Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 196/2014-T
Data da decisão: 2015-12-04  IUC  
Valor do pedido: € 7.897,59
Tema: IUC - Liquidação do imposto único de circulação
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Decisão Arbitral

 

PROC. N.º 196/2014-T

(Reapreciação da decisão proferida em 05-11-2014)

 

 

O Acórdão de 23-04-2015 do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), 2.º Juízo - 2.ª Secção (Contencioso Tributário), proferido no âmbito do Proc.º 08224/15, comunicado ao CAAD em 05-11-2015, entendeu declarar a nulidade da sentença respeitante ao mencionado Proc. N.º 196/2014-T, e ordenar a devolução do processo ao CAAD, para que o tribunal arbitral reforme tal sentença, em consonância com o rescisório do TCAS, ou seja, com a circunstância deste Tribunal ter entendido verificar-se a omissão de pronúncia, corporizada no facto do tribunal arbitral não se ter pronunciado quanto à interpretação veiculada pela Requerente, e que, segundo a Requerida, se mostra contrária à Constituição, na medida em que viola os princípios constitucionais da confiança e da segurança jurídica, da eficiência do sistema tributário e da proporcionalidade.

Assim sendo, delimitada que está a questão, importa apreciá-la.

Vejamos,

 

- Sobre o princípio da proporcionalidade cabe, antes de mais, salientar que o mesmo, na medida em que é materialmente inerente ao regime dos direitos liberdades e garantias, inscrevendo-se na sua defesa, visa, no essencial, disciplinar a actuação da Administração Pública em ordem a que a sua actividade no relacionamento com os particulares seja pautada pela escolha das medidas mais equilibradamente adequadas à prossecução do interesse público.

Como ensina o Prof. Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, Vol II, Almedina, 2002, pp. 127/128 e segs, o “princípio da proporcionalidade constitui uma manifestação constitutiva do princípio do Estado de Direito”, estando “[…] fortemente ancorada a ideia de que, num Estado de Direito democrático, as medidas dos poderes públicos não devem exceder o estritamente necessário para a realização do interesse público”.

O princípio da proporcionalidade, acrescenta o referido Professor, ibidem, p.129, significa que “[…] a limitação de bens ou interesses privados por actos dos poderes públicos deve ser adequada e necessária aos fins concretos que tais actos prosseguem, bem como tolerável quando confrontada com aqueles fins”.

A propósito do princípio da proporcionalidade cabe, também, notar, o que nos dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, ANOTADA, VOLUME I, 4.ª Edição, 2007, Coimbra Editora, pp. 392/393, quando consideram que o referido princípio é desdobrável em três subprincípios, quais sejam: “[…] a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade); b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade); c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se a adopção de medidas legais restritas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos […]”.

Os referidos subprincípios têm, todos eles, um denominador comum, qual seja o do justo equilíbrio e permanente coerência entre as finalidades da lei e os meios adoptados para atingir tais finalidades, o que, na circunstância e tentando a transposição do dito princípio para o caso dos autos, implicará responder à questão de saber qual a interpretação adequada do n.º 1 do art.º 3.º, tendo em vista a prossecução dos fins legais previstos no art.º 1.º do CIUC, que se traduzem na oneração fiscal dos efectivos proprietários dos veículos automóveis (e não, necessariamente, dos constantes do registo) na medida do custo ambiental e viário que provoquem.

Como refere o Prof. J. J. Gomes Canotilho in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina - Coimbra, 1998, pp. 264 e segs, o campo de aplicação mais importante do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que tem assento constitucional nos art.ºs 18.º, n.º 2 e 266.º, n.º 2 da CRP, “[…] é o da restrição dos direitos, liberdades e garantias por actos dos poderes públicos. No entanto, o domínio lógico de aplicação do princípio da proporcionalidade, estende-se aos conflitos de bens jurídicos de qualquer espécie.” A administração, acrescenta o referido autor, idem, “[…] deve observar sempre, em cada caso concreto, as exigências da proibição do excesso […]”.

Neste mesmo sentido aponta a jurisprudência, designadamente o acórdão do STA de 01-07-1997, Processo n.º 041177, disponível em: www.dgsi.pt, quando considera que o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, compreende a congruência, a adequação ou a idoneidade do meio ou da medida para lograr o fim legalmente proposto e, em sentido estrito, engloba a proibição do excesso.

O princípio da proporcionalidade é um corolário do princípio da justiça, o qual significa e implica que na sua actuação a Administração Pública deve harmonizar o interesse público específico que lhe cabe prosseguir com os direitos e interesses legítimos dos particulares eventualmente afectados pelos seus actos, interesses e direitos estes que, no caso em apreço, se reconduzem à não tributação em IUC das pessoas que já não são proprietários dos veículos e que, consequentemente, em nada contribuem para a efectivação de qualquer custo viário e ambiental.

O que importa é balancear as finalidades legais e os meios para as prosseguir, e, no quadro de um juízo de ponderação, identificar os meios mais adequados para esse efeito, que, no caso, se traduzem na interpretação perfilhada pelo tribunal arbitral.

Dir-se-á, aliás, que o entendimento de que o referido n.º 1 do at.º 3.º do CIUC estabelece uma presunção legal ilidível corresponde à única interpretação que coerentemente se compagina com o dito princípio da equivalência, e que se mostra em linha com os princípios da justiça e da proporcionalidade.

 A interpretação que entende estar consagrada uma presunção legal ilidível no n.º 1, do art.º 3.º do CIUC é, pois, a única que permite assegurar a prossecução dos fins visados pela lei - onerar os proprietários dos veículos automóveis na medida do custo ambiental e viário que provocam, - tal como estatuído no art.º 1.º do CIUC, o que significa que os sujeitos passivos do IUC são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, e apenas em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados, não havendo, pois, outra interpretação capaz de alcançar as referidas finalidades legais, só assim, reafirma-se, se mostram cumpridos os referidos princípios da proporcionalidade e da justiça.

O entendimento contrário, ou seja, o considerado pela AT, que interpreta o n.º 1, do art.º 3.º do CIUC como não consagrando uma presunção legal ilidível, entendendo que os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, na justa medida em que conduz à imposição de um encargo fiscal a quem poderá já não ser o proprietário do veículo em causa e que, deste modo, não polui, afastando da sujeição fiscal quem, na realidade, é o efectivo causador dos danos ambientais e viários, decorrentes da utilização dos veículos de que são os reais proprietários, evidência que as finalidades legalmente prescritas não seriam, de todo, alcançadas, não se respeitando, assim, o princípio da equivalência que, no quadro do CIUC, tem uma função absolutamente estruturante. Tal entendimento, esse sim, não se mostra, nestas circunstâncias, em sintonia com o princípio da proporcionalidade.

A interpretação feita pelo tribunal, na decisão que ora se reforma, teve exactamente em conta o princípio da proporcionalidade quando, ao arrepio do que a Requerida pretendia, tem, na devida conta, que o registo definitivo não surte eficácia constitutiva por se destinar a dar publicidade ao acto registado, funcionando apenas como mera presunção ilidível da existência do direito e quando, em homenagem àquele princípio, atende ao princípio da equivalência, enquanto elemento fundamental do CIUC.

- Quanto à eficiência do sistema tributário, dir-se-á que a eficiência da Administração em geral, ou da AT em particular, em sentido corrente, corresponderá à capacidade/metodologia de trabalho orientada para a optimização do trabalho executado ou dos serviços prestados, o que significa produzir o máximo, em quantidade e qualidade, com o mínimo de custos e meios, nada tendo a ver com a observância de princípios legalmente consagrados e com o respeito pelos direitos dos cidadãos, seja na qualidade de contribuintes ou não.

