Sumário: I – O Tribunal Arbitral Tributário é competente para a apreciar um ato de liquidação adicional de IVA causal da denegação de pedido de reembolso formulado.
II – A ausência de notificação da Requerente por falta de receção não culposa das informações que lhe foram enviadas pela Requerida, a solicitação da Requerente e complementares da fundamentação do ato de indeferimento da respetiva Reclamação Graciosa, preenchem a omissão de notificação da fundamentação do ato quando sejam aquelas informações relevantes para o preenchimento do dever de fundamentação do ato de liquidação adicional de IVA e do pedido de reembolso formulado.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Dr. Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Prof. Doutor Diogo Leite Campos e Profa. Doutora Maria do Rosário Anjos (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 03-05-2020, acordam no seguinte:
I – RELATÓRIO
1. No dia 04-12-2020, A...– SUCURSAL EM PORTUGAL, sociedade comercial com o NIPC nº ..., com sede na..., nº..., ... – ... Lisboa (doravante designada por Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral coletivo, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante RJAT) e do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro.
2. O pedido arbitral tem por objeto a impugnação do ato de indeferimento de Reclamação Graciosa para anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o valor Acrescentado (IVA), no valor total de €128.135,21.
3. A Requerente não se conforma com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, nem com a liquidação de imposto impugnada, por entender que padecem de ilegalidade, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes aos atos tributários praticados. Nesta conformidade, a Requerente considera que os atos tributários têm de ser anulados, com as demais consequências legais, designadamente a notificação de um novo ato de liquidação de IVA e a anulação de atos consequentes, designadamente o ato de indeferimento do pedido de reembolso de IVA nº ... e a emissão do competente reembolso.
4. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
5. O pedido de constituição do tribunal arbitral apresentado em 04-12-2020, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 07-12-2020 e automaticamente notificado à AT. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou, em 29-01-2021, o árbitro presidente e os árbitros auxiliares, acima identificados, designando a composição do tribunal arbitral coletivo. Todos os árbitros aceitaram a designação e nenhuma das partes se pronunciou contra a indicação dos árbitros a integrar o presente tribunal. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral ficou constituído em 03-05-2021.
6. Em 04-05-2021 foi proferido despacho arbitral em cumprimento do disposto no artigo 17º do RJAT, notificado à AT para, querendo, apresentar resposta.
7. A AT apresentou Resposta em 07-06-2021, acompanhada da junção aos autos do respetivo processo administrativo. Na resposta a Requerida invoca a exceção de incompetência material do Tribunal arbitral, defende a legalidade dos dos atos e sustenta que os mesmos devem manter-se na ordem jurídica, pelo que entende que o pedido arbitral deve ser considerado improcedente.
8. Por despacho arbitral proferido e notificado às partes no dia 15-06-2021, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18º, nos termos seguintes:
«I - A reunião do Tribunal com as partes (artigo 18º, do RJAT) À luz do disposto nos artigos 16º-c), do RJAT e do princípio da proibição da prática de atos inúteis, fica dispensada a reunião do Tribunal com as partes, considerando que (i)se trata, no caso, de processo não passível duma definição de trâmites processuais específicos, diferentes dos comummente seguidos pelo CAAD na generalidade dos processos arbitrais e (ii) não se revela necessário o aperfeiçoamento dos articulados.
II – Exceção A Requerente exercerá o contraditório relativamente à matéria da exceção (incompetência material) com as alegações finais ou, autonomamente, no prazo em que estas devam ser apresentadas.
III - Alegações finais Ambas as partes apresentarão, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias [(artigos 29º, do RJAT, 91º-5 e 91º-A, do CPTA, versão republicada em anexo ao DL nº 214-G/2015, de 2-10)], alegações escritas, de facto (factos essenciais que consideram provados e não provados) e de direito.
IV – Data para prolação e notificação da decisão final: fixa-se o dia 15-10-2021, como data-limite previsível para a prolação e notificação da decisão arbitral final.
V – Taxa de arbitragem remanescente CAAD: a Requerente deverá dar oportuno cumprimento ao disposto no artigo 4º-3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [pagamento, antes da decisão e pela forma regulamentar, do remanescente da taxa arbitral].
