Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 749/2020-T
Data da decisão: 2021-11-02  ISV  
Valor do pedido: € 4.852,82
Tema: ISV – veículo automóvel usado originário de outro EM da UE –componente ambiental do imposto
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

I. Relatório

A..., doravante designado como “Demandante”, contribuinte nº..., residente na Rua ..., ..., ...-... Maia, apresentou, em 10-12-2020, ao abrigo do disposto no art.º 2.º, nº 1, al. a) do Regime Jurídico de Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT) e do art.º 99º do Código de Procedimento e Processo Tributário, pedido de pronúncia arbitral, com vista a:

  1. A anulação parcial do ato de liquidação resultante da Declaração Aduaneira de Veículo n.º 2017/..., de 20-07-2017, relativa a Imposto Sobre Veículos (ISV).
  2. A condenação da Demandada à devolução do imposto indevidamente pago no valor de € 4.852,82 e ao pagamento dos respetivos juros indemnizatórios.

É demandada a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Demandada”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 11-12-2020.

Nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º e da alínea b) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 01-02-2021, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03-05-2021.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido, por nenhuma ilegalidade afetar o ato impugnado, e nomeadamente, por o art.º 11.º do Código do Imposto sobre Veículos (doravante CISV), após ter sido objeto de alteração pela Lei n.º 42/2016, de 28.12, se ter tornado plenamente compatível com o art.º 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

A AT considera que a regra de cálculo do imposto, contida no art.º 11.º do CISV, não prevendo redução da componente ambiental da taxa em função da idade do veículo, é justificada por prosseguir objetivos de proteção ambiental, em obediência à Constituição Portuguesa e ao próprio art.º 191º do TFUE, além dos tratados internacionais em matéria ambiental – Protocolo de Quioto e Acordo de Paris – assinados por Portugal.

Na sua resposta, a AT suscitou também a exceção de caducidade do direito de ação, uma vez que, sendo o pedido de pronúncia arbitral deduzido contra o ato de indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa da liquidação, este pedido foi indeferido com base na sua intempestividade.

Por despacho de 04-06-2021, o Tribunal notificou o Demandante para, querendo, se pronunciar sobre a exceção suscitada pela AT na sua resposta, o que o Demandante fez, em requerimento remetido ao Tribunal em 15-06-2021.

Por despacho de 17-09-2021, o Tribunal propôs a prescindência da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT e a da apresentação de alegações finais, ao que as Partes não se opuseram.

 

II. Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 2º, e do nº 1 do artigo 10º, ambos do RJAT, e é materialmente competente.

As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4º e nº 2 do artigo 10º, do mesmo diploma e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar a exceção perentória de caducidade do direito de ação suscitada pela Demandada.

O Demandante apresentou pedido de revisão do ato de liquidação, com base em ilegalidade do mesmo, em 02 de junho de 2020, na Alfândega de Aveiro. Fê-lo invocando a ilegalidade da liquidação, no que respeita ao cálculo da componente ambiental, por considerar que o artigo 11º do Código do ISV, no qual se baseou, viola o artigo 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

À data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, o Demandante não havia sido notificado de resposta ao seu requerimento, pelo que se formou, no dia 2 de outubro de 2020, indeferimento tácito do mesmo.

O pedido de revisão do ato tributário, apresentado no dia 02-06-2020, foi apresentado dentro do prazo de quatro anos após a liquidação, a qual teve lugar, como já referido, no dia 20-07-2017.

Na sua resposta, a AT alega que, para poder aproveitar-se do prazo de quatro anos estabelecido na segunda parte do n.º 1 art.º 78º da LGT, tem o requerente que invocar como fundamento um erro que seja imputável aos serviços. E que tendo a liquidação de ISV em causa sido efetuada em estrita conformidade com a disciplina legal aplicável, tendo a AT se limitado a fazer a aplicação das normas aos factos, em obediência ao princípio da legalidade, e não tendo prerrogativa de poder desaplicar normas com base num “julgamento” de pretensa desconformidade com o direito comunitário, será forçoso concluir pela inexistência de erro imputável aos serviços suscetível de fundamentar um procedimento de revisão do ato tributário.

Contudo, esta colocação do problema não está alinhada com a doutrina prevalecente, nomeadamente com a jurisprudência dos tribunais superiores.

O Supremo Tribunal Administrativo, chamado a pronunciar-se sobre a questão que aqui se coloca, tem reiteradamente afirmado que o “erro imputável aos serviços” concretiza qualquer ilegalidade, não imputável ao contribuinte, mas à Administração.

