SUMÁRIO:
1. Se o relatório final do procedimento de inspecção tributária permite ao particular conhecer as razões de facto e de direito que determinaram a AT à prática de um acto tributário com certo conteúdo e não a qualquer outro, as liquidações praticadas na sequência directa daquele procedimento consideram-se suficientemente fundamentadas.
2. No caso do justo valor que se apura em activos financeiros, emergindo a sua valorização de um mercado no qual o sujeito passivo não controla os preços, sendo os ganhos e perdas claramente associados à actividade de gestão de activos e contribuindo para o móbil empresarial da entidade, não se vê razão para qualquer assimetria no tratamento fiscal de ganhos e perdas, a qual conduziria, aliás, a resultados económica e fiscalmente absurdos e não queridos pelo legislador.
3. Estando as manutenções relacionadas com determinados momentos temporais, não pode o facto de existirem discrepâncias entre a constituição de reservas de manutenção e a sua utilização, constituir razão para negar a sua relação com a actividade operacional da Requerente e recusar a estas a condição geral de dedutibilidade dos gastos, prevista no artigo 23.º, do Código do IRC.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros, Desembargador Manuel Luís Macaísta Malheiros (Presidente), Prof. Doutor António Martins e Dr. Martins Alfaro, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 03-05-2021, acordam no seguinte:
A - RELATÓRIO
A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT): A..., S.A., com o NIF ... e sede social na Rua ..., n.º ..., ..., ..., ...-... Lisboa.
A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.
A.3 - Objecto da pronúncia arbitral: O acto de liquidação de IRC n.° 2016..., os actos de liquidação de Juros Compensatórios n,° 2016 ... e de Juros Moratórios n.° 2016 ... e a Demonstração de Acerto de Contas n.º 2016 ..., todos referentes ao período de tributação de 2012, dos quais resultou um montante a pagar de € 1.859.020,56 e o Despacho proferido, no dia 26 de Agosto, pela Exma. Sra. Subdirectora Geral da Direcção de Serviços de IRC, através do qual foi parcialmente indeferido o Recurso Hierárquico interposto pela Requerente, na parte em que se contesta a legalidade dos actos de liquidação de IRC, correspondentes juros compensatórios e moratórios e de demonstração de acerto de contas acima identificados.
A.4 - Pedido: Anulação do despacho de (in)deferimento do procedimento de recurso hierárquico, deduzido contra o acto de liquidação de IRC n.º 2016... e as correspondentes liquidações de juros compensatórios n.º 2016 ... e de juros moratórios n.° 2016..., e respectiva demonstração de acerto de contas n.º 2016..., referentes ao exercício de 2012 e, bem assim, os mencionados actos de liquidação, com as necessárias consequências legais, designadamente o reembolso do montante de imposto indevidamente pago, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios, calculados à taxa legal em vigor.
A.5 - Fundamentação do pedido:
A Requerente alega diversos vícios, os quais agrupa sob a denominação «vícios de legalidade formal dos actos de liquidação», a saber:
-
Insuficiente fundamentação dos actos de liquidação.
Neste capítulo, refere a Requerente que, da análise do teor das notificações dos actos por ela recebidos, não resulta suficiente a necessária fundamentação, nem de facto, nem de direito, conforme é exigido pelo disposto no artigo 77.º, da Lei Geral Tributária, por forma a justificar a decisão nela inserta.
Ali não são explicitados os fundamentos, de facto e de direito, que determinaram a sua emissão, referenciando-se, apenas, no caso da Demonstração de Liquidação IRC, uma alusão genérica a "Fica V.Exa. notificado (a) da liquidação de IRC relativa ao período a que respeitam os rendimentos, conforme nota demonstrativa junta e fundamentação já remetida", mais se referindo que o acto de liquidação pode ser reclamado ou impugnado nos termos gerais.
Assim, resultam não indicados os fundamentos, de facto e de direito, que subjazem aos actos de liquidação ora em crise, quer para um destinatário normal, quer também, principalmente, para a Requerente.
Só fazendo expressa referência aos elementos elencados no referido artigo 77.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, se dará devido cumprimento à lei, não podendo, por consequência, a Administração tributária omitir os elementos, de facto, e as disposições legais aplicáveis, prejudicando as possibilidades de defesa do sujeito passivo.
Estando, por isso, inquinada de vício de forma, nos termos do disposto no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e artigo 77.º, da Lei Geral Tributária.
Não pode ser invocada, sequer, a fundamentação operada por via de remissão, pois não existe qualquer referência, contextual, a uma eventual remissão explícita para um concreto documento externo, a qual sempre se teria de exigir - artigo 77.°, n.° 2, da Lei Geral Tributária.
Também não é exigível à Requerente que lançasse uso da faculdade prevista no artigo 37.º, do CPPT, já que este prende-se com vício da notificação e não com a falta de fundamentação do acto tributário.
Conclui, nesta parte, que os actos de liquidação não se encontram fundamentados em termos legalmente adequados, impondo-se, assim, a respectiva anulação, por violação do disposto nos artigos 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 77.º, da Lei Geral Tributária.
b) Preterição de formalidade legal essencial, consistente em a Requerente não ter sido notificada nos termos e para os efeitos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º, da Lei Geral Tributária, vício que, por si só, implica a anulação dos actos de liquidação ora contestados, por preterição de formalidade legal essencial.
c) Falta ou insuficiência de fundamentação do relatório de inspecção tributária
Nesta parte, refere a Requerente que a fundamentação do próprio Relatório do procedimento de inspecção tributária não é congruente, nem, tão-pouco, clara, já que a Administração tributária se limitou a elencar meros juízos conclusivos, quando uma correcta fundamentação depende da qualidade da prova recolhida.
No que respeita aos ajustamentos ao justo valor em activos financeiros, não surge explicitada a razão de os SIT considerarem os activos financeiros em causa como sendo "investimentos financeiros”, limitando-se, apenas, a referir que o enquadramento contabilístico e fiscal no caso de tais activos se tratar de investimentos financeiros.
E deveriam os SIT ter indicado, expressamente, os concretos motivos pelos quais alegam a não indispensabilidade das reservas constituídas, pelo que ocorreu, em ambos os casos, falta de fundamentação do Relatório de Inspeção Tributária.
d) Ónus da prova que recai sobre a administração tributária:
Quanto a este invocado vício, entende a Requerente que não estão provados os factos constitutivos do direito da Administração tributária, pois caberia a esta a prova dos factos de que resulte a demonstração, clara e inequívoca, dos factos constitutivos do seu alegado direito a tributar adicionalmente.
E não foram carreados para o procedimento quaisquer elementos ou factos peremptórios e susceptíveis de tal demonstração, com as necessárias consequências ao nível da ilegalidade dos actos de liquidação.
Para a Requerente, não só a Administração tributária procedeu à errónea qualificação dos factos alegados, como a sua decisão viola as regras vigentes quanto à distribuição do ónus da prova (e, assim, também o artigo 74? da Lei Geral Tributária) e padece de vício na fundamentação legalmente exigida (violando, assim, também o disposto nos artigos 268.°, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 77.º, da Lei Geral Tributária.
A Requerente funda ainda, substantivamente, o pedido de pronúncia arbitral por referência a duas correcções ao lucro tributável de IRC.
Quanto à primeira correcção - relativa à dedução das perdas de justo valor em 50% -, entende a Requerente que um activo financeiro ou passivo financeiro é classificado como detido para negociação se for adquirido ou incorrido principalmente para finalidade de venda ou de recompra num prazo muito próximo, tal como se verificou no caso em apreço, relativamente às participações financeiras detidas, mensuradas ao justo valor e cujas alterações são reconhecidas na demonstração de resultados.
Por outro lado, e atendendo aos aspectos fiscais, previstos no Código do IRC, importaria ter presente que os instrumentos financeiros – acções – detidos pela Requerente, encontravam-se admitidos a negociação e cotados em mercado regulamentado. Porém, não representando uma participação no capital social das entidades acima identificadas superior a 5%. Tendo presente que os instrumentos financeiros detidos foram:
-
mensurados ao justo valor;
-
cotados em mercado regulamentado; e
-
que a participação nas entidades foi inferior a 5% do capital social respectivo,
Deverá considerar-se verificada a excepção prevista na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do CIRC, pelo que os instrumentos ora em causa concorrem para a formação do lucro tributável, sendo os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor imputados, no presente caso, como gastos no período de 2012.
O legislador pretendeu o reconhecimento de gastos e rendimentos não realizados na Demonstração dos Resultados, sendo tal norma, nesse sentido, especial em face das demais normas relativas ao apuramento do lucro tributável.
Nas situações relativas ao ajustamento pelo justo valor, ao contrário do que sucede nos casos do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, não há qualquer vontade do sujeito passivo, inexiste qualquer acção deste que suporte a variação de valor em causa.
Neste sentido, a Requerente cita a Decisão Arbitral, de 25 de Setembro de 2015, proferida no âmbito do processo n.º 208/2015-T, onde se esclarece que, “no regime para o qual foi pensada e instituída a norma do artigo 45.º, n.º 3, a realização de menos-valias, e demais situações elencadas estava dependente de uma actuação voluntária correspondente à realização das mesmas. (…) Contudo, aqueles aspectos não se verificarão já nas situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a). Aqui, estando-se apenas perante ajustes decorrentes da contabilização do justo valor, determinado por critérios objectivos (…), não há qualquer dúvida ou intervenção da vontade do sujeito passivo na verificação do ajustamento patrimonial negativo ou positivo. Ou seja, estes ocorrerão ou não, independentemente da actuação e da vontade do sujeito passivo. Ora, penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido, seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico, quer de um ponto de vista jurídico. “
O legislador exigiu, somente, além de uma participação apenas até 5% do capital social, uma certa verificabilidade do justo valor, de modo a atestar a sua mensuração, sendo o reconhecimento de rendimentos e gastos apenas efectuado quando os activos subjacentes estiverem sujeitos a mecanismo de formação de preço em mercado regulamentado — o que sucedeu no caso em apreço.
Contudo, a Administração tributária considera que os ajustamentos de justo valor das partes de capital detidas devem ser considerados para efeitos fiscais em apenas 50 %, invocando o disposto no n.º 3 do artigo 45.º do Código IRC.
Ora, alega a Requerente, de acordo com o disposto no referido artigo (entretanto revogado) a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, (…) bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor. (cf. n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, na redacção vigente à data dos factos).
Neste contexto, a interpretação da Administração tributária encontrar-se-ia ferida de ilegalidade. Com efeito, por um lado, o regime presente no n.º 3, do artigo 45.º, do Código do IRC, de apuramento de mais-valias, apenas faz sentido atendendo ao princípio da realização. Tal não sucede nos casos de ajustamento ao justo valor.
Quanto à segunda correcção - relativas a reservas internas de manutenção - refere a Requerente que estas reservas internas, ditas adicionais – suportadas em documento interno exibido à AT– têm lugar em razão de as “reservas” pagas, ao abrigo do contrato, mensalmente às entidades locadoras nem sempre serem suficientes para cobrir a totalidade dos gastos tidos com o desgaste e com a utilização e manutenção programada de determinadas componentes das aeronaves. A responsabilidade pela manutenção e reparação da aeronave em locação, durante a vigência do contrato, recai inteiramente sobre a Requerente.
Assim, e para além das “reservas” pagas às locadoras, e contabilizadas como gastos, é necessário, muitas vezes, recorrer às reservas internas de manutenção que a Requerente, prudente e diligentemente, implementou — tal como, aliás, é prática corrente e comum na actividade da aviação, cujos gastos de manutenção e manutenção são empiricamente apreensíveis como de custo sobejamente elevado. Assim, a constituição de tais reservas não é arbitrária ou isenta de critério, e suportada unicamente num documento interno sem qualquer suporte em evidências externas.
As reservas internas de manutenção são constituídas anualmente, atendendo ao histórico de reparações e dos custos de manutenção havidos relativamente a aeronaves com as mesmas características – resultam, portanto, do cômputo dos gastos comprovadamente incorridos com base em evidências externas.
Estas reservas são contabilisticamente registadas na conta 622623, referente aos fornecimentos e serviços externos, designadamente na subconta 6261 referente aos gastos com locações operacionais.
Ao abrigo do princípio da cooperação, a Requerente apresentou, logo no âmbito do procedimento inspectivo, mapas, dos quais resulta, de forma clara, que os gastos efectivos tidos com as aeronaves são, por vezes, superiores ao montante pago a título de renda à entidade locadora.