VI – Apresentação dos articulados em formato “word” À luz do princípio da cooperação [cfr artigo 7º, do CPC], convidam-se ambas as partes a remeter ao CAAD cópias dos respetivos articulados, em formato editável (de preferência, em “Word”) com vista a facilitar e abreviar a tarefa de elaboração do acórdão final no que respeita sobretudo à fixação da matéria de facto.»
9. As partes apresentaram as suas alegações no dia 07-07-2021. Em 24-09-2021 a Requerente juntou aos autos o comprovativo de pagamento da taxa subsequente. Em 15-10-2021 foi proferido despacho de prorrogação, nos termos previstos no artigo 21º, nº 2, do RJAT, com a seguinte fundamentação: «O acórdão arbitral final está ainda em preparação pelo Coletivo. Assim, não sendo possível cumprir o prazo ou limite temporal fixado no despacho de 15-6-2021 e considerando que se aproxima o termo final do prazo previsto no artigo 21º-1, do RJAT [que as férias judiciais não suspendem - Cfr artigo 138º-1, do CPC, ex vi artigo 29º, do RJAT], revela-se prudente, no uso da faculdade prevista no artigo 21º-2, do RJAT, prorrogar o citado prazo por dois meses e transferir para 15-11-2021 a data limite previsível para prolação e notificação da decisão final do processo.»
II – SANEAMENTO
10. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
Tudo visto, cumpre proferir
II. FUNDAMENTAÇÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
11. Com relevância para as questões a decidir, consideram-se provados os seguintes factos:
a) A requerente apresentou pedido arbitral para anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa nº ...2019..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, conforme decisão proferida pelo Sr. Chefe de Divisão, no uso de competência delegada, notificada à Requerente por ofício nº ..., emitido em 04-09-2020.
b) A decisão de indeferimento da reclamação graciosa versou sobre a legalidade da liquidação adicional de IVA nº 2019..., no valor de €128.135,21, resultante de processo de inspeção instaurado no seguimento de pedido de reembolso de IVA;
c) A requerente desenvolvia à data dos factos a atividade de prospeção, pesquisa, desenvolvimento e produção de petróleo e gás, como resulta da certidão permanente com o código de acesso ...;
d) Atividade que desenvolvia ao longo da costa do Alentejo e Algarve, depois de ter adquirido à B... parte das participações nas licenças de exploração dos blocos de Camarão, Ameijoa, Mexilhão e Ostra localizados no offshore português da ... .
e) Para prosseguir a sua atividade a Requerente incorreu em custos com a aquisição de licenças dos respetivos blocos, com o reembolso de custos incorridos pela B..., com as operações petrolíferas, aquisição de dados sísmicos e manutenção da sucursal em Portugal, conforme resulta das faturas emitidas, a seguir discriminadas:
f) Do quadro descrito na alínea anterior resulta que a Requerente incorreu em três tipos de despesas: (i) aquisição de linhas sísmicas processadas à Entidade Nacional para o mercado de combustíveis; (ii) aquisição das licenças petrolíferas à B... para exercer a atividade em Portugal; (iii) aquisição de serviços de contabilidade à empresa conceito;
g) O IVA relativo às despesas descritas na alínea anterior foi deduzido nas declarações periódicas, das quais resultou um excesso de crédito de IVA a favor da Requerente, que em conta corrente ascendia, em março de 2019, a €128.135,21.
h) A Requerente solicitou o reembolso daquela quantia na declaração periódica de IVA referente ao período 2019/03T, o qual foi indeferido com o fundamento em «insuficiência de crédito em conta-corrente»;
i) A Requerente pediu esclarecimentos sobre a fundamentação que conduziu ao indeferimento do pedido de reembolso;
j) Segundo informação extraída do sistema informático da AT a decisão de indeferimento foi precedida pelo envio, por via postal, de um pedido de esclarecimento adicional e de notificação de um projeto de decisão de indeferimento, com para exercício do direito de audição prévia;
k) Da análise dos documentos juntos aos autos pela Requerente e pela Requerida constata-se que as ditas notificações, com os números de registos de envio nºs RH...PT e RH...PT, enviados para a morada da Requerente, sita no ..., em Lisboa, no qual existem outros escritórios de outras empresas, com receções distintas, entre as quais a consultora C...;
l) A notificação com o nº de registo RH...PT foi devolvida a esta Direcção de Finanças, com a menção "Devolver, desconhecido nesta morada";
m) Em 03-07-2019, os Serviços de Inspeção Tributária notificaram a Requerente para exercer o direito de audição, através do ofício n.º ... com registo CTT RH...PT, o qual foi, igualmente, devolvido, com a menção "Devolver, desconhecido nesta morada".
