REQUERENTE: A..., sa
REQUERIDA: Autoridade Tributária e Aduaneira
Decisão Arbitral[1]
I RELATÓRIO
A) As Partes e a Constituição do tribunal Arbitral
1.A... sa, pessoa colectiva nº ..., com sede na Rua ..., em …, doravante designado por “Requerente”, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo do disposto no artigo 10º, e na alínea a), do nº 1, do artigo 2º, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante designado por “RJAT” e dos artigos 1º e 2º da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, para apreciar a demanda que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada por “Requerida” ou “AT”, tendo em vista a anulação, com fundamento em ilegalidade, de 209 actos de liquidação oficiosa de Imposto Único de Circulação (IUC), referentes aos anos de 2009 a 2012, no valor global de €7.931,37, referente a 60 veículos automóveis identificados pelo respectivo número de matrícula nas liquidações juntas em anexo ao pedido arbitral e conforme tabela junta como Anexo A, constante do pedido de pronúncia arbitral, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, apresentado em 13 de Fevereiro de 2014, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 17.02.2014. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no nº 1, do artigo 6º do RJAT, foi designada, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, a ora signatária como árbitro do Tribunal Arbitral singular. A nomeação foi aceite e as partes, notificadas da aceitação, em 2 de Abril de 2014, não recusaram a designação, nos termos previstos nas alíneas a) e b), do nº1, do artigo 11º, do RJAT, conjugado com o disposto nos artigos 6º e 7º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228º, da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 17 de Abril de 2014.
No dia 22 de Abril de 2014, foi a Requerida “AT” notificada para apresentar resposta no prazo legal, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2, artigo 17º, do RJAT. A 19 de Maio de 2014 a AT juntou aos autos a sua Resposta e os documentos anexos designados por PA (processo administrativo).
No dia 10 de Julho de 2014, pelas 15 horas, realizou-se a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, da qual foi lavrada acta que se encontra junta aos autos e aqui se dá por integralmente reproduzida. Na reunião efectuada a Requerente requereu a junção aos autos de um conjunto de documentos contabilísticos (cópias dos extractos contabilísticos comprovativos dos pagamentos das facturas juntas aos autos). Foi fixado um prazo de dez dias para a requerida junção de documentos, com igual prazo de vista para a AT se pronunciar querendo. A Requerente ditou para a acta o esclarecimento quanto aos reparos efectuados no ponto 115 e seguintes da resposta da AT. O Requerente entregou cópia dos documentos cuja junção requereu, a qual foi deferida. Foi fixado um prazo de vista de 20 dias para a AT se pronunciar. As partes prescindiram da apresentação de alegações Foi fixada data prolação da decisão arbitral até ao dia 3 de Outubro de 2014. Em 23 de Setembro de 2014 a Autoridade Tributária Requereu a junção aos autos das decisões arbitrais nºs 150-2014T e 220-2014 T sobre matéria idêntica à dos presentes autos, pelo que foi fixado prazo para exercício de eventual resposta da Requerente e ampliado o prazo para proferir a decisão arbitral até ao dia 22 de Outubro de 2014.
B) Dos Pressupostos Processuais
3. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos do artigo 2º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (Cfr. Artigos 4º e 10º, nº 2, do DL nº 10/2011 e artigo 1º, da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março).
Quanto à cumulação de pedidos, pretendendo-se a apreciação conjunta da legalidade das 249 liquidações de IUC, relativas aos anos de 2009 a 2012, apesar de constituírem actos autónomos, verificando-se os pressupostos exigidos pelo disposto no nº 1, do artigo 3º, do RJAT e artigo 104º do CPPT, é de admitir a cumulação. Assim, aceita-se no mesmo pedido arbitral a cumulação de pedidos de declaração de ilegalidade de todos os actos tributários de liquidação de IUC e respectivos juros compensatórios que lhes estão associados, dada a identidade do imposto e a apreciação dos actos tributários em causa depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da aplicação das mesmas regras de direito.
O processo não enferma de nulidades que o invalidem e não foram suscitadas excepções que obstem ao julgamento do mérito da causa, pelo que o Tribunal está em condições de proferir a decisão arbitral.
C) DO PEDIDO FORMULADO PELA REQUERENTE
4. A Requerente formula o presente pedido de pronúncia arbitral pugnando pela ilegalidade e consequente anulação, dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação e respectivos Juros Compensatórios, referentes aos anos de 2009 a 2012, no montante global de €7.931,37, com referência a sessenta veículos, identificados pelo respectivo número de matrícula na lista constante do pedido de pronúncia arbitral (Anexo A), que aqui se dá por reproduzida, bem assim como nas notas de demonstração de liquidação de imposto e dos respectivos juros compensatórios, todas juntas aos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzidas.
Fundamenta o seu pedido na ilegalidade das liquidações de imposto e respectivos juros, alegando em síntese o seguinte:
a) A Requerente é uma instituição de crédito com forte presença no mercado nacional, consistindo o financiamento ao sector automóvel numa das áreas de actividade com especial relevância;
b) Uma parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração, entre outros, de contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração (ALD), destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;
c) Estes contratos obedecem, como resulta da sua própria configuração legal, a um guião comum, próprio deste tipo de financiamentos: a Requerente, depois de contactada pelo cliente – que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e inclusive o seu preço – adquire o veículo ao fornecedor que lhe for indicado pelo cliente, e procede, de seguida, à sua entrega ao referido cliente – que assume, pois, a qualidade de locatário;
d) Durante o período que vier a ser estipulado no contrato, este locatário mantém o gozo temporário do veículo – que permanece propriedade da Requerente –, mediante remuneração a entregar à Requerente sob a forma de rendas;
e) Estando legalmente obrigado a, no termo do contrato, adquirir o veículo mediante o pagamento de um valor residual;
f) Os veículos automóveis identificados na listagem junta à PI como ANEXO A (cuja matrícula consta da coluna K) foram dados em ALD pela Requerente aos clientes ali também identificados (coluna I);
g) Todos estes clientes adquiriram, no termo do respectivo contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do correspondente valor residual (conforme resulta das facturas de venda juntas como documentos n.ºs 61 a 120 e identificados na coluna N da tabela junta como ANEXO A à PI;
h) No caso do veículo automóvel identificado nas linhas 165 a 168 com a matrícula ..-..-..) o seu adquirente foi, não o anterior locatário, mas um terceiro a quem aquele indicou que fosse transmitida a viatura e facturado o correspondente valor residual;
i) O que em nada altera a posição de facto da Requerente, dado que, na vigência dos contratos, era mera locadora; uma vez atingido o seu termo, deixou de ser proprietária destes veículos;
j) Recentemente a Requerente foi notificada para proceder ao pagamento das liquidações de IUC constantes do presente pedido arbitral (Anexo A), tendo efectuado o pagamento conforme comprovativos juntos aos autos com os nºs 1 a 60;
k) A exigência do pagamento do IUC em causa, referente aos anos de 2009 a 2012, sucedeu mesmo sabendo a AT – ou devendo saber – que os veículos automóveis em apreço já não eram propriedade da Requerente no momento (no ano) em que o imposto deveria ter sido pago;
l) Isto porque, nas datas a que se reportam os factos tributários que originaram aas liquidações de IUC em causa, a Requerente já não era proprietária dos veículos a que as mesmas se referem;
m) Exemplifica com o caso da viatura com a matrícula ..-..-.., o qual consta da linha nº1 a 4 da tabela junta como Anexo A, uma por cada acto de liquidação/ano respeitante a este automóvel, i.e., 2009 a 2012, cenário fáctico que, alega, se repete em relação a todos os outros actos tributários identificados na tabela anexa à PI.