A posição desse tribunal é inequívoca no sentido de incluir no “erro imputável aos serviços” a aplicação de uma norma contrária ao Direito da União Europeia.

Assim, no Ac. de 12-12-2001, proferido no recurso n.º 26233, afirmou aquele tribunal que “havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efetuar liquidação afetada por erro”. E acrescenta que “a administração tributária está genericamente obrigada a atuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços”.

Conclui-se assim que o Demandante podia, efetivamente e ao contrário do que a AT sustenta na sua resposta, invocar erro imputável aos serviços como fundamento do seu pedido de revisão do ato tributário no prazo em que o fez.

Consequentemente, conclui-se finalmente que o pedido de revisão do ato tributário foi tempestivo, sendo também, por esse motivo, tempestivo o pedido de pronúncia arbitral, uma vez que apresentado no prazo de 90 dias contados a partir da formação de indeferimento tácito.

 

III. Questões a apreciar

Constituem questões a apreciar no presente processo arbitral:

1ª questão: Saber se o art.º 11º do CISV, ao prever, na determinação do imposto aplicável a automóveis usados originários de outros Estados-Membros da União, uma redução da taxa normal em função da idade, que é limitada à “componente cilindrada”, excluindo a “componente ambiental”, é incompatível prima facie com o art.º 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia;

2ª questão: Saber se, existindo uma antinomia entre o art.º 11º do CISV, por prever este, na determinação do imposto aplicável a automóveis usados originários de outros Estados-Membros da União, uma redução da taxa normal em função da idade, limitada à “componente cilindrada” e excluindo a “componente ambiental”, e o art.º 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, tal antinomia se pode considerar justificada por imperativos de política ambiental com assento constitucional no ordenamento nacional;

3ª questão: Saber se uma interpretação do direito interno (art.º 11º CISV) e do direito europeu (art.º 110º do TFUE) que conclua pela violação do segundo pelo primeiro e pela necessidade da sua desaplicação, resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa;

4ª questão: Saber se, ao decidir pela ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11º do CISV com o artigo 110º do TFUE, o Tribunal violaria o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva;

5ª questão: Saber se o Tribunal está, no caso concreto, obrigado a efetuar o reenvio prejudicial para o TJUE, ao abrigo do art.º 267º do TFUE.

 

IV. Fundamentação

  1. Matéria de facto

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. O Demandante introduziu no território nacional o veículo da marca ..., adquirido no dia 01-07-2017, proveniente do Luxemburgo, em estado de usado, a que foi atribuída a matrícula nacional ... (conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículo junta ao processo administrativo);
  2. Em 20-07-2017, o Demandante procedeu à regularização fiscal desse veículo, tendo para o efeito processado, através de transmissão eletrónica de dados, a declaração aduaneira de veículo n.º 2017/..., na estância aduaneira de Aveiro (Declaração Aduaneira de Veículo junta ao processo administrativo);
  3. Em 20-07-2017, a estância aduaneira de Aveiro liquidou ao Demandante Imposto sobre Veículos no montante de 9.016,90 euros (conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículo junta ao processo administrativo);
  4. A liquidação foi notificada ao Demandante no dia 20-07-2017 (conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículo junta ao processo administrativo);
  5. Do valor de ISV liquidado, o montante de € 1.551,02 (mil quinhentos e cinquenta e um euros e dois cêntimos) corresponde à “componente cilindrada” do imposto; e o montante de € 7.465,88 (sete mil, quatrocentos e sessenta e cinco euros e oitenta e oito cêntimos) corresponde à “componente ambiental” do imposto (conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículo junta ao processo administrativo);
  6. O valor da “componente cilindrada” resultou da aplicação de uma taxa de “redução de anos de uso” de 65%, ao valor sem redução da “componente cilindrada” que era de € 4.431,50 (quatro mil, quatrocentos e trinta e um euros e cinquenta cêntimos) (conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículo junta ao processo administrativo);
  7. Em 02.06.2020, o Requerente apresentou junto da alfândega de Aveiro, ao abrigo do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT), um pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação de imposto, que deu origem ao processo de revisão oficiosa nº ...2020... (documento junto ao processo administrativo);

Não se dá como provado que o imposto sobre veículos liquidado tenha sido efetivamente pago, pois não se encontra nos autos nenhum documento que prove esse pagamento, nem tal documento de prova é indicado pelo Demandante.