n) Em 30-08-2019 a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IVA, com o nº 2019..., referente ao período 2019/03T, no valor de €128.135,21, que havia peticionado como reembolso;
o) A Requerente apresentou reclamação graciosa para impugnação da liquidação adicional, com fundamento em ilegalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes, peticionando a sua anulação e o reembolso do valor de €128.135,21;
p) A Requerente foi notificada do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa através do Ofício nº..., de 21-07-2020, no qual se fixou prazo para exercer o seu direito de audição;
q) A Requerente exerceu o seu direito de audição;
r) Por Ofício nº ..., de 04-09-2020, proferido pelo Exmo. Sr. Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, no uso de competência delegada pelo Sr. Diretor de Finanças, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que se dá por integralmente reproduzida, da qual consta a seguinte fundamentação:
s) Em 04-12-2020 a Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral.
A.2. Factos dados como não provados
12. Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
13. A matéria considerada comprovada tem por fundamento os factos reconhecidos como assentes pelas partes, bem assim como o suporte documental junto aos autos pelo Requerente, bem assim como toda a prova documental recolhida e constante do processo administrativo.
Acresce que todos os factos mencionados, foram confirmados pelo teor da resposta da AT, bem assim como do PA que juntou aos autos. Assim, a matéria de facto constante das alíneas a) a j) e l) a s) resulta assente por prova documental junta aos autos pela Requerente e confirmada pelo Processo Administrativo junto pela AT. A matéria constante da alínea k) resulta provado pelo documento nº 10 junto aos autos pela Requerente e coerente com o relato das notificações devolvidas à AT.
Não há, pois, divergência entre as partes quanto à matéria de facto considerada provada, mas apenas quanto à consequência jurídica a extrair dos factos mencionados.
Importa, ainda, referir que relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Resulta, por último, que a controvérsia que opõe as partes nos presentes autos não se reporta à matéria de facto, mas somente em relação à matéria de direito.
B. DO DIREITO
B.1. QUESTÕES A DECIDIR:
14. Considerando a causa de pedir e o pedido arbitral formulado e a resposta da AT resultam as seguintes questões a decidir:
a. Exceção de incompetência material do tribunal arbitral;
b. A (i)legalidade do indeferimento da reclamação graciosa e da liquidação adicional de IVA impugnada o que implicará aferir sobre o vício de forma resultante da alegada falta de fundamentação do ato impugnado e, se for o caso, sobre o vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes ao reembolso do valor do crédito de imposto alegado pela Requerente;
B.1.2. Da exceção de incompetência material do tribunal arbitral
15. Alega a Requerida a fundamentar a exceção que o objeto da impugnação ou pedido de pronúncia arbitral, é o ato de indeferimento integral de reembolso em sede de IVA e não atos de liquidação adicional de IVA, “(...) que a Requerente solicitou no período de 2019/03T (...)” - Cfr alegações.
16. Vejamos, antes de tudo, quais são os atos sindicados neste processo arbitral.
17. Assim alega a Requerente na petição inicial em que formula o pedido de pronúncia arbitral: “(...) vem contra a referida Decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa e, bem assim, contra o ato de liquidação de IVA acima identificado [liquidação adicional de IVA nº 2019...] (...), requerer a constituição de Tribunal Arbitral (...)”, formulando a final o pedido de declaração de ilegalidade do citado ato de liquidação adicional e, “(...) bem assim a ilegalidade da decisão da reclamação graciosa que apreciou a legalidade do referido ato de liquidação e o confirmou (...)”a anulação da decisão de indeferimento do pedido de reembolso de IVA(...)”.
