SUMÁRIO:
Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transaccionados no mercado nacional, a norma do artigo 11º do CISV, na redacção dada pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, mostra-se incompatível com o direito comunitário, por violação do artigo 110º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. A..., contribuinte n.º..., residente em ..., ..., na Rua ..., n.º ... (doravante designado por Requerente), apresentou junto do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo das disposições conjugadas nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 3, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação parcial das liquidações de Imposto sobre Veículos (ISV) nº 2020/..., de 18.09.20 e nº 2019/..., de 08.10.2019, na parte que se refere à componente ambiental, no montante global de € 1.058,04.
Peticiona ainda o reembolso do imposto pago em excesso, acrescido dos juros indemnizatórios.
2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
3. O Requerente alega, sumariamente, que:
- em 25.09.2020, foi apresentada na Alfândega de Braga, a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) nº 2020/..., para introdução no consumo, com origem na Alemanha, do veículo usado, de marca ..., movido a gasóleo, nº de motor ..., cilindrada 1598 cc, com 146264 Km percorridos, a que foi atribuída a matrícula ..., em 24.09.2020. No Quadro E da DAV, relativo às características do veículo, no item 51 consta o valor de 0,0004 g/km, relativo à emissão de partículas, e no item 50 o valor de 111 g/km, relativo à emissão de Gases CO2. O Requerente procedeu à liquidação do ISV pelo valor global de € 2.649,47, imposto que foi integralmente pago. Deste imposto, € 1200,50 correspondem à componente cilindrada e € 1448,97 à componente ambiental. Em relação à componente cilindrada, aquele valor resulta da dedução ao valor de € 2.501,04 da quantia de € 1.300,54 (52%) correspondente à redução resultante do número de anos de uso do veículo;
- em 09.10.2019, foi apresentada na Alfândega de Braga, a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) nº 2019/..., para introdução no consumo, com origem na Alemanha, do veículo usado, de marca ..., movido a gasóleo, nº de motor ..., cilindrada 1461 cc, com 126272 Km percorridos, a que foi atribuída a matrícula ..., em 08.10.2019. No Quadro E da DAV, relativo às características do veículo, no item 51 consta o valor de 0 g/km, relativo à emissão de partículas, e no item 50 o valor de 99 g/km, relativo à emissão de Gases CO2. O Requerente procedeu à liquidação do ISV pelo valor global de € 1.446,21, imposto que foi integralmente pago. Deste imposto, € 860,48 correspondem à componente cilindrada e € 585,73 à componente ambiental. Em relação à componente cilindrada, aquele valor resulta da dedução ao valor de € 1.792,66 da quantia de € 932,18 (52%) correspondente à redução resultante do número de anos de uso do veículo;
Ao não aplicar, em ambos os casos, a mesma redução à componente ambiental, o Requerente entende que a AT está a violar o artigo 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), onerando os veículos usados importados com uma tributação fiscal superior à aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.
4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado pelo Requerente em 01.07.2021 e aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 02.07.2021. Foi notificado à AT em 05.07.2021. O Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 6º do RJAT, foi designada, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, em 23.08.2021, a ora signatária como Árbitro a integrar o Tribunal arbitral singular, o qual se constituiu em 10.09.2021, em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11º, do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro.
5. A Requerida AT não juntou resposta nem processo administrativo.
6. Em 2.11.2021, foi dispensada a reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, tendo-se facultado às partes a possibilidade de apresentação de alegações, nenhuma delas o tendo feito.
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo (cfr. artigos 2º, n.º 1, alínea a) e 5º do RJAT).
Não há nulidades nem matéria de excepção para conhecer:
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Matéria de facto
A. Factos provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
1. O Requerente introduziu em Portugal, com origem na Alemanha, dois veículos.
2. Pelo valor de € 13.800,00, o veículo automóvel ligeiro de passageiros usado de marca..., modelo..., movido a gasóleo, n.º de motor..., n.º de quadro WDD..., com o código de homologação ..., cilindrada 1598 cc, de cor cinzenta (Declaração aduaneira):
2.1. O veículo foi matriculado pela primeira vez na Alemanha a 16.01.2015, tendo-lhe sido atribuída a matrícula ... (Declaração aduaneira).
