SUMÁRIO:
1. O erro imputável aos serviços concretiza qualquer ilegalidade, compreendendo o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, no âmbito do qual se enquadra a violação das normas de direito da UE.
2. Existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da Administração Tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão considera-se imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a Administração Tributária actuar em plena conformidade com a lei.
3. Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transaccionados no mercado nacional, a norma do artigo 11º do CISV, na redacção dada pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, mostra-se incompatível com o direito comunitário, por violação do artigo 110º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. A..., LDA, com o NIPC n.º..., com sede no Porto, na Rua ..., n.º ... (doravante designada por Requerente), apresentou junto do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo das disposições conjugadas nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 3, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação parcial da liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) nº 2018/..., de 29.05.2018, na parte que se refere à componente ambiental, no montante de € 1.511,20.
Peticiona ainda o reembolso do imposto pago em excesso, acrescido dos juros indemnizatórios.
2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
3. A Requerente alega, sumariamente, que, em 31.05.2018, foi apresentada na Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) nº 2018/..., para introdução no consumo, com origem na Alemanha, do veículo usado, de marca ..., movido a gasolina, nº de motor ..., cilindrada ..., com 13.071 Km percorridos, a que foi atribuída a matrícula ..., em 30.05.2018. No Quadro E da DAV, relativo às características do veículo, no item 51 consta o valor de 0.0004g/km, relativo à emissão de partículas, e no item 50 o valor de 203g/km, relativo à emissão de Gases CO2. A Requerente procedeu à liquidação do ISV pelo valor global de € 15.134,98, imposto que foi integralmente pago. Deste imposto, € 7.578,99 correspondem à componente cilindrada e € 7.555,99 à componente ambiental. Em relação à componente cilindrada, aquele valor resulta da dedução ao valor de € 9.473,74 da quantia de € 1.894,75 (20%) correspondente à redução resultante do número de anos de uso do veículo. Ao não aplicar a mesma redução à componente ambiental, a Requerente entende que a AT está a violar o artigo 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), onerando os veículos usados importados com uma tributação fiscal superior à aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.
4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado pela Requerente em 11.12.2020 e aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 14.12.2020. Foi notificado à AT em 21.12.2020. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 6º do RJAT, foi designada, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, em 03.05.2021, a ora signatária como Árbitro a integrar o Tribunal arbitral singular, o qual se constituiu em 21.05.2021, em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11º, do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro.
5. A Requerida AT juntou resposta, em 06.07.2021, defendendo-se ali por excepção e impugnação, aí pugnando pela improcedência e consequente absolvição do pedido, bem como o processo administrativo.
6. Em 06.07.2021, foi dispensada a reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, tendo-se facultado às partes a possibilidade de apresentação de alegações, e à Requerente, também a possibilidade de exercer o contraditório em relação às excepções deduzidas pela Requerida.
7. A Requerida deduz a excepção de ilegitimidade da Requerente e de intempestividade do pedido. Alega ainda que o cálculo do imposto sobre veículos consta do Quadro R das DAV e foi efectuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, tendo sido calculado o ISV, atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo. Argumenta que o actual modelo de fiscalidade automóvel tem em vista assegurar a coerência entre a tributação de veículos novos e usados, na medida em que a aquisição de uns e de outros se rege pelos mesmos princípios, de justiça fiscal e respeito pelo meio ambiente. Considera a interpretação, pugnada pela Requerente, uma desaplicação do direito europeu e internacional - do artigo 191º do TFUE, do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris - que vincula o Estado Português, por força do artigo 8º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66º e do n.º 2 do artigo 103º da CRP. Conclui defendendo que a liquidação de ISV, que aplicou o artigo 11º do CISV, foi efectuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110º e 191º do TFUE e nos artigos 66º e 103º da Constituição da República Portuguesa.
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo (cfr. artigos 2º, n.º 1, alínea a) e 5º do RJAT).
Não há nulidades, pese embora haja matéria de excepção para conhecer:
II. 1. Da excepção de ilegitimidade da Requerente
Alega a Requerida que a Requerente, A..., LDA, é parte ilegítima, uma vez que não alega nem prova a propriedade do veículo em questão, à data do pedido de pronuncia arbitral.
