Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 626/2020-T
Data da decisão: 2021-10-26  IRS  
Valor do pedido: € 2.693,34
Tema: IRS – Mais-valias imobiliárias obtidas por não residente; aplicação da redução de 50% prevista no art. 43º, nº 2 b) CIRS.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

A..., titular do cartão de cidadão n.º ..., contribuinte n.º ..., residente em ..., ..., ..., ..., ..., em França, (doravante designada como Demandante), apresentou, no dia 13-11-2020, nos termos dos artigos 2º, n.º 1, alínea a) e 10º n.os 1 e 2 do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou RJAT), e 1º e 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, em conjugação com a alínea a) do artigo 99º do Código de Procedimento e Processo Tributário, pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade e à anulação parcial do ato de liquidação n.º 2020..., relativo a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do exercício de 2019, no valor de € 5.386,68 (cinco mil trezentos e oitenta e seis euros e sessenta e oito cêntimos).

Em síntese, a Demandante fundamenta o seu pedido nos seguintes argumentos:

             Tendo alienado um imóvel urbano no ano de 2019, e realizado um mais-valia tributável através dessa alienação, no cálculo do imposto a pagar sobre a mesma, a AT considerou como matéria tributável a totalidade da mais-valia, não aplicando a redução de 50% prevista no art.º 43.º n.º 2, al. b) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS);

             A tributação da totalidade das mais-valias imobiliárias no caso de um não-residente é incompatível com o Direito da União Europeia, em particular com a liberdade de circulação de capitais, estabelecida no artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE);

             Por força do princípio da liberdade de circulação estabelecido no art.º 63.º do TFUE, a Demandante tinha direito a que lhe fosse aplicada a redução de 50% na mais-valia imobiliária, mesmo não sendo residente no território português, mas sim residente em França.

A Demandante termina pedindo ao tribunal que condene a Demandada a : i) anular parcialmente a liquidação posta em crise, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração total da mais-valia imobiliária; ii) Substituir a referida nota de liquidação, por outra que preveja a aplicação da exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias em 50%; iii) ) Restituir à Demandante o valor de imposto indevidamente pago, no valor de € 2.693,34; iv) pagar à Demandante juros indemnizatórios, desde a data em que a Demandante efetuou o pagamento do imposto, até ao integral pagamento do montante que deve ser reembolsado; v) pagar as custas do processo.

É demandada no pedido de pronúncia arbitral a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Demandada”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 16-11-2020.

Nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º e da alínea b) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 11-01-2020, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03-05-2020.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido, apresentando para tal os argumentos que a seguir se sintetizam:

             Não obstante o facto de o TJUE, no seu acórdão de 11-10-2007, no processo C-443/06 (Hollman) ter considerado incompatível com a livre circulação de capitais garantida no art. 63º do TFUE o regime previsto no art. 72º, nº 1 do CIRS na redação anterior à Lei nº 67-A/2007 de 31/12, o quadro legal atual já não é o que existia à data desse acórdão;

             Isto porque, no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão do Tribunal de Justiça, foi aditado ao art.º 72º do CIRS o nº 7, que instituiu a possibilidade de os não residentes optarem, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do nº 1 e no nº 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no nº 1 do artigo 68º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português;

             Igualmente o nº 8 do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei nº 67-A/2007, prescrevia, à data dos factos, que “para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes”.

             Assim, para beneficiar da redução de 50% na mais-valia, ao abrigo do art.º 43.º, n.º 2 do CIRS, a Demandante podia ter optado pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º do Código do IRS, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português, sendo que a determinação da taxa teria em conta todos os rendimentos incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes, o que não fez;

             Tendo em conta a alteração legislativa ocorrida na legislação em causa, em consequência das decisões do TJUE, deverá julgar-se não verificada a hipótese de ato claro ou de ato aclarado, pelo que tem de forçosamente se considerar que se levantam dúvidas suficientes que obstam à aceitação do entendimento da Demandante sem prévia consulta ao TJUE, para que este possa exercer as suas competências próprias, nos termos dos Tratados.