A este respeito, e desconsiderando as evidências trazidas aos autos pela Requerente, a Administração Tributária (AT) considerou que os gastos com as reservas internas de manutenção não são indispensáveis, uma vez que as “reservas” pagas às entidades locadoras são, alegadamente, suficientes e atendem aos gastos incorridos.
Além disso, a Administração tributária não atendeu, ainda, ao facto de as “reservas” pagas ao abrigo dos contratos de locação implicarem o pagamento de um montante que é consignado a determinadas rubricas, com valores autónomos e exclusivos, cuja medida resulta dos contractos celebrados. Com efeito, no âmbito das reservas de manutenção pagas mensalmente, existem valores específicos que são afectos exclusivamente às seguintes rubricas:
- Inspeção estrutura dos 6 anos;
- Inspeção estrutura dos 12 anos;
- Inspeção dos motores/reactores;
- Inspeção do trem de aterragem;
- Inspeção das componentes dos motores/reactores;
- Propulsão dos motores/reactores; e
- Unidade auxiliar de potência.
Assim, o facto de o montante pago a título de “reservas” às entidades locadoras ser, especificamente, afecto a determinadas rubricas, não podendo o excedente de determinada rubrica ser aproveitado para cobrir eventuais défices nas demais, integra o racional que presidiu à necessidade de constituição de um fundo adicional de manutenção, na medida em que o montante que se encontra fixado para uma determinada rubrica não é suficiente para fazer face aos gastos que são necessários e indispensáveis à manutenção das aeronaves locadas.
As “reservas” pagas aos locadores não cobrem todos os custos com a manutenção e reparação da aeronave, mas apenas aqueles conexos com as manutenções periódicas aos componentes individuais incluídos nas “reservas” – i.e. as rubricas acima identificadas.
A Requerente sublinha o conteúdo dos quadros apresentados pela Administração tributária no Relatório de Inspeção, ilustrativos da relação entre os gastos efectivos e estimativas pagas ao lessor (reproduzido infra).
Tendo referido no RIT, a Administração tributária, em comentário aos dados em análise, que, “só em alguns casos se verifica uma diferença negativa mais expressiva entre os gastos com as reservas de manutenção pagas ao lessor e os efectivamente incorridos”.
Ora, para a Requerente, compulsado o Quadro em análise, verifica-se que as diferenças negativas, identificadas pela Administração tributária como as mais expressivas, se cifram na ordem dos milhões de euros (€ 935,864,71; € 1.329.150,48; € 2.534.369,27; € 1.737.661,93; € 1.585.607,95; € 698.885,14; € 1.160.455,37).
A Administração Tributária pretenderia retirar expressividade aos desvios entre os gastos efectivamente incorridos pela Requerente e as “reservas” pagas ao lessor, passando por essas diferenças com ligeireza, fazendo passar a ideia de que o facto de ter identificado apenas sete situações tirasse legitimidade à pretensão da Requerente.
Na óptica da Requerente, e contrariamente ao referido pela Administração Tributária, que ignoraria os próprios dados por si coligidos, tais situações atestam pela real indispensabilidade da constituição de reservas adicionais à componente “reservas” paga ao lessor, sendo prova bastante da imprevisibilidade de certos custos, que podem ser extremamente avultados, justificando a manutenção de reservas para essas eventuais situações, em montantes superiores aos previstos ou, ainda, em situações estranhas à lista acima relatada.
Importa ter em consideração que, nos quadros apresentados no âmbito do Projecto e do Relatório de Inspeção, mantidos na Decisão da Reclamação Graciosa que antecede, as “Estimativas pagas lessor” são atendidas de uma forma global, assim, como os “Gastos efectivos”, o que não permite ter uma real compreensão da indispensabilidade das “Estimativas internas”, pois, conforme foi acima referido, as “Estimativas pagas lessor” têm determinadas rúbricas, que estão limitadas a determinados montantes que, caso sejam ultrapassados, têm que ser suportados pela Requerente.
E é tendo em consideração que, muitas vezes, os montantes excedentes numa reparação atingem níveis incomportáveis, seja por serem elevados, seja por serem inesperados — pense-se, a título de exemplo, num gasto com a substituição de um motor de uma aeronave — que a Requerente constituiu, como medida de gestão fundamentada, enquadrada no seu raciocínio de gestão de riscos, de exposição e de prudência, um fundo adicional de manutenção, tendo em consideração os custos históricos de manutenção de uma aeronave.
Uma vez que, em sede de Relatório de Inspeção, conforme já acima se referiu, a Administração Tributária não apresentou critérios objectivos e fundamentadores da posição tomada quanto à conclusão da não indispensabilidade dos gastos, mantendo tal posição desfocada nas sucessivas Decisões nos procedimentos que antecedem, tal entendimento apenas pode ser entendido como inegável interferência, ou tentativa de interferência, na gestão da Requerente.
A noção legal de indispensabilidade atende, ainda, a uma perspectiva económico-empresarial, por preenchimento, directo ou indirecto, da motivação última de contribuição do gasto para a obtenção do lucro. Contudo, daqui não se infira que o escopo imediato e direito seja lucrativo, bastando que o interesse em causa seja empresarial. Assim, tendo por base este conceito de indispensabilidade, todos os gastos suportados tendo em vista o desenvolvimento normal da actividade da sociedade, no seu interesse e no âmbito do seu objecto social, deverão ser fiscalmente dedutíveis, pelo que, no caso ora em crise, mal andou a Administração Tributária na correcção efectuada neste âmbito.
Por fim, alega a Requerente, que a Administração Tributária nota, e bem, que a A... actua de forma prudente, nos termos da Estrutura Conceptual do Sistema de Normalização Contabilística. Contudo, não podem ser criadas reservas ocultas ou provisões excessivas ou a deliberada quantificação de activos e proveitos por defeito ou de passivos e custos por excesso.
A este respeito, entende a Requerente que atendeu ao princípio acima referido, com a constituição de reservas internas de manutenção, atendendo ao facto de as rendas pagas às entidades locadoras, não serem suficientes para fazer face aos gastos de manutenção das aeronaves.
Neste sentido, não poderia a AT considerar que se trata de reservas ocultas ou provisões excessivas, na medida em que - importaria sublinhar - as reservas de manutenção pagas mensalmente ao abrigo do contrato de locação com as entidades locadoras são compostas por rubricas especificas, de acordo com os tipos de manutenção necessários às aeronaves, e com limite de custos para cada uma delas, e que, caso as despesas das reparações ou manutenções resultem em montante superior ao das reservas de manutenção constituídas, passam estas a ser suportadas, no seu remanescente, pela Requerente.
Ficaria, assim, demonstrado que as reservas internas de manutenção, constituídas, no montante de € 5.617.264,47, no ano de 2012, atendem à noção legal da indispensabilidade prevista no artigo 23.º do Código do IRC, pelo que a correcção proposta seria ilegal, encontrando-se sedimentada em errados pressupostos, de facto e de direito, razão pela qual deverá ser anulada.
Conclui no sentido de que as liquidações de IRC, juros compensatórios e juros moratórios deverão ser anuladas.
A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:
A Requerente está ciente que foi objecto de uma acção de inspecção e que, no âmbito da mesma, foi notificada de um Projecto de Relatório, bem como de um Relatório Final, no qual foram determinadas diversas correcções com referência ao exercício de 2012.
O acto de liquidação não se confunde com a notificação do mesmo, concretizada pelo envio da nota de liquidação.
Não pode a Requerente vir agora invocar desconhecimento do facto de que foi notificada de um projecto e de um relatório final da Inspecção Tributária, bem como, que deste último decorreria a necessária notificação da liquidação respectiva.
Foi cumprido o n° 1 do artigo 63° do RCPIT, uma vez que os actos tributários em causa resultaram do relatório e fundamentam-se nas suas conclusões, conforme se pode constatar pelos diversos pareceres exarados sobre o mesmo, o último dos quais, o do Director de Finanças que determina que se proceda conforme proposto, designadamente quanto à alteração do lucro tributável e/ou matéria colectável declarado, nos termos que constam do RIT, para o ano de 2012.
No RIT, estão perfeitamente detalhados os factos apurados bem como o modo como os mesmos determinaram as correcções impugnadas, sendo que também estão enunciadas as razões de direito que determinam as ditas correcções.
Aliás, a Requerente com o presente p.p.a demonstra conhecer perfeitamente o iter cognoscitivo e valorativo dos actos tributários em apreço.
Ainda que se verificasse uma situação de falta ou insuficiência da fundamentação, cabia à Requerente lançar mão do mecanismo previsto no artigo 37.° do CPPT e solicitar a respectiva notificação ou emissão da certidão em conformidade, o que não fez, pelo que os actos aludidos continham, como efectivamente contêm, todos os elementos necessários à sua cabal compreensão e que o apregoado vício de que eventualmente poderiam padecer ficou definitivamente sanado.
Ainda que o acto sub judice padecesse de deficiências ao nível do discurso fundamentador, tais deficiências degradar-se-iam em meras irregularidades não essenciais, uma vez que, ainda assim, tais deficiências permitiram o cabal esclarecimento do seu destinatário, possibilitando- lhe insurgir-se contra ele.
Quanto à primeira correcção ao lucro tributável - relativa à dedução das perdas de justo valor em 50% -, refere q Requerida que os SIT promoveram uma correcção ao lucro tributável, com base no artigo 45.°, n.° 3, do Código do IRC, desconsiderando a dedução de 50% daquele montante, ou seja, de € 44.762,77.
Do ponto de vista fiscal, considera, e bem, a Requerente que estão reunidos os pressupostos de enquadramento no artigo 18.°, n.° 9, alínea a), ou seja:
-
trata-se de instrumentos financeiros que consistem em instrumentos de capital próprio (acções);
-
admitidos a negociação num mercado regulamentado;
-
não representam uma participação directa ou indirecta no capital igual ou superior a 5%; e
-
são reconhecidos pelo justo valor através de resultados.
A argumentação da Requerente remete para a decisão arbitral proferida no processo n.° 208/2015-T, para assinalar que o regime para o qual foi pensada e instituída a norma do artigo 45.°, n.° 3 do Código do IRC, “a realização das menos-valias e demais situações elencadas estava dependente de uma actuação voluntária correspondente à realização das mesmas. (...) Contudo, aqueles aspectos não se verificarão já nas situações abrangidas pelo artigo 18°, n.° 9, alínea c).”
Esta mesma ideia encontra-se vertida em muitas outras decisões arbitrais sobre esta temática, simplesmente, com o devido respeito, nunca foi cabalmente demonstrada nem sustentada em factos.
Cabe recordar que o próprio legislador, quando criou o regime do artigo 45.°, n.° 3, expressou que foi gizado com o objectivo de diminuir a erosão da base tributável provocada por menos- valias de realizadas em partes sociais, porém, a subsequente extensão do âmbito da norma foi ditada pelo propósito de alargar a base tributável tendo em vista a consolidação orçamental.
Nesse sentido, foram incluídas no n.° 3 do artigo 45.° todas as “outras perdas e variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”, mesmo as que não cabiam na definição de “menos-valias” realizadas, dada pelo n.° 1 do artigo° 46.° do Código do IRC, sem estabelecer qualquer distinção entre perdas efectivas e perdas potenciais.
Segundo a Requerida, o argumento frequentemente esgrimido de que as perdas resultantes de variações negativas do justo valor não são manipuláveis pelos detentores das partes de capital, não colhe para este efeito, pois, como já referido, a inclusão no âmbito da norma do n.° 3 do ° 45.°, de outras perdas relativas a partes de capital, não teve como propósito explícito a mitigação de práticas específicas consideradas abusivas mas, tão-só, a de tratar de modo uniforme todas as perdas associadas a partes de capital, cotadas ou não cotadas, e independentemente da percentagem de capital representada.
E sempre se dirá que não está demonstrado que não existem práticas de arbitragem fiscal com os títulos cotados em bolsa.
Assim, a abrangência do regime do artigo 45.°, n.° 3, passou a estender-se também às variações negativas do justo valor previstas no artigo 18.°, n.° 9, alínea a), que a partir de 2010 passaram a concorrem para a formação do lucro tributável das sociedades, pois, se tivesse havido intenção, por parte do legislador de as excluir, teria tido o cuidado de o fazer de forma expressa.