Ora, acontece que a própria Requerida afirma, no artigo 6º da sua Resposta, que: «[a Requerente], deste modo, em conformidade com as normas de incidência, objectiva e subjectiva, e exigibilidade do imposto, introduzi[u] o veículo no consumo e proced[eu] ao pagamento do ISV liquidado». E mais à frente, no artigo 32 do mesmo articulado, «[a] Requerente, enquanto proprietária do veículo naquela data, procedeu à sua introdução no consumo, no território nacional, através da DAV em questão (…)».
Efectivamente, o que releva é que a Requerente é o sujeito passivo da liquidação em crise. Para este Tribunal, a sua legitimidade activa advém deste facto. Não se alcança a relevância da titularidade da propriedade para os efeitos pretendidos pela Requerida.
Tão pouco se vislumbra em que disposição legal assenta a Requerida a necessidade da Requerente alegar e fazer prova da propriedade do veículo à data do pedido arbitral, que, no entender daquela conduz à sua ilegitimidade.
Pelo que improcede a alegada excepção de ilegitimidade da Requerente.
II. 2. Da excepção da caducidade do direito de acção
A Requerida invoca a excepção da caducidade do direito de acção da Requerente face à intempestividade do presente pedido arbitral uma vez que o mesmo vem interposto na sequência de indeferimento do pedido de revisão oficiosa da liquidação em crise, sendo que, quando este último foi apresentado, em 05.03.2020, era, no seu entender, intempestivo. E isto, porque, face ao disposto no artigo 78º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), «[a] revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.» Segundo a AT, no presente caso, o pedido de revisão da liquidação em crise, foi efectuado muito depois de ter decorrido o prazo da reclamação graciosa, de 120 dias, pelo que tal pedido só poderia ser apreciado à luz da 2ª parte do n.º 1 do referido artigo, ou seja, por erro imputável aos serviços. Acontece que, a AT entende que, neste caso, se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, em respeito pelo princípio da legalidade a que se refere o artigo 266º, n.º 2 da CRP, não podendo desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário, atribuição reservada aos tribunais, não podendo, assim, ser imputado aos serviços erro que fundamente um procedimento de revisão de acto tributário.
Cumpre decidir.
Na decisão proferida no processo n.º 114/2019-T do CAAD, que a AT invoca, reconhece-se que, «[n]o que diz respeito à interpretação do artigo 78º, n.º 1 da LGT, constitui jurisprudência assente que a revisão dos actos tributários pela Administração Tributária pode ser também requerida, pelos sujeitos passivos, no prazo de quatro anos, com fundamento em erro imputável aos serviços (2ª parte). (…) Neste sentido, veja-se o decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 04.05.2016 (proferido no processo n.º 407/15), nos termos do qual se refere que “é hoje jurisprudência consolidada que, podendo a AT, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do acto tributário, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços (…), também o contribuinte pode, naquele prazo da revisão oficiosa, pedir esta mesma revisão com aquele fundamento” (…), [o]u seja, pode o sujeito passivo aproveitar o prazo de quatro anos previsto na segunda parte do n.º 1 do artigo 78º da LGT, desde que o pedido de revisão oficiosa seja formulado com fundamento em erro imputável aos serviços.»
Importa assim, determinar se se verifica, in casu, erro imputável aos serviços. Não podendo imputar-se aos serviços qualquer erro de facto, importa averiguar se lhes poderá ser imputado erro de direito. A este propósito já decidiu o STA, ao estabelecer no acórdão proferido em 19.11.2014, no processo 0886/14 que «(…) tem desde há muito entendido este Supremo Tribunal de forma pacífica que “existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária actuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectado pelo erro, conforme se deixou explicado, entre outros, no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 12.12.2001, no recurso n.º 026233, pois “havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro” já que “a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços”. - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 14 de Março de 2012, rec. n.º 1007/11, e numerosa jurisprudência aí citada.»
O mesmo resulta do acórdão do TCAS n.º 1058/10.0BELRS, de 31.01.2019, onde se decidiu, mais recentemente no sentido de que «(…) o erro imputável aos serviços concretiza qualquer ilegalidade, não imputável ao contribuinte, mas à Administração, compreendendo o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, no âmbito do qual se enquadra a violação das normas de direito da UE.»
