SUMÁRIO:
A norma da regra 16. do n.º 4 do art.º 12, do Código do IMT, não derroga o disposto no n.º 3 do art.º 64.º do CIRC, pelo que não é aplicável para efeitos do cômputo do lucro tributável em IRC.
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. No dia 15 de Julho de 2020, A..., S.A., NIPC ..., com sede no ..., ..., n.º ... a ..., ..., ...-... Vila Verde, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRC n.º 2020 ..., com o valor de € 284.536,94.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que:
a. Não obstante o imóvel a que se reportam as correcções operadas pela AT haja sido adquirido no âmbito de processo judicial, o valor a considerar para efeitos de IRC deverá ser o VPT, à data da aquisição, e não o constante do acto de aquisição;
b. No caso, não há lugar à aplicação, em IRC, do art.º 12.º do CIMT; e
c. Falta de fundamentação da liquidação.
3. No dia 16-07-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 03-09-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 06-10-2020.
7. No dia 10-11-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.
8. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
9. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
10. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
11. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente exerce a actividade de compra e venda de bens imobiliários.
2- No âmbito da sua actividade, procedeu à alienação de diversos imóveis no ano de 2017.
3- Um deles foi o artigo urbano ..., da freguesia de ..., concelho de Vila Verde, que foi alienado por €405.000, sendo o seu VPT à data da venda € 1.785.601,60.
4- O referido artigo ..., tinha sido adquirido em 08-04-2011, no âmbito da liquidação de activos decorrentes do processo de insolvência da sociedade B..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., por escritura pública.
5- O valor de aquisição declarado na escritura foi de € 425.000,00 e o VPT, à data da compra, era de € 1.683.190,00.
6- O imóvel era constituído por fábrica de cerâmica sem condições para o exercício da actividade.
7- A Requerente pretendia, quando comprou, vender o imóvel antes de 3 anos.
8- Como não o fez, a AT liquidou IMT adicional.
9- A Requerente apresentou a modelo 22 de IRC do ano de 2017, tendo declarado no campo 745 do quadro 07, o valor a acrescer de 1.380.642,48 €, que corresponde à diferença positiva entre o VPT e o valor de venda do imóvel referido e do imóvel ...-....
10- Na mesma modelo 22, no campo 772 a Requerente colocou o valor a deduzir de 1.258.190,00€, que corresponde à diferença positiva entre os VPT e o valor de aquisição do imóvel referido (artigo ...).
11- A Requerente foi sujeita a uma acção de inspeção tributária ao ano de 2017, que culminou com correcções meramente aritméticas em sede de IRC.
12- Do Relatório de Inspecção consta, para além do mais, o seguinte:
“3. “Tendo por base os dados constantes no quadro constante no ponto anterior foi possível observar que, relativamente a dois dos imóveis em causa, o valor declarado no ato ou contrato foi inferior ao Valor Patrimonial Tributário (VPT), tal como determinado nos termos do CIMI.
4. Os imóveis e os valores em causa são os que a seguir se detalham: (...)
5. Da análise aos dados constantes na Mod.22 submetida pelo SP, com referência ao período económico de 2017, contata-se que:
a) (...)
b) Relevou no campo 772 do Quadro 07 o valor de 1.258.190,00 €.
6. No âmbito do procedimento inspetivo foram efetuadas diversas diligências e, em resultado das quais, apurou-se o seguinte:
A - Quanto ao imóvel inscrito na matriz urbana sob o artigo ... da freguesia de ..., Vila Verde
a) O SP (à época com a designação social C..., Lda.), procedeu à aquisição do imóvel inscrito na matriz predial urbana, da freguesia de ..., Concelho de Vila Verde, sob o n.° ... e dos prédios rústicos n.° ... e ..., da mesma freguesia. A aquisição foi efetuada por escritura pública outorgada em 2011-04-08, no Cartório Notarial da Dra. D..., (Anexo I ao presente relatório).
b) A referida aquisição foi efetuada no âmbito da liquidação de ativos decorrente do Processo de Insolvência da sociedade B..., S.A., NIPC ..., que correu termos no 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde, processo identificado pelo n.° .../09... TBWD.