Não existem outros factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.

A fixação da matéria de facto baseia-se no alegado e não contradito pelas Partes e na prova documental junta pelas Partes.

 

  1. Discussão de direito
  1. Questão da existência de uma violação do art.º 110º do TFUE através do art.º 11º do CISV

O artigo 110.° TFUE proíbe aos Estados-Membros que façam incidir sobre os produtos de outros Estados-Membros imposições internas superiores às que incidam sobre os produtos nacionais similares, ou imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções (acórdãos De Danske Bilimportører (C-383/01, EU:C:2003:352, n.º 36) e Brzeziński (C-313/05, EU:C:2007:33, n.º 27).

O artigo 110.° TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação das mercadorias entre os Estados-Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas discriminatórias relativamente a produtos originários de outros Estados-Membros (acórdãos Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C-221/06, EU:C:2007:657, n.º 30 e jurisprudência referida) e Tatu (C-402/09, EU:C:2011:219, n.º 34). Assim, este dispositivo legal deve garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos nacionais e produtos importados (acórdãos De Danske Bilimportører (C-383/01, EU:C:2003:352, n.º 37) e Tatu (C-402/09, EU:C:2011:219, n.º 35).

Segundo jurisprudência constante, um sistema de tributação de um Estado-Membro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.° TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios (acórdãos Brzeziński (C-313/05, EU:C:2007:33, n.º 40); Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C-221/06, EU:C:2007:657, n.º 50) e Oil Trading Poland (C-349/13, EU:C:2015:84, n.º 46 e jurisprudência referida).

De acordo com o art.º 5º do respetivo Código, o Imposto sobre Veículos é um imposto que se aplica sobre o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal. Ou seja, trata-se de um imposto que se aplica quer sobre veículos fabricados ou montados em Portugal, quer sobre veículos originários de outros países, seja por importação (de países terceiros) seja por “admissão em território nacional” (de países membros da UE).

Importante também é ter em conta que se trata de um imposto de obrigação única, que se aplica uma única vez, no momento da introdução no consumo no território nacional.

As taxas do imposto, no caso de automóveis em geral, são determinadas, nos termos do art.º 7º, pela soma de duas parcelas: um montante de imposto calculado em função da cilindrada (“componente cilindrada do imposto”) e um montante de imposto calculado em função do nível de emissão de dióxido de carbono (“componente ambiental do imposto”).

O art.º 11.º do CISV aplica-se especificamente à admissão de veículos usados (portadores de matrículas definitivas) provenientes de outros Estados-Membros da UE.

De acordo com este preceito, a taxa de imposto a aplicar a estes veículos também é dada pela soma de duas parcelas, a “componente cilindrada” e a “componente ambiental”.

Quanto à “componente cilindrada”, ela corresponde à taxa que o art.º 7º manda aplicar à introdução no consumo de um veículo novo, mas minorada por um coeficiente que varia com a idade do veículo (taxa de “redução de anos de uso”). Esta minoração procura fazer corresponder uma redução do montante do imposto à diminuição do valor comercial que o veículo sofre em função da idade.

Mas já quanto à “componente ambiental”, a taxa de imposto aplicável é igual à de um veículo novo introduzido no consumo em Portugal.

Por outro lado, no caso de um veículo que foi sujeito a ISV em estado novo, o montante do ISV (“componente cilindrada” mais “componente ambiental”) pago uma única vez no momento da introdução no consumo, vai sendo amortizado ao longo da vida útil do veículo. Neste processo, as duas componentes do imposto – “cilindrada” e “ambiental” – são amortizadas exatamente na mesma proporção.

Quando o veículo (que foi sujeito a ISV em estado novo) é vendido em estado usado, o seu valor de venda irá refletir não apenas a desvalorização/perda de utilidade do veículo, mas também a amortização do ISV pago aquando da introdução no consumo. As amortizações das duas componentes da taxa concorrerão proporcionalmente para reduzir o valor comercial do veículo.

No caso de um automóvel admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro, por força das regras do art.º 11º, a “componente ambiental” do imposto é igual à que incidiria sobre um veículo novo.

Desta forma, o montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro é superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo.

Não há qualquer dúvida de que o art.º 11º, ao não prever uma redução por tempo de vida do veículo à “componente ambiental” do imposto tem como efeito fazer incidir sobre os produtos de outros Estados-Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares.