Por despacho do Tribunal de 28-08-2021, foi decidido não se realizar a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, por desnecessária, e ao abrigo dos princípios da celeridade, da simplificação e da informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), e conceder às Partes prazos sucessivos para apresentação de alegações finais.

A Demandante apresentou alegações finais, em que argumentou, em síntese, que o regime português, contido no CIRS, de tributação das mais-valias imobiliárias dos não residentes continua a violar o Direito da União Europeia, não obstante as alterações introduzidas pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12.

A AT não apresentou alegações finais.

 

II. Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 2º, e do nº 1 do artigo 10º, ambos do RJAT e é materialmente competente.

As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4º, nº2 do artigo 10º, do mesmo diploma e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

III. Questões a apreciar

A questão a apreciar no presente processo é a de saber se o atual regime do Código do IRS, de tributação de mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes, ao prever a aplicação de uma redução de 50% à mais-valia tributável, ao abrigo do art.º 43.º, n.º 2, al. b) do CIRS,  apenas quando o sujeito passivo não residente opte pelo englobamento de todos os rendimentos e pela aplicação as taxas do regime geral, é compatível com o Direito da União Europeia, nomeadamente com o art.º 63º do TFUE.

 

IV. Fundamentação

1.            Matéria de facto

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

A.           No ano de 2019, a Demandante era residente fiscal em França, sendo considerada não residente fiscal em território nacional;

B.            Tendo a Demandante sido casada com B... no regime de comunhão geral de bens, adquiriu, na constância deste matrimónio, com o seu marido, em 13/10/1994, por escritura pública, o prédio urbano composto por casa de habitação dependência e terreno, sito na Rua ..., na atual União das Freguesias de ..., ... e ..., concelho de Ponte da Barca, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte da Barca sob o n.º..., da freguesia de ..., e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ..., da referida União de Freguesias, pelo preço de dois milhões de escudos;

C.            No dia 22/10/2017, faleceu o marido da Demandante B..., no estado de casado com a Demandante, encontrando-se integrada na herança daquele a respetiva meação no supra referido imóvel;

D.           A Demandante herdou então 16,66% do imóvel, pelo valor de 4.987,98 euros;

E.            Na totalidade, a Demandante era proprietária, em 2019, de 66,66% do referido imóvel, que adquiriu por um valor de aquisição global de 7.519,64 euros;

F.            Em 2019, a Demandante alienou a sua quota-parte no referido imóvel.

G.           Com a alienação do imóvel, a Demandante realizou uma mais-valia de 19.238,17 euros;

H.           Tendo apresentado declaração de rendimentos referente ao ano de 2019, e tendo mencionando no anexo G a referida alienação, a Demandante assinalou no quadro 8B da declaração os campos 4 (“não residente”) e 7 (“Pretende a tributação pelo regime aplicável aos não residentes”);

I.             A AT procedeu à liquidação do imposto com base na referida declaração, não aplicando à mais-valia imobiliária a redução de 50% prevista no art.º 43º, n.º 2 CIRS, e apurando um imposto a pagar no montante de € 5.386,68 (cinco mil trezentos e oitenta e seis euros e sessenta e oito cêntimos);

J.             A Demandante procedeu ao pagamento integral do imposto liquidado, no dia 07 de Agosto de 2020.

Não existem factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.

A fixação da matéria de facto baseia-se no alegado e não contradito pelas Partes, nos documentos juntos pela Demandante e no processo administrativo junto pela Demandada.

 

2.            Discussão de direito

Atualmente, o art. 43º, nº 2 do CIRS estipula:

2 - O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c), d) e i) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é:

(...)

b) Apenas considerado em 50 % do seu valor, nos restantes casos.

Segundo a letra da disposição, apenas os residentes podem beneficiar da redução de 50% prevista na al. b), sendo este o aspeto que opõe a Demandante, residente em França, e a Autoridade Tributária.

A questão da compatibilidade da norma do art. 43º, nº 2, al. b) do CIRS com o direito europeu, nomeadamente com o art. 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (e anteriormente o art. 56º do TCE) não é recente.