Considerando-se o pedido de revisão oficiosa da liquidação em crise tempestivo, tem de improceder a excepção de caducidade do direito de acção invocada pela Requerida, considerando-se, consequentemente, também tempestivo o pedido de pronúncia arbitral, subsequente ao indeferimento daquele pedido de revisão oficiosa, em observância do disposto no artigo 57º, n.º 1 da LGT e artigo 10º, n.º 1, alínea d) do RJAT.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Matéria de facto
A. Factos provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
1. A Requerente introduziu em Portugal, com origem na Alemanha, pelo valor de € 67.142,86, o veículo automóvel ligeiro de passageiros usado de marca ..., modelo..., movido a gasolina, n.º de motor..., n.º de quadro..., com o código de homologação..., cilindrada..., de cinzenta & outras (Declaração aduaneira).
2. O veículo foi matriculado pela primeira vez na Alemanha a 06.04.2017, tendo-lhe sido atribuída a matrícula ... (Declaração aduaneira).
3. Após a concretização da compra e venda do veículo, a Requerente procedeu à sua importação e, em 28.05.2018, deu entrada com o mesmo em território nacional, tendo apresentado a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) dentro dos 20 dias posteriores à entrada do veículo em território nacional (Declaração aduaneira).
4. A DAV (à qual foi atribuído o n.º 2018/..., de 31.05.2018), foi apresentada pela Requerente através de representante directo, tendo o declarante inscrito nos Quadro F e G (referentes à apresentação do veículo e matrículas anteriores), que o mesmo era uma viatura usada, proveniente da Alemanha e com 13.071 km percorridos (Declaração aduaneira).
5. No Quadro E da DAV, relativo às características do veículo, no item 51 (atinente à emissão de partículas) consta o valor de 0.0004 g/km, e no item 50 (relativo à emissão de gases CO2) consta o valor de 203 g/km (Declaração aduaneira).
6. Atenta a data da 1.ª matrícula do veículo no país de origem, o veículo foi considerado um veículo entre “Mais de 1 a 2 anos de uso”, para efeitos dos escalões da Tabela D, prevista no n.º 1, do artigo 11º do CISV, ao qual corresponde uma percentagem de redução de 20% (Declaração aduaneira).
7. No Quadro R da referida DAV, alusivo ao cálculo ISV, o cálculo desse imposto foi efectuado, com recurso à aplicação da tabela aplicável aos veículos ligeiros de passageiros (Tabela A), pelo valor total de € 15.134,98 (Declaração aduaneira).
8. Do valor total de imposto, € 7.578,99 são relativos à componente cilindrada, e € 7.555,99 são relativos à componente ambiental (Documento 4).
9. No que concerne à componente cilindrada, ao valor inicial de € 9.473,74 foi deduzido a quantia correspondente a 20% do seu montante, ou seja, € 1.874,75, de acordo com as percentagens de redução constantes da tabela D prevista no n.º 1, do artigo 11º, do CISV, aplicável aos veículos usados (Declaração aduaneira).
10. No que concerne ao montante de € 7.555,99, respeitante à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental não foi aplicada qualquer percentagem de dedução (Declaração aduaneira).
11. A liquidação de ISV em causa tem o n.º 2018/..., de 29.05.2018, e a Requerente, procedeu ao seu pagamento na totalidade, no montante de € 15.134,98, em 30.05.2018 (Declaração aduaneira).
12. Em 05.03.2020, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa do acto de liquidação (procedimento nº...), que foi indeferido por despacho de 20.10.2020 (Processo administrativo).
13. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado a 11.12.2020.
B. Factos não provados
Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.
C. Fundamentação da Fixação da Matéria de Facto:
A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Singular e a sua convicção ficou formada com base nas peças processuais apresentadas pelas Partes, no processo administrativo e nos documentos juntos pela Requerente.
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596º e n.º 2 a 4 do artigo 607º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, o processo administrativo e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.
III.2. Matéria de Direito
Conforme resulta do pedido arbitral, a Requerente manifesta a sua inconformidade com os actos de liquidação impugnados, por entender que, ao não levarem em consideração o número de anos do veículo em causa na sua componente ambiental, o artigo 11º do CISV, na redacção então em vigor, violava directamente o disposto no artigo 110º do TFUE, o que inquina a liquidação de ilegalidade.
De acordo com o disposto no Código do ISV, estão sujeitos ao imposto, designadamente, «os veículos automóveis ligeiros de passageiros», sendo «sujeitos passivos do imposto os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares (…) que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando -se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos» [artigo 2º, n.º 1, alínea a) e 3º, n.º 1]
E, como estabelece o artigo 5º do mesmo código, «constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal», sendo que, para este efeito, de acordo com o n.º 3 alínea a) do mesmo artigo, entende-se por «admissão, a entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado-Membro da União Europeia em território nacional» (sublinhados nossos).