Faz, pois todo o sentido a afirmação expressa na decisão arbitral proferida no processo n.° 90/2016-T: “ Assim, pretender, como almeja a Requerente, afastar as perdas em análise do exposto no artigo 45°, n.° 3 do Código do IRC, é ir na direcção contrária da letra da Lei, com mero suporte em imprecisões conceptuais.” , desde logo porque não tem apoio na letra da lei.
Quanto à segunda correcção ao lucro tributável - relativas a reservas internas de manutenção - refere a Requerida que, como se verifica no RIT, durante o procedimento inspectivo foi feita uma análise bastante exaustiva aos documentos que suportam os encargos incorridos pela Requerente entre 2006 e 2014, para validar a coerência entre os gastos estimados com as reservas de manutenção constituídas internamente pela Requerente, reservas de manutenção pagas às locadoras e gastos efectivamente incorridos, exercício que possibilitou concluir que:
-
na sua maioria, as diferenças não são significativas;
-
existem estimativas de reservas de manutenção internas calculadas sem coerência pois tanto são reforçadas num ano como são anuladas pelo mesmo valor ou valor aproximado; e
-
em algumas situações, é feito o reforço das reservas de manutenção internas de determinadas componentes sem que haja qualquer reparação para as mesmas.
Estas constatações demonstram a “não indispensabilidade, nos termos do artigo 23° do Código do IRC dos encargos suportados com as reservas de manutenção estimadas pela empresa”.
Não obstante a invocação, pela Requerente, no exercício do direito de audição, do princípio contabilístico da prudência (cfr., Estrutura conceptual do SNC, parágrafo 37) que recomenda “ a inclusão de um grau de precaução no exercício dos juízos necessários ao fazer as estimativas necessárias em condições de incerteza, de forma que os activos ou os rendimentos não sejam sobreavaliados e os passivos ou os gastos não sejam subavaliados.”,
Com efeito, é lembrado que o artigo 23.°, n.° 1, alínea h) inclui entre os gastos dedutíveis “Os ajustamentos em inventários, perdas por imparidade e provisões”, mas, o artigo 39.° define de forma taxativa as provisões que podem ser deduzidas para efeitos fiscais.
E no elenco das provisões definidas no artigo 39.° não cabem as reservas internas de manutenção.
Em suma, alega a AT na sua Resposta, o fundamentação dos SIT para a não aceitação fiscal dos encargos estimados referentes à constituição de reservas interna de manutenção aponta para a não demonstração do requisito da indispensabilidade exigido pelo artigo 23.°, n.° 1, do Código do IRC, perante os resultados da análise aos dados referentes às componentes de cada aeronave, bem como para a não previsão deste tipo de encargos estimados no elenco das provisões enunciadas no artigo 39.° do mesmo Código.
A natureza e finalidade dos encargos sob análise permitem a sua qualificação como provisões para riscos e encargos, tendo em conta, como elucida a Requerente, que: “Estas reservas internas ditas adicionais - suportadas em documento interno - têm lugar em razão de as ‘reservas’ pagas ao abrigo do contrato, mensalmente às entidades locadoras nem sempre serem suficientes para cobrir a totalidade dos gastos tidos com o desgaste e com a utilização e manutenção programada de determinadas componentes das aeronaves”.
A NCRF 21 - Provisões, Passivos Contingentes e Ativos Contingentes, no parágrafo 8 define “Provisão” como “um passivo de tempestividade ou quantia incerto” e o parágrafo 10 , na distinção entre “provisões” de “outros passivos tais como contas a pagar e acréscimos”, refere que “As primeiras caracterizam -se pela existência de incerteza acerca da tempestividade ou da quantia dos dispêndios futuros necessários para a sua liquidação enquanto: a) As contas a pagar são passivos a pagar por bens ou serviços que tenham sido faturados ou formalmente acordados com o fornecedor”.
Portanto, ainda que a Requerente não tenha registado contabilisticamente as estimativas dos gastos com reservas internas de manutenção, como provisões, a verdade é que, pela sua natureza e finalidade, assumem essa qualificação, já que se destinam a cobrir possíveis riscos e encargos, nitidamente preciso quanto ao seu objecto, mas de realização incerta.
Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.
A.7 - Instrução probatória:
No seguimento do processo, foi realizada a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente e tomadas declarações de parte.
Requerente e Requerida juntaram aos autos diversos documentos pertinentes.
A.8 - Alegações:
Requerente e Requerida apresentaram alegações escritas, nas quais mantiveram e reiteraram essencialmente as suas posições.
B - SANEAMENTO:
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, na redacção introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo a Requerida manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
A Requerente suscitou incidente de recusa do Árbitro, Dr. Martins Alfaro.
Por despacho de 03-05-2021, do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico, foi decidido julgar «improcedente o suscitado incidente de afastamento/recusa de árbitro».
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 03-05-2021.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, atenta a conformação do objecto do processo e à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAMT).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT.
O processo não enferma de nulidades.
Não existem quaisquer excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir, o que se fará de seguida.
C - FUNDAMENTAÇÃO:
C.1 - Matéria de facto - Factos provados:
Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:
No cumprimento da Ordem de Serviço n.° 012016..., com despacho da Chefe de Divisão III de 27 de Janeiro de 2016, foi aberto procedimento de inspecção tributária externa, ao exercício de 2012 da Requerente.
Através do ofício n.°..., de 5 de Julho de 2016, foi a Requerente notificada para exercer o direito de audição sobre as correcções propostas no Projecto de Relatório da Inspeção Tributária, nos termos do artigo 60.° da LGT e do artigo 60.° do RCPITA.
A Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, por requerimento apresentado em 20-07-2016.
Foi a seguinte, a fundamentação do relatório do procedimento de inspecção tributária (por razões de economia, não se reproduzem os quadros ali constantes):
Ajustamentos ao justo valor em activos financeiros:
Em 2012, o sujeito passivo contabilizou na conta SNC 6611 Perdas p/reduções justo valor - Em instrumentos financeiros - Títulos negociáveis, o valor de 89.525,54 €.
Tendo sido questionado acerca do referido gasto, a fim de saber se o mesmo seria aceite para efeitos fiscais, o sujeito passivo apresentou um mapa com a decomposição do saldo dos activos financeiros detidos pela empresa a 31 de Dezembro de 2012 e registados na conta SNC 142141 Inst. Finan. detidos negociação - Activos financeiros Outras empresas - Acções, no montante de 366.132,13 €. (vide Anexo 6, pág. 2)
Na sua análise verifica-se que os activos financeiros se referem a acções do “B...”, “C...”, “D...” e “E...”, cotadas em bolsa, encontrando-se as mesmas discriminadas por data e valor da compra, valor contabilístico e valor de mercado a 31 de Dezembro de 2012, bem como, pelo aumento/redução apurado por aplicação do justo valor (diferença entre o valor contabilístico e o valor de mercado, apurado em 31.12.2012).
O referido aumento ou redução calculado em resultado da aplicação do modelo do justo valor encontra-se contabilizado nas respectivas contas SNC 771 Em instrumentos financeiros e 6611 Títulos negociáveis.
Com base na legislação em vigor à data dos factos, a alínea a) do n.° 9 do artigo 18.° e o n.° 3 do artigo 45.°, ambos do CIRC, constata-se que os gastos de 89.525,54 €, contabilizados na conta 6611 Títulos negociáveis, decorrentes da aplicação do justo valor, concorrem para a formação do lucro tributável, uma vez que correspondem à excepção contemplada na alínea a) do n.° 9 do artigo 18.° do CIRC. Isto é:
respeitam a instrumentos de capital próprio reconhecidos pelo justo valor através de contas de resultados;
as acções em causa encontram-se cotadas na bolsa; e
representam uma participação no capital social das empresas inferior a 5%.
No entanto, de acordo com o já referido n.° 3 do artigo 45.° do CIRC, sendo reconhecidos como perdas do exercício os ajustamentos de justo valor destas partes de capital, apenas deverão ser considerados, para efeitos fiscais, em 50% do seu valor.
Assim, dado que o sujeito passivo não considerou o referido acréscimo no quadro 07 da DR modelo 22 de 2012, propõe-se uma correcção ao apuramento do lucro tributável desse ano, no montante de 44.762,77 € (89.525,54 * 50%).
Estimativas de reservas de manutenção internas
Durante o período de tributação de 2012 a A... contabilizou como gastos com reservas de manutenção das aeronaves em regime de locação operacional (conta SNC 622623 Reservas de manutenção) o valor total de 17.340.457,39 €, sendo que 11.723.192,92 € têm como documento de suporte facturas emitidas pelas empresas locadoras (denominadas por lessors) e 5.617.264,47 € suportado pelo documento interno n.° OD-...de 31.12.2012.
De acordo com a informação fornecida pela A.... e corroborada com os contratos de leasing disponibilizados pela mesma, para além da renda fixa mensal (rent) paga ao lessor, a empresa locatária (lessee) terá também de pagar, mensalmente e até ao final do contrato, uma renda suplementar (supplemental rent) com o objectivo de acautelar os encargos futuros relativos ao desgaste pela utilização das seguintes componentes das aeronaves:
Inspeção estrutura dos 6 anos (Airframe 6 Y);
Inspeção estrutura dos 12 anos (Airframe 12 Y);
Inspeção dos motores/reactores (Engines OHLS);
Inspeção das componentes dos motores/reactores (Engines LLPS);
Inspeção do trem de aterragem (Landing gear);
Propulsão dos motores/reactores (Engines thrust) - em alguns contratos;
Unidade auxiliar de potência (APU) - em alguns contratos.
O valor mensal desta renda suplementar (denominada nos contratos como “reserves”) não é fixo em virtude da estimativa dos gastos com as inspecções dos motores (Engines OHLS), inspecções das componentes dos motores (Engines LLPS), propulsão dos motores (Engines thrust) e unidade auxiliar de potência (APU) ter em consideração quer as horas de voo quer os ciclos operados pela aeronave.
De acordo com os contratos celebrados entre as partes, estes gastos são suportados pelo lessee, pelo que, aquando da realização efectiva de cada manutenção, o lessor reembolsará o lessee até ao limite dos respectivos montantes entretanto pagos, através de facturas emitidas pela A... ao lessor, anexando os correspondentes documentos comprovativos dos fornecedores daqueles serviços.
Não obstante o pagamento ao lessor das rendas fixas e suplementares, e da consequente contabilização destes montantes como gastos nos respectivos períodos de tributação (contas SNC 62675 Aeronaves, 62262311 Operações isentas e 62262321 Operações isentas, a A... estima ainda, internamente e para cada aeronave, um valor anual de reservas de manutenção por considerar que os valores que são pagos ao lessor não abrangem a totalidade dos encargos que a empresa irá suportar no futuro.
Este reforço de reservas de manutenção é igualmente calculado pela A... por componente e assenta também nas horas de voo e nos ciclos operados por cada aeronave.
Contabilisticamente, estas reservas de manutenção internas são registadas, em cada período de tributação, a débito da conta SNC 62262321 Operações isentas por contrapartida da conta SNC 27224 Fundo de reserv. manut.
Quando o gasto se torna efectivo, é debitada a conta SNC 27224 Fundo de reserv. manut. e creditadas a(s) correspondente(s) conta(s) de fornecedor(es). No caso do valor das reservas de manutenção (pagas ao \ e/ou internas) ser insuficiente, o remanescente é gasto no exercício em que o mesmo é suportado.
De forma a validar a coerência entre os gastos estimados com as reservas de manutenção (interna e pagas ao lessor) e os efectivamente incorridos, através dos elementos facultados pelo sujeito passivo, elaborou-se um mapa, para cada uma aeronave, compreendendo o período entre a data de início da contabilização das reservas de manutenção internas e 31 de Dezembro de 2014.
Durante os actos de inspecção foram apresentados todos os documentos que suportam os encargos incorridos pela A... desde 2006 até 2014.
Da análise aos quadros supra verifica-se que, ao longo dos anos, a empresa tem vindo a contabilizar gastos com reservas de manutenção internas sem qualquer evidência da sua indispensabilidade, uma vez que as reservas pagas aos lessors acautelam os encargos efectivamente suportados com as manutenções das aeronaves.
Muito embora tal possa não suceder se analisarmos componente a componente de cada aeronave, só em alguns casos se verifica uma diferença negativa mais expressiva entre os gastos com as reservas de manutenção pagas ao lessor e os efectivamente incorridos, como se pode também constatar nos mapas em anexo.
Porém, na sua maioria as diferenças não são significativas.