5. A fundamentação de direito do pedido de pronúncia arbitral, assenta, sumariamente, no seguinte:
a. A Requerente não pode ser considerada sujeito passivo de IUC, ainda que, no ano a que se reportam os IUC em causa, a transmissão dos referidos veículos não estivesse devidamente registada junto da Conservatória do Registo Automóvel;
b. Apesar dos actos tributários não mencionarem expressamente os motivos que conduziram à emissão das liquidações o que consubstancia vício de falta de fundamentação, a Requerente subentende que a razão subjacente às liquidações seja o facto da transmissão da propriedade pelos locatários, nos termos previstos nos respectivos contratos, não ter sido registada na Conservatória de registo Automóvel;
c. O registo, ou a sua falta não podem ser considerados elemento determinante da responsabilização tributária da Requerente, motivo pelo qual se afiguram ilegais as liquidações de imposto contestadas;
d. Assim, subjacente a estes autos encontra-se, essencialmente, uma única questão: a de saber se a circunstância de a transmissão dos veículos identificados na tabela junta como ANEXO A, aos seus anteriores locatários (ou, nos casos pontuais acima identificados, a terceiros por aqueles indicados), findo o contrato de ALD, não ter sido registada junto da Conservatória do Registo Automóvel, torna essa transmissão inoponível à AT, para os efeitos de proceder à cobrança do imposto junto do seu anterior proprietário;
e. A responsabilidade por proceder ao pagamento do IUC cuja liquidação se contesta não cabe, nem coube jamais à Requerente, sendo, por isso, intrinsecamente ilegal – por falta de legitimidade substantiva da Requerente – a liquidação realizada pela AT.
f. Conforme a jurisprudência (mormente arbitral) tem destacado, nem mesmo durante a vigência de um contrato de locação financeira deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo do IUC; por maioria de razão, menos ainda o será após ter ocorrido o termo do contrato de locação e o exercício, pela entidade locatária, do seu direito a adquirir o bem pelo valor residual;
g. O locatário torna-se também proprietário do veículo em questão, passado a aplicar-se-lhe o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC;
h. Invoca, ainda, em síntese, o disposto nos artigos 408º, nº1 e 874º do Código Civil, o regime resultante do Decreto-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro, bem assim como a jurisprudência resultante de diversas decisões arbitrais já proferidas sobre casos idênticos e, por fim, junta Parecer do Prof. Doutor Agostinho Cardoso Guedes.
Termina peticionando a declaração de ilegalidade e consequente anulação, quer dos actos de liquidação relativos ao IUC respeitantes aos 60 veículos identificados pelo respectivo número de matrícula na listagem junta como ANEXO A, quer dos actos de liquidação dos juros compensatórios que lhe estão associados, bem assim como o reembolso do montante de €7.931,37, respeitante ao imposto e aos juros compensatórios indevidamente pagos pela Requerente e o pagamento de juros indemnizatórios, pela privação do referido montante de € 7.931,37, nos termos do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
D) – A RESPOSTA DA REQUERIDA
6. A Requerida alega na sua resposta, em síntese, que não assiste razão à Requerente quanto ao alegado vício de falta de fundamentação nem quanto aos demais fundamentos que servem de base ao pedido arbitral, não ocorrendo qualquer erro sobre os pressupostos, invalidante dos actos de liquidação. O entendimento da requerente plasmado no presente pedido arbitral incorre numa enviesada leitura da letra da lei, numa interpretação que não atende ao elemento sistemático, que viola a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal que ignora a ratio legis do regime consagrado no CIUC”.
Assenta a sua alegação no disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 3.º do CIUC, que determinam, respetivamente, que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados” e que são sujeitos passivos do IUC “os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
Alega a Requerida que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, aliás à semelhança do que sucede em outros normativos legais, exemplificando algumas situações previstas na lei; entende a Requerente que nos casos em que o legislador fiscal utiliza a expressão “considera-se”, não está a estabelecer uma presunção; enuncia, a título meramente exemplificativo, diversas normas constantes de diferentes códigos fiscais que utilizam a expressão “considera-se”. Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, assenta numa interpretação contra a lei, porquanto “a opção clara do legislador foi a de considerar que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que como tal constem do registo automóvel;” invoca, em defesa deste entendimento, a decisão proferida no âmbito do Processo nº 210/13.0BEPNF, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.
Conclui que é esta a interpretação que atende ao elemento sistemático e preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal, além do que, outra interpretação seria ignorar o elemento teleológico de interpretação da lei, a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.
Acresce que a não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42º, do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IEC e não na do Estado, enquanto sujeito activo deste imposto.
Ainda em reforço deste entendimento, invoca a AT os debates parlamentares em torno da aprovação do DL nº 20/2008, de 31 de Janeiro, dos quais transcreve excertos, para concluir que o legislador quis intencionalmente consagrar uma solução da qual resulte que o IUC é devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietários dos veículos.
A acrescentar a tudo isto, alega a Requerida que a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade. Por último, atendendo às regras do ónus da prova, alega ainda a falta de prova da transmissão da propriedade do veículo, dado que as facturas não são, na óptica da AT, por si só, documentos aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda.
7.Conclui que os actos de liquidação de IUC não padecem de ilegalidade nem estão reunidos os pressupostos legais para a condenação em juros indemnizatórios. E, também no que toca à responsabilidade pelas custas arbitrais a Requerida entende que não estando no seu controlo a transmissão da propriedade de veículos automóveis, o IUC é liquidado de acordo com a informação registral, oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado; ou seja o IUC não é liquidado de acordo com a informação gerada pela própria Requerida. Assim, não foi a Requerida que deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, mas sim a própria Requerente que, aliás, só agora subministrou prova documental relativa à transmissão da propriedade, o que não ocorreu em sede de prévio procedimento administrativo, pelo que deverá ser a Requerente condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido, nos termos do artigo 527º/1 do Novo Código de Processo Civil, ex vi artigo 29º/1 – e) do RJAT, em linha, aliás, com questão similar decidida no âmbito do processo nº 72/2013-T, que correu termos neste centro de arbitragem.
Conclui, pela improcedência do pedido arbitral, pugnando pela legalidade dos actos tributários impugnados e pela absolvição da Requerida no pedido.
