SUMÁRIO:
I. Nos termos do preceituado no n.º 1 do artigo 28.º-A do Código do IRC – perdas por imparidade em dívidas a receber – podem ser deduzidas para efeitos fiscais as perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores.
II. No que diz respeito à dedutibilidade fiscal das imparidades de períodos de tributação anteriores, a mesma implica a tributação em sede de IRC no momento da sua constituição.
III. Verificando-se em exercício anterior a tributação da imparidade, e ocorrendo posteriormente a verificação da mora – qualquer que seja a sua percentagem de dedução – fica o sujeito passivo titulado no direito a deduzir parcialmente os valores das imparidades sobre as dívidas comerciais acrescidos em exercício anteriores, de acordo com o avanço da mora fiscal.
Decisão Arbitral
1. Relatório
1.1. No dia 16 de outubro de 2020, A..., S.A. (doravante abreviadamente designada por “A...” ou “Requerente”), identificada pelo n.º de pessoa coletiva (NIPC)..., com sede no ..., ..., ..., ..., ..., Cascais, ...-... ... apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a anulação da Liquidação de IRC n.º 2019..., de 14 de outubro de 2019, e respetiva demonstração de liquidação de juros, ambas associadas à demonstração de acerto de contas n.º 2019..., com a compensação.º 2019..., de 16 de outubro de 2019, por vícios de forma e de violação da lei, com todas as consequências legais.
1.2. Para fundamentar o seu pedido alega o Requerente, em síntese, que:
a) A Requerente é (e já era no período de tributação de 2017) a sociedade dominante de um grupo de sociedades tributadas em sede de IRC de acordo com o RETGS – o Grupo B...-, e, no referido período de tributação, o perímetro do grupo de sociedades sujeito à aplicação do RETGS era constituído pela Requerente, na qualidade de sociedade dominante, e pelas seguintes sociedades por si direta ou indiretamente dominadas, nos termos do artigo 69.º do CIRC:
• C..., S.A. (“C...”), com o NIPC...;
• D..., S.A. (“D...”), com o NIPC...;
• E..., S.A. (“E...”), com o NIPC...;
• F..., S.A. (“...”), com o NIPC...;
• G..., S.A. (“G...”), com o NIPC...;
•H..., S.A. (“H...”), com o NIPC...;
• I..., S.A. (“I...”), com o NIPC....
b) A I... é a entidade responsável pelas vendas online dos produtos da marca “J...” comercializados pelo Grupo, enquanto as demais subsidiárias da Requerente exploram a generalidade das lojas físicas do grupo em Portugal. Sendo, por sua vez, a Requerente titular da marca “J...”, sendo responsável pela conceção e desenvolvimento dos artigos comercializados pelo Grupo, pelas compras e gestão de encomendas e de mercadorias, comercialização e distribuição dos produtos J... e pela definição e implementação das políticas e estratégias de marketing da marca e, bem assim, pelo apoio ao cliente. Nestes termos, a Requerente cria as coleções J..., cujos artigos e manufatura adquire a entidades terceiras, destinando-as aos canais de venda por grosso – em benefício das respetivas subsidiárias (designadamente, a D..., a E..., a F..., a G..., a H... e a I...), que, por sua vez, assumem a venda a retalho nas diversas lojas por si exploradas e retalho nas lojas de outlet exploradas pela própria Requerente.
c) À data dos factos, o Grupo B... encontrava-se igualmente presente em outras jurisdições europeias, nomeadamente, em Espanha, Bélgica e Reino Unido. O Grupo B... desenvolvia à data – e ainda desenvolve – a sua atividade no Reino Unido através da sociedade K... Limited (“K...”), uma entidade residente para efeitos fiscais neste território – com sede em Londres – e detida, a título individual, pelos quatro irmãos L... . Concretamente, esta sociedade explorava uma loja de vestuário que, em conformidade com o modelo de negócio do Grupo, apenas se encontrava autorizada a vender artigos da marca J... . Consequentemente, a totalidade dos produtos vendidos neste estabelecimento eram diretamente adquiridos à Requerente.
d) Nomeadamente nos períodos de 2015 a 2017, as demonstrações financeiras da K... revelavam uma situação patrimonial altamente deficitária sendo que, em face dos resultados líquidos negativos sucessivamente apurados pela K... em cada período de relato financeiro, esta sociedade acumulava, no final do período económico de 2017 (terminado em 30 de junho desse ano), resultados transitados negativos de £ 3.062.510, encontrando-se, portanto, numa situação de falência técnica e de perda de mais de metade do capital social. Tais resultados líquidos negativos eram essencialmente justificados pelo elevado volume de despesas administrativas a que a mesma se encontrava sujeita em cada período e foi perante a evidência de tais dificuldades financeiras que a gestão da Requerente se viu forçada a reforçar as perdas por imparidade em crise sobre as dívidas comerciais da K... .
e) No período de tributação de 2017, a Requerente reforçou as perdas por imparidade registadas sobre as dívidas desta sociedade, em resultado de dois tipos distintos de operações: fornecimento de mercadorias – realizado no âmbito da sua atividade normal – e operações financeiras. Sendo que, neste período, a Requerente, por lapso, acresceu fiscalmente um montante de € 705.190,14 que não tem qualquer correspondência com o valor do reforço das perdas por imparidade em créditos sobre a K... contabilizado na rubrica #6511. Sendo que, conforme validado pelos SIT no âmbito da inspeção tributária, a Requerente acresceu a este título, no campo 721 da respetiva Declaração Modelo 22 de 2017 (entre outros valores) um total de € 705.190,14, referente a perdas por imparidade, quando, na verdade o valor líquido do reforço da perda por imparidade sobre créditos da K... (de natureza financeira e comercial) ascendeu apenas a € 427.619,50 (#6511).
