Sumário:
I - Como vício invalidante do ato tributário, a preterição do princípio do inquisitório, e, consequentemente, do princípio da verdade material, apenas pode ser considerada na situação limite em que os serviços omitam diligências essenciais à averiguação da situação tributária de tal modo que não se encontre justificação plausível para a correção fiscal;
II - Verificando-se que o sujeito passivo, através da operação de incorporação por fusão, sucedeu nos direitos e obrigações da sociedade incorporada e passou a deter, na sua esfera jurídica, a posição de locatária, passando a ser a destinatária dos débitos de rendas emitidos pelo locador, não há lugar à desconsideração fiscal de custos relacionados com um contrato de arrendamento no caso em que os documentos justificativos tiverem sido emitidos em nome da sociedade incorporada;
III - Impondo a lei requisitos específicos, de caráter contabilístico, para a dedução de encargos com a deslocação de trabalhadores, ao serviço da entidade patronal, designadamente mediante a elaboração de um mapa que contenha os elementos de informação mencionados na alínea h) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC, então vigente, não é suficiente, para efeitos de dedutibilidade, a demonstração de que a fatura, embora tenha sido emitida em nome do trabalhador, corresponde a um gasto identificado e efetivamente realizado;
IV - Nos termos do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, na redação vigente antes da Reforma de 2014, o suporte do registo contabilístico constituído por uma carta de cobrança em que se encontram identificadas as entidades emitente e destinatária, bem como a data, o valor e o descritivo da transação, constitui documento bastante para efeito da dedutibilidade do gasto;
V- Sendo possível estabelecer uma ligação entre os gastos (honorários incorridos com um projeto de arquitetura) com uma certa opção de gestão empresarial (ampliação do espaço fabril), os gastos são dedutíveis para efeitos fiscais, independentemente da verificação a posteriori da efetiva geração de proveitos;
VI - Nos termos da Norma Contabilística e o Relato Financeiro que se refere ao tratamento contabilístico para ativos fixos tangíveis (NCRF 7), o ganho ou perda decorrente do desreconhecimento de um item do ativo fixo tangível deve ser incluído nos resultados quando o item for desreconhecido (parágrafo 67) e a quantia escriturada a esse título deve ser desreconhecida “quando não se esperem futuros benefícios económicos do seu uso ou alienação” (parágrafo 66);
VII - A contabilização, num período de tributação, de gastos relacionados com operações de financiamento que foram diferidos pelo prazo do empréstimo, implicando a imputação, a um exercício, de custos referentes a exercícios anteriores, viola o princípio da especialização dos exercícios, não sendo possível mobilizar o princípio da justiça para afastar o critério da periodização anual do imposto, se não há evidência de que o diferimento dos custos não tenha beneficiado o contribuinte, por efeito do reporte de prejuízos fiscais que incidiram sobre os exercícios em causa;
VIII - O critério de contabilização de gastos relativos a juros de empréstimos, para efeitos de periodização económica, é o do momento em que a transação ocorre, e não aquele em que se verifica o dispêndio ou saída efetiva meios financeiros, o que significa que se baseia num regime de acréscimo, e não num regime de caixa.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., ...-... ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos atos de liquidação de IRC n.º 2019..., relativa ao ano de 2012, e n.º 2019..., relativa ao ano de 2013, e respetivas demonstrações de acerto de contas.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A Requerente impugna as correções tributárias efetuadas, no período de tributação de 2012, relativamente a gastos fiscalmente não aceites, à amortização de custos diferidos, ao acréscimo de juros de empréstimos e preços de transferência, e, no período de tributação de 2013, por referência a gastos fiscalmente não aceites e a preços de transferência.
Quanto aos gastos não aceites fiscalmente, a Autoridade Tributária entendeu que os gastos não poderiam ser considerados fiscalmente relevantes por não se encontrarem devidamente documentados, sem ter levado a efeito quaisquer outras diligências em vista à demonstração da materialidade e efetividade das operações realizadas, incorrendo na violação do princípio da verdade material, na dimensão do princípio do inquisitório. Além de que considerou aplicável o disposto no artigo 23.º, n.º 4, do CIRC, quanto às exigências formais das faturas, quando essa norma foi introduzida pela Reforma do IRC, aprovada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, com início de vigência em 2014, não sendo aplicável aos exercícios de 2012 e 2013, que estavam em causa.
A Autoridade Tributária desconsiderou gastos relativos a diversas faturas com o descritivo “Fatura B...” por se reportarem a “documentos emitidos em nome de terceiro”, quando o que está em causa são despesas relacionadas com um contrato de arrendamento celebrado com a sociedade C..., S.A., que foi objeto de fusão, por incorporação, com a sociedade D..., S.A., que mais tarde passou a denominar-se A... . Sendo que, através da fusão por incorporação, se operou a transmissão de todos os direitos e obrigações da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, que, após a fusão, veio a suportar efetivamente esses gastos. O mesmo se aplicando à faturação com o descritivo “Garantia e Avales Banc” e “Garantia Banc. IAPMEI”, que respeita a uma garantia prestada pela C..., S.A. ao IAPMEI, que, na sequência da fusão por incorporação, foi transmitida para a Requerente.
Com o fundamento de se tratar de documento emitido a favor de terceiro, foi também desconsiderada a fatura com o descritivo “E...”, emitida em nome de um colaborador da Requerente, pertencente aos seus quadros de pessoal e que se deslocava a feiras internacionais, em representação da Requerente, e que corresponde a um gasto identificado e efetivamente realizado e que devia ter sido tido como dedutível para efeitos fiscais.
Também em relação às faturas com o descritivo “F... AG”, os montantes pagos pela Requerente decorrem do facto de esta entidade ter incluído, nos seus catálogos de publicidade, a título de comparticipação, os produtos da A..., tendo os documentos sido emitidos em nome da C..., S.A., e que, pelas razões já indicadas, passaram a constituir responsabilidade da Requerente.
Relativamente à correção com o descritivo “Trabalhos Especializados – OUT”, o montante em causa respeita ao pagamento a um arquiteto de um projeto para ampliação do espaço fabril da Requerente, de modo a aumentar a sua capacidade de resposta a futuras encomendas, e relativamente ao qual foram iniciadas diligências no sentido do licenciamento camarário. As obras acabaram por se não realizarem por virtude da situação de crise económica, mas não é invocável o argumento, para efeito da desconsideração do gasto, de que “as despesas não encontram reflexo nos rendimentos auferidos pelos serviços inspetivos e não concorreram para a “realização dos rendimentos ou para a manutenção da fonte produtiva da empresa”, visto que essa iniciativa se insere no âmbito da liberdade de gestão empresarial do contribuinte.
A Autoridade Tributária entendeu também que parte das despesas incorridas pela Requerente com deslocações e estadas de trabalhadores da empresa não são fiscalmente aceites por insuficiência da documentação apresentada, sem que tivesse procedido a uma análise casuística dos gastos que, a esse título, se encontravam registados e sem pôr em causa a efetividade dessas despesas.
Conclui que todas as referidas correções se encontram feridas de ilegalidade, por violação do disposto no artigo 23.º do Código do IRC, e de inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais da tributação pelo lucro real e da justiça material.
No que se refere à correção por amortização de custos diferidos (comissões bancárias), o que está em causa são gastos incorridos com financiamentos contratualizados em 2005 e
2006 cujos custos iniciais foram diferidos, proporcionalmente, pelo prazo do empréstimo.
Tendo ocorrido, em 31 de dezembro de 2012, uma cessão da dívida à G... SGPS, por efeito da aquisição do capital social da Requerente, os montantes que haviam sido diferidos pela vida útil do empréstimo foram levados a resultados nesse ano. A Autoridade Tributária, para efeito de proceder à correção tributária, invoca a violação do princípio da especialização dos exercícios, mas não tem em consideração que esse princípio carece de ser articulado com o princípio da justiça e não impede a imputação, a um exercício, de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios.
A Autoridade Tributária desconsiderou ainda gastos relativos a juros de empréstimos, reconhecidos na contabilidade da Requerente em 2012, por não ter sido registado qualquer movimento de pagamento desses juros, não tendo tido em devida consideração o princípio de especialização dos exercícios, segundo o qual os rendimentos e os gastos são imputáveis ao período de tributação em que são incorridos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, o que vale para o caso em que os gastos são contabilizados e relevados fiscalmente quando são incorridos, independentemente do momento em que ocorra o desembolso da correspondente quantia.
Os serviços inspetivos entenderam ainda que as condições estabelecidas entre a
Requerente e a sua subsidiária fiscalmente residente nos Estados Unidos da América, H... Inc., no contrato celebrado em 1 de março de 2004, para o fornecimento de artigos de mobiliário comercializados pela Requerente, infringem o regime de preços de transferência consagrado no artigo 63.º do Código do IRC, considerando, essencialmente, que a Requerente terá realizado com a sua subsidiária operações equiparáveis a vendas diretas para o mercado norte-americano mas adotando condições distintas das que seriam praticadas com entidades independentes. E ao efetuar a correção tributária com base na assunção de que a H... Inc. constitui um destinatário final dos artigos de mobiliário comparável àqueles a se aplica a tabela dos preços para vendas diretas, os serviços inspetivos vieram a desconsiderar os valores faturados pela Requerente, a título de prestação de serviços administrativos, por entenderem tratar-se de um mero redébito de despesas suportadas por conta daquele cliente.
Nesta matéria, a correção em causa encontra-se inquinada por falta de fundamentação, deficiente compreensão da factualidade relevante e errónea interpretação e aplicação do Direito, em violação do disposto nos artigos 77.º da LGT, 63.º do Código do IRC e 4.º, 5.º e 6.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.
Os serviços inspetivos inferiram da mera circunstância de as condições remuneratórias do contrato terem sido estabelecidas por referência à tabela de preços aplicável às vendas diretas a partes independentes, a que era deduzido um desconto, para considerar verificada a violação das regras de preços de transferência.
Nos termos do contrato celebrado entre as partes, a H... foi encarregue pela Requerente de dinamizar e promover as vendas dos seus artigos de mobiliário no mercado norte-americano, com o objetivo de os comercializar junto dos retalhistas residentes, atuando como um intermediário grossista para aquele mercado. Sendo que a constituição de uma subsidiária nos EUA foi determinada, na sequência da falência, em 2003, do principal cliente americano, pela necessidade de a empresa encontrar formas alternativas de se manter naquele mercado e aumentar as vendas.
