Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 361/2021-T
Data da decisão: 2021-11-29   
Valor do pedido: € 10.382,17
Tema: IRS; domicílio fiscal; residência; dupla tributação internacional.
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SUMÁRIO:

1) O conceito de domicílio fiscal constante do art.º 19.º da LGT não se confunde com o conceito de residência fiscal para efeitos de direito fiscal internacional e direito internacional fiscal;

2) Se um indivíduo é considerado residente, para efeitos do imposto sobre o rendimento, em Portugal e França, verifica-se a concorrência de duas pretensões tributárias e a possibilidade de dupla tributação internacional, sendo necessário aplicar a CDT celebrada pelos dois Estados;  3) Sendo a França o Estado da residência (ER) para efeitos da CDT aplicável, e conferindo o Artigo 16.º da mesma CDT competência tributária exclusiva ao ER, não pode o Estado português tributar os rendimentos do trabalho dependente de trabalhador português que qualifica como Residente em França e aí presta o seu trabalho.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Professor Doutor Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:

 

1             RELATÓRIO

1. A..., contribuinte no ..., solteiro, maior, residente na Rua ..., ..., ...-... ..., notificado do indeferimento parcial da reclamação graciosa com o nº ...2021..., apresentada contra a liquidação de IRS do ano de 2016, no valor de € 10 328,17, com data limite de pagamento em 25 de janeiro do corrente ano, vem, no prazo a que se refere a alínea a) do no 1 do art.º 10 do RJAT, face à suspensão dos prazos operada pelo n.º 1 do art.º 6-B da Lei 4-B, de 1 de Fevereiro, apresentar pedido de pronúncia arbitral, para que sejam anulados, com base em ilegalidade, a liquidação emitida e o despacho que apreciou e indeferiu a reclamação apesentada.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 21.06.2021.

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) nomeou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, em 05.08.2021.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 24.08.2021.

 

6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 29.09.2021, onde, por impugnação, sustentou a improcedência do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida.

 

7. Por ter sido requerida pelas partes e ser considerada necessária, o Tribunal marcou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, a qual teve lugar no dia 29.10.2021.

 

8. Foram apresentadas alegações finais, em 02.11.2021, pelo Sujeito Passivo. 

 

1.1          Descrição dos factos

9. O Requerente, engenheiro eletrotécnico de formação, assinou, no dia 29.06.2015, um contrato de trabalho, pelo prazo de 6 meses, com início em 01.07.2015 e término em 31.12.2015 com a empresa francesa B..., SA, com sede em..., Rua..., ... Portes de Valence. O contrato foi entretanto renovado (Doc 1), em15.12.2015, para vigorar durante o ano de 2016 (Doc. 2.)

10. Em 28.12.2016 foi celebrado um novo contrato de trabalho para vigorar a partir de 01.01.2017 (Doc.3), estipulando a clausula IV do contrato de trabalho que o Requerente exerceria as suas funções na região de Valence, em França, sem recurso ao teletrabalho, residindo e trabalhando em França durante o segundo semestre de 2015, todo o ano de 2016 a alguns meses de 2017 (Docs 1, 2 e 3), tendo vivido em habitações fornecidas pela entidade patronal (Doc. 4). 

 

11. Em todo o ano de 2016 o Requerente trabalhou para a empresa francesa com a qual tinha celebrado o contrato de trabalho, da qual recebeu rendimentos, tendo residido em França em 2016 e apresentado aí a declaração de rendimentos do ano de 2016, na qual englobou rendimentos do trabalho no valor de € 22975,00. 

12. Tendo regressado a Portugal no primeiro trimestre de 2017, o Requerente não apresentou a declaração de IRS do ano de 2016 em Portugal, uma vez que, nesse ano, por força do disposto no art. 16.º do CIRS, não era considerado residente em Portugal nem auferiu, em 2016, quaisquer rendimentos neste país que obrigassem à sua apresentação.

13. Em 2020, o Requerente foi surpreendido com uma ação de fiscalização da Direção de Finanças de Viana do Castelo nos termos da qual estaria obrigado à apresentação da declaração de rendimentos do ano de 2016 uma vez que, segundo o domicílio fiscal, tinha tido a residência em Portugal durante mais de 183 dias e, como tal, os rendimentos auferidos estavam sujeitos a tributação em Portugal.