f) Na sequência desta constatação, a Requerente procedeu a uma reanálise dos seus mapas de aging de dívidas comerciais, tendo concluído que no período de tributação de 2017, a imparidade sobre dívidas comerciais da K... foi reforçada pelo valor líquido de € 136.414,95, o qual se decompõe num reforço de € 294.572,79 (€ 38.810,17 + € 255.762,63, e numa reposição (por pagamentos recebidos da K...) de € 158.157,84. Sendo que os valores repostos respeitavam a imparidades sobre dívidas comerciais integralmente aceites (pelo critério da mora) em 31 de dezembro de 2016.
g) Não tendo tais perdas sido objeto de acréscimo, pela Requerente, ao resultado tributável de 2016 (nem de períodos anteriores), os rendimentos subjacentes a esta reposição (€ 158.157,84) foram registados na rubrica #6511 com saldo contranatura entendendo a Requerente que deverão ser objeto de tributação em 2017, não se mostrando devida qualquer dedução ao resultado tributável a este respeito.
h) Em reação à desconsideração da dedutibilidade fiscal das imparidades constituídas pela Requerente em 2015 e 2016 relativas a dívidas comerciais sobre a K..., a Requerente deduziu, com referência a cada um dos exercícios, as competentes reclamações graciosas.
i) No que respeita ao reforço bruto da imparidade, entende a Requerente que só poderá ser considerado fiscalmente aceite, segundo os critérios da mora fiscal, no montante de € 38.810,17, mostrando-se devido o acréscimo ao resultado tributável da Requerente do valor remanescente, correspondente a € 255.762,63 (€ 294.572,79 - € 38.810,17), e, finalmente, por via do avanço da mora das dívidas comerciais sobre as quais foram reconhecidas imparidades a 100% no período de tributação de 2016, a Requerente encontra-se legitimada a recuperar, para efeitos fiscais, parte da perda cujo acréscimo se mostrava devido naquele período de tributação, no montante de € 303.779,86.
j) Em resultado do exposto, entende a Requerente que o ajustamento ao resultado tributável de 2017 que se mostrava efetivamente devido no que respeita às perdas por imparidade sobre dívidas comerciais, traduz-se numa dedução líquida de € 48.017,23. Este valor corresponde à diferença entre as perdas por imparidade sobre créditos comerciais (valor bruto contabilizado na rubrica #6511) não aceites para efeitos fiscais em 2017 por não se verificar o critério da mora (€ 255.762,63) e o efeito da recuperação fiscal das perdas por imparidade sobre créditos comerciais registadas e acrescidas em períodos anteriores (concretamente em 2016) pelo avanço da mora (€ 303.779,86), nos termos do n.º 2 do artigo 28.º-B do CIRC.
k) A Requerente acresceu, indevidamente, no campo 721 da sua declaração Modelo 22 de IRC individual, um montante de € 705.190,14 relativo a imparidades sobre dívidas comerciais e o reforço das imparidades sobre operações financeiras (€ 291.204,554 ) contabilizado na rubrica #6511 não assume uma natureza fiscalmente aceite, e os SIT promoveram uma correção ao resultado tributável da Requerente, traduzida numa dedução líquida de € 277.570,64, a demonstração adicional de IRC em crise e as respetivas demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas, entendendo a Requerente que deverão ser parcialmente anuladas, no sentido de reporem o verdadeiro resultado tributável da Requerente.
l) Também por referência aos períodos de tributação de 2015 e 2016, os SIT corrigiram o resultado tributável declarado pela Requerente no que respeita à desconsideração integral das perdas por imparidade em dívidas comerciais da K..., tendo sido emitidas as correspondentes liquidações adicionais de imposto e respetivas demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas.
m) Em face da situação de falência técnica da K..., o mais provável era que parte dos compromissos comerciais assumidos com a Requerente não viessem efetivamente a ser liquidados na sua totalidade, pelo simples facto de aquela sociedade não ter ativos ou disponibilidades financeiras presentes (ou futuras) capazes de fazer face às suas obrigações contratuais (quer as comerciais, quer as de outras naturezas).
n) Entendia a Requerente a necessidade de garantir a manutenção da relação comercial com a K..., numa ótica de estabilização da estratégia desenhada de detenção e penetração da marca “J...” em outros mercados (para além de Portugal), quer através da comercialização de artigos para venda por grosso num espaço físico (nas lojas J...), quer ainda através da venda online digital. O esforço de projeção internacional da marca “J...” e penetração em mercados internacionais foi iniciado logo no final dos anos 90, tendo a Requerente, já nos anos 2000, oficializado parcerias publicitárias, não só com personalidades nacionais e internacionais. Além disso, nos primeiros anos da década de 2000, foi iniciada uma estratégia de associação da marca a clubes de futebol. Por sua vez, conforme a informação disponível no seu site oficial, 2007 foi o ano que marcou o início da expansão física da marca, tendo a Requerente passado a exportar os seus produtos, para, entre outros destinos, Espanha, Bélgica e, mais tarde, Reino Unido.
