sua validade, também o é que esse facto é susceptível de ponderação, com qualquer outro, na formulação de um juízo probatório sobre a celebração dos contratos.
3.5. Não ter sido pago Imposto do Selo
O facto invocado pela Autoridade Tributária e Aduaneira de não ter sido pago Imposto do Selo relativamente aos contratos de mútuo apresentados não permite concluir, por si só, que eles não foram celebrados, nem tem potencialidade para afectar a sua validade, pois a lei não prevê a sanção de invalidade de contratos de mútuo como consequência dessa falta de pagamento.
No entanto, esta conclusão, não afasta a possibilidade de atender a essa falta de pagamento como um elemento de facto, entre outros, a ponderar na formulação de um juízo de facto sobre a realidade o irrealidade da celebração do contratos.
3.6. Não ter havido pagamento de juros relativos a contratos de mútuo entre entidades relacionadas
A Autoridade Tributária e Aduaneira refere no Relatório da Inspecção Tributária que
(...) nem foi contabilizado qualquer pagamento de juros decorrente dos mesmos. Ainda que previsto no Código Civil, importa considerar que não é comum a inexistência de juros num contrato de mútuo, pois se os contratos fossem firmados entre entidades independentes, não seriam certamente esses os pressupostos. Por outro lado, ao disponibilizar aos sócios a liquidez gerada pela empresa, impediu que esta beneficiasse dos juros associados a qualquer aplicação que pudesse ter efetuado;
A Autoridade Tributária e Aduaneira não diz que os mútuos tal como constam dos contratos não seriam remunerados, mas sim que não foram contabilizados juros, o que corresponde à realidade.
De qualquer modo, não é requisito dos mútuos serem remunerados, como decorre do artigo 1145.º do Código Civil, nem se pode considerar incomum a inexistência de juros num contrato de mútuo, apesar de, para efeitos de IRS, se presumir que os mútuos são remunerados (artigo 6.º, n.º 2, do CIRS).
Por outro lado, a inexistência de juros em contratos de empréstimos entre entidades relacionadas, pode justificar correcções, nos termos do artigo 63.º do CIRC (o que não sucedeu no caso em apreço), mas não afecta a validade dos contratos.
3.7. Os contratos serem celebrados entre entidades relacionadas e a não celebração por escritura pública
A Autoridade Tributária e Aduaneira refere no Relatório da Inspecção Tributária que
«(...) os alegados "contratos de mútuo", celebrados entre entidades relacionadas, deveriam tê-lo sido por escritura pública, como dispõe o artº 1143º do Código Civil, ficando assim atacada a sua validade».
O artigo 1143.º do Código Civil estabelece que «o contrato de mútuo de valor superior a 25000 euros só é válido se for celebrado por escritura pública e o de valor superior a 2500 euros se o for por documento assinado pelo mutuário».
É manifesto que há erro da Autoridade Tributária e Aduaneira ao concluir desta norma que os contratos entre entidades relacionadas tenham de ser celebrados através de escritura pública.
Não há o mínimo suporte legal para a interpretação feita pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
3.8. Preços de transferência
A Requerente refere que a Autoridade Tributária e Aduaneira procurou enxertar critérios próprios de preços de transferência nesta sede e que quisesse dar relevância ao facto de os contratos serem celebrados entre entidade relacionadas e à taxa de juro fixada, teria de fazer aplicação do regime previsto no artigo 63.º do CIRC.
A Autoridade Tributária e Aduaneira faz referência no Relatório da Inspecção Tributária a «entidades relacionadas», mas não invoca o artigo 63.º do CIRC, nem aplicou o regime de correcções com base em preços de transferência que aí se prevê.
Na verdade, essa referência a «entidades relacionadas» foi feita sob a perspectiva da Autoridade Tributária e Aduaneira de que «os alegados "contratos de mútuo", celebrados entre entidades relacionadas, deveriam tê-lo sido por escritura pública, como dispõe o artº 1143º do Código Civil». A apreciação deste entendimento já foi feita no ponto 3.7. deste acórdão.
Por outro lado, não tendo a Autoridade Tributária e Aduaneira feito qualquer correcção com aplicação do regime de preços de transferência, designadamente correcções da taxa de juro indicadas nos contratos, não ocorre qualquer ilegalidade baseada neste regime.