c) A aquisição em causa foi efetuada pelo valor de 425.000,00 € quanto ao artigo urbano, e 4.600,00 € e 7.000,00 €, respetivamente, quanto aos artigos rústicos ... e ....
d) O SP declarou que a referida aquisição se destinava a revenda, tendo, em face do destino declarado ao bem, sido reconhecida a isenção de IMT ao abrigo do art.° 7.° do CIMT.
e) Em 2015/04/21, e uma vez que os imóveis em causa não foram revendidos no prazo que a lei consigna para o reconhecimento da isenção (3 anos a contar da data de aquisição), foi promovida pelo Serviço de Finanças de ... a competente liquidação oficiosa, nos termos do art.° 11.o, n.° 5 do CIMT.
f) Aquando da referida liquidação, registada sob o n.° ..., o Serviço de Finanças usou como valor tributável, no caso do artigo urbano, o valor patrimonial e, no caso dos artigos rústicos, o valor do ato ou contrato, fazendo uso da regra geral estabelecida no n.° 1 do art.° 12.° do CIMT.
g) Não se conformando com a liquidação em causa, veio o SP reagir contra esta, deduzindo impugnação judicial, invocando para o efeito que a aquisição foi efetuada no âmbito de um processo de insolvência e, como tal, beneficiaria da isenção estabelecida no art. 272.º do CIRE.
h) A referida impugnação ainda não se encontra decidida, pelo que se mantém em dívida a referida liquidação.
i) Em 2017-08-17, o SP solicitou a avaliação do imóvel em causa, ao abrigo do art. 130º do CIMI, através da submissão de uma declaração modelo 1 de IMI.
j) Na sequência da avaliação solicitada, o valor patrimonial tributário do artigo urbano ... da freguesia de ... foi fixado no valor de 1.851.780,00 €, avaliação que se tornou definitiva em 2017-11-22.
k) Mediante escritura de compra e venda outorgada em 2017-12-07 foram alienados à E..., S.A., NIPC ..., pelo valor global de 425.000,00 €, os imóveis adquiridos pelo SP no âmbito da insolvência a que se fez referência, (Anexo II ao presente relatório). Os valores atribuídos a cada um dos imóveis alienados foi de 405.000,00 €, relativamente ao artigo urbano 676, e 10.000,00 €, para cada um dos artigos rústicos (... e ...), todos da freguesia de ..., concelho de Vila Verde.
l) O valor patrimonial tributário dos imóveis em causa a considerar para efeitos de confronto com o valor do ato ou contrato, e, por conseguinte, para efeitos de liquidação de IMT, é assim, à data da transmissão em causa, 1.851.780,00 € para o artigo urbano ... da freguesia de ..., e 30,95 € e 118,92 €, respetivamente, para os artigos ... e ... rústicos, da mesma freguesia.
m) A liquidação de IMT que precedeu a transmissão destes três imóveis a favor da E... foi efetuada tomando como valor tributável:
1) O valor patrimonial tributário, no caso do artigo urbano ..., uma vez que este é superior ao valor atribuído ao ato. O valor patrimonial tributário era, à data da escritura, de 1.785.601,60 €, valor este superior ao atribuído ao imóvel - 405.000,00 € (...)
III.2. Implicações fiscais
III.2.1. Do Direito aplicável
1. As implicações em sede de IRC decorrentes da alienação de bens imóveis prendem-se com o regime estabelecido pelo Decreto-Lei n° 287/2003, de 12 de novembro, cujo diploma procedeu à aprovação dos novos códigos do Imposto Municipal sobre Imóveis e do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis e veio motivar diversas alterações na legislação tributária.
2. Estes novos preceitos legais vieram determinar que os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adotar, para efeitos da determinação do lucro tributável, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais definidos que serviram de base à liquidação do IMT, ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação desse imposto.
3. Em termos de IRC e para a determinação do lucro tributável, impõe o n.° 1 do art.° 64.° que alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adotar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado, que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.