Entre outras tarefas, a H... assumiu a responsabilidade pela contratação e remuneração de comissionistas locais, pelo armazenamento, manuseamento e embalagem no território norte-americano dos artigos de mobiliário, e ainda pelo transporte local.
Como contrapartida da atividade desempenhada como intermediário grossista, a subsidiária adquire as peças de mobiliário por um valor correspondente a 70% do preço de tabela para vendas diretas aos clientes finais, e, em paralelo, a Requerente é remunerada por serviços de gestão de stock, administrativos e comerciais que eram prestados à subsidiária para esta se desincumbir adequadamente das suas tarefas.
Neste condicionalismo, a margem comercial adotada constitui a remuneração da atividade legitimamente levada a cabo por um qualquer intermediário grossista, nada permitindo concluir que as condições estabelecidas divergem das que seriam acordadas entre partes independentes.
Havendo de concluir-se que esta correção tributária assenta em premissas factuais totalmente erradas.
Por outro lado, a correção tributária, nesta parte, encontra-se inquinada pela seleção do “método do preço comparável de mercado”, por violação dos artigos 63.º, n.º 2, do CIRC e 6.º, n.ºs 1 e 2, da Portaria n.º 1446-C/2001, na medida em que a Requerente não efetua vendas dos seus artigos de mobiliário para qualquer intermediário grossista nos Estados Unidos da América, nem identificou qualquer outro fabricante de mobiliário nacional que o faça relativamente a um produto equivalente em termos e condições substancialmente idênticos, tornando-se impraticável uma suficiente comparabilidade no mercado para permitir a aplicação desse método.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, começa por suscitar o incidente relativo ao valor da causa, por considerar que, visando o pedido arbitral correções tributárias que não deram origem a pagamento de prestação tributária e apenas corrigiram o prejuízo fiscal do exercício, o valor da causa é fixado nos termos do disposto no artigo 97º-A, n.º 1, alínea b), do CPPT, correspondendo ao valor da matéria coletável que é contestado e que, no caso, ascende a € 1.369.022,88. Entende assim que não pode ser considerado o montante de € 342.255,72, indicado pela Requerente, que resulta da aplicação da taxa do IRC de 21% ao total das às correções realizadas, e não tem correspondência com o critério legalmente previsto para determinação do valor da causa.
Em sede de impugnação, e quanto aos gastos não aceites fiscalmente, afirma-se que os serviços inspetivos não aplicaram, no caso, a disposição do artigo 23.º, n.º 4, do CIRC, na redação introduzida pela Lei nº 2/2014, de 16 de janeiro, mas tiveram em linha de conta a exigência já constante desse artigo 23.º, na versão vigente à data dos factos, de que os gastos devem que estar devidamente documentados e os documentos de suporte devem evidenciar a conexão entre o gasto comercial e o gasto fiscal, sendo que cabe ao contribuinte o ónus da prova da indispensabilidade dos gastos para a obtenção dos proveitos ou para a manutenção da força produtora.
No que se refere à não aceitação fiscal da faturação emitida pela B... em nome da C..., SA, o que se constata é que, embora a Requerente invoque que ocorreu uma incorporação por fusão daquela sociedade na A..., os documentos foram emitidos em nome de C..., S.A. e não identificam número de identificação fiscal, nem o objeto da emissão das faturas.
Quanto às faturas com os descritivos “Garantia e Avales Banc”, “Garantia Banc.IAPMEI”, “E...” e “F... AG”, as correções foram determinadas por não constituírem um documento de quitação ou tratar-se de documentos emitidos em nome de terceiro, sendo que, no caso de faturação emitida em nome de terceiro, é condição para a aceitação das despesas para efeitos fiscais a prova da correlação direta com a atividade do sujeito passivo e que as mesmas tenham sido suportadas em seu nome.
No que concerne à correção com descritivo “Trabalhos especializados - OUT”, os serviços inspetivos entenderam que os documentos de suporte são meros documentos internos e respeitam a despesas realizadas em anos anteriores e relativamente às quais se concluiu não terem tido reflexo na obtenção de rendimentos sujeitos a imposto.
Relativamente às despesas com as deslocações e estadas, constatou-se que os documentos subjacentes não se encontravam emitidos a favor da empresa, tendo como destinatários entidades terceiras, e que, apesar de esses encargos deverem ser suportados pelos sujeitos passivos, na medida em que respeitam a transportes, estadias e refeições por motivos de deslocação de trabalhadores para fora do local de trabalho, o certo é que tais despesas devem cumprir os requisitos do artigo 23º do CIRC e as correspondentes faturas devem ser emitidas em nome da entidade patronal.
No tocante à amortização de custos diferidos relacionados com comissões de constituição/renegociação de empréstimos bancários reportados aos anos anteriores, e que vieram a ser reconhecidos em 2012, a Requerente alega que o reconhecimento dos gastos foi diferido pelo período de maturidade dos empréstimos e, após a cessão da dívida, não poderiam ser relevados contabilisticamente segundo o princípio da anualidade, mas teriam de ser contabilizados no exercício em que ocorreu a cessão da dívida. Os serviços inspetivos consideraram, no entanto, que o fundamento da correção é violação do princípio da especialização dos exercícios por estarem em causa encargos relativos aos exercícios de 2005 e 2006 que não poderiam ser deduzidos nem aceites fiscalmente em 2012.
No âmbito do procedimento de inspeção verificou-se ainda que existia um conjunto de gastos contabilizados a título de acréscimos de juros de empréstimos bancários, reconhecidos em 2012 por contrapartida de um compromisso de pagamento futuro com terceiros, mas de que não existe evidência, na contabilidade do sujeito passivo, de que tenha havido um efetivo pagamento dessas importâncias. Ainda que a Requerente alegue que, segundo o princípio da especialização de exercícios, os gastos são imputáveis ao período de tributação em que são suportados, independentemente do seu pagamento, o certo é que os fundamentos da correção se centram na ausência de prova documental necessária, sendo que não é suficiente, para esse efeito, a apresentação dos contratos em que se encontre previsto o pagamento de juros de financiamento.
Relativamente aos preços de transferência, a Administração verificou que um dos maiores clientes da Requerente é a sociedade H..., Inc, sediada nos EUA, em ..., e de que detém uma participação de 100%, encontrando-se essas sociedades em situação de relações especiais, que implica a subordinação ao princípio da plena concorrência, vertido, no ordenamento jurídico português, no artigo 63º, n.º 1, do CIRC.
De acordo também com o estabelecido na Portaria n.º 1446-C/2001, existe a obrigação de os sujeitos passivos relacionados estarem na posse de um conjunto de informação relevante para que seja possível determinar a substância dos factos económicos e as razões justificativas dos seus comportamentos empresariais, através do dossier de preços de transferência, pelo que é sobre a Requerente que recai o ónus da prova da paridade de mercado em face das condições que tenham sido acordadas para as operações que entre si se estabeleçam. E essa obrigação compreende a demonstração de que foi utilizado o método ou métodos mais apropriados para assegurar o mais elevado grau de comparabilidade das operações efetuadas com outras substancialmente idênticas, realizadas por entidades independentes em situação normal de mercado.
Na situação do caso, os serviços inspetivos, considerando a natureza dos produtos transacionados e das operações realizadas, o grau de dispersão dos clientes no mercado norte americano e as cláusulas do contrato de fornecimento de mercadorias, entenderam que o método mais apropriado seria o “método do preço comparável do mercado”, tendo especialmente em linha de conta que a Requerente se responsabiliza pelas despesas de transporte marítimo, manuseamento local, seguro, despacho e desalfandegamento dos bens e custos de publicidade e preço praticado pela aquisição dos produtos corresponde a 70% do valor em tabela de preços para as vendas diretas efetuadas para o mesmo mercado.
Assim se concluindo que o método utilizado pelo sujeito passivo (método do preço de revenda minorado) não se adequa à realidade dos factos, ficando por demonstrar que as operações em análise cumprem com o princípio de plena concorrência.
2. Por despacho de 29 de junho de 2021, o tribunal notificou a Requerente para se pronunciar sobre incidente de alteração do valor da causa suscitado pela Autoridade Tributária.
Em resposta, a Requerente mantém que a utilidade económica imediata do pedido se cifra em € 342.255,72, e não em € 1.369.022,88, pois que da anulação da totalidade das correções impugnadas não resultará a restituição desse valor, mas tão-somente a reposição da parte dos prejuízos fiscais, que se refletirá no reporte desses prejuízos nos anos subsequentes.
Por decisão arbitral de 20 de julho de 2021, o tribunal considerou que do ato tributário notificado ao sujeito passivo não resulta qualquer liquidação de IRC, por terem sido reconhecidos prejuízos fiscais, pelo que a impugnação incide propriamente sobre as correções feitas à matéria coletável que não se refletem em qualquer imposto a pagar e apenas relevam no plano dos prejuízos fiscais e do seu eventual reporte nos exercícios seguintes. E, nesse sentido, decidiu que o valor atendível para efeito de custas terá de ser determinado nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea b), do CPPT, correspondendo ao valor contestado, uma vez que está em causa a impugnação do ato de fixação da matéria tributável, e, assim sendo, fixou o valor da causa no montante de € 1.369.022,88.
3. No seguimento do processo, houve lugar à reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal indicada pelas partes, determinando-se, na sequência, a remessa do processo para alegações.
Em alegações, as partes mantiveram as suas anteriores posições.
4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram indicados pelas partes que designaram o árbitro presidente. Os árbitros comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 21 de maio de 2021.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
5. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.
A A Requerente iniciou a sua atividade em 26 de maio de 2006 com o CAE Principal: 31091 - FABRICAÇÃO DE MOBILIÁRIO DE MADEIRA PARA OUTROS FINS, enquadrando-se, em sede de IRC, no regime geral.
B A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva credenciada pelas Ordens de Serviço n.os 012018...e 012018..., de âmbito parcial em sede de IRC e com referência aos exercícios de 2012 e 2013, e que foi motivada por ter solicitado a manutenção do direito a proceder à dedução de prejuízos fiscais apurados nesses exercícios.
