Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 506/2020-T
Data da decisão: 2021-05-28  IRS  
Valor do pedido: € 51.598,40
Tema: IRS. Mais-Valias imobiliárias. Residentes em País terceiro.
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SUMÁRIO:

1.            O regime opcional de tributação das mais-valias imobiliárias instituído pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, na sequência do Acórdão Hollmann (processo C-443/06), não é aplicável aos rendimentos daquela natureza, obtidos por residentes em Países terceiros.

2.            O efeito discriminatório do regime de tributação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias obtidos por residentes em Países terceiros resulta da maior carga fiscal que sobre estes impende, ao ser tributada a totalidade do rendimento proveniente da alienação de um imóvel em Portugal a uma taxa de 28%, superior à que resultaria da aplicação da taxa máxima do artigo 68.º, do Código do IRS, de 48%, sobre 50% do rendimento, a que corresponde, para os sujeitos passivos residentes, a taxa máxima de tributação efetiva de 24%.

3.            O regime de tributação das mais-valias imobiliárias realizadas por residentes em Países terceiros é restritivo da liberdade de circulação de capitais, na aceção dos artigos 63.º e seguintes, do TFUE, caso não haja lugar às restrições previstas no seu artigo 65.º.

4.            Não existe diferença objetiva entre a situação de um residente em território nacional e a de um residente num País terceiro que justifique a desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de maisvalias por eles realizadas em resultado da alienação de um bem imóvel situado em Portugal (Despacho de 6 de setembro de 2018, processo C184/18 [ECLI:EU:C:2018:694, n.º 39].

 

DECISÃO ARBITRAL

I.             RELATÓRIO

Em 1 de outubro de 2020, A..., com o NIF ... e mulher, B..., com o NIF..., ambos de nacionalidade brasileira e residentes na Rua ...–..., CEP..., São Paulo – Brasil (adiante designados por Requerentes e, individualmente, por Requerente marido), vêm, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

 

A.           Objeto do pedido:

Os Requerentes pretendem a apreciação da legalidade, assim como a anulação parcial do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) com o n.º 2020..., referente ao ano de 2019, no montante global de € 103 196,80, na medida em que a AT procedeu ao cálculo do imposto nos termos dos artigos 43.º, n.º 1 e 72.º, n.º 1, do Código do IRS, aplicando a taxa de 28% à totalidade da mais-valia apurada.

 

Pedem ainda os Requerentes a restituição da quantia de € 51 598,40 paga em excesso a título de imposto, acrescida de juros indemnizatórios, a calcular desde a data em que ocorreu o pagamento voluntário, até efetivo e integral reembolso.

 

B. Síntese da posição das Partes

a. Dos Requerentes:

Como fundamentos do pedido de pronúncia arbitral, invocam os Requerentes, em síntese, o seguinte:

a.            Em março de 2018, os Requerentes, residentes no Brasil, adquiriram um imóvel sito em Lisboa, pelo preço de € 850 000,00;

b.            Em outubro de 2019, o Requerente marido apresentou uma declaração de início de atividade tendo em vista o exercício das atividades de Alojamento mobilado para turistas e de Outros locais de alojamento de curta duração, afetando o imóvel à sua atividade;

c.            Em novembro de 2019, o Requerente marido cessou a atividade, reafectando o imóvel à sua esfera particular e tendo procedido à respetiva venda no final daquele mês, pelo preço de € 1 360 000,00;

d.            Quer à data da afetação do imóvel à atividade empresarial do Requerente marido, quer à data da sua desafetação, aquele tinha o valor de mercado de € 1 360 000,00, valor pelo qual os Requerentes o alienaram no final de novembro de 2019;

e.            Na declaração modelo 3 de IRS do ano de 2019, os Requerentes fizeram refletir as operações antes descritas, assim como os encargos suportados com a valorização do dito imóvel, no montante de € 141 440,00;

f.             Entendem os Requerente que, destas operações, apenas o rendimento obtido com a alienação do imóvel é suscetível de tributação em Portugal, a título de mais-valias;

g.            À totalidade da mais-valia apurada, de € 368 560,00, foi aplicada a taxa de 28%, de que resultou imposto no montante de € 103 196,80, que os Requerentes pagaram, embora não se conformando com a liquidação que lhes foi emitida, que reputam de ilegal, por erro sobre os pressupostos de direito;