4. Por sua vez, o n.° 2 da referida norma estabelece “Sempre que [...] o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável”.
5. O n.° 3 da referida norma vem estabelecer que “Para aplicação do disposto no número anterior,
a) O sujeito passivo alienante deve efetuar uma correção, na declaração de rendimentos do exercício a que é imputável o proveito obtido com a operação de transmissão, correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato;
b) O sujeito passivo adquirente adota o valor patrimonial tributário definitivo para a determinação de qualquer resultado tributável em IRC relativamente ao imóvel.
6. Assim, nas situações em que ocorra uma alienação de direitos reais sobre imóveis abaixo do VPT dos mesmos, impõe a referida al. a) do n.° 3 do art.° 64.° do CIRC que o sujeito passivo alienante deva efetuar uma correção ao lucro tributável, correspondente à diferença positiva entre o VPT e o valor do contrato, na Mod.22 do ano em que a transação ocorre, a menos que o alienante lance mão do mecanismo regulado no art.° 139.° do CIRC. através do qual autoriza a AT à consulta de elementos tendentes à aferição do real valor do negócio.
7. Os efeitos desta cláusula antiabuso, consagrada no art.° 64.° do CIRC, podem assim ser ilididos nos termos do art.° 139.° do CIRC, o qual vem estabelecer que as correções em causa possam não se operar se o SP exercer o direito ali consagrado de forma tempestiva.
8. O exercício desse direito consubstancia-se através da apresentação de um requerimento dirigido ao Diretor de Finanças competente, em janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões cujos efeitos (nos termos do art.° 64.° do CIRC) se pretendem anular.
9. Ora, no caso concreto, o SP não exerceu tal direito, pelo que os efeitos desta correção fiscal positiva estabelecida no art.° 64.° do CIRC produzem efeitos na sua plenitude.
10.Assim, tal diferença positiva, deverá ser acrescida no Campo 745 (C745), do Quadro 07 (Q.07) da Mod.22 do ano em que se verifica a transmissão da propriedade.
11.Do mesmo modo, sempre que se verificar uma diferença positiva entre o VPT e o valor de aquisição do imóvel, nos termos da al. b) do já citado art.° 64.° do CIRC, a mesma deverá ser deduzida ao lucro tributável no ano em que se verificar a sua venda (Campo 772) devendo, até lá, o sujeito passivo relevar no processo de documentação fiscal, previsto no art.° 130.° do CIRC, o tratamento contabilístico e fiscal conferido ao imóvel, nos termos conjugados do n.° 2, al. b), do n.° 3 e n.° 5, todos do art.° 64.° do CIRC.
12.Excecionam-se as situações em que os imóveis são adquiridos mediante arrematação judicial ou administrativa, por valores inferiores ao VPT. Nestes casos, não se precede à correção prevista na al. b) do n.° 3 do art.° 64.° do CIRC, por força do n.° 1 do mesmo artigo, que considera que devem ser adotados para determinação do lucro tributável os valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos VPT que serviram de base à liquidação do IMT ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação desse imposto.
13.No entanto, para efeitos de liquidação de IMT, o valor tributável nos casos em que os imóveis são adquiridos ao Estado, ou em processos nos quais exista tutela judicial (Tribunal, Serviços de Finanças), impõe a regra 16. do n.° 4 do art.° 12, do Código do IMT que o valor que servirá de base à liquidação do IMT é o preço constante do ato ou contrato, pelo que o valor de aquisição, nestes casos não é corrigido.
III.2.2. Correções a operar na Mod.22
(...)
III.2.2.2 Campo 772 do Q.07
1. Tal como já se fez referência, o n.° 1 do art.° 64.° do CIRC estabelece que os alienantes e adquirentes de imóveis devem acolher, para efeitos de apuramento do resultado tributável em sede de IRC, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários que serviram de base à liquidação de IMT, ou que serviriam, no caso de não haver lugar à liquidação daquele imposto.
2. Adicionalmente, vem a al. b) do n.° 3 do mesmo preceito legal estabelecer que “O sujeito passivo adquirente adota o valor patrimonial tributário definitivo para a determinação de qualquer resultado tributável em IRC relativamente ao imóvel.”