3.9. Inexistência de qualquer deliberação social no sentido da realização dos mútuos invocados pela Requerente
Não houve qualquer deliberação social sobre qualquer mútuo antes de qualquer das transferências efectuadas para a conta corrente do sócio ou sobre qualquer empréstimo, o que induz a conclusão de que as transferências foram feitas ao longo de 2017 e 2018 à margem da vontade social, reconduzindo-se a mera afectação material de recursos da sociedade ao património do sócio referido, sem qualquer título que lhe desse cobertura jurídica.
A Requerente defende que «a realização dos mútuos não carecia qualquer deliberação em Assembleia-Geral, já que a Requerente é uma sociedade por quotas e não uma sociedade anónima e só neste último caso tal se imporia, conforme resulta do artigo 397.º do Código das Sociedades Comerciais».
A questão essencial que se coloca, neste contexto de prova da realização dos contratos de mútuo ao longo de 2017 e 2018, não é a da invalidade dos contratos, a que se reporta o artigo 397.º, do Código das Sociedades Comerciais, mas sim a ilação que se deve retirar da inexistência de deliberações, à face das regras da experiência comum, que devem ser utilizadas na avaliação da prova em processos arbitrais [artigo 16.º, alínea e), do RJAT].
Ora, tendo em mente que o artigo 259.º do Código das Sociedades Comerciais limita a competência dos gerentes «os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios», afigura-se ao Tribunal Arbitral que não é normal, por violar os poderes que são concedidos aos gerentes, que sejam efectuados empréstimos por uma sociedade a um seu sócio sem uma prévia deliberação social, numa sociedade em cujo objecto social não se inclui a concessão de empréstimos.
Desta perspectiva, a falta de qualquer deliberação social sobre empréstimos relativamente constitui um forte indício de que não existiu vontade social de realização dos empréstimos formada antes das datas indicadas em cada um dos contratos e da realização de cada uma das transferência bancárias efectuadas a favor do sócio B... .
3.10. Inexistência de um procedimento próprio para invocar a falsidade dos contratos de mútuo
A Requerente defende que «caso a Autoridade Tributária pretenda invocar a falsidade dos contratos de mútuo, terá de fazê-lo expressamente e nos termos do artigo 446.º do CPC, invocando para o efeito factos que inequivocamente a demonstrem – o que naturalmente não fez no relatório final de inspeção tributária, uma vez que os documentos em causa são genuínos, inexistindo por isso quaisquer circunstâncias das quais decorra a respetiva falsidade».
O artigo 446.º do CPC é uma norma que se aplica, em primeira linha, ao processo civil e poderá ser aplicada subsidiariamente a outros processos jurisdicionais, mas não tem aplicação aos procedimentos de inspecção tributária.
O que se confirma, desde logo pela estrutura do incidente regulado nos artigos 447.º a 449.º do CPC, que culmina com uma decisão judicial, que constitui exercício da função jurisdicional e extravasa o exercício da função administrativa, que a Administração Tributária desempenha nos procedimentos de inspecção tributária.
Assim, a liquidação impugnada não enferma de vício pelo facto de não ter utilizado no âmbito do procedimento de inspecção, a tramitação do incidente de falsidade previsto no CPC para os processos jurisdicionais.
3.11. Falta de assinatura da sócia C... num dos contratos
O facto de o documento apresentado como sendo um contrato de mútuo datado de 05-09-2018 não ter a assinatura da sócia referida, afigura-se não ter relevo para efeitos da relevância do contrato, pois está assinado pelo mutuante (o sócio gerente B... em nome da sociedade) e pelo mutuário (o mesmo sócio gerente B... em nome próprio).
De qualquer modo, essa falta de assinatura apenas poderia ser relevante para afectar a validade desse contrato e não dos restantes.