Em 2006, ela foi remetida pelo Supremo Tribunal Administrativo à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia, no processo C-443/06, tendo este tribunal emitido decisão no sentido da incompatibilidade da norma do Direito português com o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado, então, no art. 53º do Tratado CE.

Na sequência de tal acórdão, o legislador português aprovou uma alteração ao regime de tributação das mais-valias imobiliárias no quadro do IRS (através da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12), passando a prever um regime especial para a tributação de mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes.

Tal regime, assente essencialmente numa tributação autónoma, consta do artigo 72º, cujo nº 1 dispõe:

1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %:

a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado;

Esta norma é completada por uma possibilidade de opção de englobamento, hoje estabelecida no nº 14 do mesmo preceito, facultada apenas aos residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, que diz:

14 - Os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e no n.º 6, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

Entende a Administração Tributária que os não residentes que façam esta última opção não ficam apenas sujeitos às taxas do art. 68º, nº 1, mas também beneficiam da redução de 50% prevista no art. 43º, nº 2, al. b) (dizemos que se trata de um entendimento da Administração Tributária, pois não encontramos esta norma expressa na lei).

E sendo assim, entende ainda a Autoridade Tributária, os não residentes teriam passado a ter, com a alteração legislativa ocorrida em 2007, a opção de receberem o mesmo tratamento ou um tratamento diferente do que é dado aos residentes, em matéria de mais-valias imobiliárias, com o que o regime atual das mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes já não pode considerar-se incompatível com o Direito da União Europeia, nomeadamente com o seu princípio de livre circulação de capitais, contido, hoje, no art. 63.º do Tratado FUE.

Após esta alteração legislativa, os tribunais dividiram-se quanto à questão da compatibilidade do novo regime do Direito nacional com o direito europeu (vg. decisão arbitral CAAD 22.04.2019, proc. nº 539/2018-T; decisão arbitral CAAD 09.06.2020, proc. n.º 846/2019-T).

Recentemente, porém, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se sobre a matéria num recurso de uniformização de jurisprudência (STA, acórdão de 09.12.2020, processo nº 075/20.6BALSB), tendo confirmado o entendimento de que a norma da al. b) do nº 2 do art. 43º do CIRS continua a ser incompatível com os Tratados Europeus, não obstante as alterações legislativas ocorridas.

Diz nesse aresto o Supremo Tribunal Administrativo:

“Os ganhos obtidos por pessoas singulares com a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, quando não constituam rendimentos empresariais e profissionais, são tributados, em sede de IRS, no âmbito da categoria G (incrementos patrimoniais), como mais-valias, nos termos do disposto nos arts. 9.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS.

Esses rendimentos, desde que resultantes da transmissão de direitos reais relativos a imóveis situados em território português consideram-se aqui obtidos [art. 18.º, n.º 1, alínea h), do CIRS], pelo que ficam abrangidos pela incidência de IRS quando auferidos por titulares não residentes (cf. arts.13.º, n.º 1 e 15.º, n.º 2, do CIRS).

O valor desses rendimentos que seja qualificado como mais-valias, quando obtidos por sujeitos passivos residentes é sujeito a englobamento e a tributação é efectuada às taxas gerais progressivas estabelecidas no art. 68.º do CIRS, mas apenas é considerado em 50%, como resulta do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redacção aplicável.

Quanto aos sujeitos passivos não residentes, a tributação desse valor faz-se à taxa fixa especial de 28%, nos termos do art. 72.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, ou, se forem residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu (EEE), neste caso por opção, às taxas gerais progressivas do art. 68.º o CIRS, considerando-se então todos os seus rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, mas sobre 100% da mais-valia imobiliária realizada (cf. arts. 72.º, n.ºs 9 e 10, na redacção aplicável).