o) Em vista destes esforços, era manifesto o interesse (próprio e egoístico) da Requerente em garantir o fornecimento dos seus produtos às lojas/empresas responsáveis pelo comércio a retalho dos mesmos e, consequentemente, a difusão da marca – entre as quais se encontrava a K... . Acresce que, da sua perspetiva, mostrava-se francamente mais vantajoso assegurar a presença e penetração da sua marca numa outra jurisdição através de um parceiro e representante local – no caso concreto, a K... representava uma presença num mercado com imenso potencial de projeção e notoriedade internacional da marca –, do que através de um investimento diretamente realizado na jurisdição alvo.
p) A existência de um parceiro local possibilitava à Requerente a partilha do risco do negócio, libertando-a para as atividades sobre as quais possuía vantagem comparativa e para as quais passaria a ter maior disponibilidade, a saber: a conceção e desenvolvimento do produto, compras e gestão de encomendas, a armazenagem e expedição de mercadorias e o marketing associado à proteção, projeção e valorização da marca. A manutenção da relação comercial estabelecida com a K... resultava, assim, com a estratégia comercial internacional definida, que visava a penetração da marca “J...” no mercado do Reino Unido (uma das maiores economias mundiais, cujo volume de transações anuais envolve centenas de milhares de milhões de libras, sendo ainda Londres uma das cidades do mundo que mais turistas recebe anualmente), para o que se mostrava efetivamente imprescindível a existência de, pelo menos, uma loja física da marca, em vista a assegurar que os respetivos clientes potenciais teriam a possibilidade de experimentar os tamanhos e modelos dos artigos comercializados, ainda que, mais tarde, realizassem as respetivas compras online.
q) Pelo que, numa lógica de investimento na penetração naquele mercado, através do acordo existente com um parceiro comercial local (a K...), a Requerente assegurava a existência de uma loja física para a comercialização dos seus artigos com o objetivo do aumento do awareness dos consumidores potenciais residentes ou turistas no Reino Unido relativamente à marca J... e de, assim, potenciar, (in)diretamente, o volume de vendas dos seus produtos, não só através da K..., mas também da I...– entidade responsável pelas vendas online da marca. Acresce que, à semelhança de muitos outros parceiros locais, a K... apenas se encontrava autorizada a comercializar no seu espaço artigos da marca J..., o que significa que, sendo a Requerente a (única) sociedade responsável pela conceção e distribuição dos artigos J... para posterior comercialização nas lojas (quer na loja online, quer nas lojas detidas pela A... e pelas demais sociedades do Grupo para venda a retalho), esta era também a única fornecedora de mercadorias da K... .
r) A Requerente viu-se sempre forçada a manter as relações comerciais com a K..., uma vez que estas geravam vendas efetivas para a A..., incrementando assim a sua margem e resultados operacionais – os quais, como se disse, são integralmente sujeitos a tributação em sede de IRC. E, sem prejuízo das dificuldades financeiras que impendiam – e ainda impendem – sobre a K..., o certo é que, ao longo dos vários períodos económicos, esta entidade tem vindo a liquidar, ainda que parcial e intempestivamente, pelo menos parte dos seus compromissos financeiros assumidos com a Requerente.
s) Em face do tratamento fiscal conferido pela Requerente às imparidades registadas sobre dívidas comerciais da K... no período de tributação em análise, no relatório de conclusões da inspeção notificado à A... a nível individual, a DFL concluiu pela desconsideração integral das perdas registadas contabilisticamente. Isto é, a DFL concluiu que, ao invés do montante de € 705.190,14, a Requerente deveria apenas ter acrescido o total do reforço líquido da perda por imparidade contabilizado na rubrica #6511. Assim, ainda que apurando uma correção favorável à Requerente (traduzida numa dedução ao resultado tributável – incorretamente apurado – de € 277.570,64), a DFL manteve a conclusão, vertida no relatório de conclusões da inspeção realizada aos períodos de tributação de 2015 a 2017 segundo a qual as perdas por imparidade sobre dívidas comerciais da K... não são fiscalmente aceites, devendo, como tal, todos os movimentos associados (com impacto em resultados) ser desconsiderados para efeitos fiscais, não concorrendo, assim, para a formação do resultado tributável em sede de IRC.
t) Tal correção encontra-se refletida nas liquidações adicionais de imposto e de juros e na respetiva demonstração de acerto de contas. O argumento utilizado para negar a aceitação fiscal das perdas por imparidade em dívidas comerciais assenta exclusivamente no pressuposto de que não existem provas objetivas de imparidade que justifiquem e comprovem o risco de incobrabilidade, sobretudo atendendo à circunstância de a Requerente, mesmo conhecendo a situação financeira e de tesouraria da K..., ter mantido uma relação comercial com esta sociedade ao longo dos anos, o que envolveu o fornecimento de mercadorias de milhares de euros.
u) Embora, segundo a Requerente, os SIT entendam que não existem provas objetivas de imparidade, reconhecem, porém, que as operações em causa resultam da atividade normal da Requerente, bem como a verificação do requisito previsto no final da alínea a) do n.º 1 do artigo 28.º-A do CIRC – o qual determina que podem ser aceites para efeitos fiscais as perdas por imparidade relacionadas com créditos resultantes da atividade normal que, no fim do período de tributação, se encontrem evidenciados como sendo de cobrança duvidosa na contabilidade.
