DECISÃO ARBITRAL
O Árbitro Dra. Maria Antónia Torres, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar este Tribunal Arbitral Singular, constituído em 21 de maio de 2021, acorda no seguinte:
1. Relatório
1.1 A..., contribuinte nº ..., residente em ..., ..., França (adiante designado como “Requerente”), apresentou pedido de constituição deste Tribunal Arbitral, visando a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS relativa ao ano de 2018, com o nº 2019..., e subsequente nota de cobrança nº 2019..., efectuada pela Autoridade Tributária (doravante, designada, abreviadamente, por Requerida).
1.2 Para fundamentar o seu pedido alegou o Requerente, em síntese:
- O Requerente reside em França, tendo submetido uma declaração de IRS referente ao ano de 2018, em Portugal, na qualidade de sujeito passivo não-residente;
- Da referida declaração modelo 3, constava um anexo F referente a rendimentos prediais e um anexo G referente a mais-valias e outros incrementos patrimoniais.
- No anexo G, o Requerente declarou a venda realizada em outubro de 2018, da fracção G do artigo matricial n.º ..., da freguesia de ..., Concelho de Lisboa, pelo valor de €255.000,00. Tal prédio havia sido adquirido pelo requerente em agosto de 2004, pelo valor de 99.759,58, acrescido de despesas e encargos no valor de €12.632,60.
- No quadro 8 da declaração de IRS de 2018, o Requerente optou pelo Regime Geral, assinalando o campo 07.
- A AT efectuou a correspondente liquidação de IRS, constando da respetiva demonstração o rendimento global de € 125.058,30 e o valor a pagar de € €34.910,09.
- O Requerente não concorda com o valor apresentado na demonstração de resultados e, nessa medida, solicita a declaração de ilegalidade do ato de liquidação relativo a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do exercício de 2018, e respectiva nota de cobrança, por entender que a Requerida, ao considerar na liquidação de IRS a totalidade da mais-valia realizada pelo Requerente, aplicou o disposto no artigo 43.º, n.º 2 do CIRS o qual, por sua vez, viola os artigos 18.º e 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante TFUE).
- A respetiva nota de cobrança foi emitida e o Requerente apenas liquidou a quantia de €17.931,05, valor que no seu entender é o devido.
- O Requerente apresentou em 7 de outubro de 2019 Reclamação Graciosa, com os fundamentos aqui invocados, tendo sido notificado em 30 de dezembro de 2020 da decisão final de indeferimento.
1.3 O Requerente por não concordar com o indeferimento da reclamação graciosa apresentou em 22 de janeiro de 2021 o presente pedido de pronúncia arbitral, o qual foi aceite.
- Constituído o Tribunal Arbitral, foi a Requerida devidamente notificada para apresentar a sua resposta, o que optou por não fazer, tendo juntado o processo administrativo (PA).
- No dia 20 de setembro de 2021, e face ao exposto, foi proferido despacho arbitral dispensando a reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, assim como a apresentação de alegações escritas e fixando a data de 02/11/2021 para a prolação da decisão arbitral.
- O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente.
- As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
1.4 As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral do Requerente são, em súmula, as seguintes:
- O Requerente é um cidadão português residente em França, tendo submetido uma declaração de IRS referente ao ano de 2018, em Portugal, na qualidade de sujeito passivo não-residente;
- Da referida declaração modelo 3, constava um anexo F referente a rendimentos prediais e um anexo G referente a mais-valias e outros incrementos patrimoniais.
- No anexo G, o Requerente declarou a venda realizada em outubro de 2018, da fracção G do artigo matricial n.º ..., da freguesia de ..., Concelho de Lisboa, pelo valor de €255.000,00. Tal prédio havia sido adquirido pelo requerente em agosto de 2004, pelo valor de 99.759,58, acrescido de despesas e encargos no valor de €12.632,60. No quadro 8 da declaração de IRS de 2018, o Requerente optou pelo Regime Geral, assinalando o campo 07.
- Conforme referido, a AT efectuou a correspondente liquidação de IRS, constando da respetiva demonstração o rendimento global de €125.058,30 e o valor a pagar de €34.910,09.
- O Requerente não concorda com o valor apresentado na demonstração de resultados e, nessa medida, liquidou apenas a quantia de €17.931,05, valor que no seu entender é o devido.
- Vem, assim, solicitar a declaração de ilegalidade do ato de liquidação relativo ao seu IRS do exercício de 2018, e respectiva nota de cobrança, por entender que a Requerida, ao considerar na liquidação de IRS a totalidade da mais-valia realizada pelo Requerente, aplicou o disposto no artigo 43.º, n.º 2 do CIRS o qual, por sua vez, viola os artigos 18.º e 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante TFUE). Entende o Requerente que existe um conflito entre a norma interna – o artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS - com o Direito da União Europeia, devendo aquela ser desaplicada pela AT se contrária a este, de acordo com o Princípio do Primado ou da Primazia do Direito da União Europeia.
