DECISÃO ARBITRAL
— I —
A..., LDA., pessoa coletiva n.º..., (doravante “a requerente”), sedeada na ..., ..., ..., ..., ...-... ..., veio deduzir pedido de pronúncia arbitral tributária contra a AUTO¬RI¬DADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “a AT” ou “a requerida”), peticionando a declaração da ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC n.º 2020-..., relativo ao exercício de 2016, e da conexa liquidação de júris compensatórios.
Para tanto alegou, em síntese, que, tendo por objeto social atividades de indústria e comércio de isolamentos, foi alvo de um procedimento inspetivo tendo por objeto do IRC referente ao exercício de 2016, no termo do qual foram propostas correções, de natureza meramente aritmética, quer ao lucro tributável, quer à matéria coletável; que, na sequência foi-lhe notificada a Liquidação n.º 2020-..., relativa ao mesmo tributo e exercício, da qual resultava um valor total de imposto a pagar de EUR 45.354,03, incluindo juros compensatórios, quantia essa que colocou a pagamento; que tal liquidação adicional resulta, em parte, de terem sido feitas, ao abrigo do art. 64.º, n.º 2, do CIRC, correções à matéria tributável no montante de EUR 513.280,00 relativamente ao valor de realização da alienação de duas frações autónomas sitas na freguesia de ... e que a requerente alienou em abril de 2016 pelo preço de total de EUR 1.050.000,00 não obstante o respetivo valor patrimonial tributário à data ser de EUR 1.563.280,00; que essa venda foi realizada a um terceiro inde¬pen¬dente por um preço cujo montante foi ditado apenas pelas condições de mercado e pela situação económica e financeira da empresa à data dessa alienação; que, aquando do referido procedimento inspetivo, a AT não cuidou de indagar e averiguar os reais valores pelos quais se realizou a transação imobiliária e que, isso não obstante, a requerente sempre teria dado cumprimento ao disposto no art. 139.º, n.º 3, do CIRC em 10/01/2017 através do envio por via postal simples de requerimento dirigido ao Diretor Distrital de Finanças de Lisboa; que, não obstante, essa transação correspondeu a uma operação financeira destinada a realizar liquidez para fazer face às difíceis dificuldades financeiras por que a requerente passava à época, agravadas pelas exigências dos seus credores, e que os imóveis em causa foram subsequentemente tomados em arrendamento pela própria requerente que, assim, os continuou a utilizar no exercício da sua atividade empresarial, consubstanciando assim um negócio de venda seguida de locação, circunstância que colocaria tal operação fora do âmbito de aplicação do mencionado art. 64.º do CIRC por força do art. 25.º do mesmo código; que o referido ato de liquidação padeceria assim de vício de violação de lei decorrente de erros nos pressupostos de facto e de direito por errónea quantificação da obrigação tributária e de vício de falta de fundamentação.
Concluiu peticionando a anulação da liquidação adicional impugnada e da conexa liquidação de juros compensatórios e bem assim a condenação na restituição dos montantes por si indevidamente pagos ao abrigo de tais atos tributários e no pagamento de juros indemnizatórios.
Juntaram documentos e procuração forense, arrolou três testemunhas e declarou não pretender proceder à designação de árbitro. Atribuiu à causa o valor de EUR 45.354,03 e procedeu ao pagamento da taxa de arbitragem inicial.
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Constituído o Tribunal Arbitral Singular, nos termos legais e regulamentares aplicá¬veis, foi determinada a notificação da administração tributária requerida para os efeitos previstos no art. 17.º do RJAT.
Depois de devidamente notificada, a requerida veio apresentar resposta defendendo-se por exceção e por impugnação. Por exceção invocou a incompetência em razão da matéria em virtude da presente arbitragem não ter sido antecedida do necessário procedimento administrativo gracioso previsto no art. 169.º do CIRC. Pelos mesmos fundamentos, e invo-can¬do agora o disposto no n.º 7 deste preceito legal, excecionou ainda a inim¬pug¬na¬bi¬lidade do ato de liquidação objeto da presente arbitragem.