Em sentido técnico, dir-se-á que o princípio da eficiência do sistema tributário, é, comummente tido, no domínio do procedimento tributário, como corolário do princípio da proporcionalidade, o qual como é sabido, impõe uma adequada proporção entre as finalidades legais e os meios escolhidos para alcançar esses fins, ou, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488, nas anotações ao artigo 55.º da LGT, trata-se de um princípio que obriga “[…] a administração tributária a abster-se da imposição aos contribuintes de obrigações que sejam desnecessárias à satisfação dos fins que aquela visa prosseguir”.

Neste quadro, o referido princípio da eficiência do sistema tributário significará a capacidade de alcançar os objectivos legalmente fixados com o mínimo de meios, o que nada terá também a ver com o respeito pelos direitos dos cidadãos, nem com a necessidade de observância de outros princípios a que a administração tributária deve subordinar a sua actividade, designadamente o do inquisitório e o da descoberta da verdade material, não podendo, obviamente, a aplicação do mencionado princípio da eficiência ser feita, quer com prejuízo dos direitos dos cidadãos, quer pela ausência de observação das finalidades legais. [1]

 

- Quanto ao princípio da segurança jurídica e da confiança deve notar-se, antes de mais, que este último princípio, o da confiança, é uma concretização do princípio da boa-fé, o qual, tendo consagração no nosso ordenamento jurídico, desde 1996, veio a ter expressa inscrição constitucional, como consta do n.º 2 do art.º 266.º da CRP, onde se estabelece que “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”. (sublinhado nosso)

 

A propósito da boa-fé cabe notar o que refere o Prof. Freitas do Amaral quando, in Curso de Direito Administrativo, Vol II, Almedina, 2002, pp. 135/136, citando o Prof. V. Fausto de Quadros, nos diz que “[…] a Administração Pública está obrigada a obedecer à bona fide nas relações com os particulares. Mais: ela deve mesmo dar, também aí, o exemplo aos particulares da observância da boa fé, em todas as suas manifestações, como núcleo essencial do seu comportamento ético. Sem isso, nunca de poderá afirmar que o Estado (e com ele outras entidades públicas) é pessoa de bem”.

Por outro lado, o princípio da confiança é também tido como uma decorrência do princípio da segurança jurídica, indissociável do Estado de Direito, que tendo de garantir um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas jurídicas que lhes forem criadas, é geradora de confiança dos cidadãos na tutela jurídica da Administração Pública.

Relativamente aos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, diz-nos o Prof. J. J. Gomes Canotilho in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina - Coimbra, 1998, p. 250 e segs, que os referidos princípios andam estreitamente associados, considerando-se que “[…] a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica - garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito - enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos”. Em qualquer caso, acrescenta o referido Professor, idem, que o “[…]  princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas mesmas normas”.

Decorre desta doutrina, que as pessoas ao alienarem os seus veículos hão-de estar seguras de que, caso procedam à venda dos veículos de que são proprietários, e não sendo os mesmos registados em nome dos adquirentes, os efeitos jurídicos daí resultantes serão os previstos e decorrentes das normas legais em vigor e da sua adequada interpretação face às finalidades legais dessas mesmas normas, o que, in casu, levou a que o tribunal arbitral considerasse o registo como presunção ilidível da existência do direito e que só as pessoas que provocam custos viários e ambientais devam ser tributadas.

A melhor forma de, no caso dos autos, se garantir a segurança jurídica, em sentido amplo, é, assim, a concretizada por via da interpretação feita pelo tribunal arbitral, quando considera estar consagrada no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, uma presunção legal ilidível, permitindo a qualquer cidadão, que proceda à venda, a uma terceira pessoa, de um veículo automóvel, a possibilidade de demonstrar que, aquando da exigibilidade do IUC, já não era seu proprietário nem responsável pelo pagamento desse imposto.

 

- Para além do que atrás fica referido, importará ainda saber se a interpretação perfilhada pelo tribunal arbitral, para além de não conflituar com qualquer dos referenciados princípios, se inscreve directa e substantivamente no contexto da ordem constitucional.

A propósito da interpretação da lei em face da Constituição, ou da interpretação conforme à Constituição, diz-nos o Prof. Jorge Miranda, in Manual de Direito Constitucional, TOMO II, Introdução À Teoria da Constituição, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1987, p. 232 e segs, que do que se trata, antes de mais, é de “[…] levar em conta, dentro do elemento sistemático da interpretação, aquilo que se reporta à Constituição. Com efeito, cada disposição legal não tem somente de ser captada no conjunto das disposições da mesma lei e cada lei no conjunto da ordem legislativa; tem outrossim de se considerar no contexto da ordem constitucional [..]”. (sublinhado nosso)

O entendimento que considera estar consagrada no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC uma presunção legal ilidível suporta-se em diversos elementos de interpretação, entre os quais cabe referir o elemento sistemático, na medida em que a interpretação conforme à Constituição implica que dentro do elemento sistemático da interpretação, se leve em conta aquilo que se reporta à Constituição.

Sobre o mencionado elemento sistemático cabe referir o seguinte:

a) No entendimento de BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, o elemento sistemático […] compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.

b) É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema inscrito no CIUC, e com outros princípios constitucionalmente consagrados. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso o CIUC, só será compreensível se o situarmos, quer perante os demais artigos que o seguem ou antecedem, quer perante a ordem constitucional.

c) No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no primeiro artigo do referido Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em que têm assentamento em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.

d) O referido princípio da equivalência, como assinala Sérgio Vasques, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, 2001, p. 122 e segs, implica que “[…] o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”. Acrescenta o referido autor, idem, que “Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também.” Por isso, como também refere o citado autor, idem, a concretização do princípio da equivalência dita especiais exigências “[…] no tocante à incidência subjectiva do imposto [..].”

O mencionado princípio que informa o actual Imposto Único de Circulação, inscreve-se nas preocupações ambientais estatuídas no n.º 2, alínea a) do art.º 66.º da CRP e na necessidade de - tendo em vista assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável - se “Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão”, preocupações estas, que são, manifestamente, consideradas na interpretação defendida pelo tribunal arbitral.

Por outro lado, o disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 66.º da Constituição, quando estatuí que, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado “assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida”, tem subjacente o princípio do poluidor - pagador, que concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar, estando, assim, a interpretação defendida pelo tribunal arbitral, em perfeita concordância com a ordem constitucional.

e) Cabe ainda deixar uma breve nota, apenas para suscitar a questão de saber por que razão as regras constantes do art.º 9.º do Código Civil obrigam o intérprete da legislação ordinária, quando é certo que o dito Código não ocupa qualquer lugar proeminente no sistema jurídico.

A esta questão responde o Prof. Jorge Miranda, ibidem, p. 230, quando considera que a “[…] conclusão para a qual se propende é que regras como estas são válidas e eficazes, não por constarem do Código Civil - pois este não ocupa nenhum lugar proeminente no sistema jurídico - mas, directamente, enquanto tais, por traduzirem uma vontade legislativa, não contrariada por nenhumas outras disposições, a respeito do problema da interpretação (que não são apenas técnico-jurídicos) de que curam.”

Acrescenta o referido autor, idem, que “regras sobre estas matérias podem considerar-se substancialmente constitucionais e não repugnaria mesmo vê-las alçadas à Constituição em sentido formal.”

A propósito da problemática da interpretação e das suas regras, como se retira do Prof. José de Oliveira Ascensão, in O Direito, Introdução e Teoria Geral, 2.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, pp. 352/353, deve sublinhar-se o carácter imperativo dessas regras, e a sua natureza vinculativa para o intérprete.

A interpretação que o tribunal arbitral faz do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC e os critérios que, para esse efeito, considerou, como expressamente se mencionam na Decisão proferida no âmbito do Proc. N.º 196/2014-T, desde o elemento literal, até ao elemento sistemático, passando pelo elemento histórico e racional (ou teleológico), não colidem, assim, com quaisquer princípios constitucionais

O n.º 1 do art.º 9.º do CC dispõe que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade pelo ambiente e de respeito pelas questões com ele relacionadas, e que se mostram inscritas no ordenamento constitucional.