II. QUESTÕES A DECIDIR
8.Atendendo às posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, ao Tribunal cumpre decidir as seguintes questões:
1ª - Do vício de falta de fundamentação;
2ª - Da incidência subjectiva do IUC, dos efeitos do registo automóvel e da existência ou não de uma presunção ilidível nesta matéria;
3ª - Da prova de transmissão da propriedade dos veículos e do afastamento da presunção;
4ª - Do direito ao pagamento de juros indemnizatórios e a responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) Factos Provados
9.Como matéria de facto relevante para a decisão a proferir, o Tribunal dá por assente os seguintes factos:
1º) A Requerente é uma instituição de crédito cuja actividade substancial consiste no financiamento ao sector, através da celebração, entre outros, de contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração (ALD), destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;
2º) A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento das liquidações de imposto único de circulação aqui impugnadas, relativamente aos anos de 2009 a 2012, bem assim como os respectivos juros compensatórios, referentes a sessenta veículos com as matrículas devidamente identificadas nas liquidações de IUC juntas aos autos como documentos nºs 1 a 60 em anexo ao pedido arbitral, todos devidamente discriminados na tabela junta à PI como anexo A, que aqui se dão por integralmente reproduzidas;
3º) Todas as liquidações de IUC foram pagas no prazo indicado para pagamento e totalizam o valor de €7.931,37; (cfr. Docs. nºs 1 a 60);
4º) As vendas dos referidos veículos foram facturadas às entidades identificadas nas facturas/recibos juntas como documentos nºs 91 a 120;
7º) À data dos factos tributários, as viaturas automóveis referenciadas nas liquidações de IUC aqui impugnadas encontravam-se inscritas no registo automóvel na titularidade da ora Requerente, na qualidade de proprietária;
11º) À data dos actos tributários de liquidação a AT dispunha dos elementos de informação constantes da contabilidade da Requerente, da base registral e, posteriormente, dos que lhe foram comunicados já no âmbito do presente pedido de pronúncia arbitral.
B) FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
10. A decisão sobre a matéria de facto nos termos supra descritos tem por base a prova documental que as Partes juntaram ao processo e que integram os presentes autos. O Tribunal considerou em particular o objecto social da Requerente e a natureza específica da sua actividade realidade factual subjacente às situações negociais respeitantes aos diversos veículos, comprovados pelos documentos juntos em anexo ao pedido arbitral bem assim como pelos documentos posteriormente juntos aos autos na reunião de 10 de Julho de 2014 (extractos comprovativos dos pagamentos das facturas juntas em anexo à PI), respeitantes às viaturas objecto das liquidações impugnadas.
C) FACTOS NÃO PROVADOS
11.Não existem outros factos dados como não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram dados como provados.
IV – FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO
12. Fixada a matéria de facto, importa conhecer das questões de direito supra indicadas, correspondendo, em síntese, às questões de ilegalidade suscitadas pela Requerente no presente pedido arbitral. Vejamos pois a primeira questão a decidir.
1ª- Do Alegado vício de falta de fundamentação
13.A Requerente alega violação do dever de fundamentação, dado que “os actos tributários não mencionarem expressamente os motivos que conduziram à emissão das liquidações o que consubstancia vício de falta de fundamentação”.
Logo a seguir, porém, a Requerente afirma que “subentende que a razão subjacente às liquidações seja o facto da transmissão da propriedade pelos locatários, nos termos previstos nos respectivos contratos, não ter sido registada na Conservatória de registo Automóvel”. A isto se resume a alegação do vício de falta de fundamentação por parte da Requerente.
Não resta dúvida que a fundamentação é uma exigência dos actos tributários em geral, sendo uma imposição constitucional (268º da CRP) e legal (art.º 77º da LGT). Pode dizer-se, sucintamente, que é entendimento pacífico entre nós, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que a fundamentação legalmente exigível deve reunir um conjunto mínimo de características, tais como: i) oficiosidade, sendo a fundamentação da estrita iniciativa e obrigação da administração (poder/dever), não são admissíveis fundamentações a pedido e deve acompanhar a prática do acto, não fazendo sentido fundamentações “a posteriori”; ii) a fundamentação deve ser clara, ou seja, compreensível por um destinatário médio, evitando conceitos polissémicos ou profundamente técnicos de difícil compreensão; iii) deve conter todos os elementos essenciais que foram determinantes na decisão tomada, indicando as normas legais e a motivação do acto.
Apesar do supra exposto, é sabido que a fundamentação pode ser também expressa ou tácita, por remissão para anteriores pareceres, informações ou propostas, como aliás resulta expressamente do disposto no nº1, do artigo 77º da LGT.
Ora, sendo o acto tributário um acto de assinalável onerosidade na esfera jurídica do seu destinatário, o mesmo deve ser cuidadosamente fundamentado de modo a convencer o contribuinte da legalidade subjacente e dos critérios que presidiram à sua quantificação.
Porém, é também hoje pacífico, para a doutrina e para a jurisprudência que a fundamentação deve ser expressa através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito, equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, por contradição ou insuficiência não esclareçam concretamente a motivação do acto. [2] Deve, pois, considerar-se o acto como suficientemente fundamentado quando permite a um destinatário normal compreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do ato em termos que permitam ao seu destinatário compreender as razões que levaram o autor do acto a praticá-lo.
14. No caso dos presentes autos, em cada um dos actos tributários impugnados encontra-se devidamente identificado o veículo a que respeita, com indicação do tributo em causa (IUC), dos períodos a que respeita o imposto, bem assim como do montante apurado na respectiva liquidação e data limite para pagamento.
Precisamente, por isso, a Requerente entendeu perfeitamente (ou subentendeu), enquanto destinatária dos actos tributários, toda a situação de facto e de direito subjacente, o mesmo é dizer que compreendeu o seu conteúdo.
Ao que acresce que a fundamentação se há-de aferir de acordo com “as circunstâncias concretas, entre as quais avultam as do tipo de acto, as da participação do contribuinte no procedimento e a sua extensão (…) ”[3].
Ora, nos presentes autos a Requerente enquanto parte contratual nos contratos de ALD que alegou nos autos, estava em condições de identificar as circunstâncias concretas, subjacentes ao procedimento que terá conduzido às liquidações impugnadas, em termos suficientes para as compreender esclarecidamente.
A este respeito, não pode deixar de se referir que, a qualidade da Requerente, enquanto instituição financeira de referência no mercado, naturalmente reforça a sua aptidão para compreender a sucessão de factos que revelam a fundamentação do ato que lhe foi notificado, como de facto compreendeu, o que sobejamente revelou no pedido arbitral que apresentou. [4]
Da confrontação de todos os elementos constantes do próprio pedido arbitral, assente no conteúdo dos actos tributários notificados à Requerente, enquanto destinatária, é possível concluir que esta compreendeu devidamente os fundamentos dos mesmos, como resulta evidenciado na argumentação aduzida.
Resulta, pois, suficientemente perceptível para um destinatário médio, colocado na posição do destinatário concreto, qual a fundamentação dos atos tributários impugnados nos presentes autos, pelo que improcede a alegação do vício de falta de fundamentação.
2ª - Da incidência subjectiva do IUC, dos efeitos do registo automóvel e da existência ou não de uma presunção ilidível
15. Passando agora à análise da segunda questão a decidir, importa verificar se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do Imposto Único de Circulação, liquidado em relação aos anos de 2009 a 2012, quanto aos veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral.