- De facto, a AT liquidou o imposto, à taxa de 28%, sobre a totalidade do rendimento global o que determinou um imposto a pagar no valor de € 34.910,09. De tal decorre que, no caso da venda de um bem imóvel sito em Portugal, operação geradora de mais-valias, os não residentes ficam sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos. Com efeito, enquanto a um não residente é aplicada uma taxa de 28% sobre a totalidade das mais-valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria colectável correspondente para um residente em Portugal permite que este beneficie de uma carga fiscal inferior, qualquer que seja a taxa de tributação aplicável sobre a totalidade dos seus rendimentos, visto que a tributação do rendimento dos residentes está sujeita a uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado é de 48%.
- Entende ainda o Requerente que esta diferença de tratamento não pode ser justificada em função da verificação de qualquer das exceções previstas no artigo 65.º do TFUE, não podendo a discriminação da norma nacional daí decorrente ser justificável pelo objetivo de evitar penalizar os residentes (que se encontram sujeitos a uma tabela de taxas progressivas que podem ser muito superiores e são tributados sobre uma base mundial, ao contrário dos não residentes, que são tributados à taxa proporcional de 28%, não ocorrendo o englobamento), porque, sendo o escalão mais elevado 48%, conduz sempre, nas mesmas condições, a uma tributação mais gravosa do não residente, tendo em conta a redução a 50% do rendimento coletável do residente, não existindo, objetivamente, nenhuma diferença que justifique esta desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias entre as duas categorias de sujeitos passivos.
- Entende, por fim, o Requerente que a alteração introduzida no artigo 72º do Código do IRS, com a criação de um regime adicional opcional nesta matéria, não afasta a invalidade do regime discriminatório ainda vigor e que foi aplicado à liquidação de IRS ora impugnada.
- Conforme referido, a Requerida entendeu não apresentar Resposta. Do Processo Administrativo que juntou aos autos, decorre entender a Requerida que o Requerente deveria ter optado pelas regras de tributação dos residentes, com base do referido artigo 72º do Código do IRS, para obter o efeito pretendido. E que, não o tendo feito, foi correctamente tributado ao abrigo do regime aplicável aos não-residentes.
2. Decisão
2.1 Questões a decidir:
- Face às posições assumidas pelas Partes, cabe apreciar e decidir se, no caso de mais-valias resultantes da alienação de bens imóveis, o regime de tributação aplicável a residentes no território nacional e a residentes num outro país da União Europeia, é ou não qualificável como uma discriminação, ao abrigo do princípio da liberdade de circulação de capitais, violadora do artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
2.2 Matéria de facto - são factos dados como provados, com relevância para a apreciação das questões suscitadas:
- O Requerente é um cidadão português residente para efeitos fiscais em França.
- O Requerente procedeu à entrega da declaração de IRS - Modelo 3, respeitante ao ano 2018, juntamente com um anexo F e um Anexo G, este último relativo ao uma mais-valia imobiliária obtida com a venda de um imóvel em outubro de 2018.
- Na declaração de IRS, referente a 2018, foi declarada a condição de não residente do Requerente.
- A venda do imóvel ocorrida em 0utubro de 2018 gerou um rendimento total de €255.000,00 ao qual foi subtraído o valor de aquisição, acrescido de despesas e encargos. O valor de IRS a pagar cifrou-se em €34.910,09.
- A Autoridade Tributária procedeu ao cálculo do imposto devido, nos termos de nº 1 do artigo 43º do CIRS, tendo aplicado a taxa de 28% à totalidade do valor da mais-valia.
- O Requerente foi notificado para proceder ao pagamento do imposto apurado, tendo efectuado apenas o pagamento de €17.931,05, valor que considera ser o devido.
- Por não se conformar com a liquidação em apreço, o Requerente apresentou reclamação graciosa, tendo sido notificado da decisão de indeferimento em 30 de dezembro de 2020.
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
Os factos dados como provados estão baseados nos documentos indicados relativamente a cada um deles, no processo administrativo e nos elementos factuais carreados para o processo pelas Partes, na medida em que a sua adesão à realidade não tenha sido questionada.
2.3 Do Direito - fixada a matéria de facto, a questão a decidir nos presentes autos consiste em saber se a Requerida, ao tributar a totalidade das mais-valias resultantes da alienação onerosa do bem imóvel sub judice, por um sujeito passivo que não reside em Portugal, mas em França, país membro da União Europeia, por considerar que o nº 2, do art. 43º do Código do IRS deve ser aplicado apenas aos sujeitos passivos residentes em Portugal, terá violado o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, designadamente o seu artigo 63º que assegura a liberdade de circulação de capitais, constituindo tal facto um comportamento discriminatório entre residentes em Portugal e residentes noutro Estado - Membro da União Europeia.
- Com efeito, tem entendido a Requerida que o art. 43º, nº 2 do CIRS é aplicável apenas a residentes em território nacional, tendo em conta o elemento literal da norma e as especificidades do regime de tributação das pessoas singulares em Portugal, assente no princípio do englobamento e da progressividade.