3. Ora, em termos contabilísticos, aquando da aquisição do imóvel, ainda que por valor inferior ao VPT o SP deve proceder à sua valoração pelo valor de aquisição (custo de aquisição).
4. Desta forma, o Campo 772 do Q.07 da Mod.22 serve para acolher, aquando da alienação do imóvel, as eventuais diferenças positivas entre o VPT e o valor declarado pelo título aquisitivo, tal como melhor se enunciou III.2.1 do presente relatório.
5. A exceção a esta regra ocorre quando a aquisição dos imóveis, em que se verifica tal diferença, tenha sido efetuada ao Estado, ou em processos nos quais exista tutela judicial (Tribunal, Serviços de Finanças).
6. Nestes casos, impõe a regra 16. do n.° 4 do art.° 12.° do Código do IMT que o valor que servirá de base à liquidação do IMT seria o preço constante do ato ou contrato e não o maior dos valores entre este e o VPT, como decorre da regra geral.
7. Esta exceção decorre do particular escrutínio de que as vendas desta natureza beneficiam, circunstância que levou o legislador a acolher o valor declarado nesses atos como o valor efetivo do negócio.
8. Pois, se para efeitos de IMT o valor sobre o qual a respetiva taxa incide, sendo caso disso, é justamente o preço da transmissão e não o VPT, ainda que superior, para efeitos de IRC, face ao supracitado n.° 1 do art.° 64.° do CIRC, a regra é exatamente a mesma, e, consequentemente, o lucro tributável para efeitos deste imposto deve ser o preço constante no contrato e não o VPT.
9. Conclui-se, assim, que para efeitos do n,° 1 do art.° 64.° do CIRC, os valores que deviam ser adotados para efeitos de determinação do lucro tributável são os que constam dos contratos de venda operados no âmbito dos processos de arrematação judicial ou em processo de execução, por serem esses os que seriam considerados para efeitos de liquidação de IMT.
10. No Campo 772 do Q.07 da Mod.22 submetida pelo SP encontra-se inscrito o valor de 1.258.190,00€.
11.Este valor corresponde integralmente à diferença entre o VPT do artigo urbano ... da freguesia de ... e o valor atribuído na aquisição do mesmo (1.683.190,00 €- 425.000,00 €).
12. Atento a que a aquisição do referido imóvel foi efetuada no âmbito de um processo de insolvência, não será de operar tal dedução, pelo que será de expurgar o valor de 1.258.190,00 € inscrito no Campo 772 do Q.07”.
13- Na sequência da inspecção, a Requerente foi notificada da liquidação objecto da presente acção arbitral.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
i. da matéria de excepção
Começa a Requerida por arguir a incompetência material do Tribunal arbitral, alegando que para se proceder à demonstração do preço efectivo tal implica a realização de um prévio procedimento junto da entidade Requerida com vista a demonstrar que o valor de realização foi efectivamente inferior ao valor patrimonial que serviu de base à liquidação de IMT.
Refere a Requerida que, nos termos do n.º 7 do art.º 139.º do CIRC, a impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correcções efectuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 64.º, ou, se não houver lugar a liquidação, das correcções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no n.º 3, não havendo lugar a reclamação graciosa.
Conclui a Requerida que não tendo a Requerente apresentado em tempo o procedimento consignado no disposto no art.º 139.º do CIRC fica irremediavelmente precludida a demonstração (agora) em sede de impugnação arbitral.
Ressalvado o respeito devido, julga-se que a arguição ora em apreço assenta num equívoco.
Com efeito, e desde logo, como a Requerente apontou, o objecto da presente acção arbitral é a liquidação oficiosa emitida pela AT, sendo a pretensão da Requerente a sua anulação, o que se contém, manifestamente, no âmbito da competência dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, fixada no art.º 2.º do RJAT.
Coisa diferente, que interfere com o mérito da causa, é saber se os fundamentos alegados para sustentar a pretensão anulatória, são legalmente aptos a conduzir a tal desfecho.