Assim, face ao que se deixa referido, não parece, salvo o devido respeito, assistir razão à AT, na medida em que a interpretação considerada pelo tribunal arbitral, como sendo a única capaz de respeitar as finalidades legais, não viola qualquer dos princípios em questão, ou seja, os princípios da confiança e da segurança jurídica, da eficiência do sistema tributário e da proporcionalidade, sendo que, por outro lado, tal interpretação está expressa e substantivamente conforme aos princípios inscritos na Constituição.

 

- Nestes termos, não se vislumbra que a interpretação feita pelo tribunal, sobre o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, contenda com as normas e princípios constitucionais em vigor, decidindo o tribunal arbitral, face ao exposto, reafirmar a decisão proferida em 05/11/2014, que se apensa, reformada em conformidade com o que atrás se deixa dito, improcedendo, desta forma, a questão da inconstitucionalidade suscitada pela AT nos artigos 97.º a 103.º da sua resposta.

 

Lisboa, 04 de Dezembro de 2015

O Árbitro

António Correia Valente

(O texto do presente documento foi elaborado em conformidade com a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990)

 

 

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo n.º: 196/2014-T

Tema: IUC - Liquidação do imposto único de circulação

 

* Decisão Arbitral substituída pela Decisão Arbitral de 04-12-2015

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Decisão Arbitral[2]

 

I. - RELATÓRIO

 

A - PARTES

A sociedade A… - …, S.A, pessoa colectiva nº …, com sede na Avenida …, …, …, Vila Nova de Gaia, doravante designado por “Requerente”, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 2º e dos artigos 10º e seguintes do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por “RJAT”), tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira (que sucedeu, entre outras, à Direcção-Geral dos Impostos) a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.

 

B - PEDIDO

1 - O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 03 de Março de 2014 e notificado à AT, nessa mesma data.

2 - A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 6.º do RJAT, o signatário, em 15-04-2014, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa como árbitro de Tribunal Arbitral Singular, tendo aceite nos termos legalmente previstos.

3 - As Partes foram, em 15-04-2014, devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do nº 1, do artigo 11.º e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 05/05/2014.

5 - No dia 20 de Outubro de 2014, o Tribunal Arbitral, ao abrigo do art.º 16.º, alínea c) do RJAT, suscitou, junto das partes, a dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do mesmo diploma, considerando, quer a circunstância do objecto do litígio respeitar fundamentalmente a matéria de direito, quer a inexistência de excepções a apreciar e a decidir, e não terem sido requeridas, pelas partes, quaisquer diligências de prova autónomas, constando do processo os documentos pertinentes e mostrando-se junto aos autos o processo administrativo, tendo, nesse quadro, sido dispensada, em 24-10-2014, a mencionada reunião.

6 - A ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral:

a) - Declare a ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação relativos ao Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por IUC), referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, respeitantes aos veículos, em número de cento e doze, identificados nos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos;

b) - Condene a AT ao reembolso da quantia de € 7.897,59, correspondente ao montante total pago a título de IUC, referente aos anos e veículos atrás referenciados;

c) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios pelo pagamento do IUC indevidamente liquidado e pago;

d) - Condene a AT ao pagamento das custas do processo.

 

C - CAUSA DE PEDIR

7 - A Requerente, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirma, em resumo, o seguinte:

8 - Que foi notificada de diversas liquidações de IUC, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, identificadas nos autos, relativamente aos veículos, igualmente identificados, em documento próprio (Quadro resumo) no pedido de pronúncia arbitral, pelo respectivo número de matrícula, tendo, oportunamente - 16-12-2013 - procedido ao pagamento das quantias referentes a tais liquidações, no montante de € 7.897,59.

9 - Que as mencionadas notificações evidenciam falta de fundamentação, na medida em que contém a mera indicação de normativos do CIUC, não indicando as razões pelas quais a Requerente é sujeito passivo do imposto liquidado oficiosamente.

10 - Que, nessas circunstâncias, a Requerente ficou sem saber o que levou a AT a considerá-la sujeito passivo do IUC que foi liquidado, e cujas liquidações lhe foram notificadas.

11 - Que antes das referidas liquidações, a Requerente foi destinatária das correspondentes notificações para exercer o respectivo direito de audição prévia, notificações que também não revelam uma adequada fundamentação, dado que nas mesmas unicamente se refere que “Com base nos elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira dispõe […], V. Ex.ª era o proprietário/locatário do veículo [].

12 - Que, nesse quadro, as liquidações em causa são ilegais, por falta de fundamentação, o que é legalmente exigido, como, nomeadamente, resulta do disposto no art.º 77.º da LGT. Por outro lado, acrescenta,

13 - Que, no âmbito da audiência prévia, alegou que, de acordo com o CIUC, os sujeitos passivos do Imposto Único de Circulação são os proprietários dos veículos, sendo o facto gerador do próprio imposto a propriedade do veículo à data da sua exigibilidade, em conformidade com os artigos 3.º e 6.º do CIUC.

14 - Que à data da exigibilidade do IUC, a Requerente já não era a proprietária dos veículos, tendo, para o efeito, entregue à AT documentos comprovativos da transmissão, para terceiros, da propriedade dos veículos em questão, documentos que se consubstanciavam nas facturas de venda dos referidos veículos, bem como em termos de responsabilidade, nos quais os adquirentes dos veículos confirmam a sua compra.

15 - Que os referidos veículos, identificados no pedido de pronúncia arbitral, foram, todos eles, vendidos em datas anteriores às da exigibilidade do imposto, em 2009, 2010, 2011 e 2012, conforme facturas juntas aos autos.

16 - Que, apesar disso, a AT, entendendo que pelo facto dos veículos estarem registados, na base de dados do Instituto de Registo e Notariado em nome da Requerente, decidiu proceder, em seu nome, à liquidação do IUC, nas circunstâncias atrás já referidas.

17 - Que o disposto no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece uma presunção da propriedade do veículo, considerando como tal a pessoa em nome de quem o mesmo está registado, presunção que, no entanto, não é inilidível.

18 - Que a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC foi ilidida, mediante a apresentação das facturas demonstrativas de que a Requerente não era proprietária dos veículos em causa, aquando das respectivas liquidações de IUC.

19 - Que a AT faz depender a transferência da propriedade dos veículos do seu registo, quando é certo que a constituição, aquisição ou modificação dos direitos de propriedade opera-se mesmo sem a existência de registo.

20 - Que o contrato de compra e venda dos veículos tem natureza real, sendo, face ao disposto no n.º 1 do art.º 408.º do CC, o seu efeito real decorrente do próprio contrato, não ficando, a dita transferência dependente de qualquer acto posterior, nomeadamente do registo.

21 - Que, face ao disposto no n.º 1 do art.º 5.º do Código de Registo Predial (CRP) os factos sujeitos a registo apenas produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.

22 - Que o conceito de terceiro, nos termos do n.º 4 do art.º 5.º do CRP pressupõe a aquisição de direitos incompatíveis que advenham de um mesmo transmitente comum, o que determina que a AT não possa ser considerada terceiro pois não adquiriu direitos incompatíveis com o direito de propriedade do adquirente, podendo, assim, a transferência do direito de propriedade ser invocada perante a AT.

23 - Que a AT, na medida em que insistiu nas liquidações de IUC, apesar de ter sido munida de prova irrefutável destinada a demonstrar que os veículos em causa já não pertenciam à Requerente, embora figurasse como sua proprietária na base de dados do Instituto de Registo e Notariado, não está a actuar de acordo com o princípio da descoberta da verdade material.