v) Os SIT reconhecem ainda, segundo a Requerente, que os demais requisitos subjacentes à aceitação fiscal da perda (cfr. a al. c) do n.º 1 do art.º 28.º-B do CIRC) se encontram integralmente verificados, nomeadamente, os critérios da mora e a verificação de diligências de cobrança do crédito.
w) A questão sobre que discordam AT e Requerente circunscreve-se, portanto, unicamente, à questão de saber se existem provas objetivas que comprovem o risco de incobrabilidade das dívidas comerciais.
x) A Requerente entende que não existem dúvidas quanto ao facto de esta entidade se encontrar, no período de 2017 (e nos períodos subsequentes), em situação financeira manifestamente difícil, o que é, por si só, uma evidência objetiva, inquestionável e suficiente da imparidade reconhecida, como aliás foi sancionado pelos respetivo revisor oficial de contas.
y) A Requerente entende que deverá ainda considerar dedutível, para efeitos fiscais, parte da perda por imparidade reconhecida em 2016 e acrescida em conformidade ao resultado tributável, por via do decurso a mora fiscal, nos termos do n.º 2 do artigo 28.º-B do CIRC.
Desta forma a Requerente conclui pela procedência do pedido de pronúncia arbitral.
1.2. No dia 19-10-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
1.3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
1.4. Em 10-12-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
1.5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 13-01-2021.
1.6. No dia 03-05-2021, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação, e juntou aos autos do respetivo processo administrativo.
1.7. Foi realizada da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT a 14 de julho de 2021, também destinada à inquirição das testemunhas arroladas pelas partes.
1.8. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pela Requerente e Requerida, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas.
1.9. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
1.10. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
a) A Requerente tem por atividade principal a importação, exportação e comércio por grosso de vestuário, calçado, perfumes, malas e acessórios, CAE 46421, e por atividade secundária o comércio a retalho de vestuário para adultos em estabelecimentos específicos, CAE 47711;
b) A Requerente é a titular da marca “J...”, sendo responsável pela conceção e desenvolvimento dos artigos comercializados pelo Grupo, pelas compras e gestão de encomendas e de mercadorias, comercialização e distribuição dos produtos pela definição e implementação das políticas e estratégias de marketing da marca e, bem assim, pelo apoio ao cliente;
c) A Requerente cria as coleções J..., cujos artigos e manufatura adquire a entidades terceiras, destinando-as aos canais de venda por grosso – em benefício das respetivas subsidiárias (designadamente, a D..., a E..., a F... a G..., a H... e a I...), que, por sua vez, assumem a venda a retalho nas diversas lojas por si exploradas – e retalho nas lojas de outlet exploradas pela própria Requerente.
d) No período em apreço nos autos, o Grupo B... encontrava-se igualmente presente em outras jurisdições europeias, nomeadamente, em Espanha, Bélgica e Reino Unido. Sendo que, a sua atividade no Reino Unido era assumida pela sociedade K... Limited (“K...”), uma entidade residente para efeitos fiscais neste território – com sede em Londres – e detida, a título individual, pelos quatro irmãos L... .
e) A K... explorava uma loja de vestuário que, em conformidade com o modelo de negócio do Grupo, apenas se encontrava autorizada a vender artigos da marca J... sendo que a totalidade dos produtos vendidos neste estabelecimento eram diretamente adquiridos à Requerente.
f) Esta sociedade acumulava, no final do período económico de 2017 (terminado em 30 de junho desse ano), resultados transitados negativos de £ 3.062.510, pelo que a gestão da Requerente se viu forçada a reforçar as perdas por imparidade em crise sobre as dívidas comerciais da K... .
g) Com a situação de falência técnica da K..., o mais provável era que parte dos compromissos comerciais assumidos com a Requerente não viessem efetivamente a ser liquidados na sua totalidade por aquela sociedade não ter ativos ou disponibilidades financeiras.
h) A Requerente queria garantir a manutenção da relação comercial com a K..., numa ótica de estabilização da estratégia desenhada de detenção e penetração da marca “J...” em outros mercados (para além de Portugal), quer através da comercialização de artigos para venda por grosso num espaço físico (nas lojas) J..., quer ainda através da venda online digital.
i) Era do interesse (próprio e egoístico) da Requerente garantir o fornecimento dos seus produtos às lojas/empresas responsáveis pelo comércio a retalho dos mesmos e, consequentemente, a difusão da marca – entre as quais se encontrava a K..., pelo que a manutenção da relação comercial estabelecida com a K... resultava intrinsecamente da estratégia comercial internacional definida, que visava a penetração da marca “J...” no mercado do Reino Unido.
j) A Requerente viu-se sempre forçada a manter as relações comerciais com a K..., uma vez que estas geravam vendas efetivas para a A..., incrementando assim a sua margem e resultados operacionais.
k) Neste período, a Requerente, por lapso, acresceu fiscalmente no campo 721 da sua declaração Modelo 22 de IRC individual um montante de € 705.190,14 que não tem qualquer correspondência com o valor do reforço das perdas por imparidade em créditos sobre a K... quando, na verdade, o valor líquido do reforço da perda por imparidade sobre créditos da K... (de natureza financeira e comercial) ascendeu apenas a € 427.619,50.