C Em 17 de abril de 2019, a Requerente foi notificada do projeto de relatório de inspeção para efeitos de audição prévia, tendo suscitado, no exercício do direito de audição, objeções relativamente a gastos não aceites fiscalmente, e que os serviços inspetivos entenderam ser improcedentes, mantendo as correções tributárias que vinham propostas.
D No Relatório da Inspeção Tributária final, que constitui o documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, e que aqui se dá como reproduzido, a Autoridade Tributária efetuou, na parte que releva, as seguintes correções tributárias:
Quanto ao IRC de 2012:
Gastos fiscalmente não aceites, no valor de € 82.347,92 (Ponto III.1.2. do RIT);
Amortização de custos diferidos – Comissões Bancárias, no valor de
€ 414.564,31 (Ponto III.1.3. do RIT);
Acréscimo de juros de empréstimos, no valor de € 411.449,49 (Ponto III.1.6. do RIT); Preços de transferência, no montante de € 239.524,29 (Ponto III.1.7. do RIT).
Quanto ao IRC de 2013:
Gastos fiscalmente não aceites, no valor de € 30.971,61 (Ponto III.1.2. e IX do RIT); Preços de transferência, no valor de € 189.590,57 (Ponto III.1.7. do RIT).
E Na sequência, a Requerente foi notificada do ato de liquidação n.º 2019..., relativo ao ano de 2012, que corrigiu o prejuízo fiscal do exercício, fixando-o em € 373.256,69, e do ato de liquidação n.º 2019..., relativo ao ano de 2013, que corrigiu o prejuízo fiscal do exercício, fixando-o em € 177.276,55 (documentos n.ºs 1 e 2 juntos ao pedido).
F Em 24 de setembro de 2019, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra as liquidações de IRC.
G Por ofício de 11 de agosto de 2020, da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de ..., a Requerente, para efeitos de audição prévia, foi notificada do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que constitui o documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, e que aqui se dá como reproduzido.
H A Requerente não exerceu o direito de audição, pelo que, por informação dos serviços de30 de setembro seguinte, foi proposto manter indeferimento nos termos propostos no projeto de decisão.
I A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 2 de outubro de 2020, do Diretor de Finanças, notificado por ofício do dia 6 imediato, enviado por via postal sob registo (documento n.º 4 junto ao pedido).
J Em 27 de dezembro de 2004, a sociedade C..., S.A., com o número de matrícula e de pessoa coletiva..., celebrou com a sociedade de direito americano B..., LLC um contrato de arrendamento de um espaço, sito em Las Vegas, destinado à exposição e promoção de produtos da marca (documento n.º 7 junto ao pedido).
K O referido contrato foi objeto de um aditamento em 2 de março de 2010, através do qual foi atualizado o valor da renda, correspondendo o espaço arrendado a um stand no ..., sito em Las Vegas (documento n.º 8 junto ao pedido).
L A sociedade B..., LLC emitiu em nome da C..., S.A. as faturas que constam do documento n.º 6 junto ao pedido arbitral.
M Em 26 de junho de 2007, a pedido da C..., S.A., o I... prestou garantia bancária a favor do IAPMEI – Instituto de Apoio a Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento para efeito de concessão de incentivos financeiros, tendo como limite o montante de € 513.708,25 depois elevado para € 649.000,70 (documento n.º 11 junto ao pedido).
N Os documentos de cobrança periódica das comissões da garantia passaram a ser emitidas em nome da A..., S.A., pelo menos a partir de 26 de junho de 2012, ainda que com a menção do n.º de contribuinte da antecessora C..., S.A. (documento n.º 12 junto ao pedido).
O Em 25 de janeiro de 2012, o hotel E... emitiu uma fatura em nome de J..., com morada na zona industrial de Tomar, no valor de € 379,20, referente a uma estadia ocorrida entre 22 de janeiro a 25 de janeiro desse ano (documento n.º 13 junto ao pedido).
P Em 17 de fevereiro de 2012 e em 28 de agosto de 2012, a sociedade F... AG, sediada na Alemanha, emitiu documentos de cobrança em nome da C..., S.A, nos valores parcelares de € 1239,70 e € 3.333,00, referentes a encargos assumidos com publicidade de produtos em catálogos internacionais (documento n.º 14 junto ao pedido).
Q A Requerente registou na conta 622363-Trabalhos Especializados-OUT o montante de € 11.250,00, tendo esclarecido no âmbito do procedimento de inspeção, em resposta a um pedido de informação dos serviços inspetivos, que essa importância se refere a honorários de um arquiteto relativos a um projeto de ampliação da fábrica (RIT, pág. 15).
R A Requerente registou, em 2012, gastos relativos a acréscimos de juros de empréstimos bancários, no montante de € 411.449,49, por contrapartida de um compromisso de pagamento futuro com terceiros, que foram desconsiderados pela Autoridade Tributária por não ser possível confirmar, na contabilidade, a efetiva realização da despesa através de faturas ou outros elementos que demonstrem a saída dos meios financeiros (RIT, págs. 67-72).
S A Requerente registou gastos com deslocações e estadas nas contas #62227398 –
Desloc.Estadias – Viagens; # 62227199 – Desloc.Estadias – Hotéis-Rest. e # 6221222 Gasolina S/IVA que foram desconsideradas para efeitos fiscais, com fundamento no facto de não estarem suportados em documento de quitação/faturação e/ou de constarem de documento emitido em nome de terceiro (RIT, pág. 14).
T A sociedade C..., S.A. foi objeto de fusão, por incorporação, em 17 de novembro de 2008, na sociedade D..., S.A., com o número único de matrícula e de pessoa coletiva 507.756.258 (documento n.º 9 junto ao pedido).
U Após a operação de fusão por incorporação, a sociedade incorporante assumiu a designação da sociedade incorporada, C..., S.A. (documento n.º 10 junto ao pedido).
V Em 3 de junho de 2009, a sociedade incorporante veio a alterar a sua firma para A..., S.A (documento n.º 10 junto ao pedido).
W Em 2004, na sequência da falência, no ano anterior, do seu principal cliente norteamericano, a Requerente criou a H... Inc. na perspetiva de continuar a operar nesse mercado.
X Em 1 de março de 2004, a Requerente celebrou com a H... Inc. um contrato de fornecimento de produtos e mercadorias cuja cópia consta do documento n.º 15 junto com o pedido de pronúncia arbitral e que aqui se dá como reproduzido;
Y A viabilidade económica das vendas para os EUA dependia da minimização dos custos de transporte e a constituição da H... passou a permitir a concentração de um volume considerável de produtos expedidos pela Requerente (em contentores), a serem, depois, localmente distribuídos/revendidos a retalhistas pela H... no mercado norteamericano (declarações de parte de K...);
Z Sem a H..., as encomendas feitas nos Estados Unidos demorariam entre 8 a 10 semanas até chegarem aos clientes e com aquela subsidiária as entregas podem ser concretizadas em 3 ou 4 dias (declarações de parte de K...);
AA O único negócio da H... é encomendar à Requerente e vender a retalhistas os produtos adquiridos sem qualquer alteração (declarações de parte de K...);
BB As mercadorias enviadas pela Requerente à H... ficam em armazém desta nos Estados Unidos e esta empresa é que suporta os encargos com o transporte e pagamentos a comissionistas nos Estados Unidos (declarações de parte de K...);
CC A estrutura de custos locais nos Estados Unidos implica encargos da ordem dos 30% do valor das mercadorias (declarações de parte de K...);
DD A Requerente também fazia vendas diretamente a clientes norte-americanos (declarações de parte de K... e depoimento da testemunha L...);
EE Em 2012 e 2013 não tinha grandes clientes norte-americanos diretos, designadamente que adquirissem contentores completos de mercadorias, como fazia a H... depoimento da testemunha K...);
FF A Requerente elaborou os dossiers de preços de transferência relativos aos anos de 2012 e 2013, que constam dos documentos n.ºs 16 e 17 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, que aqui se dão como reproduzidos;
GG A Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral em 6 de janeiro de 2021.
Factos não provados
Não há factos não provados que relevem para a decisão da causa.
Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta e na produção de prova testemunhal em audiência.
A prova dos factos constantes das alíneas Q), R), S), T) e U) baseou-se nas declarações de parte de K... e a da alínea W) nos depoimentos das testemunhas K... e L... .
Matéria de direito
Gastos não aceites fiscalmente
6. A Requerente impugna as correções tributárias efetuadas no âmbito de um procedimento inspetivo resultantes da desconsideração, como gastos para efeitos fiscais, de faturação emitida pela sociedade de direito norte-americano B... e a sociedade de direito alemão F... AG e por um estabelecimento hoteleiro sediado em Colónia, Alemanha (E...), bem como outros gastos relacionados com o pagamento de honorários por trabalhos de arquitetura, deslocações e estadas e pagamento de comissões cobradas por emissão de garantias bancárias.
6.1. Relativamente aos gastos não aceites fiscalmente, a Requerente começa por invocar a violação do princípio do inquisitório por entender que a Administração se limitou a desconsiderar os gastos por não se encontrarem devidamente documentados, sem ter levado a efeito quaisquer outras diligências que visassem a demonstração da materialidade e efetividade das operações realizadas.
Como é sabido, a Administração Tributária está vinculada, ao nível do procedimento, ao princípio da verdade material, pelo qual lhe cabe o poder-dever de realizar todas as diligências que entenda serem úteis para a descoberta da verdade, sendo nessa iniciativa oficiosa de realização de diligências adequadas e necessárias à preparação da decisão que se traduz no princípio do inquisitório (artigo 58.º da LGT).
No entanto, do princípio do inquisitório não resulta a obrigação, por parte da administração tributária, de realizar todas as diligências requeridas pelo contribuinte no decurso do procedimento ou realizar todas aquelas que o interessado venha a entender a posteriori como necessárias face ao conteúdo da decisão final que tenha sido adotada.
O principal efeito jurídico da insuficiência das diligências instrutórias a realizar pela Administração no âmbito do procedimento tributário traduz-se, em sede de impugnação judicial, num non liquet probatório sobre os factos materiais da causa, implicando que o tribunal emita uma pronúncia desfavorável em relação à parte a quem incumbia fazer a prova dos factos, à luz dos critérios de repartição do ónus da prova do artigo 74.º da LGT (SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, Vol. I, Coimbra, 2017).