Por sua vez, «a introdução no consumo e a liquidação do imposto são tituladas pela declaração aduaneira de veículos (DAV)», sendo, «para efeitos de matrícula, os veículos automóveis ligeiros (…) são sujeitos ao processamento da DAV» (art. 17º, n.º 1 e 3 do CISV).
Para efeitos de cálculo do ISV, as taxas aplicáveis têm por base tributável uma componente cilindrada e uma componente ambiental, sendo que a primeira estipula uma taxa consoante a cilindrada e o tipo de veículo e a segunda uma discriminação entre os veículos a gasolina e os veículos a gasóleo, (de forma positiva relativamente aos primeiros) prevendo uma tributação progressiva em função do nível de CO2 g/km.
De modo particular, e no que aos veículos usados provenientes de outros Estados membros da União Europeia respeita – como no caso em apreço -, estabelecia o artigo 11º do CISV, na versão então em vigor:
1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com excepção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:
TABELA-D
2 - Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respectivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.
Ora, as questões suscitadas no âmbito da União Europeia relativamente à carga fiscal incidente sobre os veículos usados provenientes de veículos matriculados em Estados Membros e, designadamente, em matéria de legalidade e conformidade com as normas comunitárias do ISV, há muito se vêm arrastando.
Por exaustivo se transcreve o historial que a esse propósito se fez constar da decisão arbitral de 30.04.2019, proferida no processo n.º 572/2018-T:
- «(…) Essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter proteccionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos.
Não obstante, em 2001, o Acórdão do TJCE (de 22.02.01) denominado «Gomes Valente», proferido a título prejudicial, veio criar as condições para se romper, a nível nacional, com o quadro clássico de tributação dos veículos usados, assente exclusivamente em reduções fixas em função do n.º de anos de uso.
Neste âmbito, embora tenha sido referido que a aplicação de uma tabela de taxas para os veículos usados fundada num critério de depreciação único não seria contrário ao referido artigo 95º do Tratado de Roma, foi sublinhado que era importante que fossem tomados em conta outros factores de depreciação que não apenas a antiguidade, de forma a garantir que a referida tabela reflectisse de modo mais preciso a depreciação real dos veículos e permitisse alcançar de uma forma mais fácil o objectivo da tributação dos veículos usados, de modo a que, em nenhum caso, esta pudesse ser superior ao montante da taxa residual incorporada no valor dos veículos usados já matriculados em território nacional.
Esta jurisprudência veio a ser reforçada com o Acórdão do TJCE n.º 101/00, proferido em 19 de Setembro de 2002 num processo que então envolveu o Governo Finlandês e Antti Sillin, no qual foi considerado que o artigo referido artigo 95º, primeiro parágrafo do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 90º, primeiro parágrafo) permitia a um EM aplicar aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o valor tributável é determinado por referência ao valor aduaneiro definido, mas obsta a que o valor tributável varie em função da fase de comercialização quando daí possa resultar, pelo menos, em determinados casos, que o montante do imposto que incide sobre um veículo usado importado exceda o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.
Refira-se ainda que, na sequência do designado Acórdão «Gomes Valente», a jurisprudência tem entendido que para que um sistema de tributação dos veículos usados seja compatível com o disposto no Tratado é necessário que se adopte ou um modelo de tributação baseado na avaliação de cada veículo ou um modelo de tributação baseado em tabelas fixas que exclua todo e qualquer efeito discriminatório.
Por outro lado, o actual artigo 110º do TFUE opõe-se a que um EM aplique aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o imposto que incide sobre esses veículos não atenda à depreciação real do veículo e não permita garantir sempre que o montante do imposto que fixa não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.
Mais se considerou que, quando um EM aplica aos veículos usados importados de outros Estados membros um sistema de tributação em que a depreciação real dos veículos é definida de modo geral e abstracta com base em critérios determinados pelo direito nacional, o disposto no Tratado exige que esse sistema de tributação seja organizado de forma a excluir todo e qualquer efeito discriminatório.
Pode assim afirmar-se que o Acórdão do TJCE proferido no caso «Gomes Valente» abriu a porta para uma nova forma de tributação dos veículos usados admitidos de outros Estados membros.