14. Tendo os serviços emitido liquidação com o n.º 2020..., no valor de € 10 382,17, com base num rendimento global de € 34 882,00, o Requerente estranhou o montante dos valores que pretensamente terá auferido em França, no valor de €34 882,00, na medida em que, conforme se verifica da declaração de rendimentos francesa o valor bruto dos rendimentos para efeitos de imposto em França é no montante de €22 975,00, ou seja, menos €11 907,00 do que aquele que foi considerado pelas autoridades fiscais portuguesas.

15. Da liquidação em causa foi apresentada reclamação graciosa, que veio a ser aceite parcialmente, com a consideração apenas do imposto suportado em França, mantendo os serviços a posição de que os rendimentos do trabalho por conta de outrem, auferidos em França, estão sujeitos a tributação em Portugal por força do disposto n.º 16 do artigo 16.º do CIRS e invocando o facto de o Requerente ter adquirido habitação em Portugal, com isenção de IMT.

 

 

 

 

1.2          Argumentos das partes

16. Os argumentos trazidos aos autos centram-se na questão da determinação da residência do sujeito passivo.

17. A Requerente sustenta a ilegalidade das correções e liquidações acima mencionadas com os argumentos que a seguir se sintetizam:

a)            O n.º 1 do art.º 16.º da Convenção entre Portugal e França para eliminar a dupla tributação internacional (CDT) estabelece, ressalvado o disposto nos artigos 17.º, 18.º, 20.º, 21° e 22.º, a tributação dos salários, ordenados e remunerações similares de acordo com o critério da residência, salvo se o emprego for exercido no Estado da fonte, caso em que pode ser tributado com base no critério da fonte;

b)           O n.º 2 do artigo 16.º, da CDT, admite a tributação no Estado da residência de rendimentos com fonte noutro Estado se o sujeito passivo beneficiário permanecer no Estado da fonte menos de 183 dias no ano fiscal em causa e os seus rendimentos forem pagos por uma ou em nome de uma entidade patronal não residente no Estado da fonte ou suportados por um estabelecimento estável ou por uma instalação fixa que a entidade patronal tenha no outro Estado;

c)            Da CDT resulta uma solução clara quanto à tributação dos rendimentos auferidos pelo Requerente durante o ano de 2016 em França, estipulando que tais rendimentos só seriam tributados em Portugal se o Requerente fosse considerado residente neste país e se o trabalho tivesse sido desenvolvido em França por menos que 183 dias;

d)           Por força dos artigos 4-A e 4-B do Code General des impôts, o Requerente teve, em 2016, domicílio fiscal em França, na medida em que, nos termos da alínea a) do n° 2 do artigo 4-B do citado diploma francês, são considerados como tendo domicílio fiscal em França "as pessoas que têm residência ou local de estada principal na França"; 

e)           O Requerente teve o seu domicílio fiscal em França, tendo aí permanecido todo o ano de 2016 e não tendo em Portugal qualquer domicílio fiscal, conforme foi reconhecido pelo serviço de finanças de Viana do Castelo, não sendo aplicáveis os critérios de desempate previstos no n.º 2 do artigo 4.º da CDT PT-França, na medida em que não há duplo domicílio;

f)            O Requerente não tinha residência permanente em Portugal porque nunca ocupou o prédio adquirido em 2015 na medida em que este estava em ruínas e não tinha e não tem condições de habitabilidade;

g)            O serviço de finanças de Viana do Castelo retirou ao Requerente o benefício fiscal de isenção de IMT, por considerar que não se tratava de habitação própria permanente.

 

18. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:

a)            A 31.12.2016 o Requerente era residente em Portugal, nos termos do artigo 16.º CIRS, tendo apenas alterado o seu domicílio fiscal para o estrangeiro (França) em 2017.01.02, situação que manteve até 03.01.2018.

b)           O n.º 1 do artigo 19.º da LGT que o domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário, o local da residência habitual, para as pessoas singulares, sendo, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito, obrigatória a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária, sob pena de ser ineficaz a mudança de domicílio enquanto a mesma não for comunicada à AT;

c)            Constando no cadastro que a residência do Requerente é em Portugal, presume-se que seja efetivamente residente em território nacional, presunção essa que é ilidível;

d)           Os documentos juntos ao PA, ao contrário do alegado pelo Requerente, não correspondem a certificados de residência fiscal em França, mas a formulários a serem preenchidos para efeitos de acionamento da Convenção para Evitar a Dupla Tributação relativamente a juros, dividendos e royalties, não respeitando aos rendimentos de trabalho dependente;