Como vício invalidante do ato tributário, a preterição do princípio do inquisitório (e, consequentemente, do princípio da verdade material) apenas pode ser considerada na situação limite em que os serviços omitam diligências essenciais à averiguação da situação tributária de tal modo que não se encontre justificação plausível para a correção fiscal.
Não é esse o caso quando a Administração fundamenta a correção na insuficiência da prova documental das despesas realizadas que deveriam encontrar suporte na contabilidade do contribuinte.
6.2. Questão diversa é a de saber que requisitos documentais se tornam exigíveis como condição de dedutibilidade dos gastos para efeitos fiscais.
O artigo 23.º do CIRC, na redação vigente à data dos factos, considerava como gastos fiscais os que “comprovadamente” fossem indispensáveis para a “realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora”, daí sendo permitido concluir que os gastos considerados dedutíveis dependiam de dois requisitos essenciais: a comprovação documental e a conexão com a atividade empresarial do sujeito passivo.
A reforma do IRC, alterando a redação desse preceito, veio esclarecer que os gastos dedutíveis “devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito” (n.º 3) e, no caso de gastos incorridos ou suportados com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo deve conter os requisitos especificados no n.º 4, vindo a consagrar o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência no sentido de considerar como bastantes, para a dedutibilidade do gasto, os elementos que identifiquem a operação realizada (sujeitos, objeto, data e preço). E que afasta, por conseguinte, mesmo na atual redação, os requisitos mais exigentes do artigo 36.º, n.º 5, do Código do IVA quanto às formalidades das faturas para efeito do direito de dedução do imposto (cfr. GUSTAVO LOPES COURINHA, Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 2019, Coimbra, págs. 105-106).
Por outro lado, quanto à prova documental dos gastos, e mesmo que se considere exigível que do documento justificativo constem os elementos que identifiquem a operação ou a transação realizada, não poderá perder-se de vista a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente no acórdão Barlis proferido no Processo n.º C-516/14, quanto às formalidades das faturas para efeitos de IVA. O TJUE tem salientado que as especiais exigências quanto ao teor das faturas não podem ser entendidas de modo absoluto e mesmo nos casos em que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais que sejam exigidos a respeito das faturas emitidas, nem por isso se deverá negar o direito de deduzir o montante de imposto por estes suportado a montante, conquanto estejam verificados os respetivos requisitos materiais. Para o efeito, esclarece o Tribunal de Justiça que a Administração não deverá apenas ter em conta as faturas em si consideradas, mas também as informações complementares prestadas pelo sujeito passivo. No fundo, o TJUE admite a prevalência da substância sobre a forma com intuito de garantir que os eventuais vícios formais das faturas não obstem ao direito de o sujeito passivo deduzir o imposto que tenha suportado a montante para a prática das operações sujeitas a IVA.
Transpondo esta orientação para a dedutibilidade de gastos para efeitos fiscais para determinação do lucro tributável em IRC, não pode deixar de reconhecer-se que a Administração Tributária deverá atender aos elementos complementares que tenham sido fornecidos pelo contribuinte de modo a aferir a fiabilidade dos dados inscritos na contabilidade e das operações comerciais que tenham sido realizadas (cfr., neste sentido, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 773/2019-T).
6.3. Revertendo à situação do caso, e no que se refere a gastos relativos a faturas com o descritivo “B...”, no valor total de € 56.970,84, o fundamento genericamente adotado pelos serviços inspetivos para a sua desconsideração fiscal reside no facto de os documentos justificativos terem sido emitidos em nome de terceiro.
Resulta, no entanto, da matéria da facto dada como assente que os documentos de débito respeitam a um contrato de arrendamento de um stand no ... em Las Vegas, celebrado em 2004 entre uma sociedade norte-americana (locador) e a sociedade C..., S.A. (locatária), para exposição e promoção dos seus produtos naquele mercado, e que esta entidade, entretanto, veio a ser objeto de incorporação por fusão na sociedade D..., S. A., que assumiu a designação da sociedade incorporada (C..., S.A.) e alterou depois a designação para A..., S. A. (alíneas S, T e U) da matéria de facto).
Tendo em consideração que a Requerente, através da operação de incorporação por fusão, sucedeu nos direitos e obrigações da sociedade incorporada e passou a deter, na sua esfera jurídica, a posição de locatária, passando a ser a destinatária dos débitos de rendas emitidos pelo locador norte-americano, fica evidenciada a materialidade da operação e a sua imputação à atividade empresarial da Requerente, encontrando-se assim verificados os pressupostos substantivos da dedutibilidade dos custos em atenção ao disposto no artigo 23.º, n.º 1 do CIRC, na versão vigente à data dos factos.
6.4. Pela mesma ordem de considerações, mostra-se ser ilegal a não aceitação para efeitos fiscais de gastos relativos a faturas com o descritivo “Garantia e Avales Banc” e “Garantia Banc. IAPMEI, no valor de € 11.698,24, com fundamento na circunstância de os documentos de suporte terem sido emitidos em nome de terceiro.
A garantia foi prestada pela C..., S.A. ao IAPMEI – Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento, através do I..., em 26 de junho de 2007, por 84 meses, para obtenção de incentivos financeiros, e, tendo ocorrido, em 2008, a incorporação por fusão daquela entidade na Requerente, esta passou a ser a beneficiária dos incentivos e a responsável pela prestação da garantia e pelos encargos com a sua manutenção cobrados pelo banco emissor. E não é relevante que, por mero lapso material imputável à emitente dos documentos de cobrança, nestes tenha sido referenciado o n.º de contribuinte da antecessora C..., S.A., quando é certo que, por dever de ofício, a Autoridade Tributária não poderia desconhecer, no âmbito do próprio procedimento inspetivo, a identificação fiscal da Requerente enquanto entidade destinatária e responsável pelos pagamentos (alíneas M) e N) da matéria de facto).
Sendo de concluir, do mesmo modo, que se demonstra a materialidade da operação e se verificam os requisitos substantivos da dedutibilidade dos custos.
6.5. Com o fundamento de se tratar de documento emitido a favor de terceiro, foi também desconsiderada a fatura com o descritivo “E...”, no valor de € 379,20, emitida por um estabelecimento hoteleiro sito em Colónia, Alemanha, em nome de J..., com morada na zona industrial de Tomar.
Alega a Requerente que se trata de um seu colaborador, pertencente aos seus quadros de pessoal e que se deslocava a feiras internacionais, em representação da Requerente, e que a fatura corresponde a um gasto identificado e efetivamente realizado e que devia ter sido tido como dedutível para efeitos fiscais.
Importa ter presente, a este propósito, que a dedutibilidade para efeitos fiscais de despesas incorridas com a deslocação de trabalhadores, ao serviço da entidade patronal, são enquadradas na lei a título de ajudas de custo e encargos com compensação por deslocações e depende da demonstração contabilística, a cargo do sujeito passivo, mediante a elaboração de um mapa que contenha os elementos de informação mencionados na referida alínea h) do n.º 1 do artigo 45.º (a que corresponde o atual artigo 23.º-A, n.º 1, alínea h)), e que se destinam a permitir o controlo das deslocações a que se referem aqueles encargos, designadamente os respetivos locais, tempo de permanência, objetivo.
E note-se que o que está em causa não é o ónus da prova de que as deslocações ocorreram e que tiveram um objetivo empresarial, mas o próprio preenchimento pelo sujeito passivo dos requisitos formais de que depende a dedutibilidade dos encargos.
Impondo a lei, por conseguinte, requisitos específicos, de caráter contabilístico, para a dedução de encargos dessa natureza, não é suficiente a demonstração de que a fatura foi emitida em nome de terceiro ainda que no interesse da empresa, pelo que, neste caso, o fundamento invocado pela Autoridade Tributária para a não aceitação do gasto, baseando-se no facto de o documento de suporte da despesa ter sido emitido em nome de terceiro, mostrasse ser procedente.
6.6. Discute-se ainda a desconsideração para efeitos fiscais de faturação emitida pela
“F... AG”, no valor global de € 4.572,70, que se encontra baseada, no relatório de inspeção tributária, em duas ordens de razões: trata-se de documentos emitidos em nome de terceiro e que se não apresentam como faturação ou quitação.
Por tudo o que já anteriormente se expôs, o primeiro argumento invocado não é relevante, na medida em que - como se esclareceu – a C..., S.A., em nome de quem são emitidos os documentos, foi extinta por efeito da operação de incorporação por fusão, e as relações jurídicas em que essa entidade era interveniente foram transmitidas para a esfera da Requerente, que assumia à data a responsabilidade pelo pagamento das despesas que os documentos titulam.
E, por outro lado, embora os documentos se assemelhem a uma carta de cobrança, e não a uma fatura, isso não é impeditivo de figurarem como suporte do registo contabilístico para efeito da comprovação do gasto, tendo em conta que neles se encontram identificadas as entidades emitente e destinatária, bem como a data, o valor e o descritivo da transação, que constituem os elementos essenciais para a caracterização da operação realizada. Não podendo ignorar-se que, à data dos factos, nos termos do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, apenas era exigível a comprovação do gasto, que poderia ser efetuada por fatura ou documento equivalente ou qualquer outro meio de prova, e que não se encontravam subordinados aos requisitos específicos que vieram a ser introduzidos pela Reforma do IRC de 2014.
Acresce que os documentos foram emitidos por entidade não residente, que não é obrigada a cumprir as regras de faturação vigentes no ordenamento jurídico português, o que resulta, de resto, em sede de imposto sobre o valor acrescentado, do artigo 35.º-A do Código do IVA, aditado pela Lei n.º 47/2020, de 24 de agosto, que estipula que “a emissão de fatura por sujeito passivo que não possua no território nacional a sua sede, estabelecimento estável ou, na sua falta, o domicílio a partir do qual a transmissão de bens ou prestação de serviços é efetuada, não está sujeita às regras estabelecidas no presente Código”.
Não há, por isso, motivo válido para excluir a dedutibilidade fiscal dos gastos a que respeitam aqueles documentos.
6.7. Um outro ponto em análise respeita a gastos contabilizados na conta 622363-“Trabalhos Especializados – OUT”, no valor de € 11.250,00, que os serviços inspetivos desconsideraram por se tratar de despesas de anos anteriores cujos documentos de suporte se circunscrevem aos exercícios das ocorrências, e que não encontram reflexo nos rendimentos auferidos pelo sujeito passivo e não contribuíram para realização dos rendimentos ou para a manutenção da fonte produtiva da empresa.