3.12. Falta de correspondência entre as datas dos contratos de mútuo e as das transferência bancária
A Requerente defende que
– no que concerne às datas e montantes transferidos para o sócio-gerente e o conteúdo dos contratos de mútuo, verifica-se que os valores transferidos para o sócio-gerente coincidem globalmente com os montantes mutuados, verificando-se apenas a discrepância de EUR 20.000;
– a existência de um contrato de mútuo não depende de qualquer análise dos fluxos financeiros entre as partes, bastando-se com a verificação da existência de um empréstimo e da correspondente obrigação de devolução por parte do mutuário;
– caso os contratos tivessem sido elaborados a posteriori, o natural seria que a informação constante dos mesmos correspondesse exatamente à situação factual passada, sendo elaborados tantos contratos quantas as transferências individualmente realizadas.
A Requerente não tem razão ao invocar a coincidência das datas dos contratos e a das transferências bancárias, pois é manifesto que ela não existiu, como a própria Requerente demonstra através do quadro que inseriu no artigo 65.º do pedido de pronúncia arbitral.
Nem sequer há a coincidência global dos montantes alegada pela Requerente, pois, como ela própria reconhece, a soma de todas as transferências é de € 403.000,00 e a soma das quantias indicadas nos contratos é de € 383.000,00.
Inclusivamente há várias transferências de montantes superiores a € 25.000,00 (€ 55.000,00 em 01-02-2017, € 50.000,00 em 12-04-2017, € 50.000,00 em 18-05-2017, € 50.000,00 em 19-06-2017, € 30.000,00 + € 20.000,00 em 12-01-2018, € 30.000,00 em 28-02-2018, € 35.000,00 + € 31.000,00 em 12-09-2019) e em nenhum dos contratos se refere empréstimos desses valores.
Aliás, em face da exigência de escritura pública para contratos de mútuo de valor superior a € 25.000,00, que consta do artigo 1143.º do Código Civil, nem se pode dar relevo probatório, relativamente a estas transferências de valores superiores a € 25.000,00, aos documentos particulares apresentados pela Requerente como sendo contratos de mútuo, por a tal obstar o n.º 1 do artigo 364.º do Código Civil.
Por outro lado, se é certo que os contratos de mútuo não implicam fluxos financeiros imediatos, estes assumem especial relevo como meio de confirmação ou não da correspondência dos contratos à realidade quando nos próprios contratos se refere que a entrega das quantias pretensamente mutuadas ocorreu nas datas em que os contratos foram celebrados, como sucede no caso em apreço, em que em todos os contratos apresentados se refere, na cláusula 2.ª, ter sido entregue na respectiva data a quantia objecto do contrato
Neste contexto, constatando-se que em nenhum dos casos houve, nas datas dos contratos, transferências do exacto montante que em cada um deles se refere ter sido entregue, os contratos não merecem credibilidade, pois resulta dos autos que contêm afirmações falsas.
A conclusão formulada pela Autoridade Tributária e Aduaneira no Relatório da Inspecção Tributária no sentido de as transferências para o sócio B... não serem efeito de contratos de mútuo é corroborada pelo facto de os alegados empréstimos não terem sido reconhecidos na contabilidade da Requerente antes de Novembro de 2019.
A alegação da Requerente de que se tratou de um lapso de contabilização não é convincente, desde logo porque nem se teria tratado de um lapso, mas de 18 lapsos, um relativo a cada alegado contrato e ainda o referente à diferença de € 20.000,00 entre o valor global das transferências e a somas dos valores referidos nos contratos apresentados pela Requerente, para que não é aventada qualquer explicação.
Não é normal, e por isso não é credível, que uma empresa obrigada a manter contabilidade organizada (artigo 123.º CIRC), que dispõe de especialista em contabilidade (Técnico Oficial de Contas, segundo se refere na IES), incorra em tão grande número de omissões de contabilização de valor elevado, para a dimensão da empresa.
Assim, a falta de reconhecimento contabilístico dos empréstimos leva à conclusão de que eles não existiam nas datas indicadas nos documentos apresentados pela Requerente, nem antes de Novembro de 2019, data em que a Requerente reconhece ter feito a correcção contabilística reportada a 31-12-2018 (artigo 96.º do pedido de pronúncia arbitral).
Pelo exposto, tem razão da Autoridade Tributária e Aduaneira ao invocar como fundamento da liquidação a falta de prova de que as transferências efectuadas em 2017 e 2018 tenham por fundamento os contratos de mútuo apresentados pela Requerente.