l) No período de tributação de 2017, a imparidade sobre dívidas comerciais da K... foi reforçada pelo valor líquido de € 136.414,95, o qual se decompõe num reforço de € 294.572,79 (€ 38.810,17 + € 255.762,63) e numa reposição (por pagamentos recebidos da K...) de € 158.157,84.
m) Os valores repostos respeitavam a imparidades sobre dívidas comerciais integralmente aceites (pelo critério da mora) em 31 de dezembro de 2016.
n) Tais perdas não foram objeto de acréscimo, pela Requerente, ao resultado tributável de 2016 (nem de períodos anteriores).
o) A Requerente é sujeito passivo de IRC e está enquadrada no regime geral de tributação e em termos contabilísticos, passou a partir de 1 de janeiro de 2016 a organizar as suas demonstrações financeiras de acordo com as Normas Internacionais de Relato Financeiro (IFRS);
p) Na sequência do procedimento inspetivo externo de âmbito parcial (em sede de IRC e IVA) realizado à Requerente, em termos individuais, com incidência sobre os períodos económicos de 2015 a 2017, ao abrigo das Ordens de Serviço n.ºs OI2018..., OI2018... e OI2019..., os Serviços de Inspeção Tributária (“SIT”) da Direção de Finanças de Lisboa (“DFL”) foi esta notificada do projeto de relatório da inspeção tributária, sobre o qual a Requerente exerceu direito de audição prévia;
q) Em 2019-06-04, a Requerente foi notificada, na pessoa do seu representante, para entregar os documentos comprovativos das diligências efetuadas para o recebimento das dívidas e ainda para explicar e comprovar a relação entre os detentores de capital da A... e os da K... .
r) A Requerente, através do seu representante respondeu afirmando que:
Os créditos comerciais sobre a K... advêm do fornecimento de mercadorias, no âmbito da atividade normal da A... e de saldos decorrentes de transferências e respetivas regularizações, entre a A... e a K...;
A falta de pagamento por parte da K... decorre da sua incapacidade financeira;
São reconhecidos como estando em imparidade os créditos considerados de cobrança duvidosa, de acordo com a mora do seu pagamento;
A K... é integralmente detida pelos accionistas da A...;
No momento da sua constituição, as perdas por imparidade são reconhecidas de acordo com os critérios fiscais, com base na sua mora, conforme disposto no n.º 2 do artigo 28.º-B do CIRC;
Os valores dos documentos que vão sendo pagos pelo cliente são revertidos contabilisticamente, sendo registados como rendimento do ano em que são recebidos;
Foram enviadas ao cliente, em novembro de cada ano, cartas exigindo o pagamento dos créditos em mora; e
Têm-se mantido as vendas a este cliente ao longo dos anos analisados.
s) Posteriormente, através do relatório final de conclusões da mesma inspeção, notificado à Requerente por via do ofício n.º..., de 29 de agosto de 2019, a DFL manteve as correções ao lucro tributável propostas em sede de projeto de conclusões da inspeção tributária.
t) As referidas correções, realizadas ao nível individual, tiveram impacto no apuramento do lucro tributável do grupo, sujeito ao RETGS e, consequentemente, da coleta de IRC, derrama estadual e derrama municipal.
u) A Requerente foi notificada (na qualidade de sociedade dominante do RETGS) da Demonstração de Liquidação de IRC n.º 2019..., de 14 de outubro de 2019, e da respetiva demonstração de liquidação de juros, ambas associadas à demonstração de acerto de contas n.º 2019..., com a compensação n.º 2019..., de 16 de outubro de 2019, referente ao período de tributação de 2017, onde foi fixado um valor a pagar de € 203.643,85.
v) A Requerente efetuou o pagamento da liquidação, no dia 30 de janeiro de 2020, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2019... .
w) A Requerente apresentou, reclamação graciosa a qual foi instaurada sob o n.º ...2019... e que por despacho de 2020-07-17 foi indeferida nos termos e com os fundamentos que aqui se consideram reproduzidos.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Não há outros factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
2.3. Fundamentação dos factos provados
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
3. Matéria de direito
O presente pedido de pronúncia arbitral tem por fundamento as correções que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) efetuou à matéria tributável de IRC da Requerente do exercício de 2017, relativas a perdas por imparidades em dívidas a receber.
As referidas correções foram efetuadas a nível individual e refletidas igualmente no lucro tributável do RETGS de que a Requerente é a sociedade dominante, com o argumento de que as dívidas comerciais da K... não são fiscalmente aceites, devendo, como tal, todos os movimentos associados ser desconsiderados para efeitos fiscais, não concorrendo, desta forma, para a formação do resultado tributável em sede de IRC.
Para o efeito, a AT afirma que não existem provas objetivas das perdas por imparidades dos créditos comerciais sobre a K... e, como tal, não se pode concluir pela existência de risco anormal e excessivo de incobrabilidade.
3.1. Enquadramento fiscal das Perdas por imparidade em dívidas a receber
De acordo com o artigo 23º do Código do IRC, “Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC (…) [considerando-se] abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, (…) as perdas por imparidade (…)” (cf. alínea h) do n.º 2 do artigo 23.º do Código)
Acresce que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 28.º-A, do Código do IRC, “Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores: as relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade (…)”.