h.            Defendem os Requerentes que a ilegalidade de que enferma a liquidação de IRS do ano de 2019 resulta do apuramento da matéria tributável com base no n.º 1 do artigo 43.º, do Código do IRS, sem exclusão de 50% do saldo ali referido, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal;

i.             Não obstante o n.º 2 do artigo 43.º, do Código do IRS, na redação aplicável, estabelecer que a exclusão de 50% da mais-valia apurada se aplica apenas a residentes em Portugal, é entendimento dos Requerentes que a AT não poderia deixar de aplicar essa exclusão de tributação, por ser a mesma contrária ao Direito da União Europeia, discriminando negativamente os não residentes em território português, restritiva da liberdade de circulação de capitais, violando, assim, os artigos 18.º, 63.º, 64.º e 65.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia;

j.             Termos em que consideram que a liquidação de IRS de 2019 é ilegal, devendo ser anulada parcialmente, com todas as consequências legais, designadamente a restituição aos Requerentes do imposto pago em excesso, no valor de € 51 598,40, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, da LGT.

 

b. Da Requerida

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou Resposta, na qual veio defender a manutenção do ato de liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:

a.            Entendem os Requerentes, residentes no Brasil, que o disposto no n.º 2 do artigo 43.º, do Código do IRS, se aplica aos não residentes em Portugal, incluindo os residentes de Estados terceiros;

b.            É certo que no Acórdão C - 443/06, do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11, foi decidida a contrariedade com o Direito Comunitário da disciplina da tributação das mais-valias imobiliárias de não residentes, resultante dos artigos 72.º, n.º 1 e 43.º, n.º 2, do Código do IRS;

c.            Tendo em conta o teor do mencionado Acórdão do TJUE e no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão nele sufragada, foi aditado ao artigo 72.º, do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, o n.º 7 (atual n.º 9), cujo teor à data dos factos, era o seguinte: «9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.»;

d.            Por sua vez, o n.º 8 (atual n.º 10) do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, prescrevia, à data dos factos, que: «10- Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.»;

e.            Consultada a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS entregue em nome dos Requerentes (relativa ao ano fiscal de 2019), verifica-se que no quadro 8 B foi assinalado, o campo 4 (não residente), o campo 6 (residência em país da UE) e o campo 7 (pretende a tributação pelo regime geral);

f.             Os Requerentes poderiam ter optado pela tributação como residentes em território português e assim beneficiar do pretendido, acionando essa opção na declaração de IRS, mas não o fizeram, porque, a fazê-lo, teriam também que declarar todos os rendimentos incluindo os obtidos fora do território nacional;

g.            O quadro legal (bem como a obrigação declarativa) já não é aquele que existia à data do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, tendo em conta que foi efetuada a alteração à lei por força do aditamento dos n.ºs 7 e 8 (atuais 9 e 10) ao artigo 72.º, do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, que não foi ainda alvo de apreciação pelo TJUE, em sede de reenvio prejudicial, para efeitos de apreciação do cumprimento das disposições conjugadas dos artigos 18.°, 63.°, 64.° e 65.° TFUE.;

h.            Os n.ºs 9 e 10 do artigo 72.º, do Código do IRS, passaram a prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas, já não APENAS para os residentes em Portugal, mas TAMBÉM para os não residentes, desde que residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, ficando sanado o vício de que padecia a legislação nacional, nos termos julgados pelo Acórdão Hollmann;

i.             Em face do exposto, tem de forçosamente considerar que se levantam dúvidas suficientes, em face da jurisprudência invocada, que obstam à aceitação do entendimento do aqui Requerente sem prévia consulta ao TJUE, para que este possa exercer as suas competências próprias, nos termos dos Tratados;

j.             Deverá suspender-se a presente instância arbitral e sujeitar-se a questão ao Tribunal de Justiça, nos termos previstos no instituto do reenvio prejudicial (artigo 267.º do TFUE), a que o Estado Português se vinculou nos termos do TFUE.

 

Pelo despacho arbitral de 13 de abril de 2021, foi decidido dispensar a reunião a que se refere o artigo 18, do RJAT, recusando-se, por injustificado, o reenvio prejudicial ao TJUE, dada a jurisprudência existente e por não existir dúvida real na sua aplicação ao caso concreto, apesar das alterações legislativas introduzidas ao Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2008), na sequência do Acórdão Hollmann (processo C-443/06).