A questão que se coloca é a de saber se, como alega a Recorrente, este regime opcional, que foi introduzido pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), então sob os n.ºs 7 e 8 (actuais n.ºs 13 e 14 e n.ºs 9 e 10, na redacção aplicável), aditados ao art. 72.º do CIRS, veio pôr termo à discriminação negativa dos não residentes, que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) tinha já considerado verificar-se relativamente ao n.º 2 do art. 43.º do CIRS.

Na verdade, o TJCE – em acórdão (Hollmann) proferido em 11 de Outubro 2007, no processo n.º C-443/06 (...) em resposta ao reenvio prejudicial efectuado pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do processo n.º 493/06 (Vide os acórdãos proferidos nesse processo n.º 439/06, o primeiro fazendo o reenvio prejudicial e, o segundo, já referido na nota 3 supra, decidindo o recurso, após a pronúncia do TJCE de 28 de Setembro de 2006 (...) julgou «incompatível com o direito europeu a norma do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE».

É certo que o legislador nacional, através da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), procurou obviar a esse tratamento discriminatório dos residentes comunitários e do EEE, facultando-lhes, em termos opcionais, a possibilidade de tributação das mais-valias imobiliárias em condições similares às aplicáveis aos residentes em território português, aditando ao art. 72.º do CIRS os n.ºs 7 e 8 (actuais n.ºs 13 e 14). Ou seja, após a referida alteração legislativa ficaram a vigorar, na área da tributação das mais-valias imobiliárias, dois regimes distintos, aplicáveis a não residentes: um regime geral, aplicável a quaisquer sujeitos passivos não residentes, traduzido na tributação desses rendimentos à taxa especial de 28% incidente sobre a totalidade do rendimento e um regime especificamente aplicável a residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do EEE, equiparável ao regime de que beneficiam os sujeitos passivos residentes.

Mas esse regime específico de opção, não só constitui um ónus suplementar comparativamente aos residentes, como não afastou a referida discriminação negativa. Como bem concluiu a decisão recorrida, «o regime de equiparação actualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o carácter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter que optar por dois regimes, um legal e outro ilegal».

Como também salientou a decisão recorrida, o acórdão (Gielen) do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 18 de Março de 2010, proferido no processo n.º C-440/08 (...) após salientar que «a opção de equiparação [que] permite a um contribuinte não residente, (...) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório» não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais, concluiu que «o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (...) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.º TFUE em razão do seu carácter discriminatório» e que o Tratado «se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (...) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes». Ou seja, o regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, não veio sanar a discriminação negativa resultante da norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS para os não residentes e a violação do art. 63.º do TFUE que dela resulta.

Assim, bem andou a decisão recorrida quando julgou incompatível com o Direito da União Europeia a norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo art. 63.º do TFUE e, em consequência, quando anulou os actos de liquidação em causa (de IRS e de juros compensatórios) na parte em que desconsideraram aquela limitação.”

Depois de expor assim o seu entendimento, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo concluiu:

“2.2.3 Em face de tudo quanto deixámos dito, uniformizamos jurisprudência no seguinte sentido: o n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redacção aplicável, ao prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, incompatível com o art. 63.º do TJUE, não tendo essa discriminação negativa dos não residentes sido ultrapassada pelo regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, previsto, aliás, apenas para os residentes noutro Estado-membro da UE ou na EEE e não para os residentes em Países terceiros.”

É assim manifesto que, para o Supremo Tribunal Administrativo, o regime instituído pelo legislador fiscal português em resposta ao acórdão Hollmann não sanou a incompatibilidade que o TJUE declarou existir entre o art.º 43.º, n.º 2, al. b) e o Direito da União.

A jurisprudência uniformizada, apesar de não ter o valor vinculativo que outrora tinha o “assento” previsto no revogado art. 2º do Cód. Civil, goza de um valor reforçado que lhe advém, por um lado, da hierarquia do órgão jurisdicional que a definiu e, por outro lado, da lei processual que prevê (art. 142º, nº 3, al. c) do CPTA) que o não acatamento de jurisprudência uniformizada, por parte de uma decisão proferida em primeiro grau de jurisdição, constitui motivo especial de admissibilidade de recurso (neste sentido, vejam-se os acórdãos TCA-N 1ª Secção -  Contencioso Administrativo de 03-06-2016, proc. nº 329/12.5BEPDL; e TCA-N 1ª Secção -  Contencioso Administrativo de 24-02-2017, proc. nº 8/12.3BEMDL).