18. Ou seja e mais concretamente: estando em causa ou sendo objeto dos autos o ato de liquidação de IVA nº..., de 30-8-2019 e a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que o manteve, o citado ato de liquidação materializa as correções efetuadas pelos serviços de inspeção tributária e que se traduziram na desconsideração das deduções de IVA efetuadas pela Requerente desde 2016, sendo a decisão de indeferimento do pedido de reembolso uma mera consequência da anulação deste ato de liquidação e das correções que o mesmo agrega, tal como defende a Requerente.
19. Ora tendo o pedido arbitral esta configuração, ele integra-se claramente no âmbito da competência material do Tribunal Arbitral prevista no artigo 2º, do RJAT, sendo que a anulação da decisão de indeferimento do pedido de reembolso de IVA não é mais, na verdade, que “um mero resultado inevitável da anulação do ato de liquidação de IVA em apreço”, tal como defende a Requerente.
20. Outra seria naturalmente a conclusão se estivesse em causa como objeto central do pedido, a apreciação apenas da legalidade do ato de indeferimento de pedido de reembolso de quantias pagas decorrentes de anteriores atos de liquidação.
21. Em conclusão: é manifesta a competência material do Tribunal Arbitral e, em consequência, improcede a exceção suscitada.
B.1.3. Dos vícios de ilegalidade dos atos impugnados
22. Como resulta da exposição de facto e de direito alegada pela Requerente, está em causa aferir a (i)legalidade da desconsideração da dedução do imposto sobre o valor acrescentado suportado pela Requerente nas despesas suportadas com a sua atividade, descritas na alínea e) da matéria assente. Do quadro aí descrito resulta que a Requerente incorreu em três tipos de despesas: (i) aquisição de linhas sísmicas processadas à Entidade Nacional para o mercado de combustíveis; (ii) aquisição das licenças petrolíferas à B... para exercer a atividade em Portugal; (iii) aquisição de serviços de contabilidade à empresa «Conceito».
Resulta, ainda, que o IVA relativo a estas despesas foi deduzido nas declarações periódicas, das quais resultou um excesso de crédito de IVA a favor da Requerente, que em conta corrente ascendia, em março de 2019, a €128.135,21. Porém, quando a Requerente solicitou o reembolso daquela quantia na declaração periódica de IVA referente ao período 2019/03T, este pedido foi indeferido com o fundamento em «insuficiência de crédito em conta-corrente».
A Requerente pediu esclarecimentos sobre a fundamentação que conduziu ao indeferimento do pedido de reembolso, mas não consta dos autos que tenha sido notificada de qualquer esclarecimento adicional. Já em sede de reclamação graciosa, e segundo informação extraída do sistema informático da AT, a decisão de indeferimento foi precedida pelo envio, por via postal, de um pedido de esclarecimento adicional e de notificação de um projeto de decisão de indeferimento, para exercício do direito de audição prévia, sendo que as respetivas notificações não foram devidamente efetuadas, tendo sido entregues na receção de uma outra empresa com sede no mesmo edifício. Constata-se, pois, que a Requerente não foi devidamente notificada, tendo ficado impedida de exercer o seu direito de audição.
Posto isto,
23. Os atos tributários objetivamente em escrutínio, são, como se viu supra, a liquidação adicional de IVA nº 2019..., no valor de €128.135,21, resultante de processo de inspeção instaurado no seguimento de pedido de reembolso de IVA, com o consequente indeferimento do pedido de reembolso e o posterior indeferimento da reclamação graciosa.
A primeira questão de direito a conhecer é a do alegado vício de falta de fundamentação.
Nesta sede releva apenas a fundamentação contida na liquidação impugnada, a qual se limita a converter o valor correspondente ao reembolso peticionado em valor de imposto a devolver à AT, sem qualquer fundamento expresso do qual se alcance esta decisão de anulação do crédito de imposto. Consultado o respetivo processo administrativo, resultante do procedimento de fiscalização instaurado é o que se conclui: a correção não teve qualquer fundamento comprovado que possa ser objetivamente considerado. E, a alegada «insuficiência de crédito em conta-corrente», não serve de fundamentação, consubstanciando, outrossim, uma mera conclusão.
24. O artigo 77º da Lei Geral Tributária estatui o dever de a Administração tributária fundamentar os seus atos com efeito externo. Mais: de levar ao conhecimento dos interessados essa fundamentação.