Como a própria Requerente refere no pedido arbitral a questão de fundo a decidir é a de saber se a circunstância de a transmissão dos veículos identificados na tabela junta como ANEXO A, aos seus anteriores locatários (com um único caso pontual em que a transmissão ocorreu a favor de um terceiro indicado pelo locatário originário), findo o contrato de ALD, não ter sido registada junto da Conservatória do Registo Automóvel, torna essa transmissão inoponível à AT, para os efeitos de proceder à cobrança do imposto junto do seu anterior proprietário. Alega a pela Requerente que, à data dos factos tributários, já não era proprietária dos veículos automóveis mencionados nas liquidações de IUC impugnadas, apesar de todos os veículos automóveis em questão se encontrarem registados em seu nome.
Em primeiro lugar há que apreciar os termos da configuração da incidência subjetiva do IUC à luz do disposto no art. 3.º, do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), nomeadamente, a questão de saber se a incidência subjetiva assenta estritamente na inscrição da titularidade do veículo no Registo Automóvel, ou se, o registo opera apenas como uma presunção de incidência tributária, ilidível, em conformidade com o disposto no art. 73.º, da Lei Geral Tributária. Sobre esta matéria é já abundante e bastante definida a jurisprudência arbitral vertida em diversas decisões mencionadas pelas partes e em algumas outras proferidas posteriormente à apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral, que serão referidas oportunamente.
16.O quadro jurídico fundamental aplicável nesta matéria é o previsto nos artigos 1º a 6º, do CIUC, aprovado pela Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho.
O artigo 1º do CIUC define a incidência objectiva do imposto, distinguindo os veículos por categorias especificadas, norma que se afigura clara e sem dificuldades de aplicação. Porém, o mesmo já não sucede com a norma de incidência subjectiva contida no nº1, do artigo 3º do CIUC, a qual está na origem do presente litígio e constitui, assim, questão a decidir no caso em apreciação.
A análise de ambos os preceitos (artigos 1º e 3º) permitem concluir que no funcionamento do IUC o registo automóvel tem um papel fundamental. O que importa, pois, é determinar qual o sentido e alcance da norma de incidência subjectiva constante do artigo 3º, nº 1, do CIUC e da eventual existência ou não de uma presunção ilidível, conexionada com a questão dos efeitos jurídicos do registo automóvel, suscitada pela Requerente.
Sobre esta questão, as posições das partes resumem-se do seguinte modo:
- para a Requerente esta não pode ser considerada sujeito passivo de IUC, ainda que, no ano a que se reportam os IUC em causa, a transmissão dos referidos veículos não estivesse devidamente registada junto da Conservatória do Registo Automóvel já que o registo, ou a sua falta não podem ser considerados elemento determinante da responsabilização tributária da Requerente;
- para a Requerida o artigo 3º, nº1, do CIUC consagra uma norma de incidência tributária e não mera presunção ilidível.
Vejamos pois o que resulta do regime legal em vigor e a sua aplicação ao caso concreto dos autos.
Dispõe o artigo 3º do CIUC que:
“ARTIGO 3º
INCIDÊNCIA SUBJECTIVA
1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
Estabelece o nº1, do artigo 11º, da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.
A interpretação e aplicação da norma jurídica, pressupõe a realização de uma actividade interpretativa, a qual deve ser objectiva, equilibrada, e conforme com a letra e o espírito da lei. Qualquer texto, e a lei não é excepção, comporta múltiplos sentidos e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Por essa razão, embora a letra da lei seja “o fio condutor” do intérprete, ela há-de ser interpretada tendo em conta os objectivos subjacentes, “a ratio” ou a motivação do legislador ao estabelecer a norma em análise.[5]
A estes elementos acresce um outro segundo o qual a interpretação da norma jurídica há-de respeitar a “unidade do sistema jurídico”, a sua coerência e lógica intrínseca. O artigo 9º, do Código Civil (CC), fornece as regras e os elementos fundamentais para a interpretação da norma jurídica, ao qual também obedece a interpretação da lei fiscal deve obedecer ao disposto naquele normativo, o qual começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.[6]
A estes princípios gerais acrescem, ainda, os princípios constantes da LGT, nomeadamente no artigo 73º, que estabelece que as presunções contidas em normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.
No que se refere à questão em análise, há que salientar o contributo das decisões arbitrais já proferidas nos processos nºs 14/2013-T, de 15 de Outubro, 26/2013-T de 19 de Julho, 27/2013-T, de 10 de Setembro, 217/2013-T de 28 de Fevereiro e, mais recentemente, nas decisões proferidas nos processos 286/2013-T, de 2 de Maio de 2014 e 293/2013-T, de 9 de Junho de 2014, 46/2014-T e 89/2014-T de 5 de Setembro, entre outros, revelando uma apurada reflexão sobre a questão fundamental em apreciação, estabelecendo um entendimento uniforme sobre esta mesma questão, aliás, sufragado pelo Acórdão arbitral 63/2014- T e pelas decisões 150/2014-T e 220/2014-T, juntas aos autos pela requerida AT. Em todas, o entendimento quanto a esta questão é unânime: estamos perante uma presunção ilidível.
Pelo que, quanto à questão de saber, face ao teor literal do disposto no nº1, do artigo 3º, do CIUC, qual o alcance da expressão “considerando-se como tais”, dado que na actual versão o legislador não usou o termo “presumem-se” (o qual constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos), entende o Tribunal que só pode ser o seguinte: o legislador presume (considera) que os proprietários são as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados. Significa isto que, tal presunção, implícita, é naturalmente ilidível nos termos previstos no artigo 73º da LGT.
A presunção estabelecida no artigo 3º, nº1, do actual CIUC, já estava consagrada nas versões anteriores dos códigos abolidos com a entrada em vigor do CIUC. Já o artigo 3.º do Regulamento do Imposto Sobre Veículos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78) estabelecia que: “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”. Do mesmo modo, o art. 2.º, do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”.
Na verdade, na versão actual do Código apenas mudou o verbo, optando agora o legislador pela expressão “considerando-se”. Certo é que, entre as versões legislativas anteriores e a actual entrou em vigor a LGT, que consagrou expressamente o princípio contido no artigo 73º, do qual resulta que em matéria de incidência tributária qualquer presunção admite sempre prova em contrário. Logo, torna-se indiferente a adopção de uma presunção expressa ou implícita, porquanto, uma como a outra são igualmente ilidíveis.
Assim, entende-se que o facto de o legislador, na actual versão do CIUC, ter optado por uma presunção implícita (usando a expressão “considerando-se”) em vez de uma presunção expressa (com recurso à expressão “presumindo-se”), como acontecia anteriormente, não traduz uma alteração substancial no que respeita à incidência subjectiva do imposto. Não é, pois, a titularidade constante do registo automóvel condição, por si só determinante de incidência tributária em sede de IUC, mas sim mera presunção de que a propriedade pertence ao titular inscrito no registo, presunção naturalmente ilidível.