3.13. A aprovação de contas relativamente aos exercícios de 2017 e 2018 e as IES/DA em que não foi reflectida a existência do empréstimo
A Autoridade Tributária e Aduaneira refere no Relatório da Inspecção Tributária o seguinte:
Por outro lado, as contas relativas a cada exercício foram aprovadas nas respetivas Assembleias Gerais em que estiveram presentes todos os sócios (anexo 13):
- Em 2018-03-16 (ata n.º 10) foram aprovadas as contas do exercício de 2017;
- Em 2019-11-08 (ata n.º 11) foram aprovadas as contas do exercício de 2018.
Em ambas as atas destas Assembleias Gerais é referido que "A reunião teve como como ponto único aprovar as contas referentes ao exercício findo ... tendo sido aprovadas por unanimidade".
A IES relativa ao exercício de 2017 foi apresentada em 12-07-2018 não havendo nas demonstrações financeiras qualquer valor na conta de sócios. Por sua vez o sujeito passivo apresentou a primeira IES de 2018 em 15-07-2019, sendo que em 08-11-2019 o sujeito passivo apresentou uma IES de substituição relativa ao exercício de 2018 que reflete os valores dos mútuos contabilizados em 31-12-2018 (€ 383.000,00€).
Assim, quando os exercícios de 2017 e 2018 foram encerrados e as contas aprovadas não tinham sido contabilizados quaisquer contratos de mútuo sendo que, nas Assembleias Gerais de aprovação de contas esteve presente o sócio a quem os contratos de mútuo se referem terem sido concedidos empréstimos e que de acordo com as atas, aprovou as contas sem referência a quaisquer empréstimos pelo que, a existirem de facto os empréstimos nas datas que os contratos referem, pelo menos esse sócio teria obviamente conhecimento (até porque era uma das partes desses contratos).
Tendo as contas sido aprovadas sem incluir qualquer valor dos empréstimos apenas se pode concluir que, apesar dos contratos estarem datados de 2017 e 2018, à data de encerramento e aprovação das contas dos exercícios de 2017 e 2018 os contratos não existiam.
As explicações que a Requerente dá para a aprovação das contas de 2017 e 2018 sem estarem contabilizados os empréstimos, bem como para apresentação das IES/DA em que tais empréstimos não estavam reflectidos, são a de que os sócios «não dominam – nem têm que dominar – a área da contabilidade, motivo pelo qual a sociedade dispõe de órgãos próprios especializados, responsáveis pela elaboração dos documentos contabilísticos» e a de que «o lapso contabilístico em referência foi corrigido assim que detetado – tendo sido inclusivamente apresentada, como reconhecido no relatório final de inspeção tributária (cfr. Doc. n.º 6), uma declaração IES de substituição relativa ao ano de 2018».
Também quanto a este fundamento invocado no Relatório da Inspecção Tributária a explicação da Requerente não é convincente, quanto à causa da omissão de contabilização dos alegados contratos de mútuo, não só pela anormalidade da quantidade de omissões em que se traduziria o «lapso», mas também porque a Requerente está obrigada a manter contabilidade organizada (argo 123.º do CIRC) e a dispor de contabilista certificado (técnico oficial de contas), para execução da contabilidade, sendo isso que sucedeu com a apresentação da IES.
3.14. Conclusão
Pelo exposto, designadamente o referido nos pontos 3.12. e 3.13., tem razão Autoridade Tributária e Aduaneira ao concluir, à face da prova produzida no procedimento de inspecção, que as referidas transferências efetuadas para o sócio B... entre 31-01-2017 e 12-09-2018 no montante global de € 403.000,00 não foram efectuadas a título de empréstimos e que o lançamento do valor de € 383.000,00 na conta daquele sócio, efectuado em 2019, com referência a 31-12-2018, é o único acto da sociedade de que permite concluir que foi disponibilizada pela sociedade ao sócio a quantia de € 383.000,00.
É também convicção do Tribunal Arbitral, à face da prova produzida, que os contratos de mútuo apresentados pela Requerente não existiam antes das transferências efectuadas pela Requerente para o sócio B..., pelo que estas não foram efeito desses alegados contratos.