Sem prejuízo do que vem de se dizer, o que se verifica é que o que a Requerente sustenta não é que, no caso, deva considerar-se, para efeitos do cálculo de eventuais mais-valias em IRC, o preço declarado, em vez do VPT, mas justamente o contrário, ou seja, que para efeitos também do valor de aquisição, seja considerado o VPT, e não o valor declarado, em que assentou a correcção operada.
Assim sendo, como é, nunca estaria em causa a aplicação do art.º 139.º do CIRC, nos termos ora preconizados pela Requerida, uma vez que, justamente, a Requerente não pretende ser tributada pelo preço declarado na aquisição, mas pelo VPT àquela data.
Deste modo, e pelo exposto, deve improceder a excepção arguida.
*
ii. do fundo da causa
Imputa a Requerente à liquidação impugnada o vício de violação de lei e o vício de falta de fundamentação.
Dispõe o art.º 124.º do CPPT que:
“1 - Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.
2 – Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:
a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;
b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.”
Não tendo sido expressamente estabelecida pela Requerente qualquer relação de subsidiariedade entre os vícios arguidos, passar-se-á à apreciação do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por ser aquele cuja procedência determina a mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos.
*
Conforme se expôs já, o que está em causa nos presentes autos de processo arbitral, é apurar se, numa situação como a dos autos, em que um imóvel foi adquirido em processo judicial, o valor de aquisição, a considerar para efeitos do cálculo de mais ou menos valias em IRC, é o valor pelo qual foi escriturado o acto de aquisição, ou, antes, o VPT.
Esta mesma questão foi já objecto de apreciação no âmbito do processo arbitral 105/2019-T, do CAAD, onde se julgou que:
“7. Tendo adquirido dois imóveis em processo de execução fiscal, a Requerente, para apuramento do resultado tributável de 2015 acresceu a diferença positiva entre o valor patrimonial do tributário e o valor da transmissão, nos termos do artigo 64.º, n.º 3, alínea a), e deduziu a diferença entre o valor patrimonial tributário e o valor da aquisição, nos termos do artigo 64.º, n.º 3, alínea a).
Deste modo, e como resulta da matéria de facto dada como assente (alíneas E) e F), em relação a um imóvel, a Requerente acresceu o valor de € 50.356,20, correspondente à diferença entre o valor patrimonial tributário (€ 165.356,20) e o valor da transmissão (€ 115.000,00), e deduziu o valor de € 91.356,20, correspondente à diferença entre o valor patrimonial tributário (€ 165.356,20) e o valor da aquisição (74.000,00). Em relação a um outro imóvel, a Requerente acresceu 0,00, por não se verificar uma diferença positiva entre o valor patrimonial tributário (€ 860.810,00) e o valor da transmissão (€ 937.500,00), e deduziu o valor de € 622.850,00, correspondente à diferença entre o valor patrimonial tributário (€ 1.197.850,00) e o valor da aquisição (€ 575.000,00). Sendo que, neste caso, a diferença de montantes registada relativamente ao valor patrimonial tributário resulta do facto de este valor se encontrar fixado em € 1.197.850,00, à data da aquisição, e em € 860.810,00, à data da venda, por efeito de um pedido de avaliação.
A Autoridade Tributária entende, no entanto, que, por força da subalínea 16.º do n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT, nas situações em que os imóveis são adquiridos em arrematação judicial, o valor é o do preço constante do acto ou do contrato, não se enquadrando nas situações normais de mercado, pelo que o sujeito passivo deve registar o valor da aquisição na rúbrica de inventários e ter em conta esse valor numa futura transmissão do imóvel para efeito do apuramento do lucro tributável, não havendo que ter em consideração a diferença entre o valor patrimonial tributário e o valor da aquisição.