Acresce que, contrariamente ao que vem alegado pela Requerida, podemos facilmente apontar diversos exemplos, extraídos do ordenamento jurídico tributário, em que o legislador optou pela utilização do verbo “considerar”, com um sentido presuntivo. Além do que, como já se disse supra, tratando-se de norma de incidência tributária, nunca seria admissível a consagração de uma presunção inilidível. Como afirmam, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao nº 3, do artigo 73º, da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”. E, são muitos os exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” para estabelecer presunções ilidíveis, como sucede com o disposto nº 2 do artigo 21º do CIRC, no artigo 89-A da LGT ou no artigo 40º, nº1 do CIRS entre outros.
Alega, porém, a Requerida na resposta apresentada, que este mesmo vocábulo “considerando-se” também é normalmente utilizado, pelo ordenamento jurídico fiscal, para definir situações distintas de presunções. Ora, tal afigura-se normal, nomeadamente, no caso de outras normas fiscais em que o legislador utilizou a fórmula “considera-se” ou “consideram-se”, mas atribuindo-lhe outro sentido, já que se trata de expressões que, dependendo do contexto, podem assumir uma pluralidade de sentidos, sem que daí possa extrair-se a conclusão que pretende a Requerida.
Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, bem como a doutrina e jurisprudência indicadas, permitem concluir que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões, como o termo “considera-se” podem servir de base a presunções. E, como se referiu supra, sendo o elemento literal o primeiro instrumento de interpretação da norma jurídica, em busca do pensamento legislativo, importa confrontá-lo com os demais elementos de interpretação, nomeadamente o elemento racional ou teleológico, o elemento histórico e o sistemático.
E, também, nesta linha de reflexão o Tribunal não pode acompanhar a argumentação aduzida pela Autoridade Tributária. No que toca ao elemento histórico, há que referir, que desde a origem do imposto de circulação, com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 599/72 de 30 de Dezembro, foi, explicitamente, consagrada uma presunção, relativamente aos sujeitos passivos do imposto como sendo aqueles em nome de quem os veículos se encontravam matriculados ou registados. Essa versão da lei usava a expressão literal “presumindo-se como tais”.
Porém, atendendo aos fins do imposto em presença, há que reconhecer que o uso da expressão “considera-se”, na atual versão, contempla uma expressão com um efeito semelhante àquela, consubstanciando, igualmente, uma presunção. Isso mesmo sucede na formulação contida no nº 1, do art.º 3º, do CIUC, em que se consagrou uma presunção, revelada por via do uso da expressão “considerando-se”, de significado semelhante e de valor equivalente à expressão “presumindo-se”, em uso desde a criação do imposto em questão. O uso da expressão “considerando-se” justifica-se apenas por se afigurar mais em sintonia com o reforço conferido à propriedade do veículo, que passou a constituir o facto gerador do imposto, nos termos constantes do artigo 6º do CIUC.
Pelo que, à luz do elemento literal da interpretação, nada obsta ao entendimento de que, o disposto no nº1, do art. 3.º, do CIUC, consagra uma presunção ilidível.
Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria.[7]
Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efectivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel. Como aliás se refere no Acórdão arbitral nº 63-2014-T de 15 de Setembro “… se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva. (…) Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjectiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte directo (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro). E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”
Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo, e que inicialmente, e em princípio, se supunha ser o verdadeiro proprietário. Caso contrário, aceitar-se-ia a supremacia da verdade formal do registo sobre a verdade material, e seria admitir a violação grosseira dos princípios fundamentais fiscais enunciados e, ainda, do princípio contido no artigo 73º, da LGT segundo o qual não existem presunções inilidíveis em matéria de incidência fiscal. O legislador não sentiu a necessidade de manter na nova norma de incidência uma presunção expressa e ilidível, uma vez que após a entrada em vigor da Lei Geral Tributária (1999) “as presunções consagradas nas normas de incidência admitem sempre prova em contrário”. Logo, face ao teor do artigo 73º, da LGT, seria tecnicamente incorrecto usar a expressão “presumindo-se como tais, até prova em contrário”, constante da anterior versão em vigor.
De resto, é possível extrair, ainda, um outro argumento do disposto no artigo 7º do Código de Registo Predial (o qual constitui a base jurídica fundamental em matéria de registo de propriedade) o qual dispõe que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”. À luz do princípio da uniformidade e coerência intrínseca do sistema jurídico, nenhum fundamento se afigura aceitável para que o princípio vigente no registo de propriedade em geral, sofresse uma inflexão ou mesmo “atropelo” injustificado em matéria de registo automóvel.
17. Por fim, se alguma dúvida persistisse, sempre se diria que, quanto aos elementos de interpretação de pendor racional ou teleológico, a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007, de 29/06, é bastante expressiva ao esclarecer que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador (…) consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”, referindo, ainda, ser “(…) este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate (…)”.
Assim, a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel pressupõe e almeja um sujeito passivo coincidente com o proprietário do veículo, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efetivo sujeito causador dos danos ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência inscrito no art.º 1º, do CIUC. Este princípio da equivalência, que informa o actual imposto único de circulação, tem subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. Trata-se, afinal, de alcançar as externalidades ambientais negativas que advêm da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus proprietários e/ou pelos utilizadores, como custos que só eles deverão suportar. [8]
Outro entendimento implicaria aceitar a possibilidade de tributar pessoas colectivas ou físicas sem responsabilidade na produção de quaisquer danos ambientais, enquanto os reais causadores desses mesmos danos não estariam sujeitos ao imposto, frustrando em absoluto os propósitos reguladores da própria lei, ou seja, a sua verdadeira ratio legis.
Em síntese, à luz da norma de incidência o sujeito passivo do IUC é o proprietário, ainda que não figure no registo automóvel, desde que seja feita prova bastante para ilidir a presunção legal proveniente do registo, o devedor do IUC.
Quanto aos efeitos do registo, resulta claro do disposto nos artigos 1.º e 7º do Código de Registo Predial (CRP), que o registo tem uma dupla finalidade: dar publicidade à situação jurídica dos bens e constituir presunção de que o direito existe e pertence ao titular nele inscrito. Estas presunções são, porém, ilidíveis mediante prova em contrário, como resulta expressamente do disposto artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil (CC) e, em matéria tributária, reforçado pelo artigo 73º da LGT.
É pacífico para a doutrina e para a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o registo não é condição de validade dos negócios a ele sujeitos ou subjacentes, dele não depende a transmissão da propriedade e não pertence ao transmitente o ónus de promover o registo, pelo que nenhuma sanção lhe pode ser imposta pelo não cumprimento dessa obrigação por parte do adquirente (este sim obrigado a promover o registo). [9]
Acresce ainda que a Autoridade Tributária não pode ser considerada “terceiro” para efeitos de registo, dado que, resulta do nº 4, do artigo 4º do CRP que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Ora, a AT não preenche os requisitos legais do conceito, pelo que não pode exigir ao vendedor o pagamento do imposto devido pelo comprador (proprietário) a partir do momento em que a presunção do registo seja afastada mediante a prova da transmissão.
Nestes termos, a AT não pode prevalecer-se da não actualização do registo de propriedade, para exigir o pagamento do imposto ao anterior proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado se, por qualquer meio, lhe for apresentada prova bastante da respectiva venda.[10]
Pelo que, os adquirentes dos veículos tornam-se, assim, proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, por mero efeito do contrato, com registo ou sem ele.