2.2. Após a concretização da compra e venda do veículo, o Requerente procedeu à sua importação e, em 16.09.2020, deu entrada com o mesmo em território nacional, tendo apresentado a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) dentro dos 20 dias posteriores à entrada do veículo em território nacional (Declaração aduaneira).
2.3. A DAV (à qual foi atribuído o n.º 2020/..., de 25.09.2020), foi apresentada pelo Requerente através de representante indirecto, tendo o declarante inscrito nos Quadro F e G (referentes à apresentação do veículo e matrículas e com 146264 km percorridos (Declaração aduaneira).
2.4. No Quadro E da DAV, relativo às características do veículo, no item 51 (atinente à emissão de partículas) consta o valor de 0.0004 g/km, e no item 50 (relativo à emissão de gases CO2) consta o valor de 111 g/km (Declaração aduaneira).
2.5. Atenta a data da 1.ª matrícula do veículo no país de origem, o veículo foi considerado um veículo entre “Mais de 5 a 6 anos de uso”, para efeitos dos escalões da Tabela D, prevista no n.º 1, do artigo 11º do CISV, ao qual corresponde uma percentagem de redução de 52% (Declaração aduaneira).
2.6. No Quadro R da referida DAV, alusivo ao cálculo ISV, o cálculo desse imposto foi efectuado, com recurso à aplicação da tabela aplicável aos veículos ligeiros de passageiros (Tabela A), pelo valor total de € 2.649,47 (Declaração aduaneira).
2.7. Do valor total de imposto, € 1.200,50. são relativos à componente cilindrada, e € 1.448,97 são relativos à componente ambiental (Declaração aduaneira).
2.8. No que concerne à componente cilindrada, ao valor inicial de € 2.501,04 foi deduzida a quantia correspondente a 52% do seu montante, ou seja, 1.300,54, de acordo com as percentagens de redução constantes da tabela D prevista no n.º 1, do artigo 11º, do CISV, aplicável aos veículos usados (Declaração aduaneira).
2.9. No que concerne ao montante de € 1.448,97, respeitante à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental não foi aplicada qualquer percentagem de dedução (Declaração aduaneira).
2.10. A liquidação de ISV em causa tem o n.º 2020/..., de 18.09.2020, e o Requerente, procedeu ao seu pagamento na totalidade, no montante de € 2.649,47, em 22.09.2020 (Declaração aduaneira).
3. Pelo valor de € 4.800,00, o veículo automóvel ligeiro de passageiros usado de marca ..., modelo R, movido a gasóleo, n.º de motor..., n.º de quadro VF..., com o código de homologação..., cilindrada 1461 cc, de cor branca (Declaração aduaneira):
3.1. O veículo foi matriculado pela primeira vez na Alemanha a 15.08.2014, tendo-lhe sido atribuída a matrícula... (Declaração aduaneira).
3.2. Após a concretização da compra e venda do veículo, o Requerente procedeu à sua importação e, em 29.09.2019, deu entrada com o mesmo em território nacional, tendo apresentado a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) dentro dos 20 dias posteriores à entrada do veículo em território nacional (Declaração aduaneira).
3.3. A DAV (à qual foi atribuído o n.º 2019/..., de 09.10.2019), foi apresentada pelo Requerente através de representante indirecto, tendo o declarante inscrito nos Quadro F e G (referentes à apresentação do veículo e matrículas anteriores), que o mesmo era uma viatura usada, proveniente da Alemanha e com 126272 km percorridos (Declaração aduaneira).
3.4. No Quadro E da DAV, relativo às características do veículo, no item 51 (atinente à emissão de partículas) consta o valor de 0 g/km, e no item 50 (relativo à emissão de gases CO2) consta o valor de 99 g/km (Declaração aduaneira).