Por outro lado, o artigo 28.º-B do Código do IRC, estatui que:
1 - Para efeitos da determinação das perdas por imparidade previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:
a) O devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto;
b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral;
c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento
2 - O montante anual acumulado da perda por imparidade de créditos referidos na alínea c) do número anterior não pode ser superior às seguintes percentagens dos créditos em mora:
a) 25 % para créditos em mora há mais de 6 meses e até 12 meses;
b) 50 % para créditos em mora há mais de 12 meses e até 18 meses;
c) 75 % para créditos em mora há mais de 18 meses e até 24 meses;
d) 100 % para créditos em mora há mais de 24 meses.
Assim, da análise conjugada das normas acima, é de aceitar como gasto fiscal – nas percentagens legalmente aceites – as perdas por imparidades por créditos em dívida os créditos que, cumulativamente:
a) Resultem da atividade normal da empresa;
b) Sejam considerados de cobrança duvidosa no final do exercício em questão;
c) Encontrem-se evidenciados como de cobrança duvidosa na contabilidade;
d) E que o crédito de cobrança duvidosa se encontre, nos termos do n.º 1 do artigo 28.º-B, devidamente justificado.
Ora, uma vez que as dívidas da Sociedade K... decorrem da aquisição de mercadorias da marca “J...” à Requerente, o que não é posto em causa pelos SIT no relatório de inspeção, torna-se claro que o crédito em dívida decorre da atividade normal da empresa.
Acresce que, de acordo com a documentação disponibilizada, designadamente pela análise dos documentos n.º 10 (Relatório e contas) e n.º 11 (balancete acumulado em Dezembro 2017), verificamos que o risco de incobrabilidade encontrava-se devidamente evidenciado na contabilidade como sendo de cobrança duvidosa – tal como espelhado na rubrica contabilística #2111418000021 – K... .
Posto isto, e por forma a verificar se os créditos em questão preenchem os pressupostos para serem considerados como de cobrança duvidosa no final do exercício em questão, cumpre confirmar se os mesmos se inserem em algumas das alíneas do n.º 1 do artigo 28.º-B do Código do IRC.
De acordo com a factualidade acima descrita, verificamos que a Requerente não tem pendente qualquer processo dos identificados nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 28.º-B do Código do IRC, pelo que cumpre verificar se se encontram cumpridos os requisitos da alínea c) para que os créditos sejam considerados de cobrança duvidosa, i.e., saber se os créditos estão em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento, se existem provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.
O risco de incobrabilidade, para efeitos daquela norma, verifica-se assim pela (i) mora há mais de seis meses; (ii) existência de provas objetivas de imparidade; e, por fim, (iii) existência de diligências de cobrança. A não verificação de qualquer um dos pressupostos acima determina a desconsideração fiscal da imparidade registada.
Ora, no que diz respeito à duração da mora e à realização das diligências para a cobrança, Requerente e SIT encontram-se de acordo. Neste particular, veja-se que os SIT na sua resposta, replicando o que já havia entendido no relatório de inspeção, afirmam que “No entendimento dos serviços de inspeção tributária (SIT), vertido no RIT (Ponto III.1.2), foram dados como preenchidos os requisitos relativos à duração da mora e à realização das diligências para a cobrança dos créditos, (…)”.
Desta forma, o cerne da questão encontra-se na existência ou não de provas objetivas de imparidade.
De acordo com a Requerente, o reconhecimento contabilístico das perdas por imparidade por parte da Requerente assentou no mais escrupuloso cumprimento das normas contabilísticas que lhe foram aplicáveis no período de tributação em referência.
E que, perante a falência técnica da K..., não tinha como justificar, numa lógica financeira e perante os seus auditores, a inexistência de um risco de incobrabilidade dos créditos comerciais em questão.
O reconhecimento da perda por imparidade sobre dívidas comerciais da K... traduziu-se, pois – e necessariamente –, numa decisão subjetiva de gestão da Requerente, baseada nas normas contabilísticas que lhe são aplicáveis, em pressupostos financeiros e económicos válidos e na avaliação de risco realizada, sobre a qual os SIT não devem nem se encontram legalmente autorizados a interferir.
E, ao contrário do que afirmam os SIT no seu relatório de inspeção tributária, o facto de a Requerente ter mantido a relação comercial existente com a K... ao longo dos anos, mesmo tendo conhecimento da respetiva situação financeira, não é uma evidência da “(…) confiança na honorabilidade da K... em fazer face, ainda que tardiamente, aos compromissos de pagamento assumidos”.
Por outro lado, os SIT colocaram o enfoque da análise sobre os movimentos na conta corrente da K... e sobre a natureza do relacionamento comercial entre as entidades devedora e credora e o contexto em que se insere, tendo averiguado (i) que têm sócios/administradores comuns; (ii) que os fornecimentos de mercadorias têm sido mantidos ao longo do tempo, apesar do avolumar dos créditos em mora, desde 2011; e (iii) que a devedora tem vindo a realizar pagamentos parciais das dívidas em mora.
Elementos que, atentas as práticas habituais e os usos comerciais entre empresas, permitiram aos SIT inferir que se está perante factos evidentes de confiança na honorabilidade da K... em fazer face, ainda que tardiamente, aos compromissos de pagamento assumidos, pelo que de outra forma não se justificaria o reiterado fornecimento de mercadorias.
Acresce que o facto de ambas as entidades - credora e devedora - terem os mesmos sócios/administradores, o que indica uma condução unitária dos negócios, bem como a subordinação da gestão à estratégia global delineada para o grupo, sendo certo que a K... explorava uma loja de vestuário que, “em conformidade com o modelo de negócio do Grupo, apenas se encontrava autorizada a vender artigos da marca J...”, produtos adquiridos à Requerente.