Entendemos que tal seria, só por si, suficiente para determinar o sentido da decisão do presente processo no sentido propugnado pelo Supremo Tribunal Administrativo.

Contudo, em 18-03-2021, o TJUE proferiu novo acórdão, desta vez no processo C 388/19, o qual resultou de um reenvio prejudicial de um processo que tinha por objeto a exata questão que aqui nos ocupa, centrando-se em factos que, tal como nos presentes autos, ocorreram na vigência do atual regime do IRS sobre tributação de mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes.

Vejamos em que termos o Tribunal dirimiu a questão.

Diz o Tribunal (par. 36) que no “caso em apreço, a diferença de tratamento entre os sujeitos passivos residentes e os sujeitos passivos não residentes prevista pela regulamentação portuguesa diz respeito a situações objetivamente comparáveis. Além disso, esta diferença de tratamento não é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.” Acrescenta (par. 38) que “não existe nenhuma diferença objetiva de situação entre os contribuintes residentes e os contribuintes não residentes, suscetível de justificar uma desigualdade de tratamento fiscal entre eles, nos termos do artigo 43.º, n.º 2, e do artigo 72.º, n.º 1, do CIRS, no que respeita à tributação do saldo positivo das mais valias realizadas na sequência de alienações de bens imóveis situados em Portugal.”

Quanto à opção, dada aos não residentes, como a aqui Demandante, de tributação segundo as mesmas regras a que estão sujeitos os residentes, diz o acórdão (par. 42-46):

 “(...) a possibilidade de as pessoas residentes na União ou no EEE optarem, ao abrigo do artigo 72.º, n.os 9 e 10, do CIRS, por um regime de tributação análogo ao aplicável aos residentes portugueses e, assim, beneficiarem do abatimento de 50 % previsto no artigo 43.º, n.º 2, desse código permite a um contribuinte não residente, como MK, escolher entre um regime fiscal discriminatório, a saber, o previsto no artigo 72.º, n.º 1, do CIRS, e outro que não o é.

Ora, cumpre frisar a este respeito que, no caso em apreço, essa escolha não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.

Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 63.º TFUE em razão do seu caráter discriminatório (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C‑440/08, EU:C:2010:148, n.º 52).

Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado FUE, no caso em apreço a livre circulação de capitais, é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C‑440/08, EU:C:2010:148, n.º 53 e jurisprudência referida).

Daqui resulta que a escolha concedida, no litígio no processo principal, ao contribuinte não residente, de ser tributado segundo as mesmas modalidades que as aplicáveis aos contribuintes residentes, não é suscetível de tornar a restrição constatada no n.º 32 do presente acórdão compatível com o Tratado.”

Em conclusão, o acórdão termina sentenciando:

“Tendo em conta todas as considerações precedentes, importa responder à questão submetida que o artigo 63.º TFUE, lido em conjugação com o artigo 65.º TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro que, para permitir que as mais‑valias provenientes da alienação de bens imóveis situados nesse Estado‑Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado‑Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais‑valias realizadas por um residente do primeiro Estado‑Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.”

Conclui-se que entendimento do TJUE é, pois, totalmente coincidente com a jurisprudência do STA, ambos no sentido de que o regime português de tributação de mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes continua a ser incompatível com o Direito da União Europeia, não obstante as alterações legislativas introduzidas no art.º 72.º através da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12.

Em vista desta jurisprudência, deve considerar-se, nos termos da doutrina exposta no acórdão  CILFIT ((acórdão CILFIT, C-283/81, ECLI:EU:C:1982:335, nº 21) estar-se perante uma situação em que a disposição comunitária cuja compatibilidade com  o Direito nacional se aprecia já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, tornando-se assim dispensável e não cabível o reenvio prejudicial no presente processo.