- Ora, conforme, aliás, é alegado pelo Requerente, esta questão foi já apreciada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no seu “Acórdão Hollmann”, de 11/10/2007, proferido no processo C-443/06, em que se pronunciou no sentido que o referido art. 43º, nº 2 do CIRS, por revestir carácter menos favorável para os não residentes, infringindo, assim, o princípio da liberdade de circulação de capitais entre Estados-Membros da União Europeia, viola o art. 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
- Face a esta posição peremptória, resta apenas determinar se a opção que o sistema tributário português introduziu após a publicação do referido "Acórdão Hollmann", e que se encontrava vertida, à data, nos nºs 9 e 10 do art. 72º do CIRS, terá afastado o juízo de discriminação do TJUE a respeito do disposto no nº 2 do art. 43º do CIRS. É necessário, assim, avaliar se as alterações introduzidas ao artigo 72º do CIRS repuseram a igualdade de tratamento entre residentes e não residentes, eliminando, assim, qualquer discriminação que pudesse existir.
- Então vejamos. À data dos factos, os nºs 9 e 10 do artigo 72º tinham a seguinte redacção:
9 - Os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.
10 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.
Ora, numa situação similar, no apelidado "Acórdão Gielen" (processo C-440/08), veio o TJUE pronunciar-se no sentido de que a opção de equiparação que venha permitir a um sujeito passivo não residente a possibilidade de escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório não exclui os efeitos discriminatórios do primeiro destes dois regimes, pois se tal fosse reconhecido estar-se-ia a validar um regime fiscal violador do Tratado, em razão do seu carácter discriminatório. E, inclusivamente, conclui que o Tratado "se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes... apesar de esses contribuintes poderem optar pelo regime aplicável aos contribuintes residentes".
- É isto precisamente que ocorre com a introdução do regime opcional no artigo 72º do Código do IRS, não sendo assim sequer necessário analisar, face a esta posição do TJUE, se estas normas do artigo 72º mantêm ou não algum grau de discriminação face aos não-residentes, residentes na União Europeia.
- Ora, o nº 4 do art. 8º da Constituição da República consagra o princípio do primado do direito comunitário e da prevalência da interpretação do TJUE, nos seguintes termos: “3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram diretamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos tratados constitutivos.” Assim sendo, prevalecendo na ordem jurídica portuguesa a jurisprudência do TJUE, em matéria de direito comunitário, vinculando a mesma os tribunais nacionais, conforme é reconhecido pelo STA, e face ao paralelismo das questões que foram decididas com a questão agora em apreciação, a decisão nos presentes autos seguirá a orientação fixada na referida jurisprudência.
- Entende-se, assim, que a solução que o legislador português introduziu no código do IRS como regime opcional não eliminou o carácter discriminatório do regime do artigo 43º nº 2 do CIRS face aos sujeitos passivos residentes em Estados-Membros da União Europeia. No mesmo sentido tem estado a Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. A título exemplificativo, o Acórdão de 22 de Março de 2011 do Processo nº 1031/10, em que o Tribunal refere que: "perante a declaração dos contribuintes, lhes liquidou o imposto que considerou devido (como aliás sempre sucede no IRS): à taxa prevista para os não residentes (25%, nos termos do artigo 72º nº 1 do Código do IRS) e sobre o montante total da mais-valia realizada e não apenas sobre 50% deste valor (artigo 43º, nº 2 do Código do IRS), assim ignorando a jurisprudência comunitária e a deste Supremo Tribunal que a acolheu (cfr. o Acórdão de 16 de Janeiro de 2008, rec. nº 439/06) quanto à incompatibilidade daquela disposição legal, assim aplicada, com o (então) artigo 56º do TJCE (actual artigo 63º do Tratado sobre o Financiamento da União Europeia), sujeitando deste modo, como veio a acontecer, a ver anulada nessa parte a liquidação impugnada, dado o primado do direito comunitário.".
Deste modo, atento o exposto, procede o vício de violação de lei invocado pelo Requerente relativamente à liquidação efectuada pela Requerida nos referidos termos, por manifesta incompatibilidade do nº 2 do art. 43º do Código do IRS com o art. 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no ponto em que restringe a redução das mais-valias sujeitas a IRS a 50% apenas aos sujeitos passivos que são residentes em Portugal, com a sua consequente anulação.
Termos em que decide este Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e:
a) Anular o acto tributário objecto dos presentes autos;
b) Condenar a Requerida nas custas do processo,
Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €17.931,05, nos termos do artigo 97º-A, nº 1, a), do Código de Procedimentos e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 29º do RJAT e do nº 2 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €1.224,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12º, nº 2, e 22º, nº 4, ambos do RJAT, e artigo 4º, nº 4, do citado Regulamento.
Notifiquem-se as Partes e o Representante do Ministério Público de acordo com o artigo 17º nº 3 do RJAT.
Lisboa, 2 de novembro de 2021
O Árbitro
Maria Antónia Torres