I – Relatório
1. No dia 13.02.2014, o Requerente A..., S.A., pessoa coletiva nº …, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do art. 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação dos seguintes atos tributários, referentes a Imposto Único de Circulação (“IUC”):
- Liquidações números ... e ..., referentes ao veículo matrícula ..-..-.., respeitantes aos anos de 2009 e 2010 e mês de Novembro, no valor de 32,80 € e 33,10 €, respetivamente.
- Liquidações nºs ..., ..., ... e ..., referentes ao veículo matrícula ..-..-.., respeitantes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 e mês de Junho, no valor de 32,80 €, 33,10 €, 33,83 € e 34,61 €, respetivamente.
- Liquidações nºs ... e ..., referentes ao veículo matrícula ..-..-.., respeitantes aos anos de 2009 e 2010 e mês de Julho, no valor de 29 €, cada qual.
- Liquidações nºs ... e ..., referentes ao veículo matrícula ..-..-.., respeitantes aos anos de 2009 e 2010 e mês de Maio, no valor de 16,40 € e 16,50 €, respetivamente.
Peticiona, ainda, o Requerente o pagamento de juros indemnizatórios pela privação das quantias correspondentes ao tributos em questão, nos termos do art. 43º da Lei Geral Tributária.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do art. 6.º do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 17.04.2014
3. Por despacho de 14.06.2014, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, na sequência de requerimento neste sentido apresentado pelo Requerente, que mereceu a concordância da Requerida.
4. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, são, muito sinteticamente, os seguintes:
4.1. A AT não indica expressamente as razões da liquidação dos tributos em causa à Requerente, o que configura vício de falta de fundamentação, que expressamente se argui.
4.2. Apesar desta falta de fundamentação a posição da AT só pode assentar na circunstância de nos meses e anos em que se tornaram exigíveis os tributos em questão, a propriedade dos correspondentes veículos automóveis ainda estar registada em nome da requerente, apesar de já terem sido transmitidos.
4.3. A falta de registo não afeta a validade do contrato de compra e venda mas apenas a sua eficácia e, mesmo esta, unicamente perante terceiros de boa-fé para efeitos de registo, qualificação que a AT não assume no caso em apreço.
4.4. Não sendo a Requerente proprietária dos veículos automóveis em causa, no momento dos factos tributários em questão, tendo afastado a presunção do art. 7º do Código de Registo Predial, as liquidações que lhe foram efetuadas devem ser consideradas ilegais e consequentemente anuladas.
4.5. A Requerida sabia ou devia saber que os veículos em apreço já não eram propriedade da requerente no momento em que os impostos em causa deveriam ser pagos.
5. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação, alegando, também muito sinteticamente, o seguinte:
5.1. O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3º, nº 1 quem são o sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados, não se tratando de uma presunção mas de uma clara opção de política legislativa acolhida pelo legislador dentro da sua liberdade de conformação legislativa.
5.2. O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do nº 1 do art. 3º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência.
5.3. Também o elemento sistemático da interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável estabelecendo o artigo 6º, nº 1, do CIUC que “O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional”.
5.4. A não atualização do registo, nos termos do artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado Português, enquanto sujeito ativo deste imposto.
5.5. A interpretação proposta pela Requerente do art. 3º, nº 1 do CIUC é contrária à Constituição da Republica Portuguesa na medida em que desvaloriza a realidade registal face a uma “realidade informal”, violando o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência dos sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
Mesmo que assim não se entendesse,
5.6. Os documentos 5 a 8 juntos com o pedido de pronúncia arbitral são cópias de faturas de venda de cada um dos veículos.
As faturas não constituem documento idóneo para comprovar a venda dos veículos em causa, uma vez que a mesma não é mais do que um documento unilateralmente emitido pela Requerente e não é idónea para comprovar um contrato sinalagmático como é a compra e venda.
5.7. Em matéria de locação financeira e para efeitos do art. 3º, nº 2, do CIUC é forçoso que os locadores cumpram a obrigação acessória prevista no art. 19º do CIUC, o que não aconteceu, no caso dos autos, com a consequente responsabilização da Requerente pelas custas arbitrais, uma vez que tal omissão deu causa à emissão das liquidações sub judice.
6. As partes apresentaram alegações escritas nas quais, no essencial, mantiveram as suas posições.
7. A cumulação de pedidos relativa aos atos tributários de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral mostra-se admissível em face do art. 3.º, n.º 1 do RJAT, uma vez que a procedência dos pedidos depende da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito.
8. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
II – A matéria de facto relevante
9. O tribunal considera provados os seguintes factos:
9.1. A Requerida efetuou as seguintes liquidações de IUC, tendo como sujeito passivo o Requerente:
- Liquidações números ... e ..., referentes ao veículo matrícula ..-..-.., respeitantes aos anos de 2009 e 2010 e mês de Novembro, no valor de 32,80 € e 33,10 €, respetivamente, pagas pela Requerente em 3.12.2013.
- Liquidações nºs ..., ..., ... e ..., referentes ao veículo matrícula ..-..-.., respeitantes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 e mês de Junho, no valor de 32,80 €, 33,10 €, 33,83 € e 34,61 €, respetivamente, pela Requerente em 26.11.2013.
- Liquidações nºs ... e ..., referentes ao veículo matrícula ..-..-.., respeitantes aos anos de 2009 e 2010 e mês de Julho, no valor de 29 €, cada qual, pela Requerente em 26.11.2013.
- Liquidações nºs ... e ..., referentes ao veículo matrícula ..-..-.., respeitantes aos anos de 2009 e 2010 e mês de Maio, no valor de 16,40 € e 16,50 €, respetivamente, pela Requerente em 25.11.2013.
9.2.A Requerente é uma instituição de crédito.
9.3. Uma das suas áreas de atividade é o financiamento do setor automóvel.
9.3. Os veículos automóveis identificados foram dados em contrato de aluguer de longa duração, pela Requerente, aos clientes identificados no anexo A junto ao pedido de pronúncia arbitral.
9.4. Todos estes clientes adquiriram, por compra, nos termos do respetivo contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do correspondente valor residual, tendo o veículo matrícula ..-..-.. sido vendido em 24.06.2009, o veículo matrícula ..-..-.. sido vendido em 30.04.2009, o veículo matricula ..-..-.. sido vendido em 25.05.2009 e o veículo matricula ..-..-.. sido vendido em 20.04.2009.
9.5. A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento das liquidações identificadas, indicando-se o dia 21.11.2013 como data limite para o efeito.
10. Factos não provados.
Não resultou provado que a Requerida tivesse conhecimento, na data das liquidações, que os veículos já não fossem propriedade do Requerente.
Não resultou, ainda, provado que o Requerente tenha dado cumprimento à obrigação consignada no art. 19º do CIUC e, bem assim, também não resultou provado o facto contrário, ou seja, que tal obrigação não tivesse sido cumprida.
11. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, bem como das afirmações das partes nos articulados apresentados, sendo de salientar não terem sido impugnadas pela Requerida as afirmações da Requerente, referentes aos factos dos nºs 9.1, 9.2, 9.3 e 9.5.
Quanto ao facto como provado sob o nº 9.4 há que, em primeiro lugar, referir que a Requerida não impugnou a exatidão das cópias das faturas[1] juntas com o pedido de pronúncia arbitral como documentos números 5,6, 7 e 8.
A convicção do Tribunal relativamente aos factos em questão, resulta da emissão das respetivas faturas nas datas constantes dos factos dados como provados sob o número 9.4.
Apesar de tais documentos serem emitidos unilateralmente pelo vendedor, segundo as regras da experiência, nada aponta, antes pelo contrário, para a não coincidência de tais faturas com a realidade que representam.
Por outro lado, a Requerida não aponta qualquer concreta falta de correspondência das faturas com as transações nelas representadas, acrescendo ainda que, nas mesmas foi liquidado imposto sobre o valor acrescentado, não tendo sido alegado que o mesmo não tenha sido levado às respetivas declarações, ou que os adquirentes, destinatários das mesmas, não as tenham tomado em consideração para efeitos jurídico-fiscais.
No que respeita aos factos não provados, a decisão do Tribunal alicerça-se na total ausência de prova dos mesmos.
-III- O Direito aplicável
12. Tendo a impugnante imputado diversos vícios aos atos tributários impugnados há que determinar a ordem do conhecimento dos mesmos, devendo ser observada a ordem do art. 124º do CPPT, aplicável por força do art. 29º, nº 1, al. a) do RJAT (Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, in GUIA DA ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, pag. 202). (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Comentário ao Regime Jurídico Da Arbitragem Tributária, in Guia da Arbitragem Tributária, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, pág. 202).
A procedência de qualquer dos vícios invocados pela requerente conduzirá à anulação do ato tributário. No entanto, o vício de violação de lei é aquele que conduzirá à “mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos” na medida em que a sua eventual procedência impedirá a renovação do ato, o que não sucede com a anulação decorrente dos demais vícios.