e)           Apesar de ter sido junto comprovativo de tributação de rendimentos em França relativo ao ano de 2016, não foi junto ao pedido o documento idóneo emitido pela autoridade fiscal competente que comprove que o Requerente foi considerado residente fiscal em França para efeitos do artigo 4.º da Convenção celebrada entre Portugal e França;

f)            Não tendo o Requerente apresentado qualquer documento que afaste a presunção da sua residência em Portugal, deveria o mesmo declarar os rendimentos em Portugal, nos termos do artigo 57.º CIRS e ser sujeito à tributação prevista para os residentes que, nos termos do n.º 1 do artigo 15.º CIRS, abrange os rendimentos auferidos no estrangeiro, no caso concreto, auferidos em França, conforme informação das autoridades fiscais francesas;

g)            Foi considerado na liquidação o imposto pago em França, nos termos previstos no n.º 2 artigo 24.º da CDT, verificando-se que a liquidação contestada não se encontra ferida de qualquer ilegalidade;

h)           À luz do artigo 43º, n.º 1, da LGT, não são devidos quaisquer juros indemnizatórios.

 

1.3. Saneamento  

 

19. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

20. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra. 

 

21. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2             FUNDAMENTAÇÃO

2.1          Factos dados como provados

22. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

a)            O Requerente assinou, no dia 29.06.2015, um contrato de trabalho, pelo prazo de 6 meses, com início em 01.07.2015 e término em 31.12.2015 com a empresa francesa B..., SA, com sede em..., Rua..., ... Portes de Valence, renovado, em15.12.2015 (Doc 1), para vigorar durante o ano de 2016; (Doc. 2.)

b)           Em 28.12.2016 foi celebrado um novo contrato de trabalho para vigorar a partir de 01.01.2017; (Doc.3)

c)            A clausula IV do contrato de trabalho estipulava que o Requerente exerceria as suas funções na região de Valence, em França, residindo e trabalhando em França durante o segundo semestre de 2015, todo o ano de 2016 a alguns meses de 2017; (Docs 1, 2 e 3)

d)           O Requerente iria residir em França, na região de Valence, podendo deslocar-se por breves períodos em todo o território metropolitano e viver em alojamentos fornecidos pela entidade patronal; (Docs. 2 e 4). 

e)           O Requerente trabalhou para a empresa francesa com a qual tinha celebrado o contrato de trabalho em todo o ano de 2016 da qual recebeu rendimentos; (docs 5)

f)            O Requerente, tendo-se deslocado para França, não alterou prontamente o domicílio fiscal para aquele país, tendo apenas alterado o seu domicílio fiscal para o estrangeiro (França) em 01.02.2017, situação que manteve até 19.03.2017; (PA; Audiência pública)

g)            O Requerente residiu em França em 2016, só tendo vindo a Portugal passar duas semanas de férias e o Natal, tendo ali apresentado a declaração de rendimentos do ano de 2016, na qual englobou rendimentos do trabalho no valor de € 22 975,00; (Audiência pública; Doc.6). 

h)           A Administração fiscal francesa comunicou à AT que o Requerente auferiu em França, em 2016, o rendimento de 34 882; (Reunião art. 18.º RJAT) 

i)             O Requerente não apresentou qualquer declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS relativamente ao ano de 2016 dentro do competente prazo legal para o efeito; (PA)

j)             Foi expedida a notificação nos termos do nº 3 do artigo 76º do CIRS; (PA)

k)            Não tendo sido comprovada a dispensa ou não obrigatoriedade de apresentação da declaração, promoveu-se a competente liquidação oficiosa, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 76º do CIRS, com o n.º 2020..., no valor de € 10 382,17; (PA; nota de cobrança junta aos autos)

l)             A nota de cobrança no valor de € 10 382,17 foi paga pelo Requerente; (comprovativo de pagamento de nota de cobrança junto aos autos)

m)          Da liquidação em causa foi apresentada reclamação graciosa, que veio a ser aceite parcialmente, com a consideração apenas do imposto suportado em França; (Doc. 7.).

n)           O serviço de finanças de Viana do Castelo retirou ao Requerente o benefício fiscal de isenção de IMT (art. 9.º do CIMT), por entender que o correspondente imóvel não era habitável, não podendo ser habitação permanente do Requerente. (Doc. 8.)