3.5. Atenta a data da 1.ª matrícula do veículo no país de origem, o veículo foi considerado um veículo entre "Mais de 5 a 6 anos de uso", para efeitos dos escalões da Tabela D, prevista no n.º 1, do artigo 11º do CISV, ao qual corresponde uma percentagem de redução de 52% (Declaração aduaneira).
3.6. No Quadro R da referida DAV, alusivo ao cálculo ISV, o cálculo desse imposto foi efectuado, com recurso à aplicação da tabela aplicável aos veículos ligeiros de passageiros (Tabela A), pelo valor total de € 1.446,21 (Declaração aduaneira).
3.7. Do valor total de imposto, € 860,48 são relativos à componente cilindrada, e € 585,73 são relativos à componente ambiental (Declaração aduaneira).
3.8. No que concerne à componente cilindrada, ao valor inicial de € 1.792,66 foi deduzida a quantia correspondente a 52% do seu montante, ou seja, € 932,18, de acordo com as percentagens de redução constantes da tabela D prevista no n.º 1, do artigo 11º, do CISV, aplicável aos veículos usados (Declaração aduaneira).
3.9. No que concerne ao montante de € 585,73, respeitante à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental não foi aplicada qualquer percentagem de dedução (Declaração aduaneira).
3.10. A liquidação de ISV em causa tem o n.º 2019/..., de 09.10.2019, e o Requerente, procedeu ao seu pagamento na totalidade, no montante de € 1.446,21, em 08.10.2019 (Declaração aduaneira).
4. Em 17.12.2020, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa dos actos de liquidação (Doc. 1), que foi indeferido por despacho de 08.04.2021 (Doc. 4).
5. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado a 01.07.2021.
B. Factos não provados
Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.
C. Fundamentação da Fixação da Matéria de Facto:
A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Singular e a sua convicção ficou formada com base na peça processual e nos documentos juntos pelo Requerente.
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596º e n.º 2 a 4 do artigo 607º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e) do n.º do artigo 29º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.
III.2. Matéria de Direito
Conforme resulta do pedido arbitral, o Requerente manifesta a sua inconformidade com os actos de liquidação impugnados, por entender que, ao não levarem em consideração o número de anos dos veículos em causa na sua componente ambiental, o artigo 11º do CISV, na redacção então em vigor, violava directamente o disposto no artigo 110º do TFUE, o que inquina as liquidações de ilegalidade.
De acordo com o disposto no Código do ISV, estão sujeitos ao imposto, designadamente, «os veículos automóveis ligeiros de passageiros», sendo «sujeitos passivos do imposto os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares (…) que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando -se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos» [artigo 2º, n.º 1, alínea a) e 3º, n.º 1]
E, como estabelece o artigo 5º do mesmo código, «constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal», sendo que, para este efeito, de acordo com o n.º 3 alínea a) do mesmo artigo, entende-se por «admissão, a entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado-Membro da União Europeia em território nacional» (sublinhados nossos).
Por sua vez, «a introdução no consumo e a liquidação do imposto são tituladas pela declaração aduaneira de veículos (DAV)», sendo, «para efeitos de matrícula, os veículos automóveis ligeiros (…) são sujeitos ao processamento da DAV» (art. 17º, n.º 1 e 3 do CISV).
Para efeitos de cálculo do ISV, as taxas aplicáveis têm por base tributável uma componente cilindrada e uma componente ambiental, sendo que a primeira estipula uma taxa consoante a cilindrada e o tipo de veículo e a segunda uma discriminação entre os veículos a gasolina e os veículos a gasóleo, (de forma positiva relativamente aos primeiros) prevendo uma tributação progressiva em função do nível de CO2 g/km.
De modo particular, e no que aos veículos usados provenientes de outros Estados membros da União Europeia respeita – como no caso em apreço -, estabelecia o artigo 11º do CISV, na versão então em vigor:
1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com excepção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:
TABELA-D
2 - Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respectivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.
Ora, as questões suscitadas no âmbito da União Europeia relativamente à carga fiscal incidente sobre os veículos usados provenientes de veículos matriculados em Estados Membros e, designadamente, em matéria de legalidade e conformidade com as normas comunitárias do ISV, há muito se vêm arrastando.