24 - Que, nos termos do disposto no art.º 43.º da LGT e do art.º 61.º do CPPT, tem direito a juros indemnizatórios sobre o montante impugnado de € 7.897,59, contados desde o seu pagamento até à data da emissão da respectiva nota de crédito.

 

D - RESPOSTA DA REQUERIDA

25 - A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, (doravante designada por AT), apresentou a sua Resposta, bem como a cópia do Processo Administrativo Tributário, em 04-06-2014, defendendo, quer sobre a falta de fundamentação das notificações de liquidação, quer sobre a ilegalidade da exigência do imposto, alegadas pela Requerente, em suma, o seguinte:

 

SOBRE A FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

26 - A Requerida considera que a fundamentação da notificação das liquidações é suficiente quando permite a um destinatário normal compreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto, ou seja, quando o destinatário possa conhecer as razões que levaram o autor do acto a decidir daquela maneira e não de outra.

27 - Que, se a Requerente verificou uma situação traduzida na falta ou insuficiência de fundamentação deveria, então, ter solicitado a emissão de uma certidão tal como está previsto no artigo 37.º do CPPT.

28 - Que a Requerente, quer face ao teor dos seus requerimentos apresentados aquando do exercício de audição prévia, quer no quadro do seu pedido de pronúncia arbitral, subjacente ao presente processo, demonstra ter cabal compreensão das razões que levaram a AT à prática das liquidações em causa, porquanto revela claro conhecimento de que foi destinatária da notificação de tais liquidações na qualidade de proprietária dos veículos em questão.

29 - Que, mesmo no caso dos actos de notificação das liquidações em questão padecerem de algumas deficiências ao nível da sua fundamentação, tais deficiências degradar-se-iam em meras irregularidades não essenciais, uma vez que permitiram à Requerente insurgir-se contra elas, como resulta do presente pedido de pronúncia arbitral.

SOBRE A ILEGALIDADE DA EXIGÊNCIA DO IMPOSTO

30 - Na referida Resposta, a AT entende, igualmente, que os actos tributários objecto do presente processo estão em evidente conformidade com a lei, pronunciando-se pela improcedência do requerido e pela manutenção na ordem jurídica dos actos de liquidação impugnados, defendendo, em suma, o seguinte:

31 - A interpretação que a Requerente faz do disposto no art.º 3.º do CIUC decorre, não só de uma leitura enviesada da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o IUC e, mais amplamente em todo o sistema jurídico-fiscal, decorrendo ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no referido artigo e, bem assim, em todo o CIUC. (Cfr. art.º 31.º da Resposta)

32 - O legislador tributário ao estabelecer no art.º 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí mencionadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados. (Cfr. art.º 36.º da Resposta)

33 - Salienta que o legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. (Cfr. art.º 37.º da Resposta)

34 - Considera que a redacção do art.º 3.º do CIUC corresponde a uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, sendo intenção do legislador considerar como proprietários aqueles que, como tal constem do registo automóvel, pelo que entender que aí se consagra uma presunção seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem. (Cfr. art.ºs 45.º a 48.º da Resposta)

35 - Refere que o mencionado entendimento já foi adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.OBEPNF. (Cfr. art.ºs 49.º/50.º da Resposta)

36 - Sobre o elemento sistemático de interpretação, considera que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio legal. (Cfr. art.º 61.º da Resposta)

37 - Sobre a ignorância da “ratio” do regime, a AT considera que, à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pela Requerente, no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que o pretendido pelo legislador fiscal foi a criação de um IUC assente na tributação do proprietário do veículo, tal como consta do registo automóvel. (Cfr. art.ºs 84.º/85.º da Resposta)

38 - Acrescenta que o novo regime de tributação do IUC veio alterar de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando a ser sujeitos passivos do imposto os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública, passando, assim, o Imposto Único de Circulação a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietários dos veículos (Cfr. art.ºs 91.º/92.º da Resposta)

39 - Neste sentido, refere ser este o entendimento inscrito, nomeadamente, na recomendação n.º 6-B/2012. Proc. n.º R3478/10, de 22/06/2012, do Senhor Provedor de Justiça dirigida ao Secretário de Estado das Obras Públicas, dos Transportes e das Comunicações.

40 - A interpretação veiculada pela Requerente mostra-se, também, para além do que já foi referido, desconforme com a Constituição, designadamente porque entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário, que tem dignidade constitucional.

41 - A posição defendida pela Requerente, nessas circunstâncias, gera para a Requerida custos administrativos adicionais e o entorpecimento do desempenho dos seus serviços, bem como a “inutilidade dos sistemas de informação registal”.

42 - Acrescenta, ainda, que as facturas apresentadas, não sendo aceitáveis por qualquer conservador do registo automóvel para alterar o registo, não poderão, por maioria de razão, ser aceites para ilidir a presunção registal.

43 - Considera, também, dever ser a Requerente condenada nas custas arbitrais “nos termos do art.º 527.º/1 do Novo Código de Processo Civil ex vi do art.º 29.º/1-e) do RJAT”, salientando, igualmente, não se encontrarem reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios, cujo pedido foi formulado pela Requerente.

44 - Por fim, considera que o pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo deve ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados, absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida.

 

E - QUESTÕES DECIDENDAS

 

45 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.

46 - Face ao exposto, relativamente às posições das Partes e aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir são, para além de conhecer a alegada falta de fundamentação das notificações de liquidação de IUC, as de saber:

a) Se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção.

b) Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, particularmente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto.

c) Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado, embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nº. 1, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o anterior proprietário ou o novo proprietário.

F - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

47 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

48 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).

49 - O processo não enferma de vícios que o invalidem.

50 - Tendo em conta toda a documentação junta aos autos, bem como a cópia do processo administrativo tributário integrante do processo, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa nos seguintes termos.

 

II - FUNDAMENTAÇÃO

G - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

51 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:

52 - A Requerente é uma empresa, cuja actividade está, fundamentalmente, centrada na gestão de frotas e aluguer operacional de veículos automóveis.

53 - A Requerente foi notificada de diversas liquidações de IUC, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, identificadas nos autos, relativamente aos veículos, igualmente identificados pelo respectivo número de matrícula, em documento próprio junto ao processo, tendo, oportunamente, em Dezembro de 2013, procedido ao pagamento das quantias referentes a tais liquidações, no montante de € 7.897,59.

54 - A Requerente alega que, quer as notificações para exercer o respectivo direito de audição prévia, quer as notificações das liquidações de IUC evidenciam falta de fundamentação, tendo, nessas circunstâncias, ficado sem saber o que levou a AT a considerá-la sujeito passivo do IUC que foi liquidado, e cujas liquidações lhe foram notificadas.

55 - Os veículos, identificados no pedido de pronúncia arbitral foram, todos eles, vendidos em datas anteriores àquelas em que o imposto se tornou exigível, ou seja, à data (mês/ano) das correspondentes matrículas, tendo, já então, esses veículos saído da sua esfera jurídica.

56 - Como prova das mencionadas vendas, a Requerente juntou cópias das facturas de venda dos veículos em questão, que estão juntas aos autos, nas quais consta o valor do IVA liquidado, bem como dos termos de responsabilidade, nos quais os adquirentes dos veículos confirmam a sua compra.

57 - No quadro do procedimento de audição prévia a Requerente apresentou à AT, cópias das facturas de venda dos veículos em questão, tendo em vista demonstrar que tais veículos já não lhe pertenciam, à data das liquidações do correspondente IUC, embora figurasse como sua proprietária na base de dados do Instituto de Registo e Notariado.

 

FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

58 - Os factos dados como provados estão baseados nos documentos mencionados, relativamente a cada um deles, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.

 

FACTOS NÃO PROVADOS

 

59 - Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.

H - FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO

60 - A matéria de facto está fixada, importando agora proceder à sua subsunção jurídica e determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões decidendas enunciadas no nº 46.