A Requerente esclareceu, no decurso do procedimento inspetivo, que os gastos se referem ao pagamento de honorários profissionais ao arquiteto que elaborou o projeto de ampliação da fábrica da Requerente, que tinha sido registado na conta de ativo fixo tangível (conta #44) de 2006 a 2012) e que acabou por não ser reconhecida como gasto do exercício em 2013, por ter sido decidido não prosseguir com a execução do projeto por virtude da situação económica da empresa.
Abordando esta questão, deve começar por dizer-se que, no preenchimento do conceito indeterminado de indispensabilidade a que se referia o artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, há um entendimento jurisprudencial firme no sentido de considerar que se “exige tão só uma relação de causalidade económica, no sentido de que basta que o custo seja realizado no interesse da empresa, em ordem, direta ou indiretamente, à obtenção de lucros. E fora do conceito de indispensabilidade ficarão apenas os atos desconformes com o escopo social, aqueles que não se inserem no interesse da sociedade, sobretudo porque não visam o lucro” (cfr., entre outros, o acórdão do STA de 29 de março de 2006, Processo nº 1236/05, e do TCA Sul de 6 de outubro de 2009, Processo 03022/09 e do TCA Norte, de 12 de janeiro de 2012, Processo 00624/05).
É nesse âmbito compreensivo que deve entender-se a nova redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, que, visando implementar um maior grau de certeza na aplicação concreta dos critérios de dedutibilidade, passou a consagrar como princípio geral que são dedutíveis os gastos relacionados com atividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, reforçando a ideia de que basta a conexão com a atividade empresarial, independentemente da efetiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto (cfr. Relatório Final da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, 30 de junho de 2013).
Nesse sentido, a atividade produtiva não deverá ser entendida num sentido restritivo, mas sim em sentido amplo, significando atividade relacionada com uma fonte produtora de rendimento da entidade que suporta os gastos.
Na situação do caso, é possível estabelecer uma ligação entre os gastos (honorários incorridos com um projeto de arquitetura) com uma certa opção de gestão empresarial (ampliação do espaço fabril), o que permite desde logo validar a qualificação da despesa como um custo fiscal, independentemente da verificação a posteriori da efetiva geração de proveitos.
Por outro lado, a circunstância de os gastos, reconhecidos em 2013, se reportarem a anos anteriores, também não os desqualifica para efeito de serem considerados como custos à luz do princípio da periodização do lucro tributável.
A Norma Contabilística e o Relato Financeiro que se refere ao tratamento contabilístico para ativos fixos tangíveis (NCRF 7), prescreve, no parágrafo 66 (b), que a quantia escriturada de um item do ativo fixo tangível deve ser desreconhecida “quando não se esperem futuros benefícios económicos do seu uso ou alienação”, e acrescenta, no parágrafo 67, que “o ganho ou perda decorrente do desreconhecimento de um item do ativo fixo tangível deve ser incluído nos resultados quando o item for desreconhecido”.
E, nestes termos, o reconhecimento do gasto não é feito por referência ao momento em que a despesa foi incorrida, mas àquele em que se concluiu que o ativo não vai ser usado e que do mesmo não irão fluir benefícios para a entidade (podendo distar diversos períodos de tributação entre o registo da despesa/aquisição do ativo e o do seu desreconhecimento).
Havendo sido cumpridas, pelo sujeito passivo, os princípios da dedutibilidade dos gastos e as regras contabilísticas de desreconhecimento dos ativos fixos tangíveis, nenhum motivo subsiste para a desconsideração fiscal imposta no Relatório de Inspeção Tributária.
6.8. Em relação a gastos com deslocações e estadas, no valor de € 11.144,12, desconsiderados para efeitos de dedução fiscal, em sede de IRC, com fundamento no facto de não estarem suportados em documento de quitação/faturação e de constarem de documento emitido em nome de terceiro, valem mutatis mutandis as considerações já formuladas no antecedente ponto 6.5.
Com efeito, tratando-se de despesas realizadas com a deslocação de trabalhadores, ao serviço da entidade patronal, a dedutibilidade para efeitos fiscais está dependente do preenchimento dos requisitos formais mencionados na alínea f) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC, então vigente, não sendo bastante a invocação de que as despesas se relacionam com a atividade empresarial da Requerente.
E, assim, independentemente de quaisquer outras considerações quanto à validade dos documentos de suporte para efeito da comprovação dos gastos, à luz do disposto no artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, o certo é que esses gastos não podem ser aceites para efeitos fiscais por efeito das regras próprias que limitam a dedutibilidade dos encargos de compensação com a deslocação de trabalhadores.
Amortização de custos diferidos – comissões bancárias
7. A Requerente não considerou os custos iniciais associados à montagem de operações de financiamento (comissões bancárias de constituição ou renegociação de empréstimos) contratualizadas nos anos 2005 e 2006, como gastos imputáveis a esses períodos, tendo diferido esses custos, proporcionalmente, pelo prazo do empréstimo. Tendo ocorrido, em 31 de dezembro de 2012, uma cessão da dívida à G... SGPS, por efeito da aquisição do capital social da Requerente, o valor remanescente de € 414.564,31, que havia sido diferido pela vida útil do empréstimo, foi integralmente reconhecido como gasto e deduzido para efeitos fiscais nesse exercício.
A Autoridade Tributária procedeu à correção tributária, invocando a violação do princípio da especialização dos exercícios, por considerar que os gastos contabilizados em 2012, a título de comissões e encargos financeiros suportados em anos anteriores, não podem concorrer para a formação do resultado líquido da empresa, fazendo ainda apelo às normas contabilísticas do NCRF 19 e NCRF 27.
A Requerente alega, por um lado, que o princípio da especialização dos exercícios carece de ser articulado com o princípio da justiça e não impede a imputação, a um exercício, de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios, e, por outro lado, não poderia a Autoridade Tributária basear-se em normas do Sistema de Normalização Contabilística, que vieram a ser introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, com início de vigência em 2010, para afastar a dedução de gastos com a contratação de empréstimos ocorrida em anos anteriores.
Como prescreve o NCRF no seu parágrafo 7, “os custos de empréstimos obtidos devem ser reconhecidos como gasto no período em que sejam incorridos” e verificando-se, no caso, que esses custos foram relevados num período de tributação (2012) que não corresponde àquele em que foram incorridos (2005 e 2006), ocorre a violação do princípio da especialização dos exercícios.
O princípio contabilístico da especialização económica dos exercícios, consagrado no n.º 1 do artigo 18.º do CIRC, consiste em incluir nos resultados fiscais os proveitos e custos correspondentes a cada ano económico, independentemente do seu efetivo recebimento ou pagamento. O n.º 2 permite que proveitos ou custos respeitantes a exercícios anteriores sejam imputáveis a um outro exercício apenas quando à data do encerramento das contas daquele eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos. O que significa que o custo ou proveito está tendencialmente associado ao momento da emissão do documento, sendo esse um critério contabilístico que reflete o princípio da periodização anual do imposto.
Entende-se, em todo o caso, que esse princípio não tem de ser interpretado em sentido estritamente literal quando da imputação do proveito ou custo a um exercício diverso daquele a que respeitava não resultar prejuízo para a Fazenda Nacional e a correção poder vir a traduzir-se num agravamento fiscal do contribuinte.
Como se afirma no acórdão do STA de 13 de outubro de 1996 (Processo n.º 20404), sem pôr em causa a relevância fiscal do princípio da especialização dos exercícios, é de admitir a imputação de custos a exercícios anteriores, quando ela não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios, como é o caso em que está prestes a acabar ou iniciar um período de isenção, quando há interesse em reduzir prejuízos de determinado exercício ou retirar benefícios do seu reporte e quando se pretende reduzir o montante dos lucros tributários.
E esse sentido interpretativo pode ser adotado – como se ponderou também no acórdão do STA de 5 de fevereiro de 2003 (Processo n.º 01648/02) - mediante a articulação do princípio da especialização de exercícios com o princípio da justiça a que a Administração Tributária se encontra igualmente vinculada (artigo 55.º da LGT).
No entanto, não há evidência, nas circunstâncias do caso, de que o diferimento dos custos não tenha beneficiado o contribuinte, por efeito do reporte de prejuízos fiscais que incidiram sobre os exercícios em causa (cfr. artigo 325.º do pedido arbitral), e que permitiram evitar que a dedução dos prejuízos aos lucros tributáveis tivesse ficado limitado ao prazo limite de cinco anos, previsto no artigo 52.º do CIRC (na redação então vigente), caso os custos tivessem sido imputados aos anos económicos em que efetivamente ocorreram, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios. E, sendo assim, não é possível mobilizar o princípio da justiça para afastar o critério contabilístico da periodização anual do imposto, visto que não está demonstrada a inocuidade, para os interesses da fazenda pública, da não imputação dos gastos aos períodos de tributação anteriores a que respeitavam.
Resta acrescentar que não há uma qualquer aplicação retroativa das normas contabilísticas e de relato financeiro, e, designadamente, a do parágrafo 7 do NCRF 10, quando a Administração se limitou a corrigir a dedução de gastos financeiros aos anos de 2012 e 2013 quando essas disposições se encontravam já em vigor.
Gastos não aceites relativamente a juros de empréstimos
8. A Autoridade Tributária desconsiderou ainda gastos relativos a juros de empréstimos bancários, no montante de € 411.449,49, reconhecidos em 2012 por contrapartida de um compromisso de pagamento futuro com terceiros, relativamente aos quais entendeu não ser possível confirmar, na contabilidade do sujeito passivo, a efetiva realização da despesa, designadamente, através de faturas ou outros elementos que demonstrem a saída dos meios financeiros, considerando insuficiente, para esse efeito, a apresentação dos contratos em que se encontre previsto o pagamento de juros de financiamento.
Em apoio desse entendimento, invoca o disposto no artigo 23.º do CIRC, na redação então vigente, que define como gastos dedutíveis os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, e o artigo 45.º, n.º 1, que exclui da dedução, para efeitos da determinação do lucro tributável, os encargos não devidamente documentados.