Por exaustivo se transcreve o historial que a esse propósito se fez constar da decisão arbitral de 30.04.2019, proferida no processo n.º 572/2018-T:
- «(…) Essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter proteccionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos. [1] [2]
Não obstante, em 2001, o Acórdão do TJCE (de 22.02.01) denominado «Gomes Valente», proferido a título prejudicial, veio criar as condições para se romper, a nível nacional, com o quadro clássico de tributação dos veículos usados, assente exclusivamente em reduções fixas em função do n.º de anos de uso.
Neste âmbito, embora tenha sido referido que a aplicação de uma tabela de taxas para os veículos usados fundada num critério de depreciação único não seria contrário ao referido artigo 95º do Tratado de Roma, foi sublinhado que era importante que fossem tomados em conta outros factores de depreciação que não apenas a antiguidade, de forma a garantir que a referida tabela reflectisse de modo mais preciso a depreciação real dos veículos e permitisse alcançar de uma forma mais fácil o objectivo da tributação dos veículos usados, de modo a que, em nenhum caso, esta pudesse ser superior ao montante da taxa residual incorporada no valor dos veículos usados já matriculados em território nacional.
Esta jurisprudência veio a ser reforçada com o Acórdão do TJCE n.º 101/00, proferido em 19 de Setembro de 2002 num processo que então envolveu o Governo Finlandês e Antti Sillin, no qual foi considerado que o artigo referido artigo 95º, primeiro parágrafo do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 90º, primeiro parágrafo) permitia a um EM aplicar aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o valor tributável é determinado por referência ao valor aduaneiro definido, mas obsta a que o valor tributável varie em função da fase de comercialização quando daí possa resultar, pelo menos, em determinados casos, que o montante do imposto que incide sobre um veículo usado importado exceda o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.
Refira-se ainda que, na sequência do designado Acórdão «Gomes Valente», a jurisprudência tem entendido que para que um sistema de tributação dos veículos usados seja compatível com o disposto no Tratado é necessário que se adopte ou um modelo de tributação baseado na avaliação de cada veículo ou um modelo de tributação baseado em tabelas fixas que exclua todo e qualquer efeito discriminatório.[3]
Por outro lado, o actual artigo 110º do TFUE opõe-se a que um EM aplique aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o imposto que incide sobre esses veículos não atenda à depreciação real do veículo e não permita garantir sempre que o montante do imposto que fixa não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.
Mais se considerou que, quando um EM aplica aos veículos usados importados de outros Estados membros um sistema de tributação em que a depreciação real dos veículos é definida de modo geral e abstracta com base em critérios determinados pelo direito nacional, o disposto no Tratado exige que esse sistema de tributação seja organizado de forma a excluir todo e qualquer efeito discriminatório.
Pode assim afirmar-se que o Acórdão do TJCE proferido no caso «Gomes Valente» abriu a porta para uma nova forma de tributação dos veículos usados admitidos de outros Estados membros.[4]
Mas, ao que ao presente caso interessa, refira-se que em 2006, no âmbito do sistema de tributação húngaro, no Acórdão do TJUE de 5 de Outubro de 2006 (C-290/05), no caso Nádasdi, foi analisada pela primeira vez a questão ambiental face aos impostos automóveis aplicáveis dentro do espaço da União Europeia.
Com efeito, o sistema fiscal húngaro ignorava a desvalorização do veículo e tratava de forma igualitária todos os veículos que tivessem a mesma motorização e comportamento ambiental.
Contudo, o referido Acórdão veio declarar que «o artigo 90.º, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação. Não é relevante proceder a uma comparação com os veículos usados postos em circulação no Estado-Membro em questão antes da introdução desse imposto».