61 - A questão essencial nos presentes autos, relativamente à qual existem entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT traduz-se em saber se a norma de incidência subjectiva constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece ou não uma presunção ilidível.

62 - Sobre esta matéria, as posições das partes são conhecidas. Com efeito, para a Requerente, o disposto no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece uma presunção da propriedade do veículo, considerando como tal a pessoa em nome de quem o mesmo está registado, presunção que, no entanto, não é inilidível, enquanto para a Requerida a interpretação que a Requerente faz do disposto no art.º 3.º do CIUC decorre, não só de uma leitura enviesada da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o IUC e, mais amplamente em todo o sistema jurídico-fiscal, decorrendo ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no referido artigo e, bem assim, em todo o CIUC.

I - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO Nº 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC

63 - Importará notar, antes de mais, ser pacífico o entendimento, na doutrina, de que na interpretação das leis fiscais valem plenamente os princípios gerais de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem, aliás, acolhimento no artigo 11.º da Lei Geral Tributária.

64 - É comummente aceite que, tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação socorre-se de diversos meios, importando, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que significa, procurar, desde logo, o seu sentido literal. O referido sentido, como também é pacífico, corresponde ao grau mais baixo da actividade interpretativa, importando, por isso, valorá-lo e aferi-lo à luz de outros critérios, intervindo, a esse propósito, os designados elementos de natureza lógica, sejam de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica.

65 - A propósito da interpretação da lei fiscal, cabe lembrar, como, aliás, a jurisprudência vem assinalando, nomeadamente nos Acórdãos do STA de 05/09/2012 e de 06/02/2013, processos nºs 0314/12 e 01000/12, respectivamente, disponíveis em: www.dgsi.pt, a importância do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), enquanto preceito fundamental da hermenêutica jurídica, que, neste quadro, não se pode deixar de considerar.

66 - A actividade interpretativa não é, pois, contornável na resolução das dúvidas suscitadas pela aplicação das normas jurídicas em causa.

67 - No entender de FRANCESCO FERRARA, in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, p. 131, a referida actividade interpretativa “[…] é única [e] complexa, de natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas circunstâncias a vontade legislativa”, acrescentando, ibidem, p.130, que “Mirando à aplicação prática do direito, a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.

68 - A finalidade da interpretação, diz-nos também o referido autor, ibidem, pp. 134/135, é “[…] determinar o sentido objectivo da lei […]”. A lei, sendo a expressão da vontade do Estado, é uma “[…] vontade que persiste de modo autónomo, destacada do complexo dos pensamentos e das tendências que animaram as pessoas que contribuíram para a sua emanação”. Daí que a actividade do interprete deva ser a de “[…] buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris”.

69 - Para MANUEL DE ANDRADE, citando FERRARA, in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p. 16 (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, “A interpretação procura a voluntas legis, não a voluntas legislatoris […], e procura a vontade actual da lei, não a sua vontade no momento da aplicação: não se trata, pois, de uma vontade do passado, mas de uma vontade sempre presente enquanto a lei não cessa de vigorar. É dizer que a lei, uma vez formada, se destaca do legislador, ganhando consistência autónoma; e, mais do que isso, torna-se entidade viva, que não apenas corpo inanimado […]”.

DO ELEMENTO LITERAL

70 - É neste enquadramento que importará encontrar resposta para as questões decidendas, particularmente para a que visa saber se o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção, começando, desde logo, pelo elemento literal.

71 - Sendo o elemento literal o primeiro que importa utilizar, em busca do pensamento legislativo, é, necessariamente, por aí que se deverá começar, procurando alcançar o sentido da expressão considerando-se como tais as pessoas inscritas no referido artigo 3.º, n.º 1 do CIUC.

72 - Dispõe o n.º 1 do referido artigo 3.º do CIUC que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” (sublinhado nosso)

73 - A formulação usada no referido artigo, importará notá-lo, antes de mais, socorre-se da expressão “considerando-se”, o que suscita a questão de saber se, a tal expressão, pode ser atribuído um sentido presuntivo, equiparando-se, assim, à expressão “presumindo-se”. Trata-se de expressões frequentemente utilizadas com sentidos equivalentes, como é patente em diversas situações do ordenamento jurídico português.

74 - Na verdade, são imensas as normas que consagram presunções, conjugando, para o efeito, aliás, o verbo considerar de diversas formas. Não é, pois, difícil identificar situações, em diversas áreas do direito, em que se utiliza a expressão “considerando-se” ou “considera-se” com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”, expressões a que, seja ao nível das presunções inilidíveis, seja no quadro das presunções ilidíveis, é conferido, imensas vezes, um significado equivalente.

75 - Não se afigurando pertinente voltar a referenciar exemplos reveladores dessas situações, dado que tais exemplos estão abundantemente enunciados nalgumas das decisões dos tribunais arbitrais tributários, de que são exemplo as proferidas no quadro dos Processos nºs 14/2013 - T, 27/2013 - T e 73/2013 - T, damos aqui os mesmos por inteiramente reproduzidos.

76 - Nestas circunstâncias, sendo as mencionadas expressões recorrentemente usadas com um propósito e significado equivalentes, pode concluir-se não ser apenas o uso do verbo “presumir” que nos coloca perante uma presunção, mas também o uso de outros termos podem servir de base a presunções, como, designadamente, ocorre com a expressão “considerando-se”, o que, em nosso entender, será justamente o que se verifica no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.

Trata-se, assim, de um entendimento que, não se afigurando corresponder a uma enviesada leitura da letra da lei, como considera a ATA, se revela em sintonia com o disposto no n.º 2 do art.º 9.º do CC, na medida em que assegura, ao pensamento legislativo, o mínimo de correspondência verbal aí exigido.

77 - Na perspectiva literal, face ao que se deixa exposto, dúvidas não há de que a interpretação que considera estabelecida uma presunção ilidível no n.º 1 do art.º 3.º tem total respaldo na formulação aí consagrada, face à mencionada equivalência entre a expressão “considerando-se como tais” e a expressão “presumindo-se como tais”.

O elemento linguístico, como atrás se referiu, sendo o primeiro que deve ser utilizado em busca do pensamento legislativo, deve, porém, a fim de se encontrar o verdadeiro sentido da norma, ser submetido ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica. (sejam tais elementos de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica).

78 - Com efeito, como se retira da obra de MANUEL DE ANDRADE, atrás citada, p. 28, “[…] a análise puramente linguística dum texto legal é apenas o começo […], o primeiro grau […] ou o primeiro acto da interpretação. Por outras palavras, só nos fornece o provável pensamento e vontade legislativa […] ou, melhor, a delimitação gramatical da possível consistência da lei […], o quadro dentro do qual reside o seu verdadeiro conteúdo”.

79 - Assim sendo, vejamos, então o elemento racional (ou teleológico).

 

DO ELEMENTO HISTÓRICO E RACIONAL (OU TELEOLÓGICO)

80 - Atendendo aos elementos de interpretação de pendor histórico, cabe, desde logo, lembrar o que, expressamente, vem exarado na exposição de motivos da Proposta de Lei N.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007 de 29/06, quando aí se refere que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador […] consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”.

81 - Neste quadro, parece claro que a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel só poderá conviver com um sujeito passivo do imposto, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efectivo sujeito causador dos danos viários e ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência, inscrito do art.º 1.º do CIUC.

82 - O referido princípio da equivalência, que informa o actual Imposto Único de Circulação, tem, ao menos na parte em que especificamente respeita ao ambiente, subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. O referido princípio que, de algum modo, tem assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 66.º da nossa Constituição, tem também consagração no plano do direito comunitário, seja ao nível do direito originário, o que se verifica desde 07 de Fevereiro de 1992, altura em que foi assinado, em Maastrich, o Tratado da União Europeia, em cujo art.º 130.º-R, nº 2, o aludido princípio passou a constar como suporte da política Comunitária no domínio ambiental, seja ao nível do direito derivado.