Por impugnação, sustentou em síntese, que a não dedução do procedimento admi¬nis-trativo previsto no art. 169.º do CIRC impedia que os atos tributários em crise nos presentes autos pudessem considerar qualquer outro valor de realização que não o valor patrimonial tributário do imóveis alienados; que, além disso, não se poderia aplicar ao caso dos autos o regime da neutralidade fiscal previsto no art. 25.º do CIRC em virtude da operação de locação pela requerente dos imóveis que alienara não poder ser qualificada como uma locação financeira; e, finalmente, que não se verificava qualquer vício de falta de fundamentação porquanto a requerente entendeu perfeitamente o sentido e alcance dos ato s de liquidação por si impugnados e que, em todo o caso, sempre se trataria de vício de forma sem eficácia invalidade por estar apenas em causa a inobservância de formalidades não essenciais, dado no caso concreto terem sido suficientemente acautelados os interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las.
Concluiu pela sua absolvição da instância ou, subsidiariamente, pela improcedência do pedido e sua consequente absolvição. Juntou um despacho de nomeação de mandatários forenses e um processo administrativo.
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Em 19/10/2021 procedeu-se à realização da reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT, tendo nesta sido prestados os depoimentos das testemunhas arroladas pela requerente, no termo da qual foi ordenada a notificação das partes para, querendo, produzirem alegações escritas quanto à matéria de facto e de direito.
Ambas as partes ofereceram as suas alegações escritas, tendo nestas mantido no essencial as posições por si já vertidas nos seus articulados.
— II —
As partes gozam de personalidade judiciária e capacidade judiciária, têm legitimidade ad causam e estão devidamente patrocinadas nos autos.
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Nos termos do art. 97.º-A do CPPT, o valor atendível, para efeitos de custas, quando se impugne um ato de liquidação será o da importância cuja anulação se pretende.
Como resulta da demonstração de liquidação junta como o documento n.º 1 do reque¬ri-mento inicial pronúncia arbitral, da liquidação adicional impugnada nos presentes autos resultou, para a requerente, um montante total a pagar, a título de imposto e juros compensatórios, de EUR 45.354,03. É, de resto, esse o valor que a requerente atribuiu à presente arbitragem, sem impugnação por parte da requerida.
Fixo assim à presente arbitragem o valor de EUR 45.354,03.
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Fixado que está o valor da causa e uma vez que a requerente optou por não proceder à designação de árbitro, dispõe o presente Tribunal Arbitral Singular de competência funcional e de competência em razão do valor para conhecer da presente arbitragem (art. 5.º, n.º 2, do RJAT).
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Vem, porém, excecionada, pela requerida, a incompetência em razão da matéria, porquanto, no seu entendimento, a falta de utilização dos meios graciosos necessários implicaria também a falta de competência deste Tribunal para conhecer da pretensão da requerente.
Antes de mais, é forçoso ter presente que a competência é um pressuposto processual — e, portanto, necessariamente um requisito puramente formal — que exprime uma relação entre a parcela do poder jurisdicional cujo exercício foi confiado em concreto a um tribunal e o objeto de um determinado litígio que lhe foi submetido para decisão. Na apreciação da competência há, assim, que abstrair da relação material controvertida e atender à concreta pretensão apresentada em juízo. É, portanto, pelo critério do pedido — eventualmente complementado pelo critério da causa de pedir — que se deve aferir a competência de um tribunal para conhecer dos feitos que lhe tenham sido apresentados a julgamento.
No caso dos presentes autos não se oferece qualquer dúvida de que a pretensão deduzida é, a título principal, a invalidação de um ato de liquidação de um tributo e acessoria-men¬te a de condenação na restituição dos montantes pagos e de juros indemnizatórios. Ora, por um lado, a pretensão de invalidação de um ato de liquidação de um tributo tem perfeito cabimento na norma competencial prevista no art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT. Por outro lado, do instrumento jurídico através do qual a requerida se vinculou à arbitragem em matéria tributária não se encontra prevista qualquer exclusão que pudesse abarcar a situação dos presentes autos (cfr., assim, as situações elencadas no n.º 2 do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011).