Mas, ao que ao presente caso interessa, refira-se que em 2006, no âmbito do sistema de tributação húngaro, no Acórdão do TJUE de 5 de Outubro de 2006 (C-290/05), no caso Nádasdi, foi analisada pela primeira vez a questão ambiental face aos impostos automóveis aplicáveis dentro do espaço da União Europeia.
Com efeito, o sistema fiscal húngaro ignorava a desvalorização do veículo e tratava de forma igualitária todos os veículos que tivessem a mesma motorização e comportamento ambiental.
Contudo, o referido Acórdão veio declarar que «o artigo 90.º, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação. Não é relevante proceder a uma comparação com os veículos usados postos em circulação no Estado-Membro em questão antes da introdução desse imposto».
Adicionalmente, considerou-se que os Estados-Membros (EM) têm liberdade para seleccionar os critérios a utilizar no cálculo do imposto e estabelecer um sistema de tributação diferenciado para certos produtos, em função de critérios objectivos aplicados, sendo que tais diferenciações só serão consideradas compatíveis com o direito da UE se, por um lado, prosseguirem objectivos compatíveis, também eles, com as exigências do Tratado e do direito derivado e, se por outro, as formas que vierem a revestir sejam de molde a evitar qualquer forma de discriminação, directa ou indirecta, das «importações» provenientes dos outros EM, ou de protecção em favor de produções nacionais concorrentes.
Assim, ainda que, em termos gerais, no âmbito de um regime fiscal relativo à tributação automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em factores ambientais constituem critérios objectivos e possam ser utilizados no sistema de tributação, da sua utilização não poderá resultar discriminação e o imposto que vier a ser apurado não poderá onerar mais os produtos provenientes de outros EM do que os produtos nacionais similares, implicando que a cobrança por um EM de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro EM é contrária ao artigo 110º do TFUE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.
Em 2009, interpretando o mesmo artigo 110º do TFUE, o TJUE, no Acórdão de 19 de Março de 2009 (que opôs a Comissão Europeia à Finlândia), considerou que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de um modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.
Ora, relevando que, nos termos do disposto no artigo 8º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o direito internacional prevalece sobre o direito interno português e é directamente aplicável em território nacional, sem desenvolver qualquer fundamentação, fez eco uma comunicação da Comissão Europeia em que se informava que esta tinha encetado, no TJUE, um processo contra Portugal, no sentido de defender que era censurável o artigo 11º do Código do ISV não contabilizasse no cálculo do ISV incidente sobre veículos usados nenhuma desvalorização até o veículo ter mais de um ano de tempo de uso, nem é considerada nenhuma diminuição do valor real para os veículos com mais de cinco anos de utilização, processo que culminou com a prolação do Acórdão to TJUE (C-200/15), de 16.06.2016, acima já referido.
Por se entender que as alterações legislativas ao artigo 11º do CISV não traduzem consonância com a legislação comunitária, continua a mesma decisão arbitral:
- Contudo, como não foi comtemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE n.º C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando directamente a legislação nacional, consubstanciada no artigo 11º do Código do ISV (na redacção em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que «a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do TFUE.
E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, mas excluindo de novo da redacção do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.
Assim, os actuais contornos da legislação nacional ignoram, no artigo 11º, n.º 1 Tabela D, o previsto no artigo 110º do TFUE e a posição que o TJUE tem assumido (e que já assumia face ao disposto no artigo 90º do Tratado de Roma) de que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.
A situação descrita levou (de novo) a Comissão Europeia, na sua busca de justiça comunitária, a dar início a um procedimento contra Portugal por este não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados «importados» de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestas viaturas face às viaturas usadas adquiridas em território nacional».
Pois bem, resulta do exposto evidente a orientação constante do TJUE sobre a incompatibilidade de normas nacionais que tributem mais gravosamente os veículos “importados” de outros Estados Membros, como se extrai tanto das decisões referidas como de tributações de similares contornos vigentes noutros países da União Europeia.
Aliás, como se refere no Acórdão de 20.09.2007, proferido no processo C-74/06, Comissão das Comunidades Europeias vs República Helénica: «O artigo 95°, primeiro parágrafo, do Tratado, só permite a um Estado-Membro aplicar aos veículos usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação em que a depreciação do valor efectivo dos referidos veículos é calculada de modo geral e abstracto, com base em critérios ou tabelas fixas determinados por uma disposição legislativa, regulamentar ou administrativa, se esses critérios ou tabelas forem susceptíveis de garantir que o montante do imposto devido não excede, ainda que apenas em certos casos, o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional».