83 - O que se visa alcançar por via do referido princípio é internalizar as externalidades ambientais negativas, o que, afinal, no caso dos autos, mais não significa do que fazer com que os prejuízos que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus “proprietários - económico - utilizadores”, como custos que só eles deverão suportar.

84 - Regressando ao mencionado princípio da equivalência, dir-se-á que o mesmo tem, na economia do CIUC, um papel absolutamente estruturante, nele se alicerçando o edifício normativo do Código em questão. O referido princípio não pode, pois, deixar de constituir um fim que se pretende legalmente prosseguir, corporizando, nessa medida, uma luz de assinalável fulgor que, constante e continuadamente, não pode deixar de iluminar o caminho do intérprete.

85 - Relativamente ao referido princípio, cabe notar o que nos diz Sérgio Vasques, quando, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, a propósito da concretização técnica desse princípio considera que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”.

86 - Abordando especificamente o IUC, acrescenta o mencionado autor, op. cit., que ”Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “[…] dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto […]”.

87 - Face ao que vem de referir-se, resulta claro que a tributação dos reais e efectivos poluidores corresponde a um importante fim visado pela lei, no caso pelo CIUC, fim que, no dizer de Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, 2ª Edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor, Coimbra, 1963, p. 130, deve estar sempre diante dos olhos do jurista, dado que, como o mencionado autor aí refere, “[…] a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.

88 - Assim, deve notar-se que, seja face aos referidos elementos históricos, seja à luz dos elementos de carácter racional ou teleológico de interpretação que se deixam referenciados, impõe-se, igualmente, concluir que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC só poderá consagrar uma presunção ilidível.

89 - Caberá ainda considerar o elemento sistemático de interpretação.

 

DO ELEMENTO SISTEMÁTICO

90 - Sobre o elemento sistemático diz-nos BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.

91 - É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema do IUC. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso do CIUC, só será compreensível se o situarmos perante os demais artigos que o seguem ou antecedem.

92 - O CIUC, de resto, para além de visar, naturalmente, a arrecadação de receitas públicas, é um Código especialmente talhado para a prossecução e concretização de propósitos ambientais - que consubstanciam valores e finalidades fundamentais - postulando, nessa medida, uma coerente articulação entre as diversas normas que o integram, tendo como elemento primordial o que se dispõe no seu artigo 1.º.

93 - A este propósito, importa salientar que o sistema inscrito no referido CIUC, tal como ocorre em qualquer outro sistema jurídico, deve ser coerente e livre de contradições nos elementos axiológicos e teleológicos que o informam e enformam, não podendo, nesta medida, tolerar o entendimento de que, o n.º 1 do seu artigo 3.º, não consagra uma presunção legal.

94 - No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram, com efeito, determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no 1.º artigo do Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em que têm assentamento em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.

95 - O elemento sistemático de interpretação e a coerente interacção entre os diversos artigos e princípios que integram o sistema inscrito do CIUC, apelam também ao entendimento de que o estabelecido no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC não pode deixar de consubstanciar uma presunção legal.

96 - Dispõe o n.º 1 do art.º 9.º do CC que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade pelo ambiente e de respeito pelas questões com ele relacionadas.

Neste contexto, as considerações formuladas sobre os mencionados elementos de interpretação, sejam de carácter literal ou de pendor histórico, sejam de natureza racional ou sistemática, apontam no sentido de que o artigo 3.º do CIUC, estabelece uma presunção, ou seja, a ratio legis dessa norma, enquanto razão ou fim que razoavelmente lhe deve ser atribuído, não pode deixar de perspectivar a expressão “considerando-se como tais”, utilizada no referido artigo, como reveladora do estabelecimento de uma presunção, o que significa que os sujeitos passivos do IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se, como tais, as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, a final, ser outros.

Dir-se-á, aliás, que o estabelecimento de uma presunção na mencionada norma corresponderá à interpretação mais compaginável, particularmente, com o princípio da equivalência, atrás mencionado.

97 - Aqui chegados, cabe lembrar o disposto no art.º 73.º da LGT, quando estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, (sublinhado nosso), o que significa que a presunção legal, que se afigura estar estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, será necessariamente ilidível.

98 - Neste quadro, os sujeitos passivos do imposto são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, e apenas em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados.

99 - Com efeito, se o proprietário em nome do qual os veículos se encontram registados, vier, como ocorre no presente processo, indicar e provar quem era o proprietário dos veículos em causa, nada justifica, em nosso entendimento, que o anterior proprietário seja responsabilizado pelo pagamento do IUC que for devido.

100 - Acresce, ser esta interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC a que, em nossa opinião, melhor se ajusta aos princípios a que a AT deve subordinar a sua actividade, nomeadamente ao princípio do inquisitório, em ordem à descoberta da verdade material.

101 - A propósito do referido princípio do inquisitório, cabe aludir aos ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488/489, quando, em anotações ao citado art.º 58.º, referem que cabe à administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão, acrescentando que a “[…] falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da igualdade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido […]”.

O princípio do inquisitório, acrescentam os referidos autores, op. cit, “[…] tem a ver com os poderes (-deveres) de a Administração proceder às investigações necessárias ao conhecimento dos factos essenciais ou determinantes para a decisão […]”.

102 - A verdade material, consubstanciada, no presente caso, na circunstância dos veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral terem, na sua totalidade, sido vendidos pela Requerente em momento anterior ao da exigibilidade do imposto, ou seja, à data a partir da qual o credor tributário podia fazer valer, perante o devedor, o seu direito ao pagamento do imposto, foi, em devido tempo, levada ao conhecimento da AT.

103 - Com efeito, no quadro do procedimento de audição prévia a Requerente apresentou à AT, cópias das facturas de venda dos veículos em questão, bem como dos termos de responsabilidade, nos quais os adquirentes dos veículos confirmam a sua compra, tendo em vista demonstrar que tais veículos já não lhe pertenciam, à data das liquidações do correspondente IUC, embora figurasse como sua proprietária na base de dados do Instituto de Registo e Notariado.

104 - A audição prévia é, de resto, a sede própria, para se procurar a verdade material dos elementos essenciais à liquidação do imposto, entre os quais estará o conhecimento dos verdadeiros sujeitos passivos do imposto, enquanto elementos primeiros da relação jurídica fiscal.

105 - O direito que o contribuinte tem de ser ouvido, operado no quadro da audição prévia, deve corresponder e traduzir-se na possibilidade concedida aos particulares de terem uma participação útil no procedimento, não devendo transformar-se numa prática inconsequente e rotineira, como bem assinalam José Manuel Santos Botelho, Américo Pires Esteves e José Cândido de Pinho, in Código do Procedimento Administrativo, Anotado e Comentado, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 2000, anotação n.º 8 ao art.º 100.º.

106 - A propósito do direito de audição prévia, cabe lembrar o entendimento da jurisprudência sobre a matéria, inscrito, nomeadamente, no Acórdão do STA, de 24-10-2012, Proc. 0548/12, donde se retira que sob pena do referido direito, se transformar num ritual inócuo, os argumentos e documentos apresentados pelo contribuinte não podem ser perspectivados com sobranceira indiferença, exigindo-se a sua análise pela administração, por forma a tornar visível que a decisão do procedimento resulta de uma transparente ponderação dos elementos de facto e de direito submetidos à sua apreciação.

107 - Não se diga, como faz a AT, que o estabelecimento de uma presunção no art.º 3.º do CIUC gera para a Requerida custos administrativos adicionais e o entorpecimento do desempenho dos seus serviços, bem como a “inutilidade dos sistemas de informação registal”. (Cfr. art.º 102.º da Resposta)

A eficiência da Administração em geral, ou da AT em particular, em sentido corrente, corresponderá à capacidade/metodologia de trabalho orientada para a optimização do trabalho executado ou dos serviços prestados, o que significará produzir o máximo, em quantidade e qualidade, com o mínimo de custos, nada tendo a ver com a observância de princípios legalmente consagrados e com o respeito pelos direitos dos cidadãos, seja na qualidade de contribuintes ou não.