 

No mesmo despacho se determinou que o processo prosseguisse com alegações escritas, no prazo simultâneo de 20 dias (art.º 91.º-A, do CPTA, ex vi artigo 29.º, do RJAT), fixando-se o dia 28 de maio de 2021 como data provável para a prolação da arbitral final e advertindo-se o Requerente para o pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

Os Requerentes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteram a posição adotada no pedido de pronúncia arbitral.

 

A Requerida não apresentou alegações escritas.

 

 

II. SANEAMENTO

1.            O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 23 de dezembro de 2020, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;

2.            As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;

3.            O processo não padece de vícios que o invalidem;

4.            Não foram invocadas exceções que caiba aprecia e decidir.

 

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).

 

A – Factos provados

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e à posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados, fixa-se como segue:

 

1.            Em 7 de março de 2018, os Requerentes, de nacionalidade brasileira e residentes no Brasil, adquiriram, por escritura pública de compra e venda e pelo preço de € 850 000,00, a fração autónoma designada pela letra “M” do prédio urbano inscrito sob o artigo provisório P-... da freguesia de ... (Código ...), em Lisboa, com o valor patrimonial tributário atual de € 374 320,00 (cfr. Docs. 3 e 4 junto ao PPA, que se dão por reproduzidos);

2.            Em 2 de outubro de 2019, o Requerente marido, através dos seus Representantes Fiscais em Portugal (IR e IVA), apresentou, no Serviço de Finanças de Lisboa ..., a declaração de início de atividade com o n.º ..., ficando registado, a partir daquela data, pelo exercício das atividades, principal, de “Alojamento mobilado para turistas”, CAE 55201 e secundária, de “Outros locais de alojamento de curta duração”, CAE 55204 (Doc. 5, junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

3.            Em 3 de outubro de 2019, através do “Balcão do Empreendedor”, foi apresentado em nome do Requerente marido um pedido de registo de alojamento local para a fração autónoma identificada em 1. (Declaração eletrónica ...– Alojamento local - registo), registado na Câmara Municipal de Lisboa com o n.º .../2019 – processo n.º ... (Docs. 6 a 8 juntos ao PPA, que se dão como reproduzidos):

4.            Em 22 de novembro de 2019, em nome do Requerente marido, foi apresentada, através do “Balcão do Empreendedor”, a declaração eletrónica n.º ... – Alojamento local – cessação de atividade, pedido n.º.../2019, que deu origem ao processo n.º..., da Câmara Municipal de Lisboa (Docs. 9 a 11 juntos ao PPA, que se dão como reproduzidos);

5.            No dia 26 de novembro de 2019, os Requerentes alienaram, pelo preço de € 1 360 000,00, a fração autónoma designada pela letra “M” do prédio urbano inscrito sob o artigo ... da freguesia de ..., em Lisboa, antes identificada (Doc. 12 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

6.            Através do seu Representante Fiscal em Portugal, os Requerentes apresentaram, em 23 de junho de 2020, a declaração modelo 3 de IRS..., constituída pelo respetivo rosto, um anexo B e um anexo G, declarando a sua qualidade de não residentes, residindo no país com o código 76 (Brasil) – Doc. 13 junto ao PPA, que se dá como reproduzido;

7.            No anexo B à declaração de rendimentos do ano de 2019, foram inscritos os seguintes valores (Doc. 13 junto ao PPA, que se dá como reproduzido):

a.            Quadro 4 – Rendimentos brutos (obtidos em território português): campo 407 – saldo positivo das mais e menos valias e restantes incrementos patrimoniais, com exceção das mencionadas no quadro 18: € 0,00;

b.            Quadro 8 – Alienação/desafetação e/ou afetação de direitos reais sobre bens imóveis – campo 01 (houve alienação/desafetação de imóveis? – sim); campo 03 (houve afetação de imóveis a atividade empresarial ou profissional? – sim); campos 801 e 802 – identificação matricial dos prédios e respetivos valores: Freguesia – Código ..., Tipo – U, Artigo – ..., Fração/Secção – M, Valor da venda/afetação: € 1 360 000,00;

c.            No quadro 14, foi indicada a cessação da atividade em 22-11-2019;