A Requerente entende que a correção assim efetuada não tem em devida consideração o princípio de especialização dos exercícios, segundo o qual os gastos são contabilizados e relevados fiscalmente quando são incorridos, independentemente do momento em que ocorra o desembolso da correspondente quantia.
O ponto de partida para a análise desta questão remete-nos para a já referida disposição do artigo 18.º, n.º 1, do CIRC, que estabelece o princípio da periodização do lucro tributável ou da especialização económica dos exercícios e pretende estipular o momento em que o rendimento ou o gasto deve ser levado efetivamente à tributação.
Este preceito, ao declarar que os rendimentos e os gastos são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, encontra acolhimento no pressuposto contabilístico do parágrafo 22 da Estrutura Conceptual do Sistema de Normalização Contabilística (cfr. Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Manual de IRC, edição da Autoridade Tributária e Aduaneira, 2016, pág. 84).
Essa regra contabilística é do seguinte teor:
Regime de acréscimo (periodização económica)
A fim de satisfazerem os seus objetivos, as demonstrações financeiras são preparadas de acordo com o regime contabilístico do acréscimo (ou da periodização económica). Através deste regime, os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos quando eles ocorram (e não quando caixa ou equivalentes de caixa sejam recebidos ou pagos) sendo registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem. As demonstrações financeiras preparadas de acordo com o regime de acréscimo informam os utentes não somente das transações passadas envolvendo o pagamento e o recebimento de caixa mas também das obrigações de pagamento no futuro e de recursos que representem caixa a ser recebida no futuro. Deste modo, proporciona-se informação acerca das transações passadas e outros acontecimentos que seja mais útil aos utentes na tomada de decisões económicas.
Como daí resulta, o critério de contabilização, para efeitos de periodização económica, é o do momento em que a transação ocorre, e não aquele em que se verifica o dispêndio ou saída efetiva meios financeiros, o que significa que se baseia num regime de acréscimo, e não num regime de caixa. O que está igualmente em sintonia com a noção extensiva de rendimento de acordo com a chamada teoria do acréscimo ou do incremento patrimonial, a que o legislador faz expressa referência no ponto 5 do preâmbulo o Código do IRC (cfr., ANTÓNIO ROCHA MENDES, IRC e as Reorganizações Empresariais, Lisboa, 2016, pág. 43).
Revertendo à situação do caso, o que se constata é que se encontram registados e relevados fiscalmente, na contabilidade da Requerente, os gastos incorridos a título de acréscimo de juros e documentados, no âmbito do procedimento inspetivo, os contratos celebrados com as entidades financiadoras, bem como o acordo de diferimento do pagamento desses juros, ficando cabalmente demonstrada a existência dos gastos financeiros e da sua conexão com a atividade empresarial do sujeito passivo, bem como sua imputação ao período de tributação a que respeitam, não havendo qualquer justificação, do ponto de vista legal, para a exigência da prova da efetiva realização da despesa através de documento que titule o seu pagamento.
E, por outro lado, como se deixou já esclarecido, à data dos factos, a comprovação do gasto, para os efeitos do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, não estava dependente de emissão de fatura ou de recibo de quitação, mas poderia efetuada por qualquer outro meio probatório, ficando, por isso, também excluída a não dedutibilidade fiscal com base na consideração de que se trata de encargos não devidamente documentados, na aceção do artigo 45.º, n.º 1, alínea h), do CIRC.
Como se impõe concluir, o pedido é, nesta parte, procedente.
Preços de transferência
9. Os serviços inspetivos consideraram que as condições estabelecidas entre a Requerente e a sua subsidiária fiscalmente residente nos Estados Unidos da América, H... Inc., no contrato celebrado em 1 de março de 2004, para o fornecimento de artigos de mobiliário comercializados pela Requerente, infringem o regime de preços de transferência consagrado no artigo 63.º do Código do IRC, considerando, essencialmente, que a Requerente terá realizado com a sua subsidiária operações equiparáveis a vendas diretas para o mercado norte-americano mas adotando condições distintas das que seriam praticadas com entidades independentes.
Nesse sentido, em função das cláusulas do contrato de fornecimento de mercadorias e das diversas condicionantes que intervêm na relação comercial, entenderam que o método mais apropriado para a determinação dos preços de transferência, de acordo com o princípio da plena concorrência, seria o “método do preço comparável do mercado”, tendo especialmente em linha de conta que a Requerente se responsabiliza pelas despesas de transporte marítimo, manuseamento local, seguro, despacho e desalfandegamento dos bens e custos de publicidade e o preço praticado pela aquisição dos produtos corresponde a 70% do valor em tabela de preços para as vendas diretas efetuadas para o mesmo mercado.
A Requerente contrapõe que a constituição de uma subsidiária nos EUA foi determinada pela falência do principal cliente americano e pela necessidade de assegurar a manutenção desse mercado e que essa entidade assume a função de um intermediário grossista, encarregando-se da contratação e remuneração de comissionistas locais, armazenamento, manuseamento, embalagem e transporte dos artigos de mobiliário no território americano, e, como contrapartida, adquire as mercadorias por um valor correspondente a 70% do preço de tabela para vendas diretas aos clientes finais, sendo essa margem comercial que constitui a remuneração legítima da atividade desenvolvida, que poderia ser estabelecida, em idênticas condições, com um qualquer intermediário grossista. Nessa linha de entendimento, preconiza como mais fiável o “método de revenda minorado”.
O que está em causa, num primeiro momento, é verificar se os preços aplicados, tendo em conta as características das operações, ainda que realizadas no âmbito de operações entre entidades relacionadas, são desajustados em relação aos preços normais de mercado, a ponto de poder colocar-se em causa o princípio da plena concorrência.
De acordo com o disposto no artigo 63.º do CIRC, o sujeito passivo deve adotar as condições que seriam normalmente acordadas entre entidades independentes (n.º 1) através da utilização do método ou métodos suscetíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efetua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais (n.º 2).
O artigo 4.º, n.º 3, da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro, em alinhamento com os princípios diretores da OCDE, para determinação do método mais apropriado a cada operação ou conjunto de operações em matéria de preços de transferência, estabelece que
“duas operações reúnem as condições para serem consideradas comparáveis se são substancialmente idênticas, o que significa que as suas características económicas e financeiras relevantes são análogas ou suficientemente similares, de tal modo que as diferenças existentes entre as operações ou entre as empresas nelas intervenientes não são suscetíveis de afetar de forma significativa os termos e condições que se praticariam numa situação normal de mercado ou, sendo-o, é possível efetuar os necessários ajustamentos que eliminem os efeitos relevantes provocados pelas diferenças verificadas”.
Por sua vez, o artigo 5.º, referindo-se aos fatores de comparabilidade, manda atender, entre outros, às características específicas dos bens, direitos ou serviços, que, sendo objeto de cada operação, são suscetíveis de influenciar o preço das operações, em particular, as características físicas, a qualidade, a quantidade, a fiabilidade, a disponibilidade e o volume de oferta dos bens, a forma negocial, o tipo, a duração, o grau de proteção e os benefícios antecipados pela utilização do direito e a natureza e extensão dos serviços”.
A aplicação do princípio da comparabilidade deve basear-se numa análise individualizada das operações, tendo em vista a comparação entre as condições praticadas numa transação entre entidades relacionadas e as praticadas entre entidades independentes.
Como resulta da matéria de facto dada como assente, a criação pela Requerente de uma subsidiária sediada nos Estados Unidos da América foi determinada pela falência do seu principal cliente norte-americano e teve o objetivo de manter e dinamizar a relação comercial com esse mercado e minimizar os custos de transporte local, de armazenagem e embalagem dos produtos vendidos aos retalhistas e de agenciamento de intermediários locais. O contrato de fornecimento de produtos e mercadorias celebrado entre a Requerente e a subsidiária estabelece regras precisas quanto à relação comercial estabelecida entre as partes e aos encargos que cada uma das contraentes assume relativamente à comercialização do mobiliário fabricado pela Requerente (cláusulas quinta e sexta).
O mesmo contrato contempla expressamente a possibilidade da venda direta dos produtos e mercadorias a outros clientes residentes nos Estados Unidos da América sem prévia autorização da subsidiária (cláusula quarta).
Neste contexto, a faturação dos fornecimentos efetuados à subsidiária por 70% da tabela de preços praticada nas vendas diretamente realizadas pela Requerente no mercado norte americano constitui uma margem de lucro razoável, que se destina não só a remunerar a atividade de revenda dos produtos, como a compensar os custos de comercialização em que a contraparte incorre e a que se encontra contratualmente vinculada.
Não é possível considerar, neste condicionalismo, que a Requerente viola o princípio da plena concorrência ao estipular, relativamente à sua subsidiária, um preço inferior ao praticado nas vendas diretas, quando é certo que a comparação estabelecida pela Autoridade Tributária é efetuada com os clientes diretos da Requerente sem que se tenham sido equacionados os fatores de comparabilidade entre a operação vinculada e as operações não vinculadas, designadamente no que se refere aos termos e condições contratuais que definem o modo como se repartem as responsabilidades, os riscos e os lucros entre as partes envolvidas em qualquer dessas operações.
Sendo assim, independentemente do método mais apropriado para a determinação dos preços de transferência, a correção tributária, neste âmbito, mostra-se ser ilegal por incorreta interpretação e aplicação do regime de preços de transferência por parte da Requerente.
Devendo ser este o sentido da decisão, fica prejudicado o conhecimento o vício de falta de fundamentação, também invocado em relação à correção tributária em causa, tendo em consideração que é o vício de violação de lei que confere mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.
Questões de constitucionalidade
10. A Requerente imputa às correções tributárias efetuadas relativamente aos gastos não aceites para efeitos fiscais a violação dos princípios constitucionais da tributação segundo o lucro real, da legalidade, da justiça e da igualdade tributária (artigo 157.º da petição), e, quanto à amortização de custos diferidos, a violação dos princípios constitucionais da tributação segundo o lucro real e da justiça (artigo 214.º da petição).