Ou, como estabelece o Acórdão de 05.10.2006, processos C-290/05 e C-33/05 Ap., Ákos Nádasdi: «No âmbito de um regime relativo ao imposto automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em considerações ambientais constituem critérios objectivos. Daí poderem ser utilizados num regime desses. Em compensação, não é exigível que o montante do imposto esteja relacionado com o preço do veículo.
Contudo, um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados-Membros do que os produtos nacionais similares.
Ora, um veículo novo relativamente ao qual o imposto automóvel foi pago na Hungria perde, com o decorrer do tempo, uma parte do seu valor de mercado. Assim, diminui, na mesma medida, o montante do imposto automóvel compreendido no valor residual do veículo. Sendo um veículo usado, só pode ser vendido por uma percentagem do valor inicial, percentagem que engloba o montante residual do imposto automóvel.
Resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça pelos órgãos jurisdicionais de reenvio que um veículo do mesmo modelo e de antiguidade, quilometragem e outras características idênticas, comprado em segunda mão noutro Estado-Membro e registado na Hungria será, contudo, sujeito a 100% do imposto automóvel aplicável a um veículo dessa categoria. Por conseguinte, o referido imposto onera mais os veículos usados importados do que os veículos usados similares já registados na Hungria e sujeitos ao mesmo imposto. 56. Assim, não obstante o carácter ambiental do objectivo e do fundamento do imposto automóvel e mesmo não tendo estes qualquer relação com o valor de mercado do veículo, o artigo 90°, primeiro parágrafo, CE exige que seja tida em conta a depreciação dos veículos usados que são objecto de tributação, visto que esse imposto se caracteriza por ser apenas cobrado uma vez quando do primeiro registo do veículo para efeitos da sua utilização no Estado-Membro em causa e por ser desta forma incorporado no referido valor.» Com base nestes considerandos, o Tribunal viria a declarar que «2 - O artigo 90°, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida:
– em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e
– em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação».
E, de forma indiscutível e directa relativamente ao CISV, mais propriamente no que respeita a alteração ao artigo 11º do CISV, veio o TJUE, por Acórdão de 16.06.2016, proferido no processo C-200/15, Comissão Europeia vs República Portuguesa, a considerar:
- «Para efeitos da aplicação do artigo 110° TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar-se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide directa ou indirectamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados, mas também a matéria colectável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve reflectir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de Setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).
No caso em apreço, o artigo 11°, n.º 1, do Código do Imposto sobre Veículos prevê, para efeitos do cálculo do imposto aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros, a tomada em consideração de uma desvalorização em função de uma tabela de percentagens fixas que estabelece, designadamente, em 20% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado durante um período de um a dois anos e em 52% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado há mais de cinco anos.
Daqui resulta que a República Portuguesa aplica aos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação no qual, por um lado, o imposto devido por um veículo utilizado há menos de um ano é igual ao imposto que incide sobre um veículo novo similar posto em circulação em Portugal e, por outro, a desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos é limitada a 52%, para efeitos do cálculo do montante deste imposto, independentemente do estado geral real desses veículos.
Ora, é facto assente que o valor de mercado de um veículo automóvel começa a diminuir a partir da data da sua compra ou da sua entrada em circulação e que esta diminuição continua para além do quinto ano da sua utilização (v., neste sentido, acórdão de 19 de Setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C-101/00, EU:C:2002:505, n.º 78).
Deste modo, a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos.
Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que, nos casos referidos no número anterior do presente acórdão, os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110° TFUE».
Em conclusão, viria o Tribunal a declarar que «1) A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110° TFUE.»
Para, pretensamente, ir ao encontro desta última decisão judicial foi dada nova redacção ao artigo 11º do CISV, através da Lei n.º 42/2016, de 28/12, incluindo-se a desvalorização dos veículos quanto à componente cilindrada, mas excluindo-se, de modo declarado, a desvalorização relativa à componente ambiental.
Do que resulta que a legislação nacional em vigor à data– no aludido artigo 11º do CISV – continuava a não ser compatível com o disposto no artigo 110º do TFUE, permanecendo uma tributação mais onerosa para os veículos provenientes de outros Estados Membros, quando comparados com os adquiridos no território nacional.
Não se conseguindo vislumbrar em que medida a aplicação do artigo 191º do TJUE fosse incompatível ou pudesse prevalecer à aplicação do artigo 110º, como defende a Requerida. Quer dizer, continuava o artigo 11º do CISV a ser contrário ao artigo 110º do TFUE e à interpretação conjugada, uniforme e reiterada que dos mesmos tem o TJUE dado a conhecer.