Exemplo disso é a reparação do motor ESN 811143, da aeronave..., no ano de 2013.
Neste caso em concreto, conforme explicação dada pela empresa quanto ao processo de contabilização do valor da reparação do referido motor (vide Anexo 11, págs. 2 e 3), o montante da mesma totalizou 1.707.840,73 €, e, até à sua data (Junho de 2013), a A... já tinha pago ao lessor o montante de 1.625.688,23 €.
Estes valores foram lançados mensalmente na respectiva conta do fornecedor (lessor), por contrapartida da conta SNC 62262321 - Reservas de Manutenção.
No entanto, a par das rendas suplementares que foram sendo pagas ao lessor, até 31 de Dezembro de 2012 a empresa já tinha registado na sua contabilidade, como estimativa interna para reparação daquele motor, um total de gastos no montante de 2.959.827,95 €.
O que demonstra a não indispensabilidade dos encargos suportados com as reservas de manutenção internas estimadas pela empresa.
Importa também realçar que tais situações de diferenças negativas são pontuais, até porque as componentes não estão sistematicamente em reparação e, tal como é referido nos contratos celebrados entre os lessors e a A..., até ao termo dos mesmos a empresa terá de pagar mensalmente estas rendas suplementares. O que significa que continuam a estar acautelados eventuais encargos que possam surgir no futuro, mesmo para componentes anteriormente reparadas.
Acresce-se ainda que, mesmo atendendo às horas de voo e aos ciclos operados por cada aeronave, existem estimativas de reservas de manutenção internas calculadas pela empresa sem coerência, pois tanto são reforçadas num ano como no ano seguinte são anuladas pelo mesmo valor ou valor aproximado, ou vice-versa.
Existindo igualmente situações em que a empresa reforça as reservas de manutenção internas de determinadas componentes sem que haja (até 31.12.2014) qualquer reparação para as mesmas!
Por último, e agora numa vertente contabilística, chama-se a atenção ao referido no parágrafo 37 - Prudência - da Estrutura Conceptual do Sistema de Normalização Contabilística: "... A prudência é a inclusão de um grau de precaução no exercício dos juízos necessários ao fazer as estimativas necessárias em condições de incerteza, de forma que os activos ou os rendimentos não sejam sobreavaliados e os passivos ou os gastos não sejam subavaliados. Porém, o exercício da prudência não permite, por exemplo, a criação de reservas ocultas ou provisões excessivas, a subavaliação deliberada de activos ou de rendimentos, ou a deliberada sobreavaliação de passivos ou de gastos, porque as demonstrações financeiras não seriam neutras e, por isso, não teriam a qualidade de fiabilidade.”
Face ao exposto e conforme se demonstrou, não se verificando a indispensabilidade prevista no artigo 23.° do CIRC para estas reservas de manutenção internas, as mesmas não serão aceites para efeitos fiscais.
Deste modo, tendo a A... contabilizado, no período de tributação em análise, como gastos de reservas de manutenção internas, p montante de 5.617.264,47 €, propõe- se uma correcção no mesmo valor ao apuramento do lucro tributável de 2012.
Direito de Audição - Fundamentação
Em resposta ao direito de audição apresentado pelo sujeito passivo temos a referir o seguinte:
Ajustamentos ao justo valor em activos financeiros:
A alínea a) do n.° 9 do artigo 18.° do CIRC estabelece que os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, sendo instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital igual ou superior a 5% do respectivo capital social.
Contabilisticamente e fiscalmente estes ajustamentos resultantes da aplicação do justo valor são considerados ganhos por aumentos de justo valor ou perdas por redução do justo valor.
O n.° 3 do artigo 45.° do mesmo diploma (em vigor até ao período de tributação de 2013) estabelece que "a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”. (sublinhado nosso)
Entende a Administração Tributária, em informação vinculativa (ficha doutrinária relativa ao processo n.° 39/2011, com despacho de 24 de Fevereiro de 2011 do (então) Director Geral dos Impostos), que sendo as reduções de justo valor destas partes de capital qualificadas como perdas deverão ser consideradas, nos termos do referido n.° 3 do artigo 45° do CIRC, em 50% do seu valor.
Deste modo, face ao disposto no n.° 1 do artigo 68.°-A da LGT e no artigo 55.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), encontrando-se estes serviços de inspecção vinculados ao entendimento vertido na referida ficha doutrinária, mantêm-se a correcção proposta de não aceitação fiscal de 50% das perdas com títulos negociáveis decorrentes da aplicação do justo valor, ou seja, 44.762,77 €.
Estimativas de reservas de manutenção internas:
No decorrer dos actos de inspecção foram apresentados pela empresa elementos respeitantes aos gastos que a A... suportou com a manutenção e reservas de manutenção das aeronaves que utiliza no âmbito da sua actividade. Concretamente:
Contratos de leasing de 2 aeronaves (a título exemplificativo);
Mapas, por aeronave, das reservas de manutenção pagas aos lessors (estipuladas nos contratos), desde a data de início dos contratos até 31 de Dezembro de 2014;
Mapa, por aeronave, das reservas internas de manutenção (fundo adicional de manutenção), constituídas desde o início da sua contabilização (2006) até 31 de Dezembro de 2014;
Documentos que suportam os gastos efectivamente incorridos com cada aeronave, desde o início dos contratos celebrados com as empresas locadoras até 31 de Dezembro de 2014;
Extractos das contas 62262321 e 62262311 referentes a gastos com reservas de manutenção, desde 30 de Junho de 2006 a 31 de Dezembro de 2014;
Extracto da conta 27224 Fundo de reservas de manutenção, desde 31 de Dezembro de 2006 a 31 de Dezembro de 2014.
Os documentos referidos fazem parte integrante dos anexos 8, 9 e 10 do projecto de relatório da inspecção tributária e do presente relatório da inspecção.
Após a sua análise, atendendo a que quer as reservas pagas aos lessors quer as reservas internas de manutenção estarem descriminadas por componentes das aeronaves e por valor específico afecto a cada rubrica, elaborou-se um mapa, para cada uma aeronave, de forma a validar a coerência entre os gastos estimados com as reservas de manutenção constituídas internamente pela A..., reservas de manutenção pagas aos lessors e gastos efectivamente incorridos, compreendendo o período entre a data de início da contabilização das reservas de manutenção internas (2006) e 31 de Dezembro de 2014.
Salienta-se que embora no corpo do projecto do relatório da inspecção tributária se encontre apenas o resumo dos valores apurados por ano e por total de “estimativas internas”, "estimativas pagas aos lessors" e “gastos efectivos", o detalhe dos mesmos fazem parte integrante do anexo 10 do projecto de relatório da inspecção tributária e do presente relatório da inspecção.
Pois se assim não fosse, a AT não conseguiria chegar às conclusões mencionadas nas páginas 19 e 20 do projecto de relatório, e que mais uma vez se realçam:
Através da análise componente a componente de cada aeronave, só em alguns casos se verifica uma diferença negativa mais expressiva entre os gastos com as reservas de manutenção pagas ao lessor os efectivamente incorridos.
Porém, na sua maioria as diferenças não são significativas e são pontuais (vide Anexo 10, págs. 2, 6, 10, 13, 16, 17, 20, 21, 23, 24, 26 e 27), até porque as componentes não estão sistematicamente em reparação e, tal como é referido nos contratos celebrados entre os lessors e a A..., até ao seu termo a empresa terá de pagar mensalmente estas rendas suplementares. O que significa que continuam a estar acautelados eventuais encargos que possam surgir no futuro, mesmo para componentes anteriormente reparadas.
Atendendo às horas de voo e aos ciclos operados por cada aeronave, existem estimativas de reservas de manutenção internas calculadas pela empresa sem coerência, pois tanto são reforçadas num ano como no ano seguinte são anuladas pelo mesmo valor ou valor aproximado, ou vice-versa.
Existem igualmente situações em que a empresa reforça as reservas de manutenção internas de determinadas componentes sem que haja (até 31.12.2014) qualquer reparação para as mesmas.
Exemplificando até com o caso ca reparação do motor ESN 811143, da aeronave ..., ocorrida em Junho de 2013 3), em que:
O seu montante totalizou 1.707.840,73 €,
Até à data da reparação a A... já tinha pago ao lessor o montante de 1.625.688,23 €. Valores esses lançados mensalmente na respectiva conta do fornecedor (lessor), por contrapartida da conta SNG 62262321 - Reservas de Manutenção; e
Até 31 de Dezembro de 2012 a empresa já tinha registado na sua contabilidade, como estimativa interna para reparação daquele motor, um total de gastos no montante de 2.959.827,95 €.
E demonstrando assim a não indispensabilidade, nos termos do artigo 23.° do CIRC, dos encargos suportados com as reservas de manutenção internas estimadas pela empresa.
O que significa, que ao contrário do referido no direito de audição, a AT não desconsiderou os limites dos montantes afectos a cada uma das rubricas que compõem as reservas de manutenção constituídas ao abrigo dos contratos de locação.
Quanto ao facto de o sujeito passivo alegar que as reservas foram constituídas no âmbito de uma atitude prudente e diligente, como] resulta do princípio contabilístico da prudência, que possibilita integrar nas contas um grau dC| precaução ao fazer estimativas exigidas em condições de incerteza, é verdade que nada o impede de as criar contabilisticamente. No entanto, deverá ter sempre em atenção se existe norma fiscal que permita a aceitação dos valores subjacentes à constituição das mesmas.
Analisando o disposto na alínea h) do n.° 1 do artigo 23.° (à data dos factos) do CIRC, consideram-se gastos os “Ajustamentos em inventários, perdas por imparidade e provisões".
Porém, para cada uma dessas matérias existem condições e limites para que as mesmas possam ser aceites fiscalmente.
Ora, para o tema em apreço, ternas o artigo 39.° do CIRC que determina quais as provisões que podem ser deduzidas ao lucro tributável. E nesse sentido, atendendo à natureza da constituição das reservas internas de manutenção, verifica-se que as mesmas não têm enquadramento no artigo 39.° do CIRC.
Refere ainda o sujeito passivo, a título de exemplo, que, no caso da aeronave com a matrícula ..., se não tivessem sido constituídas reservas de manutenção no exercício de 2008, existiria um desvio negativo de 409.757,82 €, tendo em consideração os gastos incorridos e o valor pago às entidades locadoras ser insuficiente.
Para uma melhor percepção sobre este tópico, reproduzem-se aqui, não só o quadro resumo relativo à aeronave ..., como os quadros resumo das restantes aeronaves.
Como se pode verificar, só no ano de 2008, no que respeita à aeronave ..., e no ano de 2014, quanto à aeronave ..., resulta um desvio negativo entre as facturas pagas aos lessors e os gastos efectivos.
E retomando o exemplo colocado pela A..., se não nos cingirmos à análise estática ano a ano, mas à sua evolução histórica, poder-se-á constatar que a partir desse ano e até 31 de Dezembro de 2014, o desvio é positivo e crescente.
Demonstrando-se, mais uma vez, a não verificação da indispensabilidade, nos termos do artigo 23.° do CIRC, das reservas de manutenção constituídas internamente pela A... .
Neste sentido, mantêm-se a correcção proposta no projecto de relatório da inspecção tributária, no montante de 5.617.264,47 €.
As conclusões do procedimento de inspecção tributária constituíram o fundamento das seguintes correcções ao lucro tributável em IRC, apurado pela Requerente naquele exercício, tendo estado na origem das liquidações objecto do presente pedido de pronúncia arbitral:
-
correcção no montante € 44.762,77, correspondente à desconsideração de 50% do valor dos gastos contabilizados, decorrentes da aplicação do justo valor na contabilização de activos financeiros;
-
correcção no montante de € 5.617.264,47, correspondente à desconsideração do montante deduzido a título de reservas internas de manutenção;
A Requerente foi validamente notificada das liquidações objecto do presente pedido de pronúncia arbitral.
O prazo para pagamento voluntário terminou em 04-10-2016.
Em 28-12-2006, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação resultante daquelas correcções.
Em 31-07-2017 foi proferida decisão final do procedimento de reclamação graciosa, a qual foi de indeferimento total do pedido, tendo sido mantidas todas as correcções constantes do Relatório de Inspeção Tributária, sem atender aos argumentos invocados pela Requerente, a qual foi notificada à aqui Requerente em 07-08-2017.