Esse critério encontra-se em consonância com o exposto no Manual do Imposto sore o Rendimento das Pessoas Colectivas, publicado sob a égide da Autoridade Tributária, em que se refere que, na situação particular em que o imóvel é adquirido mediante arrematação judicial por valor inferior ao valor patrimonial tributário, não se procede à correcção do valor da aquisição no campo 772 do quadro 07 da declaração modelo 22, visto que, à luz da referida disposição do Código do IMT, o valor da aquisição que releva é o preço do acto ou do contrato e não o valor patrimonial tributário (Manual do Imposto sore o Rendimento das Pessoas Colectivas, edição da Autoridade Tributária e Aduaneira, 2016, págs. 289-290).
Para dilucidar a questão interessa ter presentes, por conseguinte, as referidas disposições dos artigos 64.º do Código do IRC e 12.º do Código do IMT.
A primeira dessas disposições, na parte que mais releva, sob a epígrafe “Correcções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis”, prescreve o seguinte:
1 — Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adoptar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.
2 — Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.
3 — Para aplicação do disposto no número anterior:
a) O sujeito passivo alienante deve efectuar uma correcção, na declaração de rendimentos do período de tributação a que é imputável o rendimento obtido com a operação de transmissão, correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato;
b) O sujeito passivo adquirente adopta o valor patrimonial tributário definitivo para a determinação de qualquer resultado tributável em IRC relativamente ao imóvel.
Por sua vez, o mencionado artigo 12.º do Código do IMT, aplicável à determinação do valor tributável para efeitos desse imposto, ostenta a seguinte redacção:
1 - O IMT incidirá sobre o valor constante do acto ou do contrato ou sobre o valor patrimonial tributário dos imóveis, consoante o que for maior.
2 - No caso de imóveis omissos na matriz ou nela inscritos sem valor patrimonial tributário, bem como de bens ou direitos não sujeitos a inscrição matricial, o valor patrimonial tributário é determinado nos termos do CIMI.
3 - Ao valor patrimonial tributário junta-se o valor declarado das partes integrantes, quando o mesmo não esteja incluído no referido valor patrimonial.
4 - O disposto nos números anteriores entende-se, porém, sem prejuízo das seguintes regras:
(…)
16.ª O valor dos bens adquiridos ao Estado, às Regiões Autónomas ou às autarquias locais, bem como o dos adquiridos mediante arrematação judicial ou administrativa, é o preço constante do acto ou do contrato;
(…).
Um aspecto que interessa, antes de mais, fazer notar é que as disposições em causa têm um distinto campo de aplicação.
O artigo 12.º do Código do IMT destina-se a fixar o valor tributável relativamente ao imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (artigo 2.º), podendo incidir simultaneamente com o imposto do selo (artigo 3.º), constituindo-se a obrigação tributária no momento em que ocorrer a transmissão.
Ao contrário, o artigo 64.º do Código do IRC pretende determinar as correcções a efectuar para o apuramento do lucro tributável, quando haja lugar à transmissão onerosa de imóveis, estipulando, no essencial, as seguintes regras: (a) os alienantes e adquirentes devem adoptar os valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões; (b) quando o valor o contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar para determinação do lucro tributável; (c) nesta última hipótese, ou seja, quando o valor o contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário, o sujeito passivo alienante efectua uma correcção correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário do imóvel e o valor constante do contrato; o sujeito passivo adquirente adopta o valor patrimonial tributário definitivo para a determinação do resultado tributável relativamente ao imóvel.
Por efeito das referidas regras das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 64.º do Código do IRC, no caso em que haja lugar à ulterior transmissão de imóveis que tenham sido antes adquiridos, o sujeito passivo, na condição de alienante, acresce no campo 745 do quadro 07 a diferença positiva entre o valor patrimonial tributário do imóvel e o valor do contrato de venda, e, na condição de adquirente, deduz no campo 772 do quadro 07 a diferença positiva entre o valor patrimonial tributário do imóvel e o valor do contrato de compra.