Esta interpretação é a única que garante perfeita sintonia entre este regime e o que resulta do disposto no nº 1, do art.º 408º, do Código Civil, segundo o qual a transferência de direitos reais sobre as coisas é determinada por mero efeito do contrato, sendo um desses efeitos a transmissão da coisa ou a titularidade do direito (cfr. alínea a), do art.º 879º do referido Código Civil).
Alega a Requerida que “não tem controlo sobre a transmissão da propriedade, já que não há uma obrigação acessória declarativa quanto a esta matéria (…)”. Mesmo reconhecendo que esta solução pode levar a consequências pouco adequadas à operacionalidade dos serviços da AT nesta matéria, certo é que não se afigura aceitável adulterar os princípios de direito civil e registral em vigor por razões de eficácia da Administração tributária. As invocadas dificuldades são consequência única da presente regulamentação legal, cabendo ao legislador alterar a lei se e quando o entender adequado.
Por último há que referir, ainda, que no caso particular das locadoras não é verdade que a AT não tenha acesso a qualquer informação acessória sobre a existência dos contratos celebrados por estas empresas e sobre os respectivos utilizadores, já que o disposto no art.º 19º do CIUC impõe, justamente, para efeitos do disposto no art.º 3º do referido CIUC (ou seja, para efeitos da incidência subjectiva), às entidades que procedem à locação financeira, a obrigação de fornecer à AT os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados. Mais uma vez a solução legal não deixa dúvidas sobre quem o legislador quis fazer incidir o ónus do pagamento do imposto: o proprietário, equiparando a este os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação” (art. 3º, nº2 do CIUC).
Mas alega, ainda, a Requerida que a interpretação defendida pela Requerente nesta matéria, além de traduzir um leitura enviesada da lei e assentar numa interpretação contra legem, se mostra contrária à Constituição.
Ora, por tudo o que se deixa exposto supra, resulta também que o tribunal arbitral não acompanha a Requerida nesta alegação. Importará, ainda assim, acrescentar a todos os argumentos já expostos, um último extraído da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC). Assim, refira-se que, contrariamente ao alegado pela Requerida, a consideração de que o disposto no art. 3.º, n.º 1, do CIUC consagra uma presunção ilidível representa a melhor interpretação e a mais conforme à Constituição, conforme resulta do acórdão do TC com o n.º 348/97, de 29.4.1997, posição reiterada no acórdão n.º 311/2003, de 28.4.2003, os quais declaram a inconstitucionalidade do “estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção “juris et de jure” já que “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária”. Nesta conformidade, não se vislumbra a alegação da Requerida possa ter acolhimento.
Chegados aqui, resta analisar a última e decisiva questão: saber se as facturas/recibos juntas aos autos pela Requerente, bem assim como a restante documentação, são meios idóneos para a prova necessária á ilisão da presunção do registo.
3ª) Da prova de transmissão da propriedade dos veículos e da ilisão da presunção
18. Naturalmente que o ónus da prova cabe à parte que tem o ónus de promover o afastamento da presunção, nos termos gerais previstos no artigo 342º do CC, já que em seu nome existe um registo de propriedade automóvel do qual resulta a presunção de propriedade de todos os veículos em causa nos autos.
Considerando a matéria de facto provada nos autos e os documentos juntos pela requerente a questão que cumpre decidir é a de saber se a prova carreada aos autos é suficiente para a demonstração da transmissão da propriedade dos sessenta veículos em questão.
A Requerente fez prova nos presentes autos que procedeu à facturação da venda das sessenta viaturas, conforme consta dos documentos juntos aos autos com os nºs 91 a 120, resultando em todos os casos, tal processamento em datas anteriores à data dos factos tributários. O mesmo resulta das Listagens juntas aos autos com especificação completa dos contratos, viaturas, início e termo de pagamento dos mesmos. Juntou, ainda, 10 documentos, em 14 de Julho de 2014, designados por extracto de conta de cliente referentes apenas às viaturas ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., , dos quais é possível extrair que no sistema contabilístico interno da Requerente se consideram pagas as facturas, neles mencionadas.
Porém, para a presente decisão o tribunal baseia-se fundamentalmente nas facturas/recibos juntas aos autos por considerar que estes são os documentos com maior relevância para a prova da transmissão da propriedade dos veículos.
A Requerida alega a falta de prova bastante apresentada pela Requerente, por considerar que as facturas não são, por si só, documentos aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda. Agora reforça a sua tese nas decisões arbitrais nºs 150 e 220/2014 T, bem assim como no Acórdão arbitral nº 63/2014-T. Todavia, este tribunal não acompanha, com o devido respeito, o entendimento aí vertido quanto ao valor probatório das facturas nem quanto ao rigor das exigências probatórias para afastamento da presunção, pelas razões a seguir enunciadas.
A este propósito esclareça-se que a junção aos autos das referidas decisões foi admitida, apesar do momento em que a mesma ocorreu, no absoluto cumprimento do princípio do contraditório e atendendo ao interesse da questão suscitada pela AT. Foi dada oportunidade à Requerente para se pronunciar, o que fez por requerimento junto aos autos em 9 de outubro de 2014.
Vejamos, pois, a questão do valor probatório dos documentos juntos para os efeitos pretendidos pela Requerente, ou seja, para a ilisão da presunção resultante do registo automóvel.
19. A transmissão da propriedade opera por mero efeito do contrato, nos termos previstos no artigo 408.º, n.º 1, do CC.. O contrato de compra e venda tem natureza real, isto é, a transmissão da propriedade da coisa vendida, ou a transmissão do direito alienado, tem como causa o próprio contrato. As viaturas automóveis são bens móveis, cuja transmissão de propriedade não obedece a formalismo especial.
No direito português o facto que determina a transmissão da propriedade de um bem móvel (ainda que sujeito a registo) é o contrato expresso pela vontade das partes. Tanto assim é que o comprador torna-se proprietário do veículo vendido mediante a celebração do contrato de compra e venda, independentemente do registo, o qual se assume como condição de eficácia e oponibilidade face a terceiros adquirentes.
Assim, a prova da existência deste contrato de compra e venda, pode ser efectuada por qualquer meio[11], sendo a factura um documento contabilístico idóneo para este efeito, tal como é para efeitos fiscais, em sede determinação de matéria colectável para efeitos de IRC e/ ou IVA, pelo que não se aceita que, como documento possa ser idóneo para este fim, o qual em si mesmo pressupõe a aceitação da transacção subjacente, e não o seja para a prova da própria transacção. Por outro lado, a sua unilateralidade não impede a AT de extrair deste tipo de documento, aliás base essencial de toda a arquitectura fiscal, todas as consequências, como se disse, para efeitos geradores de imposto. Assim, as facturas constituem documentos de prova bastante para este efeito desde que em tempo próprio tenham também produzido todos os seus efeitos, nomeadamente fiscais, beneficiando da presunção de veracidade prevista no artigo 75º da LGT. Apesar da Requerida vir agora, no âmbito dos presentes autos, suscitar algumas irregularidades imputáveis às facturas/recibos juntas aos autos pela Requerente (vd. art. 117 a 123 da resposta) a verdade é que tais alegadas irregularidades em nada retiram valor probatório aos documentos juntos, tanto mais que a AT não demonstrou não as ter aceite como documentos válidos para o processamento do IVA nelas inscrito, nos termos e para os efeitos previstos no CIVA. Ou, dito de outro modo, os documentos que lhe serviram em tempo para arrecadar os impostos devidos, agora, alguns anos depois, não servem como meios de prova da venda dos bens, aquela mesmo que gerou os impostos arrecadados?! Ora, tal argumentação afigura-se inaceitável à luz dos mais elementares princípios gerais de direito dos quais se extrai, sem dificuldade, a proibição do abuso de direito.