 

 

2.2          Factos não provados

 

23. Com relevo para a decisão sobre o mérito deve considerar-se como não provado o seguinte facto:

a)            Não se provou que o Requerente tivesse auferido, em 2016, o rendimento de 34 882€;

 

 

2.3          Motivação

24. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

25. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

26. Assim, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

2.4          Questão decidenda

 

27. Nos autos está em questão saber se o requerente deve ser considerado residente em Portugal no ano de 2016 e, em tal caso, se os rendimentos auferidos nesse ano foram no valor utilizado pela ATA para apurar o imposto liquidado em Portugal ou o valor que serviu para liquidar o imposto em França.

 

28. No âmbito do IRS, a residência é o critério utilizado para determinar o âmbito de aplicação do imposto (cf. artigo 15.º do CIRS), sendo os residentes sujeitos a um princípio de tributação de base mundial por contraposição com os não residentes, que apenas são sujeitos a tributação na fonte, relativamente aos rendimentos obtidos em Portugal. De acordo com o critério do artigo 16.º, n.º1, alínea a), do CIRS, segundo o qual “são residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa”, o Requerente não poderia ser considerado residente em Portugal no ano de 2016, na medida em que nesse ano residiu França todo o ano, só tendo vindo a Portugal passar duas semanas de férias e o Natal.

 

29. À luz do critério da alínea b), do n.º1, do artigo 16.º do CIRS, segundo o qual são residentes em Portugal aqueles que “tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual”, o Requerente podia, prima facie, ser considerado residente em Portugal, visto que, tendo por referência o ano de 2016, o mesmo i) permaneceu algum tempo em território português, ii) tinha aí o seu domicílio fiscal, a 31.12.2016, devidamente cadastrado na AT, e iii) não comunicou atempadamente à AT a mudança do seu domicílio fiscal para França – e do estatuto de residência –, tornando-a, por esse motivo, ineficaz (cfr., artigo 19.º, nºs 3, 4, 5, da LGT), e iv) não comunicou a perda de residente em Portugal quando, em 2016, apresentou à AT a declaração de IRS relativa a 2015 .

 

30. Nos termos da lei, não é necessário que haja intenção do sujeito passivo, bastando que a sua conduta faça supor, de acordo com critérios objetivos de razoabilidade, a existência dessa intenção.  Em face do exposto, o sujeito passivo induziu na AT a suposição de um animus de manutenção da sua residência habitual – mesmo se o domicílio fiscal português devesse ser a casa dos pais do Requerente (domicílio indicado no contrato celebrado com a empresa francesa) e não o prédio em ruínas que havia adquirido e para onde alterara o seu domicílio fiscal, ainda que sem nunca o ter habitado e, consequentemente, sem gozar do benefício fiscal do IMT.

 

31. Este entendimento, porém, afigura-se demasiado formalista. Na verdade, não interessa apenas a suposição da AT sobre a intenção do sujeito passivo, extraída com base nos registos constantes do cadastro, mas sim a suposição que objetivamente se pode inferir de uma análise de todos os factos e circunstâncias relevantes, nomeadamente respeitantes à efetiva deslocação do Requerente para residir e trabalhar em França . Em abstrato, a questão de saber se alguém é ou não residente em Portugal não pode ser decidida apenas com base no domicílio fiscal, nomeadamente nos casos em que se comprove que alguém efetivamente transferiu a sua residência para o estrangeiro, não fazendo sentido continuar a considera-lo considerado residente em Portugal, mesmo, por qualquer motivo, não tenha alterado o seu domicílio ou estatuto de residência.

 

32.Ainda assim, nos termos do artigo 16.º, n.º 16, do CIRS, um sujeito passivo considera-se residente em território português durante a totalidade do ano sempre que volte a adquirir a qualidade de residente durante o ano subsequente àquele em que, nos termos do n.º 4 desse artigo, perdeu aquela mesma qualidade. Em concreto, isso significa que, por ter voltado a adquirir a qualidade de residente em 2017, o Requerente deve ser considerado residente durante a totalidade do ano de 2016. Ora, não obstante ser legalmente residente, o Requerente não apresentou a Declaração Modelo 3 de IRS, respeitante a 2016, tendo havido lugar à competente liquidação oficiosa, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 76º do CIRS.