8.            No anexo G à declaração de IRS do ano de 2019, foram declarados os valores a seguir indicados (Doc. 13 junto ao PPA, que se dá como reproduzido):

a.            Quadro 4 – alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis [art.º 10.º, n.º 1, al. a), do CIRS]: campo 4001 – realização: 11.2019; valor: € 1 360 000,00; aquisição: 11.2019; valor € 1 360 000,00; identificação matricial dos bens: Freguesia – Código..., Tipo – U, Artigo – ..., Fração/Secção – M, quota parte: 100%

b.            Quadro 4B – campo 4101 – afetação: 10.2019; valor: € 1 360 000,00; aquisição: 03.2018; valor: € 850 000,00; despesas em encargos: € 141 440,00; identificação matricial dos bens imóveis: Freguesia – Código ..., Tipo – U, Artigo –..., Fração/Secção – M, quota parte: 100%;

9.            Com base na declaração modelo 3 apresentada pelos Requerentes, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2020..., de 17.07.2020, sobre um rendimento coletável de € 368 560,00, tributado autonomamente à taxa de 28%, de que resultou imposto no montante de € 103 196,80, com data limite de pagamento voluntário em 10.09.2020 (Doc. 1 junto ao PPA, que se dá por reproduzido);

10.          Os Requerentes procederam ao pagamento da liquidação de IRS n.º 2020 ... em 20.08.2020 (Doc. 14 junto ao PPA, que se dá por reproduzido).

 

 

B – Factos não provados:

Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

 

C – Fundamentação da matéria de facto provada:

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos dados como provados decorrem da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral e da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados.

 

 

III.2 DO DIREITO

1.            A questão decidenda

                Os Requerentes, de nacionalidade brasileira e residentes no Brasil, pedem ao tribunal arbitral a apreciação da legalidade da liquidação de IRS do ano de 2019, que entendem enfermar do vício de violação de lei, por violação do direito da União Europeia, máxime, dos princípios de não discriminação e da liberdade de circulação de capitais ínsito nos artigos 18.º e 63.º a 65.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), na medida em que essa liquidação teve por base a totalidade da mais-valia obtida com a alienação de um imóvel sito em território nacional.

 

Como resulta do pedido, a principal questão a decidir nos presentes autos consiste em saber se a exclusão da tributação de 50% do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas, prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 43.º, do Código do IRS, para os contribuintes residentes é igualmente aplicável na determinação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias obtidos pelos Requerentes, na qualidade de residentes num País terceiro e, não o tendo sido, se o regime resultante da tributação pela totalidade daquele saldo, aplicado na liquidação impugnada, se revela desfavoravelmente discriminatório e, portanto, contrário ao Direito da União Europeia.

 

Descrevem os Requerentes as diversas operações realizadas sobre o imóvel identificado no pedido de pronúncia arbitral e declaradas à AT, desde a sua aquisição em 2018, afetação à atividade empresarial prosseguida pelo Requerente marido, desafetação do património empresarial para o património individual dos Requerentes e posterior alienação a terceiros, no ano de 2019, concluindo pela qualificação dos rendimentos obtidos como mais-valias enquadráveis na categoria G, qualificação que a Requerida não contesta, para concluírem pela ilegalidade da liquidação de IRS que lhes foi emitida, pugnando pela sua anulação parcial, com a consequente restituição do valor do imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios.

 

Por seu turno, a Requerida vem invocar as alterações legislativas introduzidas ao Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, sobre as quais o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) ainda se não havia pronunciado à data da Resposta e que esta entende terem sanado a desconformidade entre a legislação nacional e o direito da União Europeia, assinaladas pelo TJUE no Acórdão Hollmann (processo C-443/06).

 

De acordo com o quadro legislativo vigente à data dos factos, constituem mais-valias tributáveis no âmbito da categoria G, os rendimentos que não devendo ser considerados rendimentos empresariais, profissionais, de capitais ou prediais, resultem da alienação onerosa de bens imóveis e/ou da afetação do património particular a uma atividade empresarial ou profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário (artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS), embora nos casos de afetação de bens do património particular a atividade empresarial exercida pelo seu proprietário, o ganho só se considere obtido no momento da ulterior alienação onerosa dos bens (artigo 10.º, n.º 3, alínea b), do Código do IRS).

 

Tal como consta do probatório supra, o Requerente marido afetou o imóvel a uma atividade de natureza empresarial em outubro de 2019, tendo-lhe atribuído o valor de mercado de € 1 360 000,00, equiparado a valor de realização, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS, ficando a mais-valia suspensa até posterior alienação a terceiros.