E como a Requerente bem explica o interesse na valorização e difusão internacional da marca “J...” de que é titular, bem como a promoção das vendas por outros canais, designadamente o online, através da I..., justificam a continuidade da relação comercial com a K..., ou seja, prevalecem sobre os efeitos do incumprimento reiterado dos prazos de pagamento das faturas.
Acrescentando ainda que “a Requerente contesta que a desconsideração da dedutibilidades das perdas por imparidade reconhecidas pela Requerente sobre os créditos comerciais detidos na K... tenha como fundamento a inexistência de “provas objetivas de imparidade que justifiquem que comprovem o risco de incobrabilidade” e para demonstrar a alegada “interpretação errática” feita pelos SIT das “provas objectivas de imparidade”, chama à colação a afirmação constante do RIT de que “conhecendo a A... toda a situação financeira e de tesouraria daquele cliente (pela razão de os accionistas serem os mesmos) mantém a relação comercial ao longo dos anos, continuando a fornecer-lhe mercadorias no valor de milhares de euros.”
Aqui chegados, e uma vez que vigora o modelo de dependência parcial entre a contabilidade e a fiscalidade – que se traduz no apuramento do lucro tributável com base na contabilidade e eventualmente corrigido nos termos do Código do IRC, cumpre verificar se a Requerente seguiu os princípios orientadores no tratamento contabilístico conferido aos instrumentos financeiros e respetivos requisitos de apresentação e divulgação.
De acordo com o parágrafo §5 da IAS 39 (à data), as dívidas a receber, cuja mensuração deve ser realizada pelo método do custo (ou custo amortizado), deduzido de qualquer perda por imparidade que nos termos desta norma contabilística deva ser registada, enquadram-se como ativos financeiros,
Por outro lado, o parágrafo §58 da mesma IAS 39 refere que sempre que um ativo financeiro não esteja valorizado pelo justo valor através de resultados, as entidades sujeitas a esta norma devem avaliar a eventual existência de imparidades, devendo as mesmas ser reconhecidas contabilisticamente sempre que exista uma evidência objetiva de imparidade, o que sucede sempre que haja uma significativa dificuldade financeira do devedor.
Ora, analisando o relatório & contas da K... (junto ao processo com documento 14), verifica-se a existência de uma situação patrimonial negativa significativa, apresentando resultados transitados negativos superiores a £3 milhões de libras.
Desta forma, sendo claras as dificuldades financeiras da entidade devedora – que se traduz igualmente no incumprimento recorrente dos pagamentos a que está obrigada junto da Requerente – torna-se patente e notória a evidência objetiva de imparidade, devendo a mesma ser reconhecida na sua contabilidade.
Acresce que a Lei fiscal não tem qualquer definição do conceito de “provas objetivas de imparidade”, pelo que o mesmo apenas poderá ser preenchido com recurso às normas contabilísticas que densificam e regulam o conceito de imparidade, o que é referido pela Requerente e aceite pelos SIT,
Veja-se que na resposta apresentada a AT expõe: “Por outro lado, como lembra a Requerente não existe na legislação fiscal qualquer densificação do conceito de “provas objetivas de imparidade”, nem tão pouco qualquer especificação quanto aos requisitos ou factos que devem ser demonstrados, pelo que, dada a relação de dependência parcial entre a contabilidade e as regras de determinação do lucro tributável constantes do Código do IRC, devem ser acolhidas as orientações sobre esta matéria dimanadas dos normativos contabilísticos (in casu, a IAS 39).”
Para, de seguida questionar se existirá dados ou informação observáveis que exponham a existência de reais e significativas dificuldade financeiras da K..., afirmando que “não se basta com a mera indicação dos valores da situação patrimonial líquida negativa da K..., que figuram nos balanços tornando-se necessário saber que factos e circunstâncias concorreram para a sua verificação”.
Referindo ainda que da informação de relato financeiro da K... “Duas ilações podem ser retiradas destas informações: a primeira, é que os principais credores da K... são os próprios sócios/administradores e uma entidade relacionada – a Requerente – cujas dívidas somam £ 3,501,237 sendo o total do passivo de £3,645,026 (cfr., Balanço em 30.06.2017), ou seja as dívidas a outros credores são apenas de £143,789; e a segunda, é a confirmação expressa pelos sócios/administradores de continuar a prestar apoio financeiro à sociedade, assumindo o compromisso de não exigir o reembolso das importâncias devidas até que a sociedade tenha capacidade financeira para o fazer, pressupondo-se naturalmente que esta intenção tanto abrange as dívidas próprias como as da A.. ”.
Concluindo que “Ou seja, surpreende-se no teor das informações da referida Nota 1.2, a firme vontade de continuidade da empresa e de condescendência com o pesado passivo que apresenta perante os sócios/administradores e a Requerente, o que, desde logo, denota que a situação financeira, apesar de débil, está sob o controlo e, portanto, não se prefigura a existência de um elevado risco de incobrabilidade, tanto mais que tem havido lugar a pagamentos parciais”
Ora, não pode este tribunal concordar com tal conclusão.