Há assim que também concluir pela competência do presente Tribunal em razão da matéria por força do citado art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT e da vinculação à arbitragem tributária institucionalizada do CAAD por parte da administração tributária requerida, tal como resulta da cit. Portaria n.º 112-A/2011.
Improcede, pois, esta exceção.
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Vem excecionada também a inimpugnabilidade do ato de liquidação objeto da presente arbitragem.
Em síntese, e como resulta já do relatório supra, sustenta a requerida que em virtude da impugnação arbitral de tal ato não ter sido antecedida do necessário procedimento administrativo gracioso previsto no art. 139.º do CIRC, por força do n.º 7 deste preceito legal o referido ato não pode ser jurisdicionalmente impugnado.
Em resposta a esta exceção invocou a requerente que no caso não haveria lugar à aplicação da condição de precedência constante do n.º 7 do art.º 139.º do CIRC, uma vez que no litígio o que se discute é o facto da própria verificação da condição de procedibilidade.
Importa assim conhecer desta exceção.
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Antes de mais, para efeito de conhecimento da presente exceção considero sumária e indiciariamente provados os seguintes factos:
a) Por escritura outorgada em 08-04-2016, a requerente declarou vender pelo preço total de EUR 1.050.000,00 à sociedade B... Lda.”, e esta declarou comprar-lhe, as frações “A” e “B” do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia e município de ... sob o artigo n.º..., sendo o preço declarado de cada fração de EUR 525.000,00;
b) À data da transmissão referida em a), o valor patrimonial tributário de cada uma das frações transmitidas era de EUR 781.640,00;
c) Em 08-04-2016 a requerente celebrou com a “B..., Lda.” um contrato que denominaram de “arrendamento não habitacional de duração indeterminada, nos termos do artigo 1099.º do Código Civil” tendo por objeto as frações referidas em a);
d) Em 08-04-2016 a requerente pagou à “B..., Lda.”, por intermédio do cheque n.º ... sacado sobre o C..., a quantia de EUR 240.000,00, correspondente ao adiantamento de quatro anos da renda referente ao contrato mencionado em c);
e) Nos inícios de janeiro de 2017 o contabilista certificado da requerente, juntamente com alguns consultores desta, minutou o requerimento cuja fotocópia consta de pág. 83 do Processo Administrativo, com a referência “Assunto: Requerimento em conformidade com artº 139º, nº 3 do IRC-valor efetivo da transação do imóvel-Artigo matricial..., Distrito Lisboa, Concelho Odivelas, Freg ...” e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido;
f) Em 05-02-2020 a requerente foi notificada da ordem de serviço n.º OI2018... relativa a um procedimento de inspeção externa incidente sobre o IRC e o IVA do exercício de 2016;
g) Através do ofício n.º... datado 07-10-2020 a requerente foi notificada do relatório definitivo da inspeção tributária referida em c), no qual se propunha a realização de correções meramente aritméticas à matéria tributável e, sem recurso a avaliação indireta, no montante de EUR 513.280,00 com fundamento no art. 64.º do CIRC, no seguinte termos:
h) Em 14-10-2020 a requerida emitiu a Liquidação n.º 2020-... da qual resultava um valor a pagar de EUR 45.354,03, dos quais a quantia de EUR 5.236,20 relativa a juros compensatórios, de cuja nota de demonstração consta a seguinte indicação:
Fundamentação
Apuramento proveniente de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) decorrente do procedimento de Inspeção, credenciado pela ordem de serviço n.º OI201804001, no âmbito do qual foi remetida a respetiva fundamentação, constante do Relatório Final de Inspeção Tributária.
i) Em 7-12-2020 a requerente colocou a pagamento o montante referido em h) mediante transferência bancária.
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Para conhecimento da presente exceção considero como não provado o seguinte facto:
— Que o requerimento referido em e) dos factos provados tenha sido remetido à Administração Tributária e Aduaneira.