Adicionalmente, considerou-se que os Estados-Membros (EM) têm liberdade para seleccionar os critérios a utilizar no cálculo do imposto e estabelecer um sistema de tributação diferenciado para certos produtos, em função de critérios objectivos aplicados, sendo que tais diferenciações só serão consideradas compatíveis com o direito da UE se, por um lado, prosseguirem objectivos compatíveis, também eles, com as exigências do Tratado e do direito derivado e, se por outro, as formas que vierem a revestir sejam de molde a evitar qualquer forma de discriminação, directa ou indirecta, das «importações» provenientes dos outros EM, ou de protecção em favor de produções nacionais concorrentes.
Assim, ainda que, em termos gerais, no âmbito de um regime fiscal relativo à tributação automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em factores ambientais constituem critérios objectivos e possam ser utilizados no sistema de tributação, da sua utilização não poderá resultar discriminação e o imposto que vier a ser apurado não poderá onerar mais os produtos provenientes de outros EM do que os produtos nacionais similares, implicando que a cobrança por um EM de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro EM é contrária ao artigo 110º do TFUE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.
Em 2009, interpretando o mesmo artigo 110º do TFUE, o TJUE, no Acórdão de 19 de Março de 2009 (que opôs a Comissão Europeia à Finlândia), considerou que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de um modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.
Ora, relevando que, nos termos do disposto no artigo 8º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o direito internacional prevalece sobre o direito interno português e é directamente aplicável em território nacional, sem desenvolver qualquer fundamentação, fez eco uma comunicação da Comissão Europeia em que se informava que esta tinha encetado, no TJUE, um processo contra Portugal, no sentido de defender que era censurável o artigo 11º do Código do ISV não contabilizasse no cálculo do ISV incidente sobre veículos usados nenhuma desvalorização até o veículo ter mais de um ano de tempo de uso, nem é considerada nenhuma diminuição do valor real para os veículos com mais de cinco anos de utilização, processo que culminou com a prolação do Acórdão to TJUE (C-200/15), de 16.06.2016, acima já referido.
Por se entender que as alterações legislativas ao artigo 11º do CISV não traduzem consonância com a legislação comunitária, continua a mesma decisão arbitral:
- Contudo, como não foi comtemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE n.º C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando directamente a legislação nacional, consubstanciada no artigo 11º do Código do ISV (na redacção em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que «a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do TFUE.
E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, mas excluindo de novo da redacção do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.
Assim, os actuais contornos da legislação nacional ignoram, no artigo 11º, n.º 1 Tabela D, o previsto no artigo 110º do TFUE e a posição que o TJUE tem assumido (e que já assumia face ao disposto no artigo 90º do Tratado de Roma) de que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.
A situação descrita levou (de novo) a Comissão Europeia, na sua busca de justiça comunitária, a dar início a um procedimento contra Portugal por este não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados «importados» de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestas viaturas face às viaturas usadas adquiridas em território nacional».
Pois bem, resulta do exposto evidente a orientação constante do TJUE sobre a incompatibilidade de normas nacionais que tributem mais gravosamente os veículos “importados” de outros Estados Membros, como se extrai tanto das decisões referidas como de tributações de similares contornos vigentes noutros países da União Europeia.
Aliás, como se refere no Acórdão de 20.09.2007, proferido no processo C-74/06, Comissão das Comunidades Europeias vs República Helénica: «O artigo 95°, primeiro parágrafo, do Tratado, só permite a um Estado-Membro aplicar aos veículos usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação em que a depreciação do valor efectivo dos referidos veículos é calculada de modo geral e abstracto, com base em critérios ou tabelas fixas determinados por uma disposição legislativa, regulamentar ou administrativa, se esses critérios ou tabelas forem susceptíveis de garantir que o montante do imposto devido não excede, ainda que apenas em certos casos, o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional».
Ou, como estabelece o Acórdão de 05.10.2006, processos C-290/05 e C-33/05 Ap., Ákos Nádasdi: «No âmbito de um regime relativo ao imposto automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em considerações ambientais constituem critérios objectivos. Daí poderem ser utilizados num regime desses. Em compensação, não é exigível que o montante do imposto esteja relacionado com o preço do veículo.
Contudo, um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados-Membros do que os produtos nacionais similares.