Todos os textos, mormente os legais, são equívocos. Há, pois, que levar a cabo um trabalho de interpretação, necessariamente focado, em última análise, no caso a decidir.
A melhor interpretação, sem pôr de lado o texto legal, é a que melhor sirva a justiça do caso concreto.
Regressemos ao dever de fundamentação, começando naturalmente pela sua colocação no Estado de Direito ao serviço da dignidade da pessoa (artigo 1º da CRP). No Estado absolutista as decisões do soberano (e quantas vezes dos seus agentes) eram de ciência certa e poder absoluto. Não necessitavam de qualquer fundamentação; esta mesmo que fosse dada possivelmente seria impercetível para o destinatário. Ouvir era obedecer.
Esta perspetiva, pelo menos nas suas consequências práticas, perdurou até há pouco. Não há muitos anos se ensinava nas Faculdades que a soberania do Estado era um poder superior a todos os outros. E que os atos administrativos eram atos de autoridade que criavam obrigações para os contribuintes. Daí que estes atos fossem salvaguardados o mais possível perante a análise critica do cidadão, muitas vezes perante a simples vontade de entender.
Foi precisa uma profunda evolução do Estado de Direito assente na dignidade da pessoa, para que se trilhasse o caminho novo, da administração ao serviço dos cidadãos e da lei sem interesses próprios.
25. Aqui se situa a proclamação pela LGT da fundamentação dos atos tributários (embora de raízes mais antigas). Passa a ver-se no ato tributário uma mera leitura- aplicação da lei que, dadas as incertezas desta, vale o que valer a sua fundamentação. O cidadão torna-se neste sentido participante do ato tributário, pelo menos na fase da sua reelaboração (audição prévia, reclamação, por ex.).
O direito à fundamentação não é um simples passo burocrático, mas é central ao Estado de Direito e à dignidade da pessoa.
Se não relutássemos em transformar tudo em direitos da pessoa, diríamos que é um direito desta. De qualquer modo, recai no âmbito de proteção dos direitos, liberdades e garantias.
26. Proclamada a sua dignidade vamos a partir desta precisar o seu âmbito.
O ato tributário não exige só um mais que é a fundamentação. Sem esta é incompleto, um desautorizado ato de poder absoluto. A fundamentação faz parte necessária do ato que não produzirá sem ela os efeitos a que se dirige. O sentido deste e a sua oponibilidade valem o que valer a fundamentação. O contribuinte tem de conhecer as razões para ficar convencido ou não. Sem elas, boas ou más, não há ato vinculativo.
No caso dos presentes autos, não só falhou o cumprimento do dever de fundamentação como também falhou o dever de notificação. Esta, efetivamente, nunca foi recebida pelo destinatário, como bem resulta da matéria assente como provada.
Em suma, o dever de fundamentação tem de ser exercido efetivamente: a fundamentação tem de ser levada ao conhecimento efetivo do contribuinte, como qualquer ato tributário de eficácia externa. Por outras palavras: deve ser colocada à disposição deste.
De outra maneira, terá de ser o contribuinte a imaginar o que estará o processo administrativo, se é que lá está alguma coisa…
27. Terminamos reafirmando: estamos perante uma norma basilar do Estado de Direito democrático tributário e tratada como tal, pelo que o seu incumprimento traduz manifesto vício de forma invalidante, pelo que o ato de liquidação na base dos presentes autos tem de ser anulado. Na verdade, o artigo 77 º com o âmbito e a dignidade que lhe atribuímos, não foi satisfeito. O Requerente não recebeu a fundamentação, pelo menos a fundamentação suficiente.
As notificações com a fundamentação elaborada pela Administração tributária, nunca foram colocadas à disposição do Requerente a partir do momento em que terão sido enviadas pela AT. Não se está a assacar culpa deste facto à Requerente ou à Requerida. É um simples facto com os efeitos jurídicos que indicámos.
28. Ora, em conformidade com o que vem exposto, constata-se que da análise do a prova documental constante do PA, bem assim como a prova documental junta aos autos pelo Requerente, resulta que as correções subjacentes à liquidação impugnada não foram acompanhadas de qualquer fundamentação, concreta, especifica e suficientemente clara e congruente.