Com efeito, na situação dos autos, estamos perante contratos de compra e venda de coisas móveis, os quais, por aplicação do disposto no artigo 219º do CC, não estão sujeitos a nenhum formalismo especial. A transmissão da propriedade ocorre por mero efeito do contrato e embora estes (veículos automóveis) estejam sujeitos a registo obrigatório, este não tem efeitos constitutivos mas meramente presuntivos quanto à existência do direito de propriedade.
Logo, por ser assim, nada impede que a prova da transmissão da propriedade possa fazer-se por qualquer meio, desde que se prove que a transmissão ocorreu.
Não se acompanha, pois, neste ponto o entendimento de que só a apresentação da declaração de venda, necessária para a inscrição no registo, faz prova da transmissão. Tal entendimento é redutor e tornaria a prova necessária à ilisão da presunção desproporcional e excessivamente onerosa para o vendedor, senão mesmo “diabólica”, tanto mais que não podemos olvidar que a declaração de venda é um documento destinado a ser entregue ao comprador por ser este o interessado e obrigado legal a efectuar o registo. Exigir como único e exclusivo meio de prova a apresentação da declaração de venda por parte do vendedor corresponderia, na prática, a deixar totalmente desprotegido o vendedor, exigindo-lhe como único meio de prova aquele documento que é praticamente certo ele não poder apresentar por não o ter na sua posse.
Acresce que, o ónus da prova exigida ao vendedor para a ilisão da presunção resultante do registo consiste em exigir-lhe que prove que já não era proprietário à data do facto tributário. Estamos, pois, perante a necessidade de fazer a prova de um facto negativo, a tal “prova diabólica”, que não sendo de todo inadmissível, pois que se pode recorrer à prova de factos positivos que a demonstrem, não pode ser dificultada ao ponto de ser inacessível. A acrescida dificuldade da prova de factos negativos deve ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, “uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina “iis quae difficilitoris sunt probationis leviores probationes admittuntur”. [12]
Com efeito, há que considerar que, uma vez que a Requerente tem natureza empresarial e parte substancial da actividade integrante do seu objecto social consiste na celebração de contratos de locação financeira e ALD destinados à aquisição de veículos automóveis, os documentos (facturas/recibo) que foram juntas aos autos pela Requerente, estão subordinados a rigorosas exigências legais de ordem contabilística e fiscal, com implicações, como já se disse, na cobrança de outros tributos. Assim, e para além de tudo o que se deixa exposto supra, acresce que é a própria legislação tributária que atribui às facturas um valor legal do qual decorre a credibilidade e o valor probatório suficientes para prova da existência da transmissão da propriedade dos bens constantes dos mesmos. Assim, refira-se a título meramente exemplificativo, os normativos legais constantes dos arts. 29º, nº 1, alínea b) e 19º, nº 2 do CIVA ou dos arts. 23º, nº 6 e 123º, nº 2 do CIRC. Ora, desde que essas facturas tenham sido aceites pela AT como credíveis para determinação dos respectivos impostos sobre o valor acrescentado e sobre o rendimento (questão que a Requerida não demonstra) estas gozam da presunção de veracidade, que lhe é atribuída pelo art. 75º, nº 1 da LGT.
Caberia à Requerida apresentar e demonstrar indícios concretos e fundamentados de que os documentos contabilísticos apresentados não correspondiam à realidade ou que esta tinha sido alvo de inspecção que conduzisse à sua correcção ou declaração de falsidade. Se tal não sucedeu e esses mesmos documentos serviram de base à liquidação de outros tributos, eles gozam de presunção de veracidade, a qual a AT não afastou, conforme o disposto no nº 2 do art. 75º da LGT.
Nesta conformidade, atenta a relevância muito especial que a legislação tributária atribui à facturação, a circunstância da Requerente completar a apresentação dessa facturação relativa à venda com extractos contabilísticos e listagens de clientes que comprovam a existência dos contratos de compra e venda dos veículos, este tribunal entende que a facturação é idónea e goza da presunção de veracidade, que lhe é conferida pelo disposto no art. 75º, nº 1 da LGT.
Nestes termos conclui que estes meios de prova são suficientes para ilidir a presunção assente no registo automóvel e que decorre do art. 3º, nº 1 do CIUC, pelo que à data dos factos tributários a Requerente já não era proprietária dos referidos veículos automóveis.
Em consequência, a decisão da AT que a conduziu à emissão e cobrança das liquidações de imposto agora impugnadas partiu de um pressuposto errado, segundo o qual, nos termos do disposto no nº1, do artigo 3º, do CIUC, o imposto era devido pelo titular inscrito no registo automóvel, independentemente da posterior demonstração de que a propriedade não lhe pertence.
Afastada a referida presunção, mediante prova em contrário, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o vendedor do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.
Assim, face ao que já se referiu sobre a situação dos veículos constantes das liquidações ora impugnadas, conclui-se que à data em que o imposto era exigível para cada uma delas, a Requerente já não era proprietária dos bens pelo que já não podia ser considerada como sujeito passivo do imposto.
Em consequência de todo o supra exposto, resulta que todas liquidações impugnadas são ilegais, padecem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, pelo que, devem ser objecto de anulação, procedendo-se, consequentemente, ao reembolso à Requerente do montante indevidamente pago.
4ª) do pedido e do direito a pagamento de juros indemnizatórios e pelas custas do processo
20.Dispõe a alínea b), do nº 1, do art.º 24º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.
Tal dispositivo está em sintonia com o disposto no art.º 100º, da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do nº 1, do art.º 29º, do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
Dispõe, por sua vez, o artigo 43º, nº1, da Lei Geral Tributária que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
21. Da análise dos elementos probatórios constantes dos presentes autos é possível inferir que, por força do disposto no artigo 19º do CIUC, que obriga as locadoras a comunicarem à AT (justamente, para efeitos do disposto no art.º 3º do referido CIUC em sede de incidência subjectiva de imposto) os dados relativos à identificação fiscal das entidades que procedem à locação financeira e dos utilizadores dos veículos locados, é possível concluir que a AT tinha conhecimento de elementos factuais, no essencial, suficientes para proceder à correcta liquidação do imposto. Mas, mesmo que assim não fosse, sempre se dirá que teve a possibilidade de revogação dos actos tributários ilegalmente praticados, que poderia ter efectuado no prazo para resposta ao presente pedido de pronúncia arbitral.