E assim, há que concluir que, prima facie, existe uma antinomia entre o art.º 11º do CISV e o art.º 110º do TFUE.

Sustenta a Demandada, contudo, que esta antinomia, a verificar-se, não constituiria uma violação do direito da União porquanto estaria justificada por imperativos de política ambiental com consagração constitucional.

Sobre essa questão, impõe-se observar que o direito da União, em virtude do princípio do primado, se sobrepõe ao direito nacional dos Estados-membros, incluindo o direito constitucional e que, no caso do ordenamento português, é a própria Constituição que, no seu art.º 8º, nº 4, estabelece esse mesmo princípio. Pelo que uma violação dos Tratados da União nunca poderia, em face quer de um quer de outro, ser justificada por uma norma ou princípio de direito constitucional português que se lhe sobrepusesse.

Além disso, os Estados-Membros só podem adotar medidas que contrariem os Tratados nos casos especialmente previstos nos mesmos, sendo que o TFUE não prevê a possibilidade de uma medida nacional que seja contrária ao artigo 110º TFUE poder ser justificada por qualquer razão (acórdão Valev Visnapuu, CC-198/14, ECLI:EU:C:2015:463, no 57). Por conseguinte, razões ambientais não são uma justificação admissível para uma medida nacional que esteja em antinomia com o art.º 110º.

Conclui-se assim que o art.º 11º do CISV viola efetivamente o art.º 110º do TFUE, na medida em que faz incidir sobre os produtos de outros Estados-Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares.

Esta conclusão foi confirmada pelo recente acórdão do TJUE de 02-09-21 no processo C‑169/20, em que o Tribunal apreciou exatamente a questão que aqui nos ocupa, tendo colocado a questão nos seguintes termos:

“No caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, na sequência do Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453), a República Portuguesa reformou o seu regime de tributação dos veículos objeto de uma primeira colocação em circulação em Portugal. Segundo o regime resultante da referida reforma, o imposto em causa, cobrado nessa ocasião, inclui duas componentes, uma calculada em função da cilindrada do veículo em questão e a outra, denominada «componente ambiental», em função do nível de emissão de dióxido de carbono desse veículo.

Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, não está prevista nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que reflita a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.

Daqui resulta que a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado‑Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.

A este respeito, não contestando que o Código do Imposto sobre Veículos não prevê nenhuma redução da componente ambiental do imposto em causa relativamente aos veículos usados importados no seu território, a República Portuguesa considera, antes de mais, que esta circunstância se justifica por um objetivo de proteção do ambiente. Com efeito, o pagamento integral da componente ambiental não tem por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas subordinar essa entrada a um critério seletivo aplicando exclusivamente critérios ambientais.

Ora, importa recordar que, embora os Estados‑Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados‑Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C‑213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).”

Concluindo o Tribunal:

“Nestas condições, há que declarar que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no Código do Imposto sobre Veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.”

 

  1. Questão da violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa

Com o devido respeito, não alcançamos claramente o argumento da Demandada, pois o princípio da legalidade que esta invoca – o princípio da legalidade da atuação da Administração Tributária, previsto no art.º 266º, nº 2 da CRP e no art.º 8º, nº 2, a) da LGT – tem como destinatários os órgãos e agentes da administração tributária, não podendo os sujeitos passivos, através das suas ações ou das pretensões formuladas em juízo, cometer violações do princípio da legalidade da atuação da Administração Tributária.

Por outro lado, a legalidade da atuação da Administração Tributária tem forçosamente que se traduzir numa conformidade dessa atuação com todo o ordenamento jurídico, a começar pelas normas de nível hierárquico superior, o que é o caso, precisamente, dos tratados da União. E havendo uma incompatibilidade entre uma destas normas de nível superior e uma norma de nível inferior, a legalidade da atuação da Administração Tributária exige o respeito pela primeira e o desrespeito pela segunda.

Não vemos, pois, como possa proceder esta alegação da Demandada.

  1. Questão da violação do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva

Sustenta a Demandada que, ao decidir pela ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, estar-se-ia a violar o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva, uma vez que o RJAT não prevê um recurso de direito e de facto das decisões proferidas em processo arbitral tributário.

Efetivamente, o RJAT prevê possibilidades limitadas de recurso das decisões arbitrais, sendo que as possibilidades previstas não se baseiam num princípio abrangente do duplo grau de jurisdição, mas se limitam ao controlo de questões específicas. Nomeadamente, no caso concreto, não seria possível à Demandada interpor qualquer recurso para obter uma reapreciação da questão decidenda fundamental, que é a da compatibilidade do art.º 11º do CISV com o art.º 110º do TFUE.