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Na decisão da matéria de facto relevante para a decisão desta exceção o Tribunal teve em consideração a prova documental junta aos autos por ambas as partes e aquela constante do Processo Administrativo, em especial o teor de págs. 126-132 [factos a) e b)], 141 [facto f)], 20 e 31 a 50 [facto g)], bem como como documentos n.º 1 [facto h)], n.º 2 [facto i)], n.º 8 [facto c)] e n.º 9 [facto d)], todos juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
Quanto ao facto e) do probatório e ao facto dado como não provado, a convicção do Tribunal assentou na prova testemunhal produzida. Todas as três testemunhas ouvidas foram coincidentes em afirmar que tiveram intervenção, a diversos títulos, na elaboração de uma minuta de um requerimento para efeitos da aplicação do art. 139.º do CIRC, circunstância que deixa o Tribunal convicto de que foram realmente desenvolvidas pelos serviços da requerente diligências internas tendentes à redação de um tal requerimento em vista de uma sua futura apresentação junto da administração fiscal.
O depoimento das testemunhas D... e E... foi também coincidente no sentido de que a intervenção de ambos nesse processo se limitou a uma consulta pontual e esporádica acerca do teor e conteúdo de requerimento que se destinaria a ser apresentado junto da administração fiscal, não tendo ambos tido qualquer intervenção direta e pessoal na expedição e remessa do mesmo à AT, tarefa de que teria ficado incumbido o contabilista certificado da requerente, a testemunha F... .
Já o depoimento deste F... não se mostrou suficientemente persuasivo para lograr demonstrar a prova positiva do facto dado como não provado. Com efeito, não obstante a sua afirmação de que teria efetivamente remetido o requerimento em causa à AT por via postal simples, fê-lo de forma evasiva, pouco convicta e algo hesitante. Por outro lado, e em desabono do teor do seu depoimento, surpreende que alguém experimentado no relaciona¬men-to com a administração fiscal e com as exigências de certeza e segurança que estes contactos sempre implicam tivesse remetido o requerimento que se vem discutindo por mera via postal simples, sendo além do mais certo que a lei exige o emprego da via postal registada no caso de remessa de requerimentos às autoridades administrativas por correio [arts. 104.º, n.º 1, al. b), e 107.º do CPA]. Mesmo admitindo o descuido ou uma pontual desatenção na escolha do método de expedição, não deixa de suscitar as maiores reservas quanto ao relato da testemunha a circunstância de esta nunca ter tomado qualquer iniciativa de averiguar quer do efetivo recebimento do dito expediente, quer sobretudo do andamento que o mesmo teria tido e do estado em que se encontraria o procedimento administrativo que se tinha pretendido despoletar. Estas reservas saem confirmadas ainda pelo insucesso das diligências que no decurso da ação inspetiva foram efetuadas pela própria AT para apurar a efetiva receção desse expediente postal, e documentadas no Processo Administrativo (págs. 85 a 90), assim confirmando a elevada improbabilidade de que tal expedição — e concomitante receção pelos serviços da administração fiscal — tenha, de facto, tido lugar.
Acresce que a apresentação do requerimento de que se vem cuidando representa uma mera primeira etapa num procedimento administrativo tributário que exige, ou pressupõe, dos sujeitos passivos outras condutas complementares, como seja o preenchimento do quadro 416 do campo 11 da declaração Modelo 22 aquando da apresentação eletrónica deste impresso. Com efeito, tendo o sujeito passivo desencadeado o procedimento previsto no art. 139.º os montantes abrangidos neste procedimento terão de ser indicados naquele quadro e campo da Modelo 22. A circunstância de não se ter procedido ao cumprimento dessa obrigação declarativa revela, segundo as regras da experiência comum, que com elevada probabilidade o requerimento que chegou a ser minutado internamente nos serviços da requerente não terá no entanto sido expedido e remetido à AT e, portanto, nunca chegou a dar entrada nos serviços desta, pois se tal requerimento tivesse sido efetivamente apresentado, um contabilista certificado diligente e zeloso não teria deixado de inscrever as referidas quantias no campo e quadro em causa na declaração Modelo 22 que é apresentada poucos meses depois.