Ora, um veículo novo relativamente ao qual o imposto automóvel foi pago na Hungria perde, com o decorrer do tempo, uma parte do seu valor de mercado. Assim, diminui, na mesma medida, o montante do imposto automóvel compreendido no valor residual do veículo. Sendo um veículo usado, só pode ser vendido por uma percentagem do valor inicial, percentagem que engloba o montante residual do imposto automóvel.
Resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça pelos órgãos jurisdicionais de reenvio que um veículo do mesmo modelo e de antiguidade, quilometragem e outras características idênticas, comprado em segunda mão noutro Estado-Membro e registado na Hungria será, contudo, sujeito a 100% do imposto automóvel aplicável a um veículo dessa categoria. Por conseguinte, o referido imposto onera mais os veículos usados importados do que os veículos usados similares já registados na Hungria e sujeitos ao mesmo imposto. 56. Assim, não obstante o carácter ambiental do objectivo e do fundamento do imposto automóvel e mesmo não tendo estes qualquer relação com o valor de mercado do veículo, o artigo 90°, primeiro parágrafo, CE exige que seja tida em conta a depreciação dos veículos usados que são objecto de tributação, visto que esse imposto se caracteriza por ser apenas cobrado uma vez quando do primeiro registo do veículo para efeitos da sua utilização no Estado-Membro em causa e por ser desta forma incorporado no referido valor.» Com base nestes considerandos, o Tribunal viria a declarar que «2 - O artigo 90°, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida:
– em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e
– em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação».
E, de forma indiscutível e directa relativamente ao CISV, mais propriamente no que respeita a alteração ao artigo 11º do CISV, veio o TJUE, por Acórdão de 16.06.2016, proferido no processo C-200/15, Comissão Europeia vs República Portuguesa, a considerar:
- «Para efeitos da aplicação do artigo 110° TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar-se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide directa ou indirectamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados, mas também a matéria colectável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve reflectir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de Setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).
No caso em apreço, o artigo 11°, n.º 1, do Código do Imposto sobre Veículos prevê, para efeitos do cálculo do imposto aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros, a tomada em consideração de uma desvalorização em função de uma tabela de percentagens fixas que estabelece, designadamente, em 20% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado durante um período de um a dois anos e em 52% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado há mais de cinco anos.
Daqui resulta que a República Portuguesa aplica aos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação no qual, por um lado, o imposto devido por um veículo utilizado há menos de um ano é igual ao imposto que incide sobre um veículo novo similar posto em circulação em Portugal e, por outro, a desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos é limitada a 52%, para efeitos do cálculo do montante deste imposto, independentemente do estado geral real desses veículos.
Ora, é facto assente que o valor de mercado de um veículo automóvel começa a diminuir a partir da data da sua compra ou da sua entrada em circulação e que esta diminuição continua para além do quinto ano da sua utilização (v., neste sentido, acórdão de 19 de Setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C-101/00, EU:C:2002:505, n.º 78).
Deste modo, a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos.
Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que, nos casos referidos no número anterior do presente acórdão, os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110° TFUE».
Em conclusão, viria o Tribunal a declarar que «1) A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110° TFUE.»
Para, pretensamente, ir ao encontro desta última decisão judicial foi dada nova redacção ao artigo 11º do CISV, através da Lei n.º 42/2016, de 28/12, incluindo-se a desvalorização dos veículos quanto à componente cilindrada, mas excluindo-se, de modo declarado, a desvalorização relativa à componente ambiental.
Do que resulta que a legislação nacional em vigor à data– no aludido artigo 11º do CISV – continuava a não ser compatível com o disposto no artigo 110º do TFUE, permanecendo uma tributação mais onerosa para os veículos provenientes de outros Estados Membros, quando comparados com os adquiridos no território nacional.
Não se conseguindo vislumbrar em que medida a aplicação do artigo 191º do TJUE fosse incompatível ou pudesse prevalecer à aplicação do artigo 110º, como defende a Requerida. Quer dizer, continuava o artigo 11º do CISV a ser contrário ao artigo 110º do TFUE e à interpretação conjugada, uniforme e reiterada que dos mesmos tem o TJUE dado a conhecer.