É, aliás, com base neste entendimento que a Comissão Europeia deu início, em 23.04.2020, no TJUE, a uma acção por incumprimento contra o Estado português, processo a que foi atribuído o n.º C-169/20, e no qual foi preferida decisão, em 02.09.2021, no sentido de que «[a]o não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE».
Note-se que, entretanto, o legislador português já veio actualizar, neste mesmo sentido, através da Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, a redacção do n.º 1 do referido artigo 11º do CISV, que, doravante, passou a ser a seguinte:
«Artigo 11º (Taxas - veículos usados)
1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, tendo em conta a útil média remanescente dos veículos, respectivamente componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida (…).» (sublinhado nosso)
Em conclusão, subscrevendo a posição que o TJUE tem expressamente assumido, não se nos afiguram dúvidas quanto à incompatibilidade do artigo 11º do CISV, na redacção em vigor à data da emissão da liquidação em crise, com o direito da União Europeia, quando faz impender uma carga tributária agravada sobre os veículos usados provenientes de outros Estados Membros, comparativamente com os nacionais, ao não ter em conta a necessária redução do montante do imposto na componente ambiental.
Acresce que o n.º 4 do artigo 8º da CRP, estabelece o primado do direito comunitário, quando determina que as disposições dos tratados que regem a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito nacionais, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde que respeitados os princípios fundamentais do Estado de direito comunitário.
Logo, quando as normas de direito ordinário interno não são compatíveis com o direito comunitário, o Tribunal nacional não as pode aplicar, devendo suspender a sua força vinculativa no caso concreto. «O juiz nacional, encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito comunitário, tem a obrigação de assegurar o pleno efeito dessas normas, deixando se necessário inaplicadas, por sua própria autoridade, qualquer disposição contrária da legislação nacional, ainda que posterior, sem que tenha de pedir ou aguardar a eliminação prévia desta por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional» (Acórdão de 09.03.1978 do TJUE, no processo C-106/77 - Acórdão Simmenthal). Daqui se retira que o primado do direito da União Europeia é absoluto e impõe-se à própria Constituição.
A legalidade da liquidação em crise deve aferir-se, em última instância, pela respectiva conformidade com o direito da União Europeia que compete aos Estados membros, designadamente através dos tribunais, aplicar e fazer respeitar. Facto que o legislador português acabou por reconhecer ao alterar, através da Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, a redacção do artigo 11º do CISV por forma a que a mesma ficasse em conformidade com o direito da União Europeia.
Considera-se, desse modo, que a liquidação objecto do presente pedido arbitral, que aplica o artigo 11º do CISV, na redacção em vigor à data, padece de ilegalidade, na parte em que não considerou a redução da componente ambiental, o que, aliás, coincide com o pedido, impondo-se a sua anulação parcial, pelo que deve ser devolvido à Requerente o imposto indevidamente pago no montante global de € 1.511,20.
*
Além da restituição do imposto indevidamente pago, pretende a Requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
Tal direito vem consagrado no artigo 43º da LGT o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial - ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.
É verdade que foram praticados actos que agora se decide serem parcialmente ilegal. Mas, para que a AT possa ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios, necessário é que, como se referiu, o mesmo resulte de erro imputável aos serviços. Sobre esta questão já nos pronunciamos atrás, reconhecendo, na esteira do decidido no já citado acórdão do STA, proferido no processo 0886/14, que existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços.
Pelo que assiste à Requerente o direito ao pretendido pagamento de juros indemnizatórios relativamente ao imposto pago em excesso. E subscrevemos o hoje sustentado na presente decisão, contrariando a posição que anteriormente vínhamos assumindo, numa evolução de pensamento.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar improcedente a excepção de ilegitimidade da Requerente;
b) Julgar improcedente a excepção de caducidade do direito à acção da Requerente;
c) Julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado, determinando-se a anulação parcial da liquidação de ISV nº 2018/..., de 29.05.2018 e a consequente restituição à Requerente da quantia de € 1.511,20, com as demais consequências legais.
d) Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
e) Condenar a Requerida nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 1.511,20, nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12º, n.º 2, e 22º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável
Lisboa, 2 de Novembro de 2021
O Árbitro,
(Cristina Aragão Seia)