108 - Em sentido técnico, dir-se-á que o princípio da eficiência do sistema tributário, é, comummente tido, no domínio do procedimento tributário, como corolário do princípio da proporcionalidade, o qual como é sabido, impõe uma adequada proporção entre as finalidades legais e os meios escolhidos para alcançar esses fins, ou, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488, nas anotações ao artigo 55.º da LGT, trata-se de um princípio que obriga “[…] a administração tributária a abster-se da imposição aos contribuintes de obrigações que sejam desnecessárias à satisfação dos fins que aquela visa prosseguir”.

Neste quadro, o referido princípio da eficiência do sistema tributário significará a capacidade de alcançar os objectivos legalmente fixados em razão dos meios disponíveis, ou melhor, com o mínimo de meios, o que nada terá também a ver com o respeito pelos direitos dos cidadãos, nem com a necessidade de observância dos princípios a que a administração tributária deve subordinar a sua actividade, designadamente o do inquisitório e o da descoberta da verdade material, não podendo, obviamente, a aplicação do mencionado princípio da eficiência ser feita com prejuízo dos direitos dos cidadãos.

109 - Por outo lado, cabe notar que a importância, o valor e a utilidade dos sistemas de informação em nada se mostram diminuídos por força, nomeadamente, da presunção consagrada no art.º 3.º/1 do CIUC. Os sistemas de informação em causa, seja o que respeita ao IRN, seja o que é gerido pelo IMTT, têm, de resto, um papel fundamental, designadamente, para efeitos do sistema inscrito no CIUC, permitindo a sua utilização, neste quadro, a imediata e liminar, mas não necessariamente definitiva, identificação dos proprietários dos veículos, tal como constantes do registo, o que nos indica que em princípio os proprietários dos veículos são as pessoas que, como tal, constam desses registos.

110 - Tal circunstância, porém, nada terá a ver com o direito que assiste a tais proprietários, no quadro da mencionada presunção, de demonstrar que a propriedade dos veículos já não reside na sua esfera jurídica, mas na de outra pessoa para a qual a mesma foi transferida e que identifica, o que significa que, não restando, por um lado, dúvidas sobre a relevância de tal informação, será certo, por outro lado, que a mesma não constitui uma verdade definitiva, nada impedindo o devido e adequado tratamento de tal informação, impondo-se, mesmo, nalguns casos, a concretização desse tratamento.

 

J - DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO

111 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.

112 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu n.º 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)

Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.

113 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reais (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. arts. 1129.º, 1142.º e 1185.º) ”.

Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador, tendo, como causa, o próprio contrato.

114 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ n.º 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, n.º 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (art.ºs 874.° e 879.º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac. do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)

115 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.

116 - Estabelece, com efeito, o n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, (diversas vezes alterado, a última das quais por via da Lei n.º 39/2008, de 11/08), que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)

117 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)

118 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, o qual, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224/84, de 06 de Julho, e alterado pela última vez, por via do Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de Agosto, dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)

119 - A conjugação do disposto nos artigos atrás mencionados, particularmente o estabelecido no n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular, em prol de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.

120 - Assim, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.

121 - A função legalmente reservada ao registo é, assim, por um lado, a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso, dos veículos e, por outro lado, permitir-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, o que significa que o registo não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.

122 - Note-se, porém, que se é certo que a não existência de registo tem a relevância que atrás se deixa mencionada, não é menos certo que a sua inexistência impede a plena eficácia do contrato de compra e venda. A este propósito, cabe notar o disposto nos nºs 1 e 4 do art.º 5.º do Código do Registo Predial, aplicáveis ao registo da propriedade automóvel por força do estabelecido no art.º 29.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.

 

123 - Dispõe o n.º 1 do art.º 5.º do referido Código do Registo Predial, que “Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo”, estabelecendo, por seu lado, o n.º 4 do mesmo artigo que “Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

 

124 - Nestas circunstâncias, fácil será concluir que a AT, dado que não adquiriu, do mesmo vendedor, direitos sobre o veículo, incompatíveis com os direitos do comprador, não preenche o conceito de terceiros para efeitos do registo, tal como legalmente fixado, não podendo, pois, prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para por em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda dos veículos.

 

125 - Assim, se os compradores dos veículos, enquanto seus “novos” proprietários, não promoverem, desde logo, o adequado registo do seu direito, presume-se, para efeitos do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC e nos termos do disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, que o veículo continua a ser propriedade da pessoa que o vendeu e que no registo se mantém seu proprietário, sendo, porém, certo que tal presunção é ilidível, seja por força do estabelecido no n.º 2 do art.º 350.º do CC, seja à luz do disposto no art.º 73.º da LGT. Daí que, a partir do momento em que se afaste a referida presunção, mediante prova da respectiva venda, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o vendedor do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.

 

L - DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS

126 - Não sendo legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda dos veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por qualquer meio, nomeadamente por via testemunhal ou documental, nesta se incluindo, designadamente, as facturas relativas às vendas dos veículos.

127 - Como meio de prova de que procedeu à venda dos veículos identificados no presente processo, em data anterior à da exigibilidade do imposto, a Requerente juntou cópias das facturas de venda dos referidos veículos, nas quais consta, nomeadamente, o valor do IVA liquidado, bem como dos termos de responsabilidade, nos quais os adquirentes dos veículos confirmam a sua compra, assumindo todas as responsabilidades relativas aos correspondentes veículos.

128 - Sobre as facturas apresentadas pela Requerente, como prova de venda dos veículos em questão, a AT considera que as mesmas corporizam documentos que não são aceitáveis para ilidir a “presunção registal”, mas, salvo o devido respeito, não tem razão.

Vejamos,

129 - Retira-se do Dicionário Jurídico de Ana Prata, Almedina - Coimbra, 1990, 3.ª Edição, que a factura é o “documento escrito em que se discriminam as coisas vendidas e entregues, sua qualidade, quantidade e preço, e cuja entrega o vendedor não pode recusar ao comprador, se a compra e venda for comercial”.

130 - Nas anotações ao art.º 476.º do Código Comercial, Abílio Neto, Ediforum - Lisboa, 1991, 10º Edição, refere-se que a factura é o “documento em que o vendedor faz a discriminação completa das mercadorias que vende ao comprador e em que indica as despesas que efectuou, bem como as vantagens que concede nos preços e as condições de entrega e de pagamento”.

131 - Antes das alterações introduzidas no Código do IVA, pelo Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de Agosto, poderiam, no quadro das transmissões de bens ou das prestações de serviços, ser emitidas facturas ou documentos equivalentes, desde que estes observassem os requisitos legalmente exigidos para as facturas.

132 - Do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 29.º, no n.º 5 do art.º 36.º e nos n.ºs 1 e 2 do art.º 40.º, todos do CIVA, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de Agosto, retira-se que apenas a factura, a factura-recibo e a factura simplificada corporizam documentos reconhecidos para efeitos da transmissão de bens ou da prestação de serviços.

133 - Dir-se-á, assim, face à doutrina e ao legalmente estabelecido, que a factura é o documento em que, para além da menção aos nomes dos fornecedores e dos adquirentes das coisas ou dos serviços objecto de um dado negócio jurídico, se devem, designadamente, discriminar essas coisas ou serviços, a sua qualidade e quantidade, bem como o respectivo preço e outros elementos incluídos no valor tributável, assim como as taxas do IVA aplicáveis e o montante do imposto devido, elementos esses que, note-se, são observados pelas facturas apresentadas pela Requerente.