Nessa sentença, o Tribunal afirma que “um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça, a menos que dê como provado que a questão suscitada não é pertinente, ou que a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, ou que a correta aplicação do “Direito comunitário” se impõe com tal evidência que não deixa lugar a dúvida razoável alguma; a existência de tal circunstância deve ser apreciada em função das características próprias do “Direito comunitário”, das dificuldades particulares que apresenta a sua interpretação e do risco de divergência no interior da “Comunidade”.

3.            Questão da devolução do imposto pago e dos juros indemnizatórios

Tendo a Demandante pago a totalidade do imposto liquidado no ato aqui impugnado, pede ao Tribunal que condene a Demandada, em caso de procedência do seu pedido, à devolução do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios.

De harmonia com o disposto na alínea b) do art.º 24º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Embora o art.º 2º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais judiciais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (CAAD, proc. no 277/2020-T; CAAD, proc. no 220/2020-T).

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art.º 43º, nº 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art.º 61º, nº 4 do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea” ( CAAD, proc. no 277/2020-T; CAAD, proc. no 220/2020-T).

O nº 5 do art.º 24º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral” (CAAD, proc. no 277/2020-T; CAAD, proc. no 220/2020-T).

Na sequência da anulação do ato impugnado, a Demandante terá direito a ser reembolsada do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24º, nº 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.

Quanto ao direito a juros indemnizatórios, dispõe o art.º 43.º nº 3 LGT que “são também devidos juros indemnizatórios (...) d) em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.

É o caso dos presentes autos, em que se julga incompatível com o art.º 63º do Tratado FUE o regime contido no Código do IRS que, para que as mais valias provenientes da alienação de bens imóveis situados nesse Estado Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais valias realizadas por um residente do primeiro Estado Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.

Pelo que há que concluir que, transitada a presente decisão arbitral em julgado, a Demandante terá direito a ser ressarcida nos termos do art.º 43º, nº 3, al. d) da LGT, através do pagamento de juros indemnizatórios.

4.            Pedido de condenação da AT a substituir a nota de liquidação, por outra que preveja a aplicação da exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias em 50%

A Demandante pede ainda ao Tribunal que condene a AT a substituir a liquidação julgada ilegal, por outra que preveja a aplicação da exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias em 50%.

 Sobre esta questão há que começar por referir que o art.º 2.º do RJAT, que fixa o âmbito da competência dos tribunais arbitrais tributários, dispõe que a competência deste tribunais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.

Assim, o Tribunal é absolutamente incompetente para condenar a AT à prática de atos em substituição de atos anulados ou declarados ilegais.

Pelo que, em relação a este pedido, deve a Demandada ser absolvida da instância, nos termos do art.º 99.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi do art.º 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.

 

V. Decisão

Assim, nos termos anteriormente expostos, decide-se:

(I)           Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, e anular parcialmente, o ato de liquidação impugnado, concretamente a liquidação de IRS n.º 2020..., na medida da não aplicação da redução em 50% do valor da mais-valia imobiliária realizada pela Demandante;

(II)          Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada à devolução do imposto indevidamente pago, no montante de € 2.693,34 (dois mil, seiscentos e noventa e três euros e trinta e quatro cêntimos).

(III)        Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada ao pagamento dos juros indemnizatórios calculados sobre o montante do imposto indevidamente pago.

(IV)        Julgar improcedente o pedido de condenação da Demandada a substituir a liquidação julgada ilegal, por outra que preveja a aplicação da exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias em 50%.

 

VI. Valor do processo

Nos termos do art.º 97º -A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 29º do RJAT e do nº 3 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 2.693,34 (dois mil, seiscentos e noventa e três euros e trinta e quatro cêntimos).

 

VII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 612.00 euros, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Demandada.

 

Notifique-se o Ministério Público, nos termos do artigo 252º do CPC, e do artigo 72º, nº 1, al a) e nº 3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.

Notifiquem-se as Partes

 

Porto, 25 de outubro de 2021.

 

O Árbitro

(Nina Aguiar)