Inconformada com aquela decisão, a Requerente recorreu hierarquicamente da decisão final do procedimento de reclamação graciosa, em 05-09-2017-
Por ofício de 26-08-2020 foi a Requerente notificada, em 10-09-2020, do teor do Despacho da Exma. Sra. Subdirectora Geral da Direcção de Serviços de IRC, o qual (in)deferiu parcialmente o Recurso Hierárquico (RH) apresentado, decidindo nos seguintes termos:
-
reconhecendo a ilegalidade e decretando a consequente anulação do acto de liquidação de retenções na fonte de IR n.º 2016 ... e correspondentes actos de liquidação de juros compensatórios n.º 2016 ... a n.º 2016 ..., no montante total de € 1.077.757,27;
-
Mantendo o acto de liquidação de IRC n.º 2016 ...e correspondentes actos de liquidação de juros compensatórios n.º 2016 ..., de liquidação de juros moratórios n.º 2016 ... e Demonstração de Acerto de Contas n.º 2016..., no montante total de € 1.859.020,56.
Quanto ao acto de manutenção da liquidação de IRC e juros compensatórios, a decisão final do procedimento de recurso hierárquico sustentou que:
O pedido de constituição do Tribunal arbitral foi apresentado em 27-11-2020.
No dia 22-09-2021, em audiência no CAAD, procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente (F... e G...) e à tomada de depoimento de parte (H...) dando-se aqui com provado que:
As estimativas de reservas de manutenção constituem uma componente de gastos que, normalmente, surgem em empresas que se dedicam à actividade desenvolvida pela Requerente (cf. depoimento da testemunha F...);
No contrato, além das rendas, existem momentos de manutenção previstos contratualmente (cf. depoimento das testemunhas F... e G...);
As estimativas das reservas de manutenção têm uma base histórica de manutenção de peças similares e o uso concreto de cada aeronave na actividade da empresa; (cf. depoimento das testemunhas F... e G... e depoimento de parte efetuado por H...);
É possível determinar o valor das estimativas com razoabilidade, por via da experiência passada, da fórmula de cálculo que engloba ciclos e horas de voo, e do facto de as reservas se relacionarem com componentes programadas para reparação e momentos, também programáveis, de reparação (não cobrindo tais reservas avarias súbitas ou inesperadas); (cf. depoimento da testemunha G... e depoimento de parte efetuado por H...);
O gasto é especializado ou periodizado ao longo do prazo do contrato, pois que se relaciona com a operação das aeronaves ao longo do tempo; (cf. depoimento das testemunhas F... e G...);
A previsão das reparações é dependente das horas de voo, que são conhecidas e/ou programáveis; (cf. depoimento da testemunha G... e depoimento de parte efetuado por H...);
Existe uma alocação específica de gastos a cada aeronave, o que reforça a relação com a actividade de cada uma delas, e o grau de previsibilidade do gasto; (cf. depoimento da testemunha G... e depoimento de parte efetuado por H...);
O eventual não registo destas reservas levaria a uma maior volatilidade de resultados, além de que não respeitaria o princípio da periodização, pois imputaria a totalidade dos gastos ao momento da reparação, e não aos exercícios nos quis o desgaste da aeronave implica a assunção de gastos programáveis. (cf. depoimento da testemunha F... e depoimento de parte efetuado por H...);
A constituição destas reservas implica que exista a disponibilidade meios monetários para fazer face às reparações. A correlação entre este tipo de gastos (reservas) e a correspondente existência de meios monetários que os suportam não é comum noutras actividades; (cf. depoimento de parte efetuado por H...);
Toda a actividade de voo e necessidade de reparações é escrutinada de forma intensa, por entidades como o lessor, a I... e a Autoridade da Aviação Civil, para garantir a operacionalidade e segurança das aeronaves. (cf. depoimento de parte efetuado por H...);
No juízo profissional das duas testemunhas inquiridas, entendem estes que existe uma base suficiente para que, admitindo embora uma fronteira não absolutamente nítida com outro tipo de gastos, se possam considerar as reservas de manutenção como um gasto contabilizado na conta 62 do Plano de Contas do SNC. (cf. depoimento das testemunhas F... e G...);
A Requerente é uma sociedade comercial sob forma anónima, cujo objecto social é o transporte aéreo regular e não regular doméstico, territorial e internacional.
Como actividades acessórias, a Requerente dedica-se à manutenção de aeronaves, compra e venda de aeronaves, respectivas peças e acessórios, importação e exportação de componentes de aeronaves, gestão e operação de aeronaves de terceiros, assistência técnica, operacional e aeroportuária a aeronaves e respectivos passageiros, carga e correio, treino e instrução de tripulações e representação de outras companhias de aviação.
À data de 31 de Dezembro de 2012 a Requerente detinha participações financeiras, designadamente acções, admitidas a negociação em mercado regulamentado, das seguintes entidades:
Entidade
|
N.º de Ações detidas
|
B...
|
989.981
|
C...
|
150.000
|
D...
|
136.666
|
E...
|
7.500
|
Estas acções detidas implicavam uma participação, nas respectivas sociedades, inferior a 5% do respectivo capital social.
Em 2012, a frota da Requerente era composta por 10 aeronaves, dois I... 310, quatro I... 330 e quatro I...340, em regime de locação operacional.
No contexto dos contratos de locação operacional a Requerente está adstrita ao pagamento aos proprietários das aeronaves de valores a título de (i) depósito, correspondente a três rendas mensais; (ii) renda de valor fixo; (iii) reservas, de valor variável de acordo com as horas e os ciclos de voo; e (iv) acerto anual.
Além do valor pago a este título, a Requerente constituiu reservas internas para fazer face aos gastos de manutenção e reparação das aeronaves em locação.
Durante a vigência do contrato é da responsabilidade e encargo da Requerente (“Lesse”) a obrigação de efectuar a manutenção e reparação da aeronave e de todos os seus componentes de acordo com os programas de manutenção definidos pelas autoridades aeronáuticas, pelo fabricante ou quaisquer outras entidades reguladoras que sejam necessários para a validade do certificado de navegabilidade da aeronave.
As reparações resultantes do uso corrente não são previsíveis e são, por isso, registadas nas contas quando ocorridas, mas no que toca às reparações periódicas programadas (para que se constituem as reservas aqui em causa) é possível efectuar a estimativa do seu custo e o momento em que vão ocorrer. Tal sucede, entre outras razões, pela sua relação com a actividade de ciclos e horas de voo, e pela especificação das componentes de cada aeronave que estão associadas às estimativas.
O imposto e os respectivos juros, compensatórios e moratórios, objecto do pedido de pronúncia arbitral, estão a ser pagos em prestações, tendo já sido pagos parcialmente.
C.2 - Matéria de facto - Factos não provados:
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
C.3 - Motivação quanto à matéria de facto:
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados em função da sua relevância jurídica, face às soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAMT.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e pela Requerida, no processo administrativo e/ou com base, no depoimento das testemunhas ouvidas e declarações de parte, nos pontos indicados.
A convicção do Tribunal fundou-se igualmente nos factos articulados pelas partes, cuja aderência à realidade não se entende posta em causa, e no acervo probatório carreado para os autos, o qual foi objecto de uma análise crítica e de adequada ponderação, à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e de razoabilidade.
No tocante à prova testemunhal produzida, há que salientar que as testemunhas são, a primeira, Revisor Oficial de Contas e a segunda, Contabilista Certificado.
Ambas depuseram de forma objectiva, isenta e segura, revelando conhecimento directo dos factos aos quais foram inquiridas, pelo que os seus depoimentos são merecedores de total credibilidade.
Para a convicção do Tribunal contribuíram igualmente as declarações de parte.
Sendo certo que tais declarações não têm o valor de prova testemunhal, também é certo que, nos termos do artigo 16.º, do RJAMT, «constituem princípios do processo arbitral: […] e) A livre apreciação dos factos e a livre determinação das diligências de produção de prova necessárias, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros».
O declarante prestou um depoimento claro e sem hesitações e revelou-se profundo conhecedor do negócio e das suas particularidades, pelo que o seu depoimento merece credibilidade ao Tribunal.
C.4 - MATÉRIA DE DIREITO:
C.4.1 - Questões a decidir:
Primeira questão a decidir - Os actos de liquidação, objecto do pedido de pronúncia arbitral, encontram-se suficientemente fundamentados?
Segunda questão a decidir - Verifica-se a preterição de formalidade legal essencial, consistente em a Requerente não ter sido notificada nos termos e para os efeitos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º, da Lei Geral Tributária?
Terceira questão a decidir - Verifica-se a falta ou insuficiência de fundamentação do relatório de inspecção tributária?
Quarta questão a decidir - Encontram-se provados os factos constitutivos do direito da Administração tributária, já que caberia a esta a prova dos factos de que resultaria a demonstração, clara e inequívoca, dos factos constitutivos do seu alegado direito a tributar adicionalmente?
Quinta questão a decidir - Deverá ser anulada a correcção ao lucro tributável da Requerente, relativa à desconsideração de 50% dos ajustamentos de justo valor reconhecidos (Perdas de justo valor em instrumentos financeiros)?
Sexta questão a decidir - Deverá ser anulada a correcção ao lucro tributável da Requerente, relativa à desconsideração do valor deduzido pela Requerente como custo, para efeitos fiscais, a título de reservas internas de manutenção?
Sétima questão a decidir: Devem ser anuladas as liquidações de juros compensatórios e de juros moratórios?
Oitava questão a decidir: Deve a Requerida AT ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios?
Vejamos:
C.4.2 - Apreciação da primeira questão: Os actos de liquidação, objecto do pedido de pronúncia arbitral, encontram-se suficientemente fundamentados?
Refere a Requerente que, da análise do teor das notificações dos actos por ela recebidos, não resulta suficiente a necessária fundamentação, nem de facto, nem de direito, conforme é exigido pelo disposto no artigo 77.º, da Lei Geral Tributária, por forma a justificar a decisão nela inserta, já que ali não são explicitados os fundamentos, de facto e de direito, que determinaram a sua emissão, referenciando-se, apenas, no caso da Demonstração de Liquidação IRC, uma alusão genérica a "Fica V.Exa. notificado (a) da liquidação de IRC relativa ao período a que respeitam os rendimentos, conforme nota demonstrativa junta e fundamentação já remetida", mais se referindo que o acto de liquidação pode ser reclamado ou impugnado nos termos gerais.
Entende ainda a Requerente que não lhe era exigível que lançasse uso da faculdade prevista no artigo 37.º, do CPPT, já que esta se prende com o vício da notificação e não com a falta de fundamentação do acto tributário.
Apreciemos:
É sabido que, à luz do artigo 77.º, da LGT, a fundamentação pode ser sucinta, bastando que seja suficiente para permitir ao destinatário do acto a reconstituição do iter cognoscitivo percorrido pela AT para ter decidido no sentido em que decidiu e não em outro qualquer e igualmente para permitir ao destinatário o controlo do acto.
Para que se considere suficiente a fundamentação do acto tributário, o respectivo destinatário deve ficar na posse dos concretos elementos de facto e de direito que fundam a decisão e de qual foi o itinerário cognoscitivo e valorativo de que resultou a decisão, pois apenas deste modo o particular ficará munido dos elementos essenciais para se conformar ou reagir, administrativa ou judicialmente,
Com efeito, ainda que de forma sucinta, o particular tem que ficar conhecedor de quais foram os factos concretos tidos em consideração pela AT, pois só desse modo poderá verificar a sua existência.
Também, ainda que de forma sucinta, o particular tem que ficar conhecedor de quais foram os critérios valorativos desses factos, adoptados pela AT, pois só desse modo poderá tomar a decisão de aceitá-los ou, em alternativa, de discuti-los, apresentar outros factos ou até propor, em alternativa, outros critérios valorativos.
E, por fim, ainda que de forma sucinta, o particular tem que ficar conhecedor de quais foram as normas legais tomadas em consideração pela AT, pois só desse modo poderá aceitar a respectiva aplicação ao caso concreto ou, em alternativa, questionar quer a interpretação, quer a própria aplicabilidade de tais normas.
Ora, no caso dos presentes autos, as liquidações controvertidas foram antecedidas de um procedimento de inspecção tributária.
Do relatório final do referido procedimento - que originou tais liquidações - facilmente se conclui que a fundamentação que ali consta existe e é suficiente para perceber o referido iter cognoscitivo que esteve na origem das liquidações.
Tal como resulta do probatório, do relatório final do referido procedimento constam as razões, de facto e de direito, que levaram a AT a decidir proceder às correcções que estão na base das liquidações controvertidas.