Porém, este argumento poderia ser utilizado para toda e qualquer decisão a ser proferida em processo arbitral tributário, e não apenas para o presente processo, pelo que, a atender-se ao argumento da Demandada, nunca um tribunal arbitral poderia anular um ato da Autoridade Tributária e Aduaneira. Pelo que, só por si, a invocação da irrecorribilidade da decisão arbitral não pode obstar a que o tribunal arbitral de aprecie a legalidade dos atos aqui em causa.

Todavia, cremos que o argumento da Demandada se enlaça, de certo modo, com a questão da obrigatoriedade de o tribunal nacional proceder ao reenvio prejudicial sempre que no processo não seja admitido recurso, nos termos do art.º 267º do TFUE.

O art.º 267º do TFUE dispõe que o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: (al. a) “sobre a interpretação dos Tratados”.

O terceiro parágrafo desta disposição diz por sua vez que “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”

Não nos parece haver dúvidas de que, com esta norma, o Tratado procurou precisamente acautelar que um tribunal nacional não tenha a última palavra quanto a uma questão de “interpretação dos Tratados”, a fim de assegurar a uniformidade na interpretação do direito primário da União.

Contudo, para que esta obrigatoriedade exista, é necessário – e aqui acompanhamos, mais uma vez, a jurisprudência arbitral citada antes – que exista “uma questão de interpretação dos Tratados”, nos termos do art.º 267º TFUE.

Na sua doutrina sobre a obrigação de os tribunais nacionais lhe submeterem questões prejudiciais, o Tribunal de Justiça já deixou claro que, a fim de determinar em que condições um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal, é necessário interpretar a expressão “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada” para efeitos do Direito da União (acórdão CILFIT, C-283/81, ECLI:EU:C:1982:335, no 8).

No acórdão CILFIT (já citado, nº 21) o Tribunal de Justiça concretizou as condições em que um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter uma questão ao Tribunal.

Nessa sentença, o Tribunal afirma que “um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça, a menos que dê como provado que a questão suscitada não é pertinente, ou que a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, ou que a correta aplicação do “Direito comunitário” se impõe com tal evidência que não deixa lugar a dúvida razoável alguma; a existência de tal circunstância deve ser apreciada em função das características próprias do “Direito comunitário”, das dificuldades particulares que apresenta a sua interpretação e do risco de divergência no interior da “Comunidade”.

Ora, como já referido, o Tribunal de Justiça pronunciou-se recentemente, no seu acórdão de 02-09-21 no processo C‑169/20, já citado, sobre a exata questão da compatibilidade do art.º 11.º do CISV com o art.º 110.º do TFUE, tendo-se pronunciado no sentido de que a norma de direito português viola essa disposição do Tratado.

Não existe, pois, qualquer dúvida que possa justificar o reenvio prejudicial nos presentes autos.

  1. Questão da devolução do imposto pago e dos juros indemnizatórios

Como indicado no probatório, não se provou que o Demandante tenha pago o imposto liquidado no ato aqui impugnado, não se encontrando nos autos qualquer documento comprovativo desse pagamento.

De qualquer modo, de harmonia com o disposto na alínea b) do art.º 24º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Pelo que há que concluir que, transitada a presente decisão arbitral em julgado, o Demandante terá direito à devolução do imposto que eventualmente tenha sido pago.

 

V. Decisão

Assim, nos termos anteriormente expostos, decide-se julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, e anular parcialmente o ato de liquidação impugnado, concretamente a liquidação de ISV constante da Declaração Aduaneira de Veículo (“DAV”) nº 2017/..., de 20-07-2017, na parte resultante da não aplicação à “componente ambiental” das taxas de redução de “anos de uso” previstas na Tabela A do art.º 7º do CISV.

 

VI. Valor do processo

Nos termos do art.º 97º -A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 29º do RJAT e do nº 3 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 4.852,82 (quatro mil, oitocentos e cinquenta e dois euros e oitenta e dois cêntimos).

 

VII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612.00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Demandada.

 

Notifique-se o Ministério Público, nos termos do artigo 252º do CPC, e do artigo 72º, nº 1, al a) e nº 3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.

Notifiquem-se as Partes.


Porto, 02 de novembro de 2021.

 

O Árbitro

 

 

 

 

 

(Nina Aguiar)