É, aliás, com base neste entendimento que a Comissão Europeia deu início, em 23.04.2020, no TJUE, a uma acção por incumprimento contra o Estado português, processo a que foi atribuído o n.º C-169/20, e no qual foi preferida decisão, em 02.09.2021, no sentido de que «[a]o não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE».
Note-se que, entretanto, o legislador português já tinha actualizado, neste mesmo sentido, através da Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, a redacção do n.º 1 do referido artigo 11º do CISV, que, doravante, passou a ser a seguinte:
«Artigo 11º (Taxas - veículos usados)
1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, tendo em conta aútil média remanescente dos veículos, respectivamente componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida (…).» (sublinhado nosso)
Em conclusão, subscrevendo a posição que o TJUE tem expressamente assumido, não se nos afiguram dúvidas quanto à incompatibilidade do artigo 11º do CISV, na redacção em vigor à data da emissão das liquidações em crise, com o direito da União Europeia, quando faz impender uma carga tributária agravada sobre os veículos usados provenientes de outros Estados Membros, comparativamente com os nacionais, ao não ter em conta a necessária redução do montante do imposto na componente ambiental.
Acresce que o n.º 4 do artigo 8º da CRP, estabelece o primado do direito comunitário, quando determina que as disposições dos tratados que regem a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito nacionais, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde que respeitados os princípios fundamentais do Estado de direito comunitário.
Logo, quando as normas de direito ordinário interno não são compatíveis com o direito comunitário, o Tribunal nacional não as pode aplicar, devendo suspender a sua força vinculativa no caso concreto. «O juiz nacional, encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito comunitário, tem a obrigação de assegurar o pleno efeito dessas normas, deixando se necessário inaplicadas, por sua própria autoridade, qualquer disposição contrária da legislação nacional, ainda que posterior, sem que tenha de pedir ou aguardar a eliminação prévia desta por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional» (Acórdão de 09.03.1978 do TJUE, no processo C-106/77 - Acórdão Simmenthal). Daqui se retira que o primado do direito da União Europeia é absoluto e impõe-se à própria Constituição.
A legalidade das liquidações em crise deve aferir-se, em última instância, pela respectiva conformidade com o direito da União Europeia que compete aos Estados membros, designadamente através dos tribunais, aplicar e fazer respeitar. Facto que o legislador português acabou por reconhecer ao alterar, através da Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, a redacção do artigo 11º do CISV por forma a que a mesma ficasse em conformidade com o direito da União Europeia.
Considera-se, desse modo, que as liquidações objecto do presente pedido arbitral, que aplicam o artigo 11º do CISV, na redacção em vigor à data, padecem de ilegalidade, na parte em que não consideraram a redução da componente ambiental, o que, aliás, coincide com o pedido, impondo-se a sua anulação parcial, pelo que deve ser devolvido ao Requerente o imposto indevidamente pago no montante global de € 1.058,04.
*
Além da restituição do imposto indevidamente pago, pretende o Requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
Tal direito vem consagrado no artigo 43º da LGT o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial - ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.
É verdade que foram praticados actos que agora se decide serem parcialmente ilegais. Mas, para que a AT possa ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios, necessário é que o mesmo resulte de erro imputável aos serviços. Sobre esta questão, na esteira do decidido no acórdão do STA, proferido em 19.11.2014, no processo 0886/14, entende-se que existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços: «(…) tem desde há muito entendido este Supremo Tribunal de forma pacífica que “existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária actuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectado pelo erro, conforme se deixou explicado, entre outros, no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 12.12.2001, no recurso n.º 026233, pois “havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro” já que “a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços”. - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 14 de Março de 2012, rec. n.º 1007/11, e numerosa jurisprudência aí citada.»