E, tal como resulta do probatório, a Requerente exerceu cabalmente o direito de audição prévia, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, tendo a AT emitido a sua pronúncia sobre tal audição, pronúncia essa suficientemente fundamentada, de facto e de direito.
Poderá, claro, a Requerente discordar com aquelas razões, mas estas são suficientemente claras e congruentes para um destinatário normal, colocado na concreta posição da Requerente.
De resto, a Requerente foi notificada das conclusões finais do procedimento de inspecção tributária, pelo que não pode ignorar as razões das correcções em causa, ao lucro tributável de IRC, de 2012.
A Requerente ancora-se num argumento estritamente formal, qual seja o de que a notificação das liquidações controvertidas não contém uma espécie de fórmula ritual.
Mas a verdade é que o direito dos particulares à fundamentação se traduz no direito a conhecer as razões de facto e de direito que determinaram a AT à prática de um acto tributário com certo conteúdo e não a qualquer outro.
Ora, no caso dos presentes autos, não é crível que, após o decurso do procedimento de inspecção tributária, após o exercício do direito de audição prévia no referido procedimento e após ser notificada do relatório final do procedimento de inspecção tributária, a Requerente pudesse ainda ter dúvidas razoáveis sobre qual a fundamentação dos actos tributários aqui controvertidos.
E, de resto, embora protestando não saber bem qual a fundamentação dos referidos actos, a verdade é que a aqui Requerente contra eles apresentou reclamação graciosa, contra eles apresentou recurso hierárquico e, por fim, contra eles apresentou pedido de pronúncia arbitral.
Mostram-se, assim - e no caso concreto -, cumpridos os requisitos impostos à AT no que concretamente diz respeito ao dever de fundamentar as liquidações.
A este propósito, poderão ver-se, entre muitos, os seguintes arestos:
Acórdão do STA, proferido no processo n.º 0572/17, em 09-05-2018, consultável em:
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3907daa7722dd4448025828a0038a19a?OpenDocument&ExpandSection=1
Se a fundamentação das correcções operadas pela AT e que determinaram as liquidações adicionais impugnadas, exprime, em termos claros, suficientes, congruentes e inteligíveis, o critério legal e a motivação das mesmas, fica cumprida a dupla função de controlo endógeno e exógeno da legalidade de tais actos tributários e não ocorre insuficiência de fundamentação.
Acórdão do STA, proferido no processo n.º 0512/17, em 14-03-2018, consultável em: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b023601187fbbbb980258255004cd684?OpenDocument&ExpandSection=1:
Se o critério legal que foi adoptado pela AT para apurar o lucro tributável está enunciado em termos claros e inteligíveis e foi inequivocamente compreendido pelo sujeito passivo, não ocorre falta de fundamentação.
Acórdão do STA, proferido no processo n.º 246/09-30, em 17-06-2009, consultável em: https://dre.pt/application/file/a/4001624:
Estando o conteúdo do acto tributário em sintonia com o resultado do procedimento administrativo de que aos contribuintes foi sendo dado conhecimento pela via adequada e tendo estes reagido contra o acto de indeferimento de reclamação que está na origem do resultado espelhado na liquidação, não se verifica motivo determinante da anulação do acto tributário por falta de fundamentação.
Acórdão do TCA-Norte, proferido no processo n.º 00731/09.0BEPNF, em 24-05-2012, consultável em: http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/-/F6A12F23A4D613C780257A0F00310D5E
Está suficientemente fundamentado o acto de liquidação adicional se as conclusões do relatório da fiscalização esclarecem, minimamente, o contribuinte, que dele foi notificado, das razões de facto e de direito que levaram a Administração Fiscal a liquidar o imposto em causa.
Resta ainda dizer que, dando-se como suficientemente fundamentadas as liquidações aqui em causa, não haverá que apreciar se a Requerente deveria ou não ter lançado uso da faculdade prevista no artigo 37.º, do CPPT, uma vez que a conclusão não seria diferente.
Assim sendo, considera-se que não se verifica o vício invocado.
C.4.3 - Segunda questão a decidir - Verifica-se a preterição de formalidade legal essencial, consistente em a Requerente não ter sido notificada nos termos e para os efeitos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º, da Lei Geral Tributária?
Invoca a Requerente, como vício, a falta de notificação para exercer o direito de audição, previamente à prática dos actos de liquidação.
Nos termos do artigo 60.º, n.º 1, da LGT, que concretiza o princípio da participação dos particulares nas decisões administrativas que lhes digam respeito:
1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:
a) Direito de audição antes da liquidação;
b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;
c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;
d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;
e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.
De acordo com a alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º, da Lei Geral Tributária, parecerá que assiste razão à Requerente.
Contudo, o n.º 3, da mesma norma, dispensa o exercício do direito de audição, nos seguintes termos:
3 - Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais se não tenha pronunciado.
Ora, resulta do probatório que, «antes da conclusão do relatório da inspecção tributária», a Requerente não só foi notificada para audição prévia, como exerceu cabalmente tal direito.
E não resulta dos autos - e nem sequer foi invocado - que os actos de liquidação controvertidos tenham tido na sua base factos novos sobre os quais não tivesse sido dada, anteriormente, oportunidade à Requerente para se pronunciar.
Assim sendo, considera-se que não se verifica o vício invocado, uma vez que a AT não tinha o dever jurídico de ouvir a Requerente previamente à prática dos actos em causa nestes autos.
C.4.4 - Terceira questão a decidir - Verifica-se a falta ou insuficiência de fundamentação do relatório de inspecção tributária?
Tal como já se deixou escrito aquando da resposta à primeira questão, do relatório final do referido procedimento - que originou tais liquidações - facilmente se conclui que a fundamentação que ali consta existe e é suficiente para perceber o referido iter cognoscitivo que esteve na origem das liquidações.
Tal como resulta do probatório, do relatório final do referido procedimento constam as razões, de facto e de direito, que levaram a AT a decidir proceder às correcções que estão na base das liquidações controvertidas.
E, tal como resulta do probatório, a Requerente exerceu cabalmente o direito de audição prévia, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, tendo a AT emitido a sua pronúncia sobre tal audição, pronúncia essa suficientemente fundamentada, de facto e de direito.
Poderá a Requerente discordar com aquelas razões, mas estas são suficientemente claras e congruentes para um destinatário normal, colocado na concreta posição da Requerente.
Assim sendo, considera-se que não se verifica o vício invocado.
C.4.5 - Quarta questão a decidir - Encontram-se provados os factos constitutivos do direito da Administração tributária, já que caberia a esta a prova dos factos de que resultaria a demonstração, clara e inequívoca, dos factos constitutivos do seu alegado direito a tributar adicionalmente?
Embora a Requerente inclua esta questão no grupo do que denomina por denominação «vícios de legalidade formal dos actos de liquidação». a verdade é que esta não é uma questão formal, mas sim uma questão de direito probatório material.
Com efeito, trata-se de saber se «os factos constitutivos do direito da Administração tributária» se encontram provados, por força da repartição do ónus da prova.
Ora, a verdade é que a apreciação de tal questão se relaciona com averiguar em que medida a AT deveria ter dado - ou deu, no caso concreto - cabal cumprimento ao ónus, que sobre si impenderia, de demonstrar a verificação dos factos que suportaram, fundamentando-as, as liquidações aqui em crise.
Mas tal apreciação não é prévia à apreciação dos fundamentos das liquidações, antes se integra na apreciação, mais geral, de tais fundamentos.
E disso se curará mais adiante, aquando da apreciação das questões substantivas, que não aqui.
Pelo que a presente questão, enquanto questão autónoma, na configuração de vício formal que lhe é atribuída pela Requerente, improcede.
C.4.6 - Quinta questão a decidir - Deverá ser anulada a correcção ao lucro tributável da Requerente, relativa à desconsideração de 50% dos ajustamentos de justo valor reconhecidos (perdas de justo valor em instrumentos financeiros)?
Deve começar por referir-se que quanto à primeira questão que se apresenta a decidir nos presentes autos de processo arbitral, está formada uma corrente jurisprudencial arbitral na matéria, tendo também – o que é completamente omisso na argumentação da Requerida, não obstante o conhecer, por nele ser parte – o STA tomado posição expressa na matéria, no âmbito do Acórdão de 06-06-2018, proferido no processo 0582/17, e no qual colhe também apoio a pretensão da Requerente.
Seguindo de perto o que se decidiu no Processo 493-2019-T, deve sublinhar-se que as normas de enquadramento geral que aqui interessa considerar são as dos artigos 20.º, n.º 1, alínea f), e 23.º, n.º 1, alínea i), do Código de IRC.
A primeira dessas disposições, na redacção vigente à data dos factos, define exemplificativamente como rendimentos os “resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, enquanto a segunda caracteriza como gastos que poderão ser tidos como indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora os “resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”.
Por sua vez, o artigo 18º, n.º 9, alínea a), do Código de IRC –aqui particularmente em causa - determina que “os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, excepto quando “respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, quando se trate de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social”.
Qualquer destas disposições foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, que, na sequência da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística, procedeu às alterações necessárias à adaptação do Código do IRC às regras resultantes do novo enquadramento contabilístico. Nesse sentido, o Preâmbulo do referido diploma refere:
“Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve-se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.
No caso vertente e face à matéria dada como assente, não pode deixar de entender-se que a Requerente preenche os requisitos da referida disposição do artigo 18º, n.º 9, alínea a), colocando-se apenas a questão de saber se é aplicável a limitação que consta do artigo 45.º, n.º 3.
O Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento do Estado de 2003 enquadrou essa medida de “exclusão parcial (50%) das menos-valias registadas na alienação de partes sociais pela generalidade das empresas” no âmbito das alterações em sede de IRC destinadas a implementar o “alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade”, o que se mostra em consonância com as prioridades que o legislador pretendeu estabelecer, no âmbito das receitas, e que são identificadas como consistindo “no combate à fraude e evasão fiscais e alargamento da base tributável”.
O Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento de 2006 continuou a justificar a alteração legislativa no quadro das medidas tendentes ao “combate à fraude e evasão fiscais e outras medidas direccionadas à consolidação orçamental”. O que levou o já referido acórdão do STA ,de 17 de Fevereiro de 2016, a concluir que a norma, em qualquer das suas versões, integra uma medida antiabuso, no ponto em que o legislador terá pretendido (para além do alargamento da base tributável) evitar a manipulação do resultado fiscal.
Vejamos, pois, em que medida a mensuração dos instrumentos financeiros cotados em mercados regulamentados ao justo valor pode ser compaginada com a limitação que resulta do artigo 45.º, n.º 3. O acórdão ultimamente citado responde a esta questão nos seguintes termos.
“O conceito de justo valor resultante das regras contabilísticas, quer nacionais (Sistema de Normalização Contabilística, quer internacionais (Normas Internacionais de Contabilidade), quando incorporado no sistema fiscal, consubstancia-se, no essencial, na quantia pela qual um activo pode ser trocado, ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transação em que não existe relacionamento entre as partes.
Refere José de Campos Amorim que, “As IAS/IFRS [International Accounting Standard/International Financial Reporting Standards] e o SNC [Sistema de Normalização Contabilística] com as alterações das normas de relato financeiro, introduziram uma maior justiça na valorização dos bens da sociedade com vista aos utentes da situação económica, financeira e patrimonial da sociedade. Esta abertura da contabilidade ao justo valor vai ao encontro dos investidores que desejam obter uma informação real e fidedigna antes de decidir investir na empresa.
Portanto, a consideração do justo valor, no que aqui nos interessa (…) e para efeitos fiscais (que, nos termos do artigo 17º, n.º 1, do Código de IRC se encontra directamente ligado com a própria contabilidade da empresa), tem uma ligação imediata à cotação oficial dos títulos, e no caso dos autos encontra-se sujeita a um mercado regulado por entidades oficiais, deixando o facto tributário de se associar à venda dos títulos - realização das mais ou menos valias - passando a estar associada à oscilação da cotação oficial entre o início e o fim do período de tributação, cfr. Tomás Castro Tavares, Justo valor e tributação de mais valias de acções de sociedades cotadas, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, vol. IV, págs. 1137 e 1138.
Estas “mais-valias ou menos-valias” assim determinadas pelo justo valor são meramente potenciais ou provisórias - o valor dos activos consubstancia-se numa posição financeira - porque não há uma efectiva entrada de capital ou perda de capital face ao custo histórico, tal como é reconhecido pelo próprio legislador nacional no artigo 32º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais.