 

33. Entretanto, durante o ano de 2016, o Requerente trabalhou em França, tendo gozado apenas duas semanas de férias em Portugal, residindo na região de Valence em alojamento disponibilizado pela entidade empregadora, sendo que, – por força do disposto nos artigos 4-A e 4-B do Code General des Impôts – o Requerente teve, em 2016, domicílio fiscal em França, na medida em que, nos termos da alínea a) do nº 2 do artº 4-B do citado diploma francês, são considerados como tendo domicílio fiscal em França “as pessoas que têm residência ou local de estada principal na França” ou que aí exerçam uma atividade profissional assalariada. Foi a esse título, devidamente certificado pela autoridade tributária francesa, que o Requerente aí apresentou declaração de rendimentos do ano de 2016 na qual englobou, como rendimentos de atividade conhecidos, o montante de € 22975,00, tendo pago o imposto liquidado.

 

34. Verificando-se uma situação de dupla residência, pois que se ocorrem os respetivos pressupostos legais em Portugal e na França, estão abertas as portas a uma situação de dupla tributação, importando por isso aplicar a Convenção entre Portugal e a França para Evitar a Dupla Tributação (CDT) , aplicável nos termos do artigo 8.º, nº, 2, da CRP. Nos termos do artigo 4.º, nºs 1 e 2, da CDT, é residente de um Estado Contratante qualquer pessoa que, por virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a imposto devido ao seu domicílio. Quando uma pessoa singular for residente de ambos os Estados Contratantes – o que é o caso – a situação será resolvida de acordo com algumas regras de desempate.

 

35. A primeira dessas regras de desempate, do artigo 4.º, nºs 1 e 2, da CDT, diz respeito à disponibilidade de uma habitação permanente. No caso do Requerente, a AT considerou que o imóvel designado como seu domicílio fiscal não podia ser considerada habitação própria permanente, visto estar em ruínas, tendo negado o correspondente benefício fiscal do artigo 9.º do CIMT. Assim sendo, não pode o mesmo imóvel assumir outra natureza para efeitos de IRS. Mesmo que se entenda que a casa dos pais do Requerente estava à sua disposição em Portugal, afigura-se decisivo o facto de que, no ano de 2016, o Requerente tinha à sua disposição uma habitação permanente em França e ali tinha o seu centro de interesses vitais, do ponto de vista pessoal, profissional e económico. De acordo com o mencionado critério de desempate da CDT, o Requerente deve ser havido como residente em França. 

 

36. Nesta sede, é ainda relevante o artigo 16.º, n.º 1, da CDT , sobre a tributação da generalidade dos rendimentos do trabalho assalariado, de cuja leitura resulta que os salários obtidos por um residente de um Estado Contratante – no caso, obtidos por um Residente em França – só podem ser tributados nesse Estado – a França – visto aí ter sido exercida a atividade. Este resultado não é afastado pelo n.º 2 do mesmo artigo , – não podendo em caso algum Portugal tributar esse rendimento – porque, tendo em conta os critérios aí dispostos, em 2016 o Requerente passou mais de 183 dias em França e as remunerações que recebeu foram pagas por uma entidade empregadora aí sediada. Ou seja, embora, em 2016, o Requerente fosse residente em Portugal em termos prima facie, por força do artigo 16.º do CIRS, não o era em termos definitivos, por aplicação dos artigos 4.º e 16.º da CDT. Não podia por isso Portugal exercer o poder tributário sobre o Requerente relativamente aos rendimentos do trabalho por ele obtidos em França, onde tinha o estatuto de residente à face da lei francesa e da CDT. 

 

37. Nos termos do nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.ºs 1 a 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), são devidos juros indemnizatórios no caso de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido – traduzido, no caso, na errónea aplicação do artigo dos artigos 16.º do CIRS e 4.º e 16.º da CDT entre Portugal e França – devendo os mesmos ser pagos à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, calculados sobre a quantia paga, desde o dia em que foi paga a liquidação mencionada supra e até o integral reembolso do montante de € 10 382,41.

 

3             DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Julgar procedente o pedido do Requerente, declarando a ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2020..., no montante de € 10 382.41, e procedendo sua anulação;

b)           Anular o despacho de indeferimento parcial da reclamação graciosa com o nº ...2021...;

c)            Determinar o reembolso integral da quantia de € 10 382.41 indevidamente paga com  juros indemnizatórios à taxa resultante lega, calculados sobre a quantia paga, desde o dia em que foi paga a liquidação mencionada supra e até ao reembolso.

 

4             VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em €10.382,17, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

5             CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918.00, a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 29 de novembro de 2021

 

O Árbitro

Jónatas E. M. Machado