O mesmo resulta do acórdão do TCAS n.º 1058/10.0BELRS, de 31.01.2019, onde se decidiu, mais recentemente no sentido de que «(…) o erro imputável aos serviços concretiza qualquer ilegalidade, não imputável ao contribuinte, mas à Administração, compreendendo o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, no âmbito do qual se enquadra a violação das normas de direito da UE.»
Pelo que assiste ao Requerente o direito ao pretendido pagamento de juros indemnizatórios relativamente ao imposto pago em excesso. E subscrevemos o hoje sustentado na presente decisão, contrariando a posição que anteriormente vínhamos assumindo, numa evolução de pensamento.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado, determinando-se a anulação parcial das liquidações de ISV nº 2020/..., de 18.09.2020 e 2019/... de 08.10.2019 e a consequente restituição ao Requerente da quantia de € 1.058,04, com as demais consequências legais.
b) Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
c) Condenar a Requerida nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 1.058,04, nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12º, n.º 2, e 22º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável
Lisboa, 18 de Novembro de 2021
O Árbitro,
(Cristina Aragão Seia)
[1] De acordo com o texto do artigo, «nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções». O texto desde artigo 90º do Tratado de Roma é muito semelhante ao texto do artigo 110º do TFUE que dispõe que «nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares».
[2] Esta questão veio a ser apreciada algum tempo mais tarde no acórdão do TJCE, de 09.03.95, proferido no âmbito do processo C-345/93, em que foi impugnante Nunes Tadeu.
[3] Note-se que, na sequência da referida jurisprudência, foi efectivamente adoptada uma redacção no âmbito do antigo Imposto Automóvel (IA) que veio a ser transposta em termos sensivelmente iguais para o Código do ISV (para o mencionado artigo 11º), mas não pode ser ignorado que já na vigência deste Código, o legislador através da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (de resto mitigando uma anterior alteração feita pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro), introduziu importantes alterações na construção do imposto, designadamente pelos efeitos projectados pelo factor ambiental no seu cálculo e na sua correlação com o valor real dos veículos.
[4] Neste âmbito, concluiu a jurisprudência nacional (STA) que a lei portuguesa não estava em conformidade com o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma, pelo que nenhuma autoridade nacional, administrativa ou jurisdicional poderia aplicar a lei nacional, a qual deveria ser desaplicada, e em sua substituição, deveria ser aplicado directamente o referido artigo 95º.
Para o efeito, considerou que ao ser aplicada uma lei que violava o direito comunitário, a respectiva alfândega incorreu em vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, pois partiu do pressuposto que a lei nacional era válida, quando ela era inválida por violar normas de hierarquia superior, tendo em conta o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional e a aplicabilidade directa, no caso, do direito comunitário. Não importaria verificar se o imposto apurado, em concreto, pelo acto de liquidação impugnado, tinha sido ou não superior ao imposto residual incorporado em veículos usados semelhantes já matriculados em Portugal, pois independentemente do resultado concreto, no caso, as normas nacionais não poderiam ser aplicadas, por desconformes com o direito comunitário, se não garantissem que nunca, em nenhum caso, independentemente do que acontecesse, o imposto resultante da sua aplicação fosse superior ao imposto residual incorporado em veículos usados semelhantes matriculados em Portugal Para o efeito, considerou que ao ser aplicada uma lei que violava o direito comunitário, a respectiva alfândega incorreu em vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, pois partiu do pressuposto que a lei nacional era válida, quando ela era inválida por violar normas de hierarquia superior, tendo em conta o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional e a aplicabilidade directa, no caso, do direito comunitário. Não importaria verificar se o imposto apurado, em concreto, pelo acto de liquidação impugnado, tinha sido ou não superior ao imposto residual incorporado em veículos usados semelhantes já matriculados em Portugal, pois independentemente do resultado concreto, no caso, as normas nacionais não poderiam ser aplicadas, por desconformes com o direito comunitário, se não garantissem que nunca, em nenhum caso, independentemente do que acontecesse, o imposto resultante da sua aplicação fosse superior ao imposto residual incorporado em veículos usados semelhantes matriculados em Portugal.