Não há, assim, qualquer dúvida que (…) à posição financeira negativa resultante do justo valor, não lhe “subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação do fair value se cinge aos activos transaccionados em mercado organizado, onde a cotação do activo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte… A vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no fair value: desaparece o óbice económico do lock-in (o facto tributário dissocia-se da decisão de venda); se os proveitos do justo valor são totalmente tributados (nunca se lhes aplica o regime das mais e menos valias), os gastos também devem ser aceites na totalidade; e não há, por fim uma assimétrica inclinação para a realização do custo de justo valor, por comparação com o ganho - pela razão simples de que o facto tributário do justo valor (positivo e negativo) dissocia-se, totalmente, da vontade do sujeito passivo” (cfr. Tomás Castro Tavares, idem, págs. 1143 e 1144).”
Ora, no caso do justo valor, em particular no que se apura em activos financeiros que evidenciam os traços económicos acima explicitados, emergindo a sua valorização de um mercado no qual o sujeito passivo não controla os preços, sendo os ganhos e perdas claramente associados à actividade de gestão de activos e contribuindo para o móbil empresarial da entidade, não se vê razão para qualquer assimetria no tratamento fiscal de ganhos e perdas. Esta conduziria, aliás, a resultados económica e fiscalmente absurdos.
O quadro 1, que se apresenta de seguida, mostra o absurdo que, no plano dos princípios, resultaria de uma hipotética limitação.
Quadro 1
Ganhos e perdas de justo valor numa carteira de activos financeiros mensurados a justo valor
|
Valor de mercado
|
|
|
|
Período
|
Activo A
|
Activo B
|
Ganho/perda em A
|
Ganho/perda em B
|
Ganho/perda total
|
1
|
100
|
100
|
|
|
|
2
|
20
|
180
|
-80
|
80
|
0
|
3
|
60
|
140
|
40
|
-40
|
0
|
4
|
100
|
100
|
40
|
-40
|
0
|
Assim, suponha-se que no ano 1 um contribuinte adquire uma carteira de activos financeiros, composta pelos títulos A e B, e que a evolução dos preços de mercado dos activos nos exercícios 2, 3 e 4 é a que consta do quadro acima. Dele resulta que a assimetria de tratamento fiscal de rendimentos e gastos resultaria na desconsideração da capacidade contributiva num mesmo período – caso, por exemplo, no ano 3 se tribute todo o rendimento (+40) e se restrinja a dedutibilidade do gasto (-40).
E tal violação também se verificaria entre diferentes períodos – caso, por exemplo, se tributem os ganhos totais de 160 (40+40+80) e se limite, total ou parcialmente, a dedução das perdas que totalizam igualmente 160.
Ou seja: a assimetria de tratamento fiscal conduziria ao apuramento de lucro tributável em cada exercício – em que, porém, nenhum incremento patrimonial existe na carteira de investimento do sujeito passivo –, e também no período temporal de três anos, em que nenhuma variação de capacidade contributiva se registou, já que ambos os títulos em carteira têm, no final do período 4, exactamente o mesmo valor que evidenciavam no período 1.
Mais ainda, não se admitindo a simetria de tratamento então a aplicação do modelo da realização redunda numa clara vantagem, geradora de desigualdade em relação aos contribuintes sujeitos ao modelo do justo valor. De facto, no exemplo do quadro 2, do modelo da realização resultaria imposto nulo, o que é consistente com a ausência de incremento patrimonial que o exemplo evidencia.
Como a propósito deste tema bem refere Tomás Tavares[1]:
“O legislador do IRC é livre de incorporar ou não o justo valor. Não está obrigado a escolhê-lo. Mas, uma vez eleito esse padrão, não possui inteira liberdade de conformação. Tem de respeitar certas regras e princípios. O principal dos quais é o da perfeita simetria fiscal do justo valor, sob pena de violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva. (…) Um hipotético tratamento assimétrico (…) cria, bem vistas as coisas, um regime fiscal mais injusto do que o modelo puro da realização, que é por isso, flagrantemente inconstitucional” (itálicos aditados).
Em suma, acompanha-se a posição expressa no Acórdão do STA, de 6-6-2018, no Processo 0582/17, que, partindo da seguinte interpretação, que afasta a mera literalidade do preceito:
"Do exposto resulta claramente, ao abrigo do disposto no artigo 9º do CC, que a norma do artigo 45º, n.º 3 do CIRC em análise, não se coaduna com a determinação –ao Justo Valor- do valor dos activos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação no caso concreto, o valor dos activos –a posição financeira- acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respectivo activo."
Dando os Acórdãos que aqui se seguiram resposta cabal a todas as questões pertinentes que se
apresentam a elucidar quanto a este tema, em termos que se subscrevem plenamente, nada mais haverá a acrescentar.
Deste modo, e face a todo o exposto, deverá proceder o pedido arbitral, quanto às perdas de justo valor.
C.4.7 - Sexta questão a decidir - Deverá ser anulada a correcção ao lucro tributável da Requerente, relativa à desconsideração do valor deduzido pela Requerente como custo, para efeitos fiscais, a título de reservas internas de manutenção?
C.4.7.1 - O fundamento das correcções promovidas pela AT:
Quer no relatório do procedimento de inspecção tributária, quer na decisão sobre o recurso hierárquico, é a questão da indispensabilidade do custo que surge como fundamento para a denegação da dedutibilidade do gasto.
À data dos factos, estabelecia assim o artigo 23.º, do Código do IRC, na parte que aqui releva:
“1 — Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente: (…)”
Vejamos, pois.
C.4.7.2 - Interpretação jurisprudencial e doutrinal do conceito de “indispensabilidade” constante do artigo 23.º, do Código do IRC, à data dos factos:
Na abundante doutrina sobre este tema, mencione-se Tomás Tavares[2], que perfilha a tese segundo a qual a correcta interpretação do conceito de indispensabilidade é a que equipara gastos indispensáveis aos gastos incorridos no interesse da empresa, na prossecução das actividades resultantes do seu escopo societário.
Eis o trecho que reputamos de central em tal interpretação: “A noção legal de indispensabilidade recorta-se, portanto, sobre uma perspetiva económico-empresarial, por preenchimento, direto ou indireto, da motivação última para a obtenção do lucro. Os gastos indispensáveis equivalem aos gastos contraídos no interesse da empresa ou, por outras palavras, em todos os actos abstratamente subsumíveis num perfil lucrativo. Este desiderato aproxima, de forma propositada, as categorias económicas e fiscais, através de uma interpretação primordialmente lógica e económica de causalidade legal. O gasto imprescindível equivale a todo o custo realizado em ordem à obtenção de ingressos e que represente um decaimento económico para empresa. Em regra, portanto, a dedutibilidade fiscal do custo depende, apenas, de uma relação causal e justificada com a atividade produtiva da empresa”.
E continua: “ …A indispensabilidade subsume-se a todo qualquer acto realizado no interesse da empresa…A noção legal de indispensabilidade reprime, pois, os actos desconformes com o escopo da sociedade, não inseríveis no interesse social, sobretudo porque não visam o lucro…” (p.136-137).
De salientar que “visar o lucro” não é equivalente a “ter necessariamente de originar lucro”. É certo que a actividade empresarial visa a obtenção de um excedente que remunere o capital investido. Mas os riscos próprios da actividade, o impacto da conjuntura, as inadequadas decisões de gestão, e outros factores, podem conduzir a negócios ruinosos. Tal constitui uma realidade bem conhecida do mundo empresarial.
Ainda no plano doutrinal, Rui Morais[3] sustenta que a regra da indispensabilidade dos gastos que se previa no CIRC não poderia servir para substituir o juízo de conveniência e oportunidade dos gastos assumidos ou suportados, tal como resultaram das decisões dos gestores, por um outro juízo, também de natureza empresarial, feito pela administração tributária. Conclui o autor: “Defendemos que a questão de saber se um custo deve ser ou não havido por indispensável se deve resolver a partir do intuito objetivo da transação, ou seja do business purpose test (…). Julgamos ser medianamente claro o escopo da norma: recusar a comparticipação fiscal em alguns dos encargos suportados pelo sujeito passivo (…). Se à assunção do encargo presidiu uma genuína motivação empresarial(…) o custo é indispensável. Quando se deva concluir que o encargo foi determinado por outras motivações (interesse pessoal dos sócios, administradores, credores, outras sociedades do mesmo grupo, parceiros comerciais, etc.) então tal custo não deve ser havido por indispensável.”
Num plano jurisprudencial, para além de inúmeras decisões dos tribunais afirmando que o teste da indispensabilidade dos gastos deve ser aferido pela relação destes com a actividade, desconsiderando apenas os que sejam incorridos no interesse de terceiros, veja-se a posição do Supremo Tribunal Administrativo (STA) expressa no âmbito Processo nº 0779/12, em Acórdão de 24-09-2014, onde tal tese surge com particular nitidez:
“No entendimento que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a adoptar para efeito de averiguar da indispensabilidade de um custo (cfr. artigo 23.º do CIRC na redacção em vigor em 2001), a AT não pode sindicar a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa, sob pena de se intrometer na liberdade e autonomia de gestão da sociedade.
Assim, um custo será aceite fiscalmente caso, num juízo reportado ao momento em que foi efectuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros, ainda que se venha a revelar uma operação económica infrutífera ou economicamente ruinosa, e a AT apenas pode desconsiderar como gastos fiscais os que não se inscrevem no âmbito da actividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objectivos alheios (quando for de concluir, à face das regras da experiência comum que não tinha potencialidade para gerar rendimentos).
Sendo o contribuinte uma sociedade que se dedica à construção de edifícios, não pode a AT desconsiderar os gastos respeitantes à aquisição de dois prédios com fundamento na falta de demonstração da indispensabilidade, ainda que este negócio se venha a revelar economicamente não rentável em virtude da sua venda por um preço seis vezes inferior àquele por que foram adquiridos ter gerado um prejuízo.”
Sustentando-se a tese de que os gastos fiscais são os resultantes da prossecução da actividade das empresas, do seu interesse próprio, inserindo-se no seu escopo social, não se afigura correcto exigir ainda aos gastos esse nexo de casualidade adicional.
O custo, sendo suportado no âmbito interesse da empresa, pode não vir a gerar rendimentos.
O STA também dilucida no citado Acórdão a questão do momento a que se deve reportar o juízo sobre a adequação dos gastos. Partindo do que se disse acerca do risco empresarial, é claro que o momento deve ser aquele em que se decide suportar esses gastos. A informação que serve de base às decisões que induzem gastos empresariais só poderá ser a que está disponível no momento em que se tomam. O que acontece depois está, em grande medida, fora do controlo do decisor, e não pode ser considerado como elemento para aferir da legalidade ou do acerto de decisão.
Assim, em face de tudo o que se disse, julgamos certa a conclusão segundo a qual se foi consolidando na doutrina e na jurisprudência a interpretação de gastos indispensáveis, no sentido do artigo 23º do CIRC, como sendo aqueles que respeitavam ou fossem contraídos no âmbito da prossecução dos interesses, ou do desenvolvimento da actividade, das entidades sujeitas ao imposto.
Ora, atendendo à factualidade dada como provada no caso em apreço, não tem o tribunal dúvidas de que os gastos contabilizados como estimativas de reservas de manutenção têm uma relação com a actividade da empresa Requerente. Tais gastos surgem por vida das reparações programáveis e exigíveis contratualmente, em função do número de ciclos de voo e de horas de voo; afinal indicadores que traduzem a actividade da Requerente.
Mais ainda, essas estimativas de gastos são efectuadas para cada aeronave, e vão até ao detalhe de algumas componentes (v.g., motores), e visam imputar a cada exercício as responsabilidades que nele emergem em função da actividade operacional das aeronaves e, portanto, da Requerente.
É da prossecução da actividade, ou do negócio da Requerente, que resulta a necessidade de reconhecer gastos e periodizar as reparações necessárias e programáveis, calculáveis por fórmulas que assentam na actividade de voo das aeronaves e na experiência passada de reparações idênticas, que a actividade da empresa implica.
Estando tais reparações relacionadas com determinados momentos temporais, não pode o facto de existirem discrepâncias entre a constituição de reservas e a sua utilização, constituir razão para negar a sua relação com a actividade operacional da Requerente.