 

Decorrido pouco mais de um mês após a data do início daquela atividade empresarial, foi a mesma cessada, com a transferência do imóvel para o património particular dos Requerentes, pelo mesmo valor de mercado de € 1 360 000,00, a que a AT não efetuou quaisquer ajustamentos (artigo 29.º, n.º 4, do Código do IRS).

Deste modo, não tendo havido diferença de valores de mercado entre a data da afetação do imóvel à atividade empresarial do Requerente marido e a do seu reingresso na esfera do património particular dos Requerentes, não houve lugar ao apuramento de mais-valias empresariais, nos termos do artigo 3.º, n.º 2, alínea c), do Código do IRS.

 

As mais-valias suspensas desde a data da afetação do imóvel à atividade empresarial do Requerente marido, consideram-se realizadas na data da alienação do imóvel, no final de novembro de 2019, após reafectação ao património particular dos sujeitos passivos, sendo o ganho sujeito a IRS constituído pela diferença entre o valor de venda (€ 1 360 000,00) e o valor de aquisição (€ 850 000,00), nos termos do artigo 10.º, n.º 4, alínea a), do Código do IRS.

 

Para determinação do rendimento coletável de IRS referente a mais-valias imobiliárias, prescreviam os n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º, do Código do IRS, na redação à data dos factos:

 

“Artigo 43.º - Mais-valias

1 - O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes.

2 - O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é:

a)Integralmente considerado nas situações previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, quando os imóveis tenham beneficiado de apoio não reembolsável concedido pelo Estado ou outras entidades públicas, quando o valor total do apoio concedido para aquisição ou para realização de obras seja de valor superior a 30 % do valor patrimonial tributário do imóvel para efeitos de IMI e estes sejam vendidos antes de decorridos 10 anos sobre a data da sua aquisição, da assinatura da declaração comprovativa da receção da obra ou do pagamento da última despesa relativa ao apoio não reembolsável que, nos termos legais ou regulamentares, não estejam sujeitos a ónus ou regimes especiais que limitem ou condicionem a respetiva alienação;

b) Apenas considerado em 50 % do seu valor, nos restantes casos.

(…)”

 

À totalidade do saldo apurado “nos termos dos artigos seguintes”, viria a Requerida a aplicar a taxa de 28% a que se refere o n.º 1 do artigo 72.º, do Código do IRS.

 

A desconsideração da exclusão de tributação sobre 50% do referido saldo e a tributação autónoma da sua totalidade, à taxa de 28%, deveu-se,  segundo a Requerida, ao facto de os Requerentes terem assinalado, no rosto da declaração modelo 3 de IRS do ano de 2019, a sua residência em país da União Europeia, tendo optado pela tributação pelo regime geral, ao invés da opção pelo regime de tributação aplicável aos residentes, caso em que teriam de declarar a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora do território nacional.

 

O regime de tributação pelo qual, segundo a Requerida, os Requerentes poderiam ter optado, instituído na sequência do Acórdão proferido pelo TJUE no processo n.º C-443/06 (Acórdão Hollmann), pelo aditamento dos n.ºs 7 e 8 (atuais n.ºs 13 e 14) ao artigo 72.º, do Código do IRS, ao tributar os não residentes de modo idêntico ao dos residentes, com exclusão de 50% do saldo das mais-valias realizadas e aplicação das taxas gerais a que se refere o artigo 68.º, do mesmo Código, deixaria de ser discriminatório e contrário ao direito da União Europeia.

 

À data dos factos, era a seguinte a redação dos n.ºs 13 e 14 do artigo 72.º, do Código do IRS:

“Artigo 72.º - Taxas especiais

(…)

13 - Os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e no n.º 6, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

14 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.

(…)”

 

Contudo, tal como resulta da factualidade dada como provada, os Requerentes residem no Brasil, país que não integra nem a União Europeia, nem o Espaço Económico Europeu, não lhes sendo aplicável o regime opcional instituído pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, mas sim o regime subsistente a tais alterações, decorrente da alteração legislativa introduzida ao artigo 43.º, do Código do IRS, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, já apreciado no mencionado Acórdão Hollmann.