Em conformidade, o Tribunal irá apreciar em primeiro lugar do vício de violação de lei.
13. Nos termos do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”
Dispõe o nº 2 do mesmo preceito que “São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”
O problema jurídico a decidir prende-se com a questão de saber, se a pessoa em nome de quem está registada a propriedade do veículo, poderá provar, apesar de tal circunstância, que não era proprietária do mesmo à data do facto tributário, para efeitos de afastar a qualidade de sujeito passivo do imposto.
14. A fim de dar resposta ao problema em questão afigura-se-nos pertinente indagar se o art. 3º, nº 1, do CIUC consagra uma presunção, posição sustentada pela Requerente ou se diferentemente se trata meramente da configuração do tipo legal de imposto, no âmbito da liberdade de conformação legislativa, conforme defende a Requerida.
A resposta a esta questão poderá ser decisiva, dado que, de acordo com o art. 73º da Lei Geral Tributária “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. Acresce, conforme se refere na Decisão arbitral proferida no processo 286/2013-T o “entendimento do Tribunal Constitucional, afirmado no acórdão n.º 348/97, de 29.4.1997 e reiterado no acórdão n.º 311/2003, de 28.4.2003, quanto à inconstitucionalidade do “estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção juris et de jure” já que “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária”.[2]
15. Na doutrina tem sido analisada a distinção entre as ficções e as presunções, na perspetiva do direito fiscal.
Assim, ANA PAULA DOURADO, (O Princípio Da Legalidade Fiscal: Tipicidade, Conceitos Jurídicos Indeterminados e Margem de Livre Apreciação”, Editora Almedina, coleção Teses, 2007 ) escreve:
“No que diz respeito às ficções, enquanto técnica utilizada nas leis fiscais, e à sua função, diz-nos Karl Larenz que “as ficções legais têm normalmente por fim a aplicação da regra dada para um facto previsto (F1) a outro facto previsto (F2)... a lei “finge” que F2 é um caso de F1” (p. 603).
“A ficção distingue-se da presunção simples e da presunção absoluta por não se basear “numa probabilidade que normalmente se transforma em verdade”, pois “deforma («uma verdade legal») conscientemente” (p. 604)
Também sobre esta questão, em termos convergentes com ANA PAULA DOURADO, JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, (“TRIBUTAÇÃO PRESUNTIVA DO RENDIMENTO, Um Contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tributável, Almedina, Teses, 2010, pp. 48-49) considera que o critério de distinção entre a duas realidades deve ser “eminentemente jurídico” e que “À luz desse critério a diferença essencial entre presunção e ficção legal passa a residir no facto de a primeira ter como ponto de partida a verdade de um facto, ou seja, uma ligação à ordem natural das coisas, dado que de um facto conhecido se infere um facto desconhecido provável; enquanto a ficção, contrariamente, nasce de uma falsidade ou de algo irreal, desligado da ordem natural das coisas. Isto é, na ficção cria-se uma verdade jurídica distinta da real; na presunção cria-se uma relação causal entre duas realidades ou factos naturais.(…).
A despeito de tanto a presunção como a ficção constituírem o resultado de técnicas legislativas, através das quais se depreendem consequências de factos jurídicos tomados como verdadeiros, o que verdadeiramente as distingue é a circunstância de, na presunção legal, o facto presumido ter um alto grau de probabilidade de existir, e de, na ficção, o facto presumido ser muito improvável. “
CASALTA NABAIS, também se debruçou sobre esta questão (“O dever fundamental de pagar impostos”, Almedina, 2004, p. 500-501) escrevendo que “(...) há que separar as situações em que estamos face a presunções legais, em que de um facto conhecido (real ou até jurídico) se infere um facto jurídico naturalmente provável, caso em que se há-de admitir prova em contrário, para as compatibilizar com o princípio da capacidade contributiva, das situações em que nos deparamos com a assunção de regras da experiência comum como regras de tributação, verificando-se assim a construção de normas jurídicas (ou de tipos legais) com o (eventual) recurso a ficções legais. Nestas, o princípio da capacidade contributiva sofre o natural embate dos princípios da praticabilidade e da eficaz luta contra a evasão fiscal, havendo de contentar-se com uma válvula de segurança relativamente aqueles casos que, por atingirem tais rigores de iniquidade, não podem deixar de permitir o afastamento das referidas regras da experiência”
16. No caso em apreço, e à luz da autorizada doutrina citada, afigura-se claro que, no art. 3º, nº 1, do CIUC, estamos perante uma presunção, na medida em que resulta (muito) provável do facto duma pessoa ter um veículo registado em seu nome, que ela seja, efetivamente, proprietária da mesma.