Certo é que o artigo 12.º do Código do IMT fixa uma regra própria para a fixação do valor tributável relativamente a imóveis adquiridos mediante arrematação judicial, fazendo-o coincidir com o preço do acto ou do contrato, significando que, nesse caso, fica afastada a regra geral do n.º 1 desse artigo, não havendo que tomar em consideração o valor patrimonial tributário. Isto é, em geral, o IMT incide sobre o maior dos valores a considerar de entre o valor do contrato ou o valor patrimonial tributário (n.º 1). Salvo se a aquisição ocorrer no âmbito de uma arrematação judicial (ou em qualquer dos outros casos elencados na subalínea 16.ª do n.º 4 do artigo 12º), caso em não há que estabelecer qualquer termo de comparação com o valor patrimonial tributário, entendendo-se como valor tributável para efeito do pagamento do imposto é o do próprio preço do contrato.
Não se vê, de todo o modo, a que título é que esta regra específica da determinação do valor tributável para efeitos de IMT opera a derrogação do n.º 3 do artigo 64.º do Código do IRC, implicando o afastamento da fórmula que aí se encontra prevista para determinar o lucro tributável em IRC quando haja lugar à transmissão onerosa.
Compreende-se que nas situações consideradas na falada norma da subalínea 16.ª do n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT não subsistam as razões de perigo de evasão ou fraude fiscal no que respeita à declaração do valor real das transações, pelo que não se torna necessário comparar o valor declarado com o valor patrimonial (cfr. JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, Lições de Impostos sobre o Património e o Selo, Coimbra, 2010, pág. 211). No entanto, a ratio legis que torna justificável essa solução para a fixação do valor tributável em IMT não tem de ser transposta para as correcções a efectuar no âmbito do apuramento do lucro tributável em IRC, nem pode justificar a revogação parcial do n.º 3 do artigo 64.º do Código do IRC apenas para os casos em que funcione a excepção à regra geral da determinação do valor tributável para efeitos de IMT.
Por outro lado, uma interpretação conjugada das disposições do artigo 64.º, n.º 3, do Código do IRC e da subalínea 16.ª do n.º 4 do artigo 12º do Código do IMT não pode conduzir à fixação de um sentido e alcance da lei que não tem na norma do artigo 64.º, n.º 3 a mínima correspondência verbal. Para a determinação do lucro tributável, esta norma prevê acréscimos correspondentes à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário e o valor da alienação do imóvel, e deduções correspondentes à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário e o valor da aquisição. O entendimento formulado pela Autoridade Tributária, a pretexto de uma interpretação conjugada de normas, ignora completamente estes critérios e passa a ter como assente um outro, não expresso na lei, e que resulta de uma disposição que é aplicável à determinação do valor patrimonial tributável para efeitos de IMT e não à determinação do lucro tributável para efeitos de IRC.
Não podendo entender-se como válida a interpretação seguida pela Administração Tributária, à luz das regras de hermenêutica jurídica, o pedido mostra-se ser procedente nesta parte.”.
Nos termos do art.º 8.º, n.º 3, do Código Civil, “[n]as decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, em prol da unidade e coerência sistemática e do princípio da segurança jurídica. Assim, deve ser tida em consideração a argumentação e a fundamentação expressa na decisão citada, com a qual se concorda, razão pela qual não se repetirão os argumentos ali expostos, sob pena de se praticarem no processo actos inúteis e desnecessários, proibidos nos termos do art.º 130.º, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Efectivamente, aqui como ali, julga-se que não se pode acolher o entendimento da Requerida, segundo o qual a norma da regra 16. do n.º 4 do art.º 12, do Código do IMT, será aplicável para efeitos do cômputo do lucro tributável em IRC, derrogando o disposto no n.º 3 do art.º 64.º do CIRC.
Ao proceder à correcção assente em tal entendimento, e ao liquidar imposto em conformidade com o mesmo, incorreu a AT em erro sobre os pressupostos de direito da sua actuação, devendo, por isso, ser a liquidação anulada, procedendo, em conformidade, o pedido arbitral.
Face ao ora decidido, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas pela Requerente.
*
C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Julgar improcedente a excepção arguida pela Requerida;
b) Anular o acto de liquidação de IRC n.º 2020 ...;
c) Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 284.536,94, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 5.202.00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa
20 de Dezembro de 2021
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Mariana Vargas)
O Árbitro Vogal
(Carla Castelo Trindade)