Como é sabido, o controlo difuso da constitucionalidade pelos tribunais é normativo, incidindo sobre uma norma ou interpretação normativa que tenha sido aplicada em decisão judicial ou em ato administrativo, competindo à parte suscitar de modo processualmente adequado a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
A suscitação processualmente adequada da questão implica a precisa delimitação do seu objeto, mediante a especificação da norma, segmento normativo ou a dimensão normativa que se entende ser inconstitucional (acórdãos n.ºs 450/06, 21/06, 578/07, 131/08) e a indicação das razões pelas quais se considera verificada a violação de normas ou princípios constitucionais (acórdãos n.ºs 645/06, 708/06, 630/08), não bastando uma referência genérica a essas normas ou princípios ou a imputação da inconstitucionalidade aos próprios actos jurídicos que são objeto de impugnação judicial.
Tendo-se limitado a Requerente a imputar os vícios de inconstitucionalidade às correções tributárias, sem indicação da norma ou interpretação normativa que entende terem sido aplicadas em violação da Lei Fundamental e sem um mínimo desenvolvimento quanto às razões que justificam um juízo de inconstitucionalidade, não há que tomar conhecimento de qualquer dessas questões.
III – Decisão
Termos em que se decide julgar parcialmente procedente o pedido arbitral e anular a liquidações adicionais de IRC no que se refere às correções referenciadas nos antecedentes pontos 6.3, 6.4, 6.6, 6.7, 8 e 9.
Valor da causa
Fixa-se o valor da causa no montante de € 1.369.022,88 de acordo com o critério previsto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea b), do CPPT e conforme a decisão arbitral interlocutória de 20 de julho de 2021.
Notifique.
Lisboa, 23 de novembro de 2021
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
A Árbitro vogal
Alexandra Coelho Martins
A Árbitro vogal
Sofia Ricardo Borges
(com declaração de voto em anexo)
Declaração de Voto
Com todo o devido respeito, que é muito, votei vencida a decisão em dois pontos.
Como se passará a referir. E o que exige um breve enquadramento prévio.
Estamos em sede de IRC e em matéria de dedutibilidade de custos, mais especificamente em matéria de requisitos formais exigíveis em matéria de dedutibilidade de custos (para efeitos fiscais, ou seja, de apuramento de Lucro Tributável).
Rege em especial o art.º 23.º do CIRC. Devidamente enquadrado no todo do Diploma legal em que se insere. Em que se adopta o conceito amplo de rendimento-acréscimo – o IRC incide sobre o lucro no conceito amplo de rendimento acréscimo cfr., desde logo, art.º 3.º, n.º 2, onde se lê “(…) o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correcções estabelecidas neste Código.” e, bem assim, cfr. art.º 17.º, n.º 1, “O lucro tributável (…) é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinadas com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.”
“Por força do artigo 17.º, a dependência (somente) parcial da fiscalidade quanto à contabilidade, em ordem à formação do lucro tributável, dita restrições à dedutibilidade (fiscal) dos gastos, influindo por acréscimo no resultado líquido.” O CIRC adere a um modelo de tributação do rendimento das pessoas colectivas sobre o rendimento acréscimo e sobre rendimento líquido, mas necessariamente corrigido pelo Direito Fiscal. Como se lê em Acórdão do TC que com a devida vénia passamos a transcrever “(…) Um sistema inexequível ou um sistema que não permita o controlo dos rendimentos e da evasão fiscal, na medida aproximada à realidade existente, conduz em linha reta à distorção, na prática, do princípio da capacidade contributiva e da tributação segundo o rendimento real.”
A nosso ver, em boa medida a exigência de suporte documental comprovativo do gasto, para que este pudesse ser considerado como fiscalmente dedutível, era já, mesmo antes da Reforma em 2014, uma realidade. A aceitação de custos para efeitos de determinação do lucro tributável terá que obedecer necessariamente a um conjunto de formalidades. Naturalmente com o eventual auxílio, sendo o caso (sendo necessário), de outros meios de prova, porém não de molde a que esses outros meios de prova sejam entendidos como fazendo dispensar as exigências de documentação contabilística próprias em IRC. Vemos com alguma reserva seja de admitir, na generalidade das situações, que outros meios de prova (desde logo que não documental) permitam suprir aquilo que era devido estar reflectido em documentação contabilística. O IRC – e a complexidade de apuramento do lucro tributável que lhe é própria assim sempre o exigiria – constrói-se tendo por referência/base necessária a contabilidade dos sujeitos passivos. A contabilidade dos sujeitos passivos, por sua vez, obedece às regras que se conhecem. Sendo que o Direito Fiscal acaba por ser – para o que aqui nos ocupa, o apuramento do lucro tributável – determinado com base nessa mesma contabilidade, com as correcções que o legislador, fiscal, determinou (CIRC). A tributação do lucro real é, afinal, a tributação segundo a contabilidade . Cfr. Art.º 17.º, n.º 1, in fine, supra, e n.º 3, neste último se lendo: “De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve: a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código; b) Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.” O legislador passar a fazer constar expressamente dos n.ºs 3 e 4 do art.º 23.º do CIRC as exigências de documentação dali constantes actualmente, parece-nos também, não veio senão reflectir o que já era em grande medida exigível à luz do mesmo Diploma legal no seu conjunto. Mais, a entrada na então CEE e a introdução do Sistema Uniforme do IVA em Portugal passou, desde então, a trazer consigo acrescidas exigências ao nível dos documentos de suporte de transações. É desde a implemetação do IVA que a exigência de cumprimento de requisitos próprios nos documentos de facturação se veio necessariamente a aplicar.
Como quer que seja, a prova de que o custo é efectivamente suportado pelo sujeito passivo , entendemos, não pode deixar de ser minimamente exigente. Para a determinação do lucro tributável, diz a norma (art.º 23.º, na actual redacção), “são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados (…)”. Ao tempo, assim: “Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam (…)” (art.º 23.º, na redacção à data – 2012/2013).
O que vem de se dizer tendo sempre, como bem se compreenderá, um necessário enquadramento, uma necessária aferição, pois, da suficiência ou não das formalidades em questão, caso a caso. E, bem assim, tendo por pano de fundo o enquadramento no todo do Sistema. Assim o vemos.
A este respeito, como refere António Moura Portugal - ao sublinhar a correcção que vê no entendimento jurisprudencial nestas matérias de preocupação com a realidade material, que não meramente com a formal – “saudamos esta preocupação com a realidade material que, de resto, vem demonstrar a impossibilidade de se proceder a uma aplicação mecanicista da lei e a uma interpretação literal dos requisitos legais exigidos para a emissão dos documentos. As circunstâncias concretas do caso podem e devem pesar decisivamente na decisão, sobretudo neste campo, assumindo-se até como critério seguro para uma aplicação justa da lei. Mas, note-se, sem que se perca de vista uma visão sistémica e de conjunto das exigências formais, o que naturalmente pressupõe que este tipo de questões não seja analisado apenas em atenção às fronteiras do caso concreto e à lógica própria do imposto sobre o rendimento.”
Sendo que a contabilidade, como tão bem reflectia Saldanha Sanches, tem efeitos em todo o Ordenamento Jurídico, corporiza valores que lhe são essenciais, assim se referindo o Autor à “função global da contabilidade”, escrevendo: “Os registos contabilísticos, mesmo quando a sua organização ou existência é determinada apenas pela lei fiscal, assumem assim uma função não apenas fiscal mas bastante mais vasta: deverão servir para estabelecer uma distinção entre formas de actividade empresarial exercidas de acordo com a lei e formas que se situam à margem desta.”
Como quer que seja, embora a Jurisprudência em geral fosse mais flexível quanto à exigência de formalidades documentais nesta sede até à redacção introduzida no art.º 23.º pela Reforma de 2014, ainda assim a mesma não era uniforme, sendo também conhecidos Arestos em que a posição era mais exigente.
Dito isto.
E por outro lado.
A equiparação directa, qua tale, entre a situação tal como se passa em sede de IVA e aquilo que em sede de IRC deva entender-se ter sido o pretendido/querido pelo legislador (em termos de exigências para comprovação da efectividade do suporte do custo e concomitante dedutibilidade fiscal), parece-nos também, não será totalmente adequada. Com efeito, em IVA o direito à dedução é a pedra de toque e fundamental razão de ser do próprio sistema, do Sistema Uniforme do IVA. Imposto que foi criado precisamente para substituir os impostos sobre o consumo em cascata, que o antecederam, vindo - pela dedução (pelo método subtractivo indirecto, que nela se baseia) - permitir que os agentes económicos intervenientes na cadeia não sofressem o ónus do imposto, que apenas recairá sobre o consumidor final – neutralidade, em IVA.
Ora, a simplicidade do método subtractivo indirecto - IVA - em regra é de tal modo evidente (o apuramento necessário do valor a deduzir, desde logo, por uma simples operação de subtracção) que, quanto a nós, contrasta com a delicadeza da dedução quando em custos em sede de IRC. E tal não poderá aqui ser totalmente desconsiderado, parece-nos. Desde logo para efeitos de uma aplicação imediata - em sede de IRC – da Jurisprudência do TJUE em matéria de facturação em IVA, quando em vista se tem (o TJUE tem) a possibilidade de ser reconhecido ao sujeito passivo o direito à dedução. Que a não ser reconhecido distorce o funcionamento de todo o sistema, ali.
O racional da Jurisprudência em questão há-de ser, na devida medida, ou em alguma medida, assim contextualizado. Ali estamos em tributação indirecta, em IVA, cujo funcionamento assenta na “fórmula sacramental” dedução.
Aliás, não deixa também de ser consentâneo com este entender, o facto de o TJUE já, diferentemente, relevar as exigências formais da facturação de modo mais exigente quando em situações de risco de fraude. Aí, a neutralidade do imposto, cuja “força” assenta no direito à dedução, deixa de ser o valor primacial a proteger.
E sempre se recorde, neste ponto, a razão de ser das exigências formais em sede de dedutibilidade de custos, IRC - possibilitar o controlo público do cumprimento da lei e assim também evitar situações de fraude à mesma.
Em suma, o apuramento da matéria colectável em IRC - onde a questão da dedutibilidade dos custos se enquadra – não pode, para os efeitos que aqui nos ocupam, ser vista pela lente do IVA senão cum grano salis. A neutralidade, o traço caracterizador em IVA (e que é o que, quanto a nós, dá razão à referida Jurisprudência do TJUE), como bem se compreende, não é confundível com a neutralidade perspectivável em IRC.