 

Sobre questão idêntica à que constitui objeto dos autos se debruçou recentemente o TJUE, 7.ª Secção, no Despacho proferido no processo C184/18, em 6 de setembro de 2018 [ECLI:EU:C:2018:694], na sequência de um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.º TFUE, pelo Tribunal Central Administrativo Sul, pronunciando-se no sentido de que:

 

“Uma legislação de um EstadoMembro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita as maisvalias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse EstadoMembro, efetuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as maisvalias realizadas por um residente naquele EstadoMembro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é abrangida pela exceção prevista no artigo 64.º, n.º 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.º, n.º 1, TFUE.”.

 

No mesmo sentido se pronunciou a decisão arbitral proferida no processo n.º 846/2019-T, confirmada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 9 de dezembro de 2020, processo n.º 075/20.6BALSB, no qual se decidiu que “III - A norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redação aplicável, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo art. 63.º do TFUE, ao qual o Estado português se obrigou.

IV - Essa incompatibilidade da norma com o Direito Europeu não pode ter-se como sanada pelo regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, aliás, previsto apenas para os residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou na EEE e não para os residentes em Países terceiros.”.

 

O efeito discriminatório do regime de tributação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias obtidas por residentes em Países terceiros (e de residentes em outros Estados Membros da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, que não tenham optado pelo regime previsto nos n.ºs 13 e 14 do artigo 72.º, do Código do RS) resulta da maior carga fiscal que sobre estes impende, ao ser tributada a totalidade do rendimento proveniente da alienação de um imóvel em Portugal a uma taxa de 28%, superior à que resultaria da aplicação da taxa máxima do artigo 68.º, do Código do IRS, de 48% sobre 50% do rendimento, a que corresponde, para os sujeitos passivos residentes, a taxa máxima de tributação efetiva de 24%.

 

Nesta medida, o regime de tributação aplicado pela Requerida na liquidação emitida em nome dos Requerentes para o ano de 2019, constitui uma restrição à liberdade de circulação de capitais, que abrange igualmente as situações conexas com Estados terceiros, caso não haja lugar às restrições previstas no artigo 65.º, do TFUE, designadamente a que permite aos Estados Membros que “estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido” (n.º 1, alínea a), desde que não constituam “um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos” (n.º 3)

 

Resulta ainda da jurisprudência do Tribunal de Justiça que “uma operação relativa a liquidação de um investimento imobiliário, como a que está em causa no processo principal, constitui um movimento de capitais” (Acórdão de 11 de outubro de 2007, Hollmann, C443/06, EU:C:2007:600, n.º 31 e jurisprudência aí referida) e que não existe nenhuma diferença objetiva entre a situação de um residente em território nacional e a de um residente num País terceiro que justifique a desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de maisvalias por eles realizadas em resultado da alienação de um bem imóvel situado em Portugal (Despacho de 6 de setembro de 2018, processo C184/18 [ECLI:EU:C:2018:694, n.º 39].

 

Em face de quanto antecede, conclui o tribunal arbitral pela ilegalidade da liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral, inquinada por vício de violação de lei, por violação do disposto nos artigos 63.º a 65.º, do TFUE, justificativa da sua anulação parcial, nos termos peticionados.

 

 

2. Restituição do imposto pago em excesso. Juros indemnizatórios.

Os Requerentes pedem a condenação da Requerida na restituição do imposto pago em excesso, bem como no pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios, desde a data do pagamento indevido, até integral reembolso.

 

Estabelece o artigo 24.º, do RJAT, os termos em que a AT fica vinculada a decisão sobre o mérito da causa, favorável ao sujeito passivo, de que não caiba recurso ou impugnação.

 

Desde logo, fica a AT vinculada, nomeadamente, a (i) “Restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito” (artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT) e (ii) ao “pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” (artigo 24.º, n.º 5, do RJAT).

 

De igual modo, determina o n.º 1 do artigo 100.º, da Lei Geral Tributária (LGT), que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.

 

No caso concreto dos autos, o restabelecimento da “situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado” implica não só a anulação parcial da liquidação impugnada, como a restituição do imposto pago em excesso, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT.

 

IV. DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se:

a.            Declarar a ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2019, determinando a sua anulação parcial, pela quantia de € 51 598,40;     

b.            Condenar a Requerida na restituição do imposto indevidamente pago, no valor de € 51 598,40, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos legais;

c. Condenar a Requerida nas custas processuais.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 51 598,40 (cinquenta e um mil, quinhentos e noventa e oito euros e quarenta cêntimos).

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 2 142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

             

Notifique-se.

 

Lisboa, 28 de maio de 2021

 

O Árbitro,

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.