Em conclusão, o depoimento da testemunha F... não se afigura, a este respeito, fiável e credível e, por conseguinte, na ausência de qualquer outro meio de prova que indicie a remessa ou apresentação à AT do requerimento de instauração do procedimento administrativo de prova do preço efetivo, não se poderá considerar tal facto como provado, não obstante ter sido alegado pela requerente.
*
Ciente de que a alienação de bens imóveis se presta com facilidade a fenómenos de evasão fiscal, designadamente através da erosão da base tributável e da dissipação dissimulada dos proventos dessas alienações para terceiros na órbita dos sujeitos passivos, o legislador estabeleceu no art. 64.º do CIRC uma norma especial antiabuso que tem por base uma presunção de rendimentos. Com efeito, dispõe-se neste preceito legal:
Artigo 64.º
Correcções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis
1 — Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adoptar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.
2 — Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.
3 — Para aplicação do disposto no número anterior:
a) O sujeito passivo alienante deve efectuar uma correcção, na declaração de rendimentos do período de tributação a que é imputável o rendimento obtido com a operação de transmissão, correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato;
b) O sujeito passivo adquirente adopta o valor patrimonial tributário definitivo para a determinação de qualquer resultado tributável em IRC relativamente ao imóvel.
4 — [Ommissis]
5 — [Ommissis]
6 — [Ommissis]
Porém, como em direito fiscal não são admissíveis presunções inilidíveis, o legislador fez acompanhar este regime de um mecanismo de elisão do rendimento assim presumido. Trata-se do art. 139.º do CIRC com a seguinte redação:
Artigo 139.º
Prova do preço efectivo na transmissão de imóveis
1 — O disposto no n.º 2 do artigo 64.º não é aplicável se o sujeito passivo fizer prova de que o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis.
2 — [Ommissis]
3 — A prova referida no n.º 1 deve ser efectuada em procedimento instaurado mediante requerimento dirigido ao director de finanças competente e apresentado em Janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado, ou nos 30 dias posteriores à data em que a avaliação se tornou definitiva, nos restantes casos.
4 — O pedido referido no número anterior tem efeito suspensivo da liquidação, na parte correspondente ao valor da diferença positiva prevista no n.º 2 do artigo 64.º, a qual, no caso de indeferimento total ou parcial do pedido, é da competência da Direcção-Geral dos Impostos.
5 — O procedimento previsto no n.º 3 rege-se pelo disposto nos artigos 91.º e 92.º da Lei Geral Tributária, com as necessárias adaptações, sendo igualmente aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 86.º da mesma lei.
6 — Em caso de apresentação do pedido de demonstração previsto no presente artigo, a administração fiscal pode aceder à informação bancária do requerente e dos respectivos administradores ou gerentes referente ao período de tributação em que ocorreu a transmissão e ao período de tributação anterior, devendo para o efeito ser anexados os correspondentes documentos de autorização.
7 — A impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correcções efectuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 64.º, ou, se não houver lugar a liquidação, das correcções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no n.º 3, não havendo lugar a reclamação graciosa.
8 — [Ommissis]
Em síntese, o sistema gizado pelo legislador assenta no seguinte esquema prático: se o valor de realização na alienação de um imóvel declarado pelo sujeito passivo for inferior ao valor patrimonial tributário será este o valor a ter em consideração para efeitos de determinação do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRC; esta presunção de rendimentos pode ser afastada mediante procedimento administrativo próprio a instaurar pelo sujeito passivo; a instauração deste procedimento tem efeito suspensivo da liquidação do IRC, na parte relativa à matéria coletável em discussão; no procedimento em causa pode haver lugar ao acesso à informação bancária do sujeito passivo e dos seus administradores ou gerentes.
Resulta expressamente do n.º 7 deste art. 139.º do CIRC que “[a] impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correções efetuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 64.º [...] depende de prévia apresentação do [procedimento administrativo de prova do preço efetivo].”