O facto os credores da K... serem os próprios sócios/administradores da Requerente, não tem qualquer relevância na determinação do risco de incobrabilidade – que se encontra dependente apenas da verificação dos pressupostos contabilísticos – e, acima de tudo, não tem relevância na consideração de créditos de cobrança duvidosa já que, como bem refere a AT, os créditos da K... não podem ser afastados do conceito de créditos de cobrança duvidosa, em virtude de não se encontrar em vigor à data as limitações decorrentes das relações especiais entre entidades (cf. alínea e) do n.º 3 do artigo 28.º-B do Código do IRC).
Neste particular, e porque não relevam as relações especiais, é relevante mencionar o entendimento já vertido na decisão do CAAD no âmbito do processo n.º 724/2016-T, de 16 de março de 2018, que afirma “O facto de a Requerente ter continuado a manter relações comerciais com, pelo menos, a maioria destes clientes, alguns dos quais com um historial de pagamentos para além dos prazos acordados, não afasta necessariamente o risco de incobrabilidade. Como não o afasta a existência de pagamentos parciais dos montantes em dívida. Todo o comércio em que a regra é a concessão de crédito aos clientes, envolve um risco de cobrança; sem a assunção desse risco, pura e simplesmente, não haveria negócios, nomeadamente no sector da construção civil. Continuar ou não a manter relações comerciais com devedores em mora é uma decisão de gestão empresarial em que a AT não se pode imiscuir pois - como é reafirmado por numerosa jurisprudência, ainda que muitas vezes a outros propósitos (v.g. aceitação fiscal de gastos) – vigora entre nós o princípio, com dignidade constitucional, da liberdade de empresa (veja-se, por todos, o recente Acórdão do TCA Sul de 23/3/2017, proc. 06792/13)”.
Continuando, “O que importa, na decisão de constituição de imparidades, é avaliar se o risco é “normal”, ou se, em determinado momento (quando do encerramento de cada exercício), se tornou “excessivo”. Existindo factos que evidenciem a existência de um risco anormalmente elevado, há que criar imparidades, pois de outra forma a contabilidade não espelharia a realidade patrimonial da empresa (trata-se de uma concretização do princípio contabilístico da (sã) prudência)”.
Assim, encontrando-se imparidade corretamente registada do ponto de vista contabilístico e sendo indubitável que se está perante uma situação que cumpre com todos os requisitos estatuídos no Código do IRC para a sua consideração fiscal, a mesma deve operar.
3.2. Recuperação das perdas por imparidade sobre dívidas comerciais acrescidas em 2016, por via do decurso da mora fiscal
No período de tributação de 2016, a Requerente reconheceu imparidades sobre a totalidade das dívidas comerciais da K..., independentemente da mora que lhes estava subjacente.
Ora, uma vez que as imparidades sobre dívidas comerciais contabilizadas em 2016 não respeitavam o critério da mora fiscal, o valor foi acrescido pela Requerente ao seu lucro tributável e, em consequência, tributado em sede de IRC.
Dispõe o n.º 1 do artigo 28.º-A do Código do IRC – Perdas por imparidade em dívidas a receber – que podem ser deduzidas para efeitos fiscais as perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores.
No que diz respeito à dedutibilidade fiscal das imparidades de períodos de tributação anteriores, a mesma implica a tributação em sede de IRC no momento da sua constituição. Assim, verificando-se em exercício anterior a tributação da imparidade, e ocorrendo posteriormente a verificação da mora – qualquer que seja a sua percentagem de dedução, fica o sujeito passivo titulado do direito a deduzir parcialmente os valores das imparidades sobre as dívidas comerciais acrescidos em exercício anteriores, de acordo com o avanço da mora fiscal.
Assim, e uma vez que se encontram verificados os restantes requisitos legais para o efeito, a imparidade correspondente a esta componente é, igualmente, fiscalmente dedutível em 2017.
Ora, face ao todo o exposto, enfermando de erro de direito as correções em questão, devem as mesmas ser anuladas, procedendo o pedido arbitral.
3.3. Direito a juros indemnizatórios
Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o n.º 1 do artigo 43.º da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso, o erro que afeta a liquidação é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que praticou o ato de liquidação ilegal por sua iniciativa.
Tem, pois, direito a ser reembolsada a Requerente da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e n.º 1 do artigo 24.º do RJAT) e, ainda, a ser indemnizada pelo pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, pela Requerida, desde a data do pagamento da quantia até ao reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 43.º e n.º 10 do artigo 35.º da LGT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
4. Decisão
Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Anular parcialmente o ato de liquidação de IRC n.º 2019..., de 14 de outubro de 2019, e respetiva demonstração de liquidação de juros, ambas associadas à demonstração de acerto de contas n.º 2019..., com a compensação n.º 2019..., de 16 de outubro de 2019.
b) Em consequência, anular as correções efetuadas ao lucro tributável do Grupo dominado pela Requerente, decorrentes da correção efetuada a nível individual;
c) Condenar a Requerida na restituição do imposto indevidamente pago pela Requerente em cumprimento da liquidação parcialmente anulada, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos acima fixados;
d) Condenar a Requerida nas custas abaixo fixadas.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor da causa é fixado em € 203.643,85.
6. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida (artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e 122.º, n.º 2, do CPPT).
Lisboa, 15 de novembro de 2021
Os Árbitros
O Presidente do Tributnal Arbitral
(Carlos Fernandes Cadilha)
O Árbitro vogal
(Armando Oliveira)
A Árbitro vogal
(Marisa Almeida Araújo)