Não se vislumbra qualquer explicação detalhada e especificada sobre a motivação que conduziu a AT a não aceitar o exercício do direito à dedução do IVA. Pelo que, neste ponto, somos levados a concluir que o ato tributário ora sindicado padece de manifesto vício de falta de fundamentação, o que condiciona a validade de todos os demais procedimentos adotados nesta sede pela AT.
29. O dever de fundamentação decorre do princípio constitucional previsto no artigo 268.º da CRP, veio a ser objeto de concretização nos procedimentos e processos de natureza tributária no artigo 77.º da LGT. Com a obrigação de fundamentação do ato administrativo ou tributário pretende-se salvaguardar a garantia de defesa dos direitos e interesses legítimos dos administrados, a transparência da atividade administrativa e respetivos procedimentos, bem assim como o direito dos particulares à reconstituição do percurso lógico, racional e ponderativo que conduziu à liquidação de imposto.
Por último, a fundamentação (de facto e de direito) é um corolário indispensável do princípio do Estado de Direito democrático, um elemento legitimador da obrigação de imposto. Tese que os nossos Tribunais Superiores têm acolhido o entendimento que os atos administrativos carecem de fundamentação expressa, ou seja, a fundamentação do ato deve indicar as razões nas quais a decisão se baseia, bem como os pressupostos de facto e de Direito que justificam a prolação dessa decisão (também no sentido propugnado.
30. O que acima ficou dito é tanto mais evidente, porquanto estamos perante um caso manifesto de desconsideração de elementos declarados pelo contribuinte, os quais, recorde-se, gozam de uma presunção de veracidade nos termos do nº1 do artigo 75.º da LGT. Com efeito, não consta da “fundamentação” da decisão final qualquer análise crítica aos meios de prova juntos pelo Requerente, nem tão pouco se entendem as razões de facto e de direito, que levaram a Administração a não valorar os elementos apresentados pelo ora Requerente e o respetivo crédito de imposto.
31. Face ao exposto, é inequívoco que impende sobre a Administração Tributária um dever de fundamentação expressa, consubstanciada na indicação clara e expressa das razões de direito que levam a Administração a praticar um determinado ato em matéria tributária, bem como os motivos que a levam a considerar improcedentes os argumentos aduzidos em sede do procedimento tributário, sob pena de preclusão dos princípios da tutela da confiança, do princípio da legalidade e da Administração aberta. Por último, salientar que, em sintonia com a fundamentação exposta, a posterior decisão da reclamação graciosa não serve de argumento para contornar a falta de fundamentação subjacente à liquidação resultante das correções efetuadas.
Nestes termos fica prejudicado o conhecimento de outros vícios invocados pela Requerente.
B. 1.4. Quanto ao pedido de juros indemnizatórios
23. Nos termos do artigo 43ª, 1 da Lei Geral Tributária e do artigo 22º, 8 do CIVA deverão ser pagos juros indemnizatórios à Requerente, por o IVA não ter sido reembolsado no prazo legal, sendo devidos desde a data de indeferimento da reclamação graciosa até à data em que venha a ser emitida a nota de crédito a favor da Requerente.
C. Decisão Arbitral
Nestes termos, decide este Tribunal Arbitral o seguinte:
a) Julgar procedente a pretensão da Requerente, anulando o ato de liquidação do IVA, bem como os atos subsequentes nomeadamente a decisão de indeferimento do pedido de restituição do IVA, por vicio de falta de fundamentação do ato praticado, por violação do disposto no artigo 77º, 1 da Lei Geral Tributária.
b) Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios por o IVA não ter sido reembolsado no prazo legal, a contabilizar desde a data de indeferimento da reclamação graciosa até à data em que venha a ser emitida a nota de crédito a favor da Requerente.
c) Condenar a Requerida nas custas do processo.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €128.135,21, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €3.060,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.
• Notifique-se.
Lisboa, 14 de novembro de 2021
O Árbitro Presidente,
(José Poças Falcão)
O Árbitro auxiliar
(Diogo Leite de Campos)
O Árbitro auxiliar
(Maria do Rosário Anjos)