Trata-se assim, como de resto vem sendo sublinhado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de uma condição de impugnabilidade, cuja omissão determina a inimpugnabilidade do acto tributário — cfr. Ac. STA 3-12-2014 (Proc.º 881/12); Ac. STA 6-12-2013 (Proc.º 989/12); Ac. STA 30-05-2018 (Proc.º 861/15); Ac. STA 6-11-2019 (Proc.º 806/15).
Como se esclarece naquele cit. Ac. STA 3-12-2014:
a determinação do valor patrimonial tributário dos imóveis, que é obtida através da fórmula prevista no artigo 38.º e seguintes do Código do IMI, e que procura uma aproximação aos valores de mercado com vista a proporcionar maior equidade na tributação do património, tem importantes consequências a nível fiscal, designadamente a nível de tributação do rendimento, particularmente quando o valor de transacção do imóvel diverge do seu valor patrimonial tributário (VPT).
Dai que “a apresentação atempada do pedido para demonstração do preço efetivo (instauração do procedimento), previsto no n.º 3 artigo 139.º do CIRC, é condição de procedibilidade da impugnação judicial quando nesta se pretenda discutir o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis” — Ac. TCAS 6-09-2021 (Proc.º 706/11.9BELRS).
Trata-se assim de uma daquelas situações em que o legislador decidiu erigir um particular mecanismo procedimental por si instituído como condição de procedibilidade da impugnação contenciosa do ato tributário, e cuja omissão de emprego determina a inimpugnabilidade do ato tributário ou, na feliz formulação do Tribunal Central Administrativo do Sul, “se o impugnante pretendia discutir o preço efetivo da transmissão ocorrida, isto é, se pretendia fazer a ‘prova de que o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis’, deveria ter lançado mão do procedimento previsto no nº 3 do artigo 129º [§] Não tendo o [impugnante] lançado mão do apontado procedimento, não pode o mesmo pretender, agora, demonstrar que o preço efetivo da venda é de [determinado montante], afastando a presunção decorrente do VPT” [Ac. TCAS 24-11-2016 (Proc.º 8624/15)].
Ao que fica dito não se contraponha, como faz a requerente, que o preço realmente praticado na alienação das frações em causa nos presentes autos foi efetivamente inferior ao respetivo valor patrimonial tributário: é que tal argumento padece de um vício de petição de princípio, porquanto a questão de que agora se cuida é puramente processual e a falta de emprego preliminar do meio procedimental legalmente exigido obsta a que este Tribunal Arbitral possa entrar na apreciação da questão de fundo, ou seja, sem a verificação deste pressuposto processual da impugnabilidade do ato objeto desta arbitragem fica o julgador impedido de averiguar o real preço da transação imobiliária, invocado como fundamento do vício de ilegalidade que se assaca ao ato de liquidação impugnado. Por outro lado, tão-pouco procede o argumento segundo o qual a averiguação do preço realmente praticado se poderia fazer quer na presente arbitragem, quer no próprio procedimento inspetivo que antecedeu a liquidação impugnada. Desde logo a isso claramente obsta a estatuição expressa da lei quando estabelece o procedimento do art. 139.º do CIRC como critério de impugnabilidade (n.º 7). Além disso, afigura-se como incontroverso que o procedimento inspetivo a quo não poderia fazer as vezes do procedimento administrativo de prova do preço efetivo: não apenas porque no procedi¬mento inspetivo não há possibilidade de acesso aos dados bancários dos administradores ou gerentes do sujeito passivo que “é condição necessária da instauração do procedimento de prova dos preços efetivos” [Ac. TCAN 23-06-2021 (Proc.º 1918/09.0BEPRT)], mas também porque no procedimento do art. 139.º do CIRC, por força da remissão para os arts. 91.º e 92.º da LGT, as operações de determinação do preço efetivo assumem uma natureza colegial e pericial que está ausente do contexto das inspeções tributárias e que, aliás, redunda na insindicabilidade jurisdicional do preço que vier a ser determinado nesse mesmo procedimento (assim, cfr. art. 86.º, n.º 4, da LGT ex vi do art. 139.º, n.º 5, do CIRC).