134 - Por outro lado, nada permite considerar que os elementos inscritos nas referidas facturas são desconformes com a realidade que contratualmente ocorreu, o que significa que as facturas em causa não se afiguram como corporizadoras de qualquer contrato simulado, bem pelo contrário, tudo indica que reflectem e provam os factos nelas mencionados, ou seja, a efectiva venda dos veículos às pessoas nelas indicadas como sendo os seus adquirentes. Acresce que,

135 - As facturas, sendo um documento comercial indispensável são, igualmente, um documento contabilístico essencial, com relevantes implicações no domínio fiscal, devendo notar-se que, no caso dos autos, tendo a Requerente, como tem, uma actividade de natureza empresarial, as ditas facturas estão subordinados a rigorosas regras legais, sejam de ordem comercial, sejam de ordem contabilística e fiscal.

136 - As facturas em causa nos autos, inscrevendo-se, naturalmente, no quadro das relações comerciais entre duas entidades, no caso entre a Requerente e os adquirentes dos veículos, visam, por outro lado, e no caso, demonstrar, junto da Administração Tributária, a existência do negócio em causa, o que lhes confere uma dimensão e valor qualitativamente diferentes, dado que, verificadas certas condições, a legislação tributária entendeu considerá-las como verdadeiras.

137 - Como já se sublinhou, a legislação tributária, designadamente a que atrás se deixa mencionada, reconhece às facturas credibilidade probatória, devendo salientar-se - porque não é questão de somenos, bem pelo contrário, trata-se de questão fundamental - que, tendo tais facturas, sido emitidas de acordo com a legislação comercial e fiscal, o que não é questionado pela Requerida, a lei, no caso, o n.º 1 do art.º 75.º da LGT, atribui-lhe uma presunção de veracidade.

138 - Assim sendo, face à presunção de veracidade conferida, no domínio das relações jurídico-tributárias, aos factos inscritos nas facturas e sendo a transmissão dos veículos aos seus adquirentes tida como verdadeira, caberia à AT, face ao disposto no art.º 75.º, n.º 2 da LGT, no quadro das fundadas e objectivas razões que tivesse, demonstrar que tais vendas, na realidade, não ocorreram, não bastando afirmar, como faz, que as referidas facturas não poderão ser aceites, como documentos capazes de ilidir a “presunção registal”.

139 - A presunção estabelecida no atrás referido art.º 75.º, n.º 1 da LGT, quando estatui que os referidos documentos gozam da presunção de veracidade, implica, com efeito, que se não for demonstrada pela AT, como não foi, a ausência de correspondência entre o teor de tais facturas e a realidade, o seu conteúdo deva considerar-se verdadeiro.

140 - Os documentos apresentados pela Requerente, enquanto meios destinados a fazer prova das transacções dos veículos em causa, gozando, assim, da mencionada presunção de veracidade, afiguram-se com idoneidade bastante, em ordem à demonstração das referidas transacções, constituindo, a nosso ver, um meio de prova adequado e capaz de ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.

141 - Face ao que vem de referir-se, e tendo em conta, quer a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, quer a transferência de propriedade dos veículos em questão, por mero efeito do contrato, antes da data da exigibilidade do imposto, quer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, os actos tributários em crise, não podem merecer o nosso acordo, seja porque não se teve em conta uma adequada interpretação e aplicação das normas legais de incidência subjectiva, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de direito, seja porque os referidos actos assentaram numa matéria de facto, claramente divergente da efectiva realidade, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto.

142 - Nestas circunstâncias, tendo em conta, por um lado, que a presunção consagrada no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC foi ilidida e que, por outro, os veículos em questão no presente processo foram vendidos em data anterior à da exigibilidade do imposto, ou seja, ao momento em que a Administração pode exigir a prestação tributária, não se pode deixar de considerar que, aquando da exigibilidade do imposto, face ao disposto no n.º 3 do artigo 6.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 4.º, ambos do CIUC, a Requerente não era sujeito passivo do imposto em questão.

143 - A AT, quando entende que os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo, as pessoas em nome de quem os veículos automóveis se encontram registados, sem considerar que o art.º 3.º do CIUC consubstancia uma presunção, nem tendo em conta os elementos probatórios que lhe foram apresentados, como resulta do processo administrativo, cuja cópia se encontra junto aos autos, está a proceder à liquidação ilegal do IUC, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação, constantes do referido art.º 3.º do CIUC, seja ao nível da previsão, seja da estatuição, o que configura a prática de um acto tributário falho de legalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos correspondentes actos tributários, por violação de lei.

M - REEMBOLSO DO MONTANTE PAGO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS

144 - Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT, e em conformidade com o que aí se estabelece, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.” (sublinhado nosso)

145 - Trata-se de comandos legais que se encontram em total sintonia com o disposto no art.º 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.” (sublinhado nosso)

146 - O caso constante nos presentes autos, suscita a manifesta aplicação das mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, referenciados neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, a título do imposto pago, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.

147 - Quanto aos juros indemnizatórios, afigura-se manifesto, que, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e preenchidos que estão os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no n.º 1 do art.º 43.º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de € 7.897,59, que serão contados, desde a data do pagamento do imposto, até ao integral reembolso dessa mesma quantia.

N - CUSTAS ARBITRAIS

148 - A este propósito, mais concretamente sobre a responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais, que a AT considera serem devidas pela Requerente, “nos termos do art.º 527.º/1 do Novo Código de Processo Civil ex vi do art.º 29.º/1-e) do RJAT”, cabe apenas notar que, face ao estatuído no n.º 2 do referido art.º 527.º do CPC, dá causa “[…] às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for”, sendo, isso mesmo, o que se aplicará no caso dos autos.

CONCLUSÃO

149 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar os actos de liquidação em causa no presente processo, fundados na ideia de que o artigo 3.º, nº.1 do CIUC não consagra uma presunção ilidível, faz errada interpretação e aplicação desta norma, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.

150 - Por outro lado, porque a AT, à data da ocorrência dos factos tributários, considerou a Requerente proprietária dos veículos referenciados no presente processo, considerando-a, como tal, sujeito passivo do imposto, quando tal propriedade, relativamente aos veículos em questão, já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.

 

QUESTÕES PREJUDICADAS

151 - Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com base no vício de violação de lei, que assegura efectiva e estável tutela dos direitos da Requerente, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios que lhe são imputados.

É o que resulta do disposto no artigo 124.º do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

III - DECISÃO

152 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

- Julgar procedente, por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de pronúncia arbitral no que concerne à anulação dos actos de liquidação de IUC, respeitantes a todos os veículos identificados nos autos, referentes aos anos de 2009, 2010; 2011 e 2012;

- Anular, consequentemente, os actos de liquidação de IUC, referentes aos anos de 2009, 2010; 2011 e 2012, respeitantes aos veículos, tal como atrás se deixam mencionados;

- Condenar a AT ao reembolso da quantia de € 7.897,59, referente ao IUC liquidado e pago em 2013, respeitante aos anos de 2009, 2010; 2011 e 2012 e ao pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde a data do pagamento do imposto, até ao integral reembolso da referida quantia;

- Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.

 

VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, nº 2 do CPC (ex-315.º, nº 2) e 97.º - A, nº 1 do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 7.897,59.

 

CUSTAS

De harmonia com o disposto no artigo 12.º, n.º 2, in fine, no art.º 22.º, nº 4, ambos do RJAT, e no art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I, que a este está anexa, fixa-se o montante das custas totais em € 612,00.

 

Notifique-se.

Lisboa, 05 de Novembro de 2014

O Árbitro

António Correia Valente

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)



[1]                      Veja-se o estudo sobre a matéria, elaborado pelo Prof. Carlos Pestana Barros, in Ciência e Técnica Fiscal, 2005, n.º 416, pp. 105-126

[2] Decisão Arbitral anulada pelo acórdão do TCA-S proferido no âmbito do Processo n.º 08224/14, de 23-04-2015.