É esta mesma probabilidade que está na base da presunção derivada do registo consignada no art. 7º do Código de Registo Predial, aplicável por remissão do art. 29º do Regulamento do Registo automóvel.
É certo que a lei não usa a expressão “presumindo-se como tais, até prova em contrário”, que constava do art. 3.º, n.º 1 do Regulamento do Imposto Municipal Sobre Veículos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho e revogado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho), (“o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados”. Mas tal não se afigura impeditivo de estarmos materialmente perante uma presunção.
Como se escreveu na já citada decisão proferida no processo arbitral nº 286/2013-T, “tal como já se encontra assinalado em outras decisões arbitrais proferidas neste CAAD em relação à mesma matéria (cfr. as decisões proferidas nos processos n.ºs 14/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T, 170/2013-T, nas quais é possível encontrar exemplos de disposições legislativas, distintas das acima invocadas, em que igualmente ocorre o uso da expressão “considerando-se” ou “considera-se” com o significado de presunção), não só não se pode dizer, de modo algum, que a atribuição de um significado presuntivo à expressão “considerando-se” não possui “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2 do art. 9.º do Cód. Civil), como, mais do que isso, deve mesmo reconhecer-se a tal vocábulo uma correspondência corrente e normal a esse sentido presuntivo.
Por isso, não assume peso decisivo o facto de, diferentemente do que sucedia com a enunciação literal “presumindo-se” que antes se encontrava no artigo 3.º do Regulamento do Imposto Sobre Veículos, o legislador ter passado a usar no CIUC a fórmula “considerando-se” que consta do atual art. 3.º desse Código, porquanto esta expressão tem perfeita virtualidade semântica para envolver a consagração de uma presunção”. [3]
17. O acórdão do STA de 4-11-2009, proferido no processo 0553/09, aplicando o art. 73.º da Lei Geral Tributária, em sede de imposto sobre o rendimento, vai ainda mais longe considerando que esta regra “não parece aplicável apenas as normas de incidência tributária em sentido próprio, mas também a todas as normas que estabelecem ficções que influenciam a determinação da matéria colectável (quer directamente, através de valores ficcionados para a matéria colectável, quer indirectamente, ao fixarem ficcionadamente os valores dos rendimentos relevantes para a sua determinação). É este, parece, o alcance do advérbio «sempre» utilizado no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, que arvora esta regra em princípio basilar da globalidade do ordenamento jurídico tributário, corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, assente no princípio da capacidade contributiva”.
É certo que o IUC não está, essencialmente, subordinado ao princípio da capacidade contributiva, mas sim ao princípio da equivalência. Todavia, tal não parece impor soluções diferentes na medida em que ambos os princípios estão intrinsecamente ligados ao princípio geral da igualdade tributária, onde encontram o seu fundamento.
Na verdade, “O princípio da capacidade contributiva representa o critério material de igualdade adequado aos impostos”[4] ao passo que “O princípio da equivalência representa o critério material de igualdade adequado às taxas e contribuições”.[5]
18. De referir ainda que, para além do art 1.º do Código do IUC dispor que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”, outras normas reforçam e concretizam o peso deste princípio no sistema interno deste imposto.
Desde logo o art. 3º, nº 1, da Lei que aprovou o CIUC (Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho), concretizando esta ideia de equivalência determina que: “ É da titularidade do município de residência do sujeito passivo ou equiparado a receita gerada pelo IUC incidente sobre os veículos da categoria A, E, F e G, bem como 70 % da componente relativa à cilindrada incidente sobre os veículos da categoria B, salvo se essa receita for incidente sobre veículos objecto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, caso em que deve ser afecta ao município de residência do respectivo utilizador.”
E, para efeitos de concretização efetiva desta intenção legislativa dispõe o art. 19º, do CIUC que: “Para efeitos do disposto no artigo 3.º do presente código, bem como no n.º 1 do artigo 3.º da lei da respectiva aprovação, ficam as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados.”
Por outro lado, concretiza ainda este princípio da equivalência o nº 2, do art. 3º do mesmo Código ao dispor que “São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”
19. Fica assim, bem clara a importância decisiva conferida pela Lei ao princípio da equivalência, quer do lado do causador do custo ambiental e viário, quer do lado do Município que tendencialmente suporta tais custos e que, por essa razão é o beneficiário da receita do imposto.