A referida Jurisprudência do TJUE é prolatada em IVA, tributação indirecta, imposto Uniforme. Estando em IRC, imposto Interno, não uniformizado, alguma, mesmo que relativa, adaptação – na transposição da dita Jurisprudência - será de ponderar, é o que nos parece. (A revelar que a realidade não deixa de dever ser olhada como algo distinta, recorde-se também como a Jurisprudência do TJUE em tributação directa se faz, diferentemente do que em tributação indirecta, e necessariamente, pela negativa - por recurso às Liberdades Fundamentais.)
Assim, um racional na mesma assente, fazendo sentido em sede de IVA, poderá não o fazer, pelo menos a 100% e em todo e qualquer caso, em sede de IRC.
Desde logo não cremos que se pudesse colocar nas mãos da AT a responsabilidade por em geral conseguir encontrar os elementos necessários a que um custo incorrido pelos sujeitos passivos possa ser aceite como fiscalmente dedutível.
Em todo o caso, note-se como mesmo no Acórdão Barlis (para que remetemos agora com as ressalvas que decorrem do que antecede) se trata de admitir prescindir de certas formalidades apenas (“os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais” – cfr. Parágrafo 42.) - e desde que os requisitos materiais estejam cumpridos e, mais, se a Administração Fiscal dispuser de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos – do direito à dedução em IVA – estão reunidos (parágrafos 42. e 43.)
Isto dito, também não cremos que as normas do CIRC que vêm convocadas permitam uma interpretação tão flexível como a Requerente defende. Mesmo na interpretação do n.º 4 do art.º 23.º não cremos ser de se aceitar, sem mais, que um documento de cobrança emitido por entidades estrangeiras (mesmo que não residentes na UE) não deva também, para poder ser aceite como custo para apuramento do lucro tributável, obedecer a certos formalismos mínimos. Com algum interesse, com as devidas adptações, pode ver-se a publicação pela OCC em https://www.occ.pt/fotos/editor2/obrigacoes.pdf com referência a exigências formais , e aí, os pontos I, c) e d), que transcrevemos parcialmente: c) Elaboração dos documentos por outra entidade / As faturas e demais documentos fiscalmente relevantes são emitidos pelos próprios sujeitos passivos, podendo ser elaborados pelos adquirentes dos bens ou serviços ou por um terceiro, em nome e por conta do sujeito passivo, sendo, nestes casos, o sujeito passivo transmitente dos bens ou prestador dos serviços responsável pela sua emissão e pela veracidade do seu conteúdo.
Assim, e em suma, não deixaria de caber, no caso dos autos, quanto a nós, a consideração, reportada aos pontos que passaremos a referir, de se tratar de encargos não devidamente documentados e consequentemente fiscalmente não dedutíveis. Como segue, sucintamente.
Quanto ao ponto 6.6. - carta de cobrança
Não nos é dado acompanhar a decisão neste ponto no que à suficiência do suporte documental se refere. Não cremos ser de aceitar - à face do prescrito em IRC - como documento sequer contabilisticamente suficiente, uma mera carta de cobrança, mesmo que nela estejam contidos alguns elementos de identificação das “partes”. Uma carta de cobrança, desde logo, não prova um subsequente pagamento. Aceitá-la como prova de efectivamente ter sido incorrido ou suportado um custo (cfr., entre o mais, art.º 23.º) é, além do mais, em nosso entender, abrir a porta a situações que não serão pretendidas pelo legislador.
Senão vejamos. O envio de uma carta de cobrança, uma Nota de honorários, por um Advogado a um Cliente, por exemplo, não configurará um rendimento por si auferido, como assim também não um custo incorrido pelo Cliente. Coloque-se a situação entre uma sociedade (de advogados) e um Cliente, se se preferir. Ou com uma provisão para honorários, o mesmo se passará.
Diferentemente já será se depois o Cliente efectivamente pagar por exemplo a provisão para honorários, aí então sendo devida a emissão da factura/recibo com IVA. E aí sim, então, por esta via, por este suporte documental, ficando demonstrada a efectividade da operação – prova de o prestador ter auferido o rendimento e de o Cliente ter incorrido/suportado o custo.
E não será por o art.º 23.º à data não conter a redacção dos actuais n.ºs 3 e 4 que tal conclusão há-de necessariamente afastar-se, parece-nos. Desde logo por contabilisticamente tal nos parecer claro, a não aceitação. E por, ainda assim, o CIRC conter outros dispositivos que levam a este entendimento, seja o próprio art.º 23.º, n.º 1, primeira parte, seja o art.º 17.º, já referido, o (então vigente) art.º 45.º, n.º 1, al. g), entre o mais. Seja, sempre se refira, o já aproximado acima, quando, entre o mais, nos referimos ao art.º 17.º e à dependência (parcial) da contabilidade. Seja – não de somenos quanto a nós - o princípio da documentação em IRC. Cfr. Art.º 123.º. Que também já ao tempo era expresso. E que dispõe, entre o mais, “As sociedades (…) são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do art.º 17.º, permita o controlo do lucro tributável.” E no seu n.º 2., entre o mais, assim: “2. Na execução da contabilidade deve observar-se em especial o seguinte: / a) Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário; b) As operações devem ser registadas cronologicamente, (…)”.
Porque não juntar-se, então, no caso, um correspectivo documento contabilístico? Ainda que posteriormente? Ao invés de simplesmente duas cartas, escritas em Alemão, das quais não só não constam nipcs como apenas se referem pedidos de pagamento / avisos de montantes a pagar.
Não seria quanto a nós procedente o pedido neste ponto, sendo de entender o custo não estar devidamente documentado.
Quanto ao ponto 8. - juros de empréstimos
Também aqui não nos é dado acompanhar a decisão.
A fundamentação da correcção por parte da Requerida foi, como se lê e se apreende pelo RIT (ponto 4.6.), “a falta de comprovativo quer do pagamento quer da existência e nascimento da obrigação de satisfação da dívida evidenciada na contabilidade do SP”. A Requerida entendeu, e quanto a nós bem, que a documentação existente, que lhe foi facultada após solicitação (uma vez que apenas existiam documentos de natureza interna consistentes num resumo do lançamento contabilístico), contratos e aditamentos, não é de molde a suportar documentalmente os custos.
Com efeito, a previsão de um gasto / o facto de um pagamento ser devido não preenche, parece-nos, a previsão do art.º 23.º, n.º 1 – gastos suportados/incorridos. Senão vejamos. Um exemplo, num paralelo com o facto de se referir que nos contratos de mútuo estava previsto que os juros viriam a ser devidos. Imagine-se um contrato de arrendamento comercial, por hipótese, com uma renda se se quiser avultada. O contrato é celebrado pelas partes, está em vigor. É devida uma renda mensalmente, pelo locatário. Suficiente para dedução de um custo? E se porventura o locatário não pagar a renda? Mês após mês, não obstante ela ser um pagamento devido em todos e cada um dos meses? E como tratar contabilisticamente então se porventura após um determinado decurso do tempo o locador aceitar que o locatário já não terá que pagar aquelas rendas?
Acresce, sempre se poderá pensar, que o cálculo de qual seja o montante de juros devidos caso a caso também não é algo que venha pré-estabelecido nos contratos. Apenas é possível, como bem se compreende, a fixação prévia de uma taxa. A qual até pode em não poucos casos sofrer alterações no tempo. No caso dos autos, lê-se no RIT, os SIT concluíram da análise aos contratos que os juros são devidos todos eles a diferentes taxas e com diferentes fórmulas de cálculo, com momentos de pagamento previstos distintos. Seria então uma questão de simplesmente aceitar as contas feitas pelo SP, em casos como o dos autos, o que não cremos passível de ser aceite como meio para alcançar/apurar o lucro tributável de um sujeito passivo. Ademais sem existirem documentos de registo contabilístico que não documentos meramente internos. Não há notas de débito, por exemplo, como faria sentido haver, dir-se-ia. Aliás, sempre se diga, não se compreende porque não poderia o SP, mais uma vez também aqui, ter vindo entretanto juntar documentos como esses (tardiamente obtidos).
Se o SP não chegar a pagar os ditos juros? Deve entender-se tal ser indiferente? Não cremos. Nem nos parece que do art.º 18.º decorra que assim se deva entender. Desde logo quando não exista nem pagamento nem documento de suporte suficiente. E v. também a contextualização com as demais regras constantes do art.º 18.º. (Note-se também, sem prejuízo do que já atrás se disse quanto à relação com o IVA, que o art.º 29.º, n.º 3 do CIVA pode em muitas situações não ter aplicação, por se tratar de sujeitos passivos mistos).
Mais uma vez, não nos parece difícil, ao seguir posição diferente, estar a abrir-se a porta a situações não queridas pelo legislador. Outorga, por hipótese, conveniente, de contratos de mútuo, aos quais mais tarde se aditam alterações, entretanto se indo reflectindo custos contabilisticamente. Sem que nunca venham os juros a ser pagos / os contratos a ser cumpridos. Situações que a nossa história recente, de conhecimento público, não desconhece, aliás.
Entendemos, pois, que não era de aceitar a dedução, nos termos “documentados” pela Requerente. Cfr. art.º 23.º, n.º 1, primeira parte.
*
A terminar, e numa possível súmula com o sentido da posição que entendemos ser de seguir quanto a estes dois pontos da decisão (6.6. e 8.), como vimos de expôr, permitimo-nos retirar dos ensinamentos de Saldanha Sanches a respeito de custos o que segue :
“Neste sentido se pode facilmente compreender a posição do STA no caso (…) quando afirma que não pode dar razão ao recorrente apenas por que este não fez prova de que a tal despesa não devidamente documentada teve efectivamente lugar: verificado o incumprimento do dever de documentar surge o ónus de provar que a despesa efectivamente se verificou.
Tendo depois lugar o julgamento sobre se se fez ou não prova bastante da existência do custo.”
E assim: “Tudo isto é indesmentível: mas pelo facto da inscrição no balanço ser independente do pagamento ou do recebimento, não quer dizer que o lucro de uma empresa possa ser inflacionado pela existência de uma certa quantia que não vai nunca ser recebida e que foi objecto de contabilização no erróneo convencimento de que iria ser recebida” – adaptando, mutatis mutandis, para o caso não de rendimentos e sim de gastos, como nos autos.
Por tudo o que antecede, teríamos decidido pela improcedência do pedido também nestes pontos.
Sofia Ricardo Borges