O erro pelo qual está obrigada a indemnizar avém, pois, da errónea aplicação do direito vigente, pelo que o tribunal não pode sufragar a alegação da Requerida segundo a qual esta se limitou a aplicar a lei pelo que, na óptica da AT, daí não resultaria qualquer erro imputável aos serviços. Se assim fosse nunca a administração seria responsabilizada pela aplicação ilegal das normas em vigor nem pelos prejuízos causados.
Assim sendo, atento o disposto no artigo 61º do CPPT e considerando que se encontram preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do art.º 43º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de €7.931,37, a contar da data em que foi efectuado o pagamento até ao seu integral reembolso.
22. Quanto a custas: a Requerida, na sua resposta vem suscitar a questão da responsabilidade pelo pagamento das custas na eventualidade do Tribunal vir a considerar o pedido arbitral procedente, pretendendo nesse caso que seja aplicado o disposto no artigo 527º, nº1 do novo Código de Processo Civil, ex vi artigo 29º, nº1 alínea e) do RJAT, em linha, com questão similar decidida no âmbito do processo nº 72/2013 – T.
O argumento da Requerida baseia-se no mesmo argumento invocado para tentar afastar a sua responsabilidade quanto ao pagamento dos juros indemnizatórios, o qual improcede pelas mesmas razões. Já vimos que a obrigação de proceder à actualização do registo não cabia á Requerente mas sim ao adquirente, pelo que improcedem os argumentos aduzidos pela AT.
Não assiste razão à requerida, pelas mesmas razões indicadas na decisão quanto aos juros indemnizatórios. Tudo o que se deixa exposto supra quanto à questão da condenação em sede de pagamento de juros indemnizatórios colhe também como fundamento para a decisão de condenação em matéria de custas arbitrais. A requerida teve oportunidade, como já referimos supra, de revogar os actos tributários ilegais, pelo menos dentro do prazo para resposta nos presentes autos. O processo só prosseguiu porque a AT assim entendeu.
Acresce que, em matéria de fixação de custas devidas pelo processo arbitral aplicam-se as regras especialmente previstas no RJAT e no respectivo Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), sendo de recorrer, eventualmente, à aplicação das regras de direito subsidiário, se e quando existir algum caso omisso que o justifique. Resulta do artigo 29º, nº1, alínea e), do RJAT, a possibilidade de aplicação subsidiária do CPC ao processo arbitral tributário, de acordo com a natureza dos casos omissos. Ora, não se vislumbra a existência de um caso omisso a resolver, nos presentes autos, quanto à determinação das custas do processo que justifique a aplicação do princípio contido no artigo 527º, nº1 do CPC.
Pelo que, se considera improcedente o pedido da Requerida AT quanto à responsabilidade pelas custas do processo.
Não se afigura existirem outras questões relevantes suscitadas pelas partes.
V - DECISÃO
Face ao exposto, este Tribunal Arbitral decide:
A) - Julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade das liquidações de IUC impugnadas nos presentes autos, por padecerem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, anulando-se, consequentemente, os correspondentes actos tributários;
B)- Julgar procedente o pedido de condenação da Administração Tributária no reembolso da quantia indevidamente paga, no montante de €7.931,37, acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde o dia do pagamento efectuado até ao integral reembolso do mencionado montante, condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira a efectuar estes pagamentos.
Valor do processo: Em conformidade com o disposto nos artigos 306º, nºs 1 e 2 do CPC, artigo 97º - A, nº 1, alínea a), do CPPT e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €7.931,37.
Custas: Nos termos do disposto no nº 4, do art.º 22º, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €612,00, a cargo da Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.
Registe-se e notifique-se.
Lisboa, 14 de Outubro de 2014
O Árbitro singular,
(Maria do Rosário Anjos)
[1] A presente decisão é redigida de acordo com a ortografia antiga.
[2] A este propósito, afigura-se oportuno mencionar a decisão vertida no Acórdão Arbitral proferido no processo nº 76/2013- T de 25 de Novembro e Decisão Arbitral nº 46-2014 T de 5 de Setembro.
[3] Neste sentido, vd., entre outros, Ac. STA de 19.09.2012, in proc. 0659/12; Ac. STA de 29.10.2009 in proc. nº 778/09, disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, vd. ainda, Acórdão arbitral 76/2013-T. Corroboram jurisprudência firme sobre esta matéria, entre outros, os seguintes Acórdãos do STA: Ac. STA de 20/02/2008, in proc. 0765/07; Ac. STA de 11/02/2009, in proc. 0767/07, disponíveis in www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Discurso Legitimador, p. 175 e seguintes.
[6] Neste sentido, vd., entre outros, os Acórdãos do STA de 05/09/2012 e 06/02/2013, respectivamente, proferidos nos processos nºs 0314/12 e 01000/12, disponíveis em www.dgsi.pt.
[7] Neste sentido, cfr. Afonso, A. Brigas e Fernandes, M. (2009) Imposto Sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Coimbra Editora, p. 187.
[8] Neste sentido, e a propósito do princípio da equivalência vd. a decisão arbitral nº 286/2013 – T de 2 de Maio de 2014. No mesmo sentido, vd. Decisões Arbitrais nºs 14/2013-T, 26/2013-T de 19 de Julho de 2013, 27/2013 – T, 217-2013-T de 28 de Fevereiro e, mais recentemente, e 293/2013-T de 9 de Junho de 2014, 46/204 –T e 89/2014-T de 5 de Setembro, entre outros.
[9] Neste sentido, vd, entre outros, os seguintes Acórdãos do STJ: Ac. STJ de 31.05.1966, in Proc. nº 060727 (Relator: Conselheiro Lopes Cardoso), decisão especificamente referente ao registo automóvel; Ac. STJ de 5.05.2005 (Relator: Conselheiro Araújo Barros) e Ac. STJ de 14.11.2013, in Proc. nº 74/07.3TCGMR.G1.S1(Relator: Conselheiro Serra Baptista) exímios na afirmação do predomínio do princípio da substancia sobre a forma, valendo a prova, por qualquer meio idóneo, de quem é substantivamente titular do direito de propriedade, a qual faz ilidir a presunção do registo.
[10] Neste sentido, vd. ainda, decisões arbitrais nºs 14-2013-T de 15 de Outubro e 217/2013 de 28 de Fevereiro de 2014.
[11] Destacamos a este propósito o seguinte excerto do parecer do Sr. Prof. Doutor Agostinho Cardoso Guedes junto pela Requerente aos autos, quando refere que a prova da transmissão da propriedade do veículo se pode fazer “por qualquer meio, uma vez que a lei não exige para este contrato forma escrita.. Assim, e designadamente, a prova pode ser feita por confissão, verbal ou escrita, por testemunhas ou por documento. Neste último caso, por exemplo, a prova pode ser feita por apresentação de uma declaração de venda (incluindo a declaração preparada para efeito de registo) ou de uma factura/recibo da venda do veículo.”
[12] Neste sentido, vd. Manuel de Andrade - «Noções Elementares de Processo Civil», 1979, pág. 203; Assento do STJ nº 4/83 de 11-7-1983, in DR, I série, de 27-08-1983; Ac. STA de 17/10/2012, in proc. nº 0414/12, entre outros.