É precisamente essa actividade que determina, num juízo de imputar a cada exercício os gastos que dele emergem por via das responsabilidades da Requerente para como os lessors, o registo de tais gastos.
Estando satisfeita, como o tribunal entende que está, esta relação das reservas registadas com a actividade da empresa, com o seu objecto empresarial, não tem base legal a correcção promovida pela AT, estribando-a no incumprimento da condição geral de dedutibilidade dos gastos prevista no artigo 23º do CIRC.
Quanto ao tipo de suporte documental, sendo o gasto reconhecido assente em reparações programáveis, é natural que ele esteja suportado por documento interno, e não por facturas. A consistência de tais documentos internos não foi posta em causa pela Inspeção. A razão da correcção assentou na questão da indispensabilidade, como se evidenciou nos factos provados.
O tipo de prova documental, especialmente discutido na decisão sobre o RH, não pode constituir motivo para a recusa da dedução do gasto, atendendo à sua natureza económica e, por isso, ao documento que lhe teria de subjazer.
C.4.7.3 - A questão (tardia) do enquadramento no artigo 39.° do CIRC:
Como este Tribunal já deu como assente, é no incumprimento da condição de indispensabilidade do gasto que a AT fundamenta a correcção aqui discutida.
Porém, como mera extensão de análise (por abundância) e não como avaliação de um critério decisório central da AT, que já se tratou, entende o Tribunal tecer algumas considerações sobre o que se refere na Resposta da Requerida ao Direito de Audição e que se transcreve de seguida:
“ E demonstrando assim a não indispensabilidade, nos termos do artigo 23.° do CIRC, dos encargos suportados com as reservas de manutenção internas estimadas pela empresa.
O que significa, que ao contrário do referido no direito de audição, a AT não desconsiderou os limites dos montantes afetos a cada uma das rubricas que compõem as reservas de manutenção constituídas ao abrigo dos contratos de locação.
Quanto ao facto de o sujeito passivo alegar que as reservas foram constituídas no âmbito de uma atitude prudente e diligente, como resulta do princípio contabilístico da prudência, que possibilita integrar nas contas um grau de precaução ao fazer estimativas exigidas em condições de incerteza, é verdade que nada o impede de as criar contabilisticamente. No entanto, deverá ter sempre em atenção se existe norma fiscal que permita a aceitação dos valores subjacentes à constituição das mesmas.
Analisando o disposto na alínea h) do n.° 1 do artigo 23.° (à data dos factos) do CIRC, consideram-se gastos os “Ajustamentos em inventários, perdas por imparidade e provisões".
Porém, para cada uma dessas matérias existem condições e limites para que as mesmas possam ser aceites fiscalmente.
Ora, para o tema em apreço, ternas o artigo 39.° do CIRC que determina quais as provisões que podem ser deduzidas ao lucro tributável. E nesse sentido, atendendo à natureza da constituição das reservas internas de manutenção, verifica-se que as mesmas não têm enquadramento no artigo 39.° do CIRC.”
Sublinhe-se, de novo, que na Decisão de RH surge apenas o seguinte fundamento:
Com efeito, só na Resposta da Requerida, que não pode evidentemente valer como fundamentação da correcção, a Requerida desenvolveu a questão da natureza contabilística do gasto registado, discorreu sobre a possível aplicação da “NCRF 21-Provisões” conjugada com o artigo 39.º do Código do IRC, e concluiu que os fundamentos para a não dedutibilidade das reservas seriam dois: o artigo 23.º e o artigo 39.º, ambos do Código do IRC.
O que se diz na Resposta ao Direito de Audição trata do princípio da prudência, de estimativas, e da não aceitação pelo artigo 39º, caso o sujeito passivo tivesse registado provisões. Mas não discute a natureza económica e a tradução contabilística do gasto à luz da norma sobre as Provisões (NCRF 21), nem porque ele não deveria constar conta 62 e sim da conta 67 (Provisões do exercício).
A Requerida não desenvolve argumentação, nos documentos fundamentadores da correção, que, afastando eventualmente a veste contabilística do gasto, afirme a substância das reservas internas como sendo equiparáveis a provisões, colocando em causa os registos contabilísticos efetuados pela Requerente e a tradução económica dos factos subjacentes.
Não é possível dar o salto lógico que a AT dá na sua Resposta ao pedido arbitral, quando nem no RIT nem no RH a questão teve o tratamento que seria exigível para que o artigo 39º pudesse valer como fundamento.
Porém, sempre se refira, a título de mera análise complementar, que em face dos elementos de prova documental e testemunhal, se afigura ao tribunal que o grau de incerteza na tempestividade e na quantia dos dispêndios não é inteiramente coincidente com o de uma típica provisão, em face do que se deu como provado.
Nem se afigura ao Tribunal que seja consistente centrar a argumentação na norma geral sobre a dedutibilidade de gastos (artigo 23.º, do Código do IRC) de forma exclusiva na decisão sobre o RH, e de forma quase absoluta no RIT (só marginalmente referindo, na Resposta ao direito de audição, a questão das provisões) e, depois, na Resposta do Pedido Arbitral desenvolver-se uma argumentação largamente focada na NCRF 21 e no artigo 39.º, do Código do IRC, nos quais não assentou a fundamentação das correcções.
Acresce que, caso o RIT e a decisão sobre o RH tivessem centrado a discussão no artigo 39.º, do Código do IRC, só o deveriam fazer depois de mostrarem, o que não foi feito, que a natureza económico-contabilística do gasto seria a de uma provisão, a registar na conta 67 do Plano de contas do SNC, e não uma estimativa de gasto registada na conta 62.
Além disso, da prova documental e testemunhal, conclui-se que estas reservas envolvem, tal como certos gastos registados noutras contas do SNC (v.g. Provisões), um certo grau de estimativa.
Porém, no caso dos autos, o exfluxo ou saída de recursos monetários para fazer face à obrigação não é só provável, mas sim certo.
Tanto mais que, contrariamente ao que, usualmente, sucede nas provisões, há neste caso uma correspondente retenção de meios financeiros para fazer face às obrigações.
Também o facto de que, como resultou da prova, estas “reservas” servem para reparações programadas.
Essa programação resulta de horas de voo, de ciclos de voo, e de determinações de Autoridades como a Aviação Civil e até o fabricante I... .
Tudo isto se afastando em certa medida do nível de incerteza que caracteriza as estimativas inerentes a uma típica provisão (v.g., para processos judiciais, ou para garantais a clientes).
As reparações são ainda estimadas por componentes, também aqui surgindo um traço de especificidade e maior previsibilidade, que se não observa habitualmente nas provisões.
Existindo embora elementos de alguma incerteza, crê-se que o gasto aqui em causa se situa numa certa zona cinzenta, que nem o permite transformar, com inteira precisão, numa provisão, nem também num gasto com nível total de certeza. Mas a análise desenvolvida deste tema não foi feita nem no RIT nem no RH.
A discussão e prova que deveriam ser feitas para a respectiva eventual não-dedutibilidade, por via do artigo 39.º, do Código do IRC, seria, de resto, mais exigente do que aquela que a Requerida aflorou na Resposta ao Direito de audição, e que nem sequer focou na decisão de RH.
O Tribunal, como já se assinalou, apenas tratou este ponto a benefício de extensão analítica, já que o que releva é a apreciação do fundamento invocado: o artigo 23.º, do Código do IRC.
Assim, julga-se procedente, quanto às reservas de manutenção, o pedido arbitral.
Termos em que, quanto a esta parte, a liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral deverá ser anulada.
C.4.8 - Sétima questão a decidir: Devem ser anuladas as liquidações de juros compensatórios e de juros moratórios?
A Requerentes peticiona a anulação da liquidação de juros compensatórios e de juros moratórios.
O artigo 35.º, n.º 1, da LGT, estatui que «são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária».
Nos presentes autos, concluiu-se já que a liquidação adicional de IRC, objecto do pedido de pronúncia arbitral, é de anular na parte que radica nas correcções a que se referem os pontos C.4.6 e C.4.7 da presente Decisão Arbitral.
Constituiu pressuposto da liquidação de juros compensatórios o retardamento da liquidação adicional de IRC.
Ora, anulada a liquidação adicional de IRC, a liquidação de juros compensatórios, a que estes se referem, perdeu objecto na parte do imposto anulado, já que, quanto a esta parte da liquidação, deixou de existir liquidação à qual possa ser imputado retardamento.
De resto, a liquidação de juros compensatórios tem como pressuposto a liquidação adicional de IRC, pelo que enferma dos mesmos vícios.
E mutatis mutandis se dirá o mesmo quanto à liquidação de juros moratórios.
Pelo que as liquidações de juros compensatórios e de juros moratórios, quanto às correcções ao lucro tributável que constam na presente decisão arbitral sob os números C.4.6 e C.4.7, deverão ser anuladas.
C.4.9 - Oitava questão a decidir: Deve a Requerida AT ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios?
Peticiona a Requerente que a Requerida AT seja condenada no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos constantes do n.º 4, do artigo 43.º, da LGT.
No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, regula o artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
Encontra-se provado nos autos que o imposto e os respectivos juros, objecto do pedido de pronúncia arbitral, foram pagos parcialmente.
A ocorrência de «erro imputável aos serviços» constitui pressuposto da condenação da Requerida em juros indemnizatórios.
Ora, no caso concreto, verifica-se que a declaração de ilegalidade e a consequente anulação, quer da liquidação adicional de IRC controvertida, quer das liquidações de juros compensatórios e moratórios controvertidas, funda-se em erro nos pressupostos de facto e de Direito, imputável aos serviços da AT.
Tem assim a Requerente direito a juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, do CPPT, relativamente ao montante já pago, quanto ao IRC e respectivos juros compensatórios e indemnizatórios, decorrentes das correcções ao lucro tributável que constam na presente decisão arbitral sob os números C.4.6 e C.4.7;
D - DECISÃO:
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral no seguinte:
-
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade das liquidações de IRC e de juros compensatórios e moratórios controvertidas, quanto às correcções ao lucro tributável que constam na presente decisão arbitral sob os números C.4.6 e C.4.7;
-
Em consequência, anular a liquidação adicional de IRC n.º 2016... e as correspondentes liquidações de juros compensatórios n.º 2016... e de juros moratórios n.° 2016..., e respectiva demonstração de acerto de contas n.º 2016..., referentes ao exercício de 2012, todas quanto às correcções ao lucro tributável que constam na presente decisão arbitral sob os números C.4.6 e C.4.7;
-
Em resultado do decidido nas alíneas anteriores, anular o despacho de indeferimento, proferido no recurso hierárquico, na parte relativa quanto às correcções ao lucro tributável que constam na presente decisão arbitral sob os números C.4.6 e C.4.7;
-
Em resultado do decidido nas alíneas anteriores, determinar o reembolso, à Requerente, do IRC, juros compensatórios e juros moratórios já pagos, na parte que resulte das correcções ao lucro tributável que constam na presente decisão arbitral sob s números C.4.6 e C.4.7;
-
Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida AT no pagamento de juros indemnizatórios, relativamente ao montante já pago, quanto ao IRC e respectivos juros compensatórios e indemnizatórios e quanto às correcções ao lucro tributável que constam na presente decisão arbitral sob os números C.4.6 e C.4.7.
E - VALOR DA CAUSA:
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.859.020,56.
O valor indicado pela Requerente não foi impugnado e não considera o Tribunal existir fundamento para o alterar, pelo que, de harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e ainda 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se à presente causa o valor de € 1.859.020,56.
F - CUSTAS:
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 24.480,00, indo a Requerida, que foi vencida, condenada nas custas do processo.
Notifique.
Lisboa, 28 de Outubro de 2021.
Os Árbitros,
(Manuel Luís Macaísta Malheiros)
(António Martins)
(Martins Alfaro)
Nos termos do artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01 de Maio) atesto o voto de conformidade do Árbitro Presidente, Senhor Desembargador Manuel Luís Macaísta Malheiros, e do Árbitro Adjunto, Senhor Prof. Doutor António Martins.
[1] Tomás Tavares, “Justo valor e tributação das mais-valias de ações de sociedades cotadas…”, cit., p. 1143
[2] Tavares T. (1999) “Da relação de dependência parcial entre a contabilidade e o direito fiscal na determinação do rendimento tributável das pessoas colectivas: algumas reflexões ao nível dos gastos”, Ciência e Técnica Fiscal, nº 396, p. 7-180
[3] Morais, R. (2007) Apontamentos ao IRC, Coimbra, Almedina