Como salienta Sérgio Vasques: “É claramente comutativa também a estrutura do novo imposto único de circulação, que desde 2007 oneram os automóveis em função dos níveis de emissão de CO2, apelando abertamente ao princípio da equivalência e a uma relação de troca com os contribuintes”[6]
Caso não fosse possível à pessoa inscrita como proprietário no registo automóvel afastar a qualidade de sujeito passivo, mediante a prova de que não era ele o proprietário à data do facto tributário, esta ideia de equivalência poderia ser decisivamente posta em causa, tributando-se quem não causou o custo ambiental e viário e não se afetando a receita ao Município que tendencialmente suportou aqueles custos.
20. A Requerida sustenta que a interpretação proposta pela Requerente do art. 3º, nº 1 do CIUC é contrária à Constituição da Republica Portuguesa na medida em que desvaloriza a realidade registal face a uma “realidade informal”,[7] violando o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
Não se vislumbra, salvo o devido respeito, como é que a posição que sustenta estarmos, no art. 3º, nº 1, do CIUC, perante uma presunção ilidível, poderá pôr em causa os princípios da confiança e da segurança jurídica, sendo que os mesmos impõem deveres e restrições da atuação jurídico-pública[8].
O mesmo se poderá dizer, no essencial, do princípio da proporcionalidade.[9]
Aliás, relativamente a este princípio, diríamos, até, que a questão que se poderia colocar seria se tal princípio não seria violado com a interpretação preconizada pela Requerida na medida em que, se se admitisse que o cidadão poderia ficar impedido, para efeitos de tributação, de provar que apesar do registo não é o efetivo proprietário do veículo, tal equivaleria sofrer a consequência da omissão dum ato (o registo automóvel) cujo interessado em termos em termos de segurança jurídica, na perspetiva jurídico-civil é outra pessoa (o comprador).
Na verdade, mesmo que se admita que tal solução seja idónea a alcançar o fim público em vista, não resulta clara a ausência de medidas alternativas igualmente aptas.
Por outro lado, do ponto de vista do equilíbrio ou da proporcionalidade em sentido estrito, entende-se que uma regra com a interpretação sustentada pela requerida, teria custos excessivos, do ponto de vista dos direitos e interesses dos particulares (nestes caso dos antigos proprietários do veículos) face aos benefícios que se visam alcançar com o interesse público, considerando-se não verificada esta exigência fundamental do princípio da proporcionalidade.
Na realidade, o benefício alcançado, na perspetiva da gestão do imposto, com a presunção ilidível já é significativa, sendo os casos de ausência de registo pelos compradores seguramente situações em número certamente pouco relevante no universo das transações de veículos, atento a natural motivação dos compradores em realizar o registo, uma vez que tal é do seu próprio interesse.
Note-se, também, que a presunção ilidível já representa algum sacrifício para os legítimos interesses do vendedor, na medida em que para se eximir a uma tributação ofensiva do princípio da equivalência, tem o ónus de ilidir a mesma.
No entanto, ponderando, designadamente, as exigências de praticabilidade da gestão fiscal, considera-se que a mesma é apta, necessária e razoável do ponto de vista do princípio da proporcionalidade, o que já não sucederia com uma presunção absoluta, explícita ou implícita, que não permitisse, sequer, que ao cidadão fosse permitido fazer a prova contrária à presunção.
21. A Requerida invocou, ainda, que a regra em causa, na interpretação sustentada pela Requerente, violaria o princípio da eficiência do sistema tributário.
Afigura-se-nos que a Requerida terá em mente a ideia de eficiência no direito fiscal, relacionada com a eficiência administrativa[10]. Há que observar, contudo, que a relevância dum princípio na solução dum caso concreto não deve ser operar isoladamente mas em ponderação conjunta com os demais princípios e na, sequência do que acima foi dito, a propósito dos princípios da igualdade, da equivalência e da proporcionalidade, a ideia de eficiência não é suficiente para postergar a possibilidade do contribuinte afastar a presunção resultante do registo automóvel. Acresce que a eficiência e a praticabilidade são suficientemente salvaguardadas pela existência duma presunção ilidível, nos termos acima referidos.
22. Assim sendo, conclui-se que o art. 3º, nº 1, do CIUC, consagra uma presunção ilidível tendo o interessado, para a afastar o ónus, de provar que, apesar do registo, não era o real proprietário, por entretanto o ter vendido.