4. Aplicação da presunção prevista no artigo 6.º. n.º 4, do CIRS e requalificação de operações
O artigo 6.º, n.º 4, do CIRS estabelece que «os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros».
Trata-se de uma norma anti-abuso específica que permite ficcionar, quando não se verifica qualquer das excepções, que houve distribuição de lucros ou adiantamentos de lucros independentemente do fundamento jurídico das transferências patrimoniais para contas dos sócios.
Isto é, inclui-se no âmbito desta norma a requalificação como distribuição de lucros de qualquer transferência patrimonial feita para conta de sócio, com excepção das que resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
Por esta razão, a requalificação aqui prevista nesta norma anti-abuso específica não depende da verificação dos requisitos da cláusula geral anti-abuso nem da respectiva tramitação, mas apenas dos nela especialmente previstos.
No caso em apreço, a Autoridade Tributária e Aduaneira aplicou esta presunção, por ter ocorrido um lançamento na conta do sócio no B..., datado desde 31-12-2018, no valor de € 383.000,00 e ele não ter resultado de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
A prova produzida corrobora o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, pois concluiu-se que não existiam contratos de mútuo à data dos lançamentos.
Por isso, foi correcta a aplicação da presunção.
Improcede, assim, o pedido de pronúncia arbitral quanto aos vícios imputados à liquidação retenção na fonte de IRS.
5. Questão da ilegalidade da liquidação de juros compensatórios
A Requerente defende, em suma, que a imputação de responsabilidade por juros compensatórios depende de um juízo de censura, que se consubstancia na imputação de culpa ao contribuinte.
No que concerne à liquidação de juros compensatórios constata-se que, para além do cálculo que se faz na liquidação, a única fundamentação é a que consta do Relatório da Inspecção Tributária, em que se refere que «em resultado das correções ora propostas, conjuntamente com a liquidação adicional de imposto a entregar ao Estado, serão igualmente liquidados os juros compensatórios que se mostrarem devidos nos termos do disposto nos artigos 102° do CIRC e 35° da LGT».
O artigo 35.º, n.º 1, da LGT estabelece que «são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária».
A responsabilidade objectiva é excepcional, só ocorrendo nos casos especificados na lei (art. 483.º, n.º 2, do Código Civil) e, por isso, deverá entender-se que, para efeitos de responsabilidade por juros compensatórios, só se está perante um «facto imputável ao sujeito passivo» quando puder formular-se um juízo de censura em relação à sua conduta.
Nesta linha, o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a entender, uniformemente, que a imputabilidade exigida para responsabilização pelo pagamento de juros compensatórios depende da existência de culpa, por parte do contribuinte. ( [6] )
No caso em apreço, na fundamentação que consta do Relatório da Inspecção Tributária não se alude sequer a culpa do contribuinte, nem ela se invoca como fundamento da liquidação de juros compensatórios.
Assim, tendo a legalidade do acto de liquidação de juros compensatórios de ser apreciada à face da sua fundamentação (pelo que se refere no ponto 3.2. deste acórdão), tem de se concluir que esta liquidação enferma de vício de erro sobre os pressupostos de facto, que justifica a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
6. Indemnização por garantia indevida
A Requerente prestou garantia bancária para suspender execução fiscal instaurada para cobrança coerciva da liquidação impugnada e formula um pedido de indemnização, nos termos do artigo 53.º da LGT.
O artigo 171.º do CPPT estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».
Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.
O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.
O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:
Artigo 53.º
Garantia em caso de prestação indevida
1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando O príncipe se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.
No caso em apreço, há erro apenas quanto à liquidação de juros compensatórios, por ter sido efectuada sem imputar culpa à Requerente por atraso na liquidação, erro esse que é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois esta foi de sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esse erro fosse praticado.
Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada, na proporção correspondente ao valor da liquidação de juros compensatórios, que é de 7,08%.
Não havendo elementos que permitam determinar o montante exacto da indemnização, a condenação terá de ser efectuada com referência ao que vier a ser liquidado em execução do presente acórdão, de harmonia com o preceituado no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
7. Decisão
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
– julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação da liquidação de Retenção na Fonte de IRS, n.º 2021..., no montante de € 107.240,00 e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira deste pedido;
– julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., no montante de € 8.167,86 e anular esta liquidação;
– julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização por garantia indevida e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a percentagem de 7,08% das despesas com aquela suportadas pela Requerente que se liquidarem em execução do presente acórdão.
8. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 115.407,86, indicado pela Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
9. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente na percentagem de 92,92% e a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira na percentagem de 7,08%.
Lisboa, 05-11-2021
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa) (Relator)
(Vasco António Branco Guimarães)
(Mariana Vargas)
[1] Foi efectuada outra correcção relativa a tributações autónomas, que não é objecto do presente processo (artigo 21.º do pedido de pronúncia arbitral).
[2] Essencialmente neste sentido, podem ver–se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito de situação paralela que se coloca nos processos de recurso contencioso:
– de 10–11–98, do Pleno, proferido no recurso n.º 32702, publicado em publicado em Apêndice ao Diário da República de 12–4–2001, página 1207.
– de 19/06/2002, processo n.º 47787, publicado em AP–DR de 10–2–2004, página 4289.
– de 09/10/2002, processo n.º 600/02.
– de 12/03/2003, processo n.º 1661/02;
– de 22–03–2018, processo nº 0208/17.
Em sentido idêntico, podem ver–se:
– MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.ª edição, página 479 em que refere que é "irrelevante que a Administração venha, já na pendência do recurso contencioso, invocar como motivos determinantes outros motivos, não exarados no acto", e volume II, 9.ª edição, página 1329, em que escreve que "não pode (...) a autoridade recorrida, na resposta ao recurso, justificar a prática do acto recorrido por razões diferentes daquelas que constam da sua motivação expressa".
– MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Volume I, página 472, onde escreve que "as razões objectivamente existentes mas que não forem expressamente aduzidas, como fundamentos do acto, não podem ser tomadas em conta na aferição da sua legalidade".
( [3] ) Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: de 11-2-93, do Pleno, processo n.º 26389, publicado em Apêndice ao Diário da República de 16-10-95, página 103; de 4-11-93, processo n.º 31798, publicado em Apêndice ao Diário da República de 15-10-96, página 6007; e de 3-2-94, processo n.º 32325, publicado em Apêndice ao Diário da República de 20-12-96, página 791.
No mesmo sentido, podem ver-se os acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 24-11-1999, processo n.º 23720; e 19-12-2007, recurso n.º 874/07 e, mais recentemente, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 01-07-2020, processo n.º 309/14.6BEBRG, em que se entendeu que «o tribunal, na apreciação da legalidade de uma decisão administrativa, não pode considerar que esta se alicerça noutros fundamentos que não aqueles que aí foram externados».
[4] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10-5-2000, processo n.º 39073, publicado em Apêndice ao Diário da República de 09-12-2002, página 4229.
Na mesma linha, pode ver-se o acórdão do acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 28-10-2004, processo n.º 28055, em que se entendeu que "tendo o acto contenciosamente impugnado uma pluralidade de fundamentos, a invalidade de um deles não obsta a que o tribunal conheça dos restantes e só no caso de concluir pela invalidade de todos eles pode e deve julgar o acto nulo ou anulável".
[5] Esta norma, estabelece, para as sociedades anónimas, que «são nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, directamente ou por pessoa interposta, se não tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração, na qual o interessado não pode votar, e com o parecer favorável do conselho fiscal ou da comissão de auditoria».
[6] Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo:
– de 20-3-1996, processo n.º 20042, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-3-1998, página 1067;
– de 2-10-1996, processo n.º 20605, publicado em Apêndice ao Diário da República de 28-12-1998, página 2707;
– de 18-2-1998, processo n.º 22325, publicado em Apêndice ao Diário da República de 8-11-2001, página 553;
– de 3-10-2001, processo n.º 25034, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 492, página 1615, e publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2080;
– de 29-1-2003, processo n.º 1647/02, publicado em Apêndice ao Diário da República de 25-3-2004, página 164;
– de 12-3-2003, processo n.º 26800, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 506, 219 e publicado em Apêndice ao Diário da República de 25-3-2004, página 545;
– de 19-11-2008, processos n.ºs 325/08 e 576/08;
– de 11-3-2009, processo n.º 961/08.