Por fim, é também de se rejeitar o argumento de inaplicabilidade do art. 64.º do CIRC à situação dos presentes autos por força do disposto no art. 25.º do mesmo código. Como muito bem refere a requerida, o âmbito de aplicação deste preceito legal está limitado àquelas situações em que a alienação de bens dos inventários de um sujeito passivo de IRC “é seguida de locação financeira, pelo vendedor, desses mesmos bens.” O regime de neutralidade fiscal consagrado nesta disposição tem aplicação apenas se o bem alienado for de seguida dado em locação financeira ao alienante. Ora, a locação financeira é uma figura negocial típica regulada num diploma próprio (o Dec.-Lei n.º 149/95, de 24 de junho), sendo manifesto, e dispensando maior demonstração, que o contrato referido em c) do probatório não subingressa neste figurino jurídico, tratando-se de um puro arrendamento civilístico. O disposto no cit. art. 25.º, n.º 2, do CIRC não tem assim aplicação às situações, como a do caso dos presentes autos, em que à alienação de um bem se segue a locação civil desse mesmo bem pelo adquirente ao precedente alienante.
Finalmente, também o vício de falta de fundamentação invocado no requerimento de pronúncia arbitral se reconduz novamente à questão da determinação do preço efetivo da alienação das frações. Sob a sua invocação, insurge-se a requerente, mais uma vez, contra a circunstância de que a AT não ter cuidado de averiguar, na prossecução dos princípios gerais que disciplinam a tramitação do procedimento tributário, o real e efetivo preço da alienação das frações referidas em a) do probatório, pretendendo agora, sob a guisa deste vício formal, revisitar o tema do preço real e efetivo dessa transação imobiliária. Não se trata assim verdadeiramente da invocação de um vício próprio e autónomo em relação ao vício de erro nos pressupostos de facto por errónea quantificação da obrigação tributária que aduz a título principal. Daí que também ao conhecimento judicial deste vício, tal como o configura a requerente, obsta a circunstância de não ter sido deduzido o procedimento para prova do preço efetivo, como resulta do já citado o art. 139.º, n.º 7, do CIRC.
Tem assim de proceder esta exceção, sendo o ato de liquidação impugnado nos presentes autos inimpugnável no que diz respeito à discussão do preço efetivo da transmissão das frações referidas na alínea a) do probatório e, portanto, relativamente a qualquer causa de invalidação que implique a demonstração de que o preço efetivamente praticado em tais transmissões foi inferior ao valor patrimonial tributário dessas frações, por preterição do necessário e prévio procedimento administrativo gracioso.
Procedendo esta exceção, tem a requerida de ser absolvida da presente instância arbitral, com a sua consequente extinção.
***
Tendo sido a requerente a dar causa à extinção da presente instância arbitral, é ela a responsável pelas custas da arbitragem — art. 12.º, n.º 2, do RJAT e arts. 4.º, n.º 5, e 6.º, al. a), do Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária do CAAD.
Assim, tendo em conta o valor atribuído ao processo em sede de saneamento, por aplicação da l. 6 da Tabela I ane¬xa ao mencionado Regulamento — e atendendo a que não se encontra prevista qualquer redução da taxa de arbitragem quando o processo não conclua com decisão de mérito —, há que fixar a taxa de arbitragem do presente processo em EUR 2.142,00, em cujo pagamento se condenará a final a requerente.
— III—
Assim, pelos fundamentos expostos, na procedência da exceção dilatória de inimpug-na¬¬bi¬lidade do ato de liquidação objeto da presente arbitragem absolvo a requerida Autoridade Tributária e Aduaneira da pre¬sen¬te instância arbitral e, em consequência, condeno a requerente nas custas do presente proces¬so, fixando a taxa de arbitragem em EUR 2.142,00.
Notifiquem-se as partes.
Registe-se e deposite-se.
CAAD, 17/11/2021
O Árbitro,
(Gustavo Gramaxo Rozeira)