Neste sentido, foram as decisões proferidas nos processo arbitrais números 26/2013-T, 27/2013-T, 14/2013-T, 170/2013-T, 256/2013-T, 286/2013-T e 289/2013-T, cujo entendimento, assim, se sufraga.
Assim sendo, no que respeita aos impostos incidentes sobre veículos, relativamente aos quais se provou terem sido vendidos pela Requerente antes do facto tributário, não pode o pedido de pronúncia arbitral deixar de proceder.
Fica, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela Requerente, nos termos do art. 124º do CPPT, por aplicação do art. 29º, nº 1 do RJAT.
23. A Requerente veio, ainda, peticionar o direito a juros indemnizatórios.
Cabe ainda apreciar a pretensão da Requerente, à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
Dispõe o nº 1, daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
No caso “sub judice” não foi demonstrado que a Requerida tivesse conhecimento, à data das liquidações, que os veículos em causa tivessem sido vendidos em data anterior à do facto tributário.
Ao efetuar as liquidações a Requerida cumpriu o disposto no art. 3º, nº 1, do CIUC, aplicando a presunção estabelecida nesta disposição legal.
Tendo-se limitado a aplicar a presunção, na ausência de prova que a afastasse, não se pode concluir que se verifique a ocorrência de “erro imputável aos serviços”.
Assim sendo, improcede o pedido de condenação da Requerida a pagar juros indemnizatórios à Requerente.
-IV- Decisão
Assim, decide o Tribunal arbitral:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral declarando-se a anulação das liquidações impugnadas.
b) Absolver a Requerida do pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
Valor da ação: 291,41 € (Duzentos e noventa e um euros e quarenta e um cêntimos) nos termos do disposto no art. 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A,n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerida, no valor de 306,00 € (trezentos e seis euros) nos termos do nº 4 do art. 22º do RJAT.
Lisboa, CAAD, 10 de Setembro de 2014
O Árbitro
(Marcolino Pisão Pedreiro)
[1] Para efeitos do art. 368º do Código Civil.
[2] Disponível no site “https://caad.org.pt”
[3] Acresce que, como sustentam Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao artigo 73.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (“LGT”) “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real” (Cfr. “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”,Encontros da Escrita, 4ª Edição, 2012, pag. 651).
[4] Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pag. 251.
[5] Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pag. 260.
Como nota ainda este autor a pag. 227 da mesma obra “Até final do sec. XX, os impostos especiais sobre o álcool, tabaco, produtos petrolíferos ou automóveis não tinham outro objectivo se não o da angariação de receita, mostrando os contornos unilaterais típicos de qualquer imposto.
A partir dos anos 80 e 90 (…), no entanto, estas figuras tributárias passaram a ser instrumentalizadas à compensação dos custos que o consumos destes traz à saúde pública e ao meio ambiente, com o que os impostos especiais de consumo têm vindo a ganhar a natureza para comutativa que é típica das contribuições”
[6] Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pag. 229.
[7] De notar, porém, que vigora no direito português o princípio da liberdade da forma ou da consensualidade ( art. 219º do Código Civil). Salvo quando a lei o exigir, a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial. A “realidade informal” que alude a requerente é na verdade a realidade material que resulta das normas do direito civil.
[8] Jorge Bacelar Gouveia, refere que o princípio da segurança jurídica exige “a publicidade dos actos do poder público, assim como a clareza e a determinabilidade das fontes de direito” e que o princípio da proteção da confiança requer “que o quadro normativo vigente não mude de modo a frustar as expectativas geradas nos cidadãos acerca da sua continuidade, com a proibição de uma intolerável retroactividade das leis, assim como a necessidade da sua alteração em conformidade com as expectativas que sejam constitucionalmente tuteladas” (Manual de Direito Constitucional, Almedina, 4ª Ed., Vol. II,pag. 821)
[9] Segundo mesmo autor a configuração deste princípio “assenta numa limitação material interna à actuação jurídico-pública de carácter discricionário, contendo os efeitos excessivos que eventualmente se apresentem na edição das providências de poder público de cariz ablatório para os respetivos destinatários” (ob. Cit. pags 839-840)
[10] E não, manifestamente, o princípio da eficiência do direito fiscal pois, como escrevem Jónatas E.M. Machado e Paulo Nogueira da Costa “Do princípio da Eficiência decorre que o sistema tributário não deve ter efeitos distorcionários e não deve interferir com o funcionamento dos mercados, salvo quando, devido à existência de falhas de mercado, os mesmos não funcionam eficientemente.” (Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, 2009, pag. 28.)