Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 39/2021-T
Data da decisão: 2021-10-27  Selo  
Valor do pedido: € 21.377,00
Tema: IS - Usucapião de imóveis – isenção de imposto do Selo.
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SUMÁRIO:

O artº 6º, alínea e), do CIS, ao isentar de imposto de selo o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, remetendo para as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários, significa que, por mera interpretação declarativa, se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da referida isenção.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., NIF n.º..., residente em Rua ..., n.º ..., ...-... Póvoa de Varzim, apresentou, nos termos legais, pedido de constituição do tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I – RELATÓRIO

 

A)           O pedido

 

O Requerente pede a anulação da liquidação de Imposto do Selo n.º..., datada de 2020-10-08.

Pede ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

B)           Posição das partes

 

A Requerente entende, em suma, que tendo adquirido, por usucapião, um imóvel, cuja posse lhe adveio por doação verbal feita por seu pai, tal aquisição está isenta de Imposto do Selo.

 

Na sua resposta, a Requerida sustenta que no procedimento administrativo, a ora Requerente não fez prova dos pressupostos previstos na al. e do art.º 6º do CIS, quais sejam (citamos) (i) a relação existente entre o titular do direito real ora extinto e o justificante e (ii) a relação existente entre o anterior titular na posse e o justificante que lhe sucedeu nessa posse, quando, à data da sucessão ou acessão na posse, esta se encontrava apta a ser invocada para fundamentar a aquisição originária por parte do anterior titular na posse.

 

C)           Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em20/01/2021.

 A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a sua designação (árbitro singular) competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição.

O árbitro designado aceitou tempestivamente a nomeação.

 O tribunal arbitral ficou constituído em 21/05/2021.

 Por despacho arbitral de 26-06-2021, foi decidido prescindir, por falta de objeto, da realização da reunião a que se refere o art.º 18º. Nenhuma das partes se opôs a este despacho arbitral.

Em 14-09-2021 teve lugar a audição da requerente e testemunhas por ela arroladas, conforme consta da respetiva ata.

As partes apresentaram alegações escritas em que reiteraram as posições que haviam assumido nos articulados.

 

II - SANEAMENTO

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não existem exceções de que cumpra conhecer.

 

III – PROVA

 

III.1 - Factos provados

 

a)            Em 17 de julho de 2020, a Requerente celebrou escritura de justificação de usucapião, relativa ao prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de ..., Valongo sob o artigo ..., não descrito no registo predial.

 

b)           Na referida escritura, a Requerente declarou que possuía tal prédio desde 10 de abril de 1976, por os seus pais, B... e C..., lho terem doado verbalmente, por conta da quota disponível.

 

c)            B... procedeu à participou no respetivo Serviço de Finanças, em 10 de abril de 1976, do prédio em nome de sua filha, a aqui Requerente, à data menor de idade.

 

d)           B... é pai da Requerente.

 

e)           Em 08 de outubro de 2020, na sequência da escritura de justificação de posse, foi efetuada participação à Autoridade Tributária, para efeitos de IS, na qual foi mencionado que “o bem em causa foi doado pelos pais da mesma nos termos constantes da escritura, pelo que no seguimento das decisões do STA, deverá ser considerada ISENTA”

 

f)            A AT emitiu a liquidação ora impugnada.

 

g)            A Requerente procedeu, em 10 de dezembro de 2020, ao pagamento da primeira prestação do imposto, no montante de 2.137,70€.

 

h)           O edifício que constitui o prédio em causa foi construído pelo pai da Requerente, que nunca procedeu ao respetivo registo na conservatória.

 

i)             O pai da Requerente era proprietário ou, pelo menos, possuidor do terreno onde tal edifício foi construído.

 

j)             A Requerente, recorreu à justificação extrajudicial, através de escritura notarial, como meio para obter título formal da sua propriedade

 

 

Os factos dados por provados em a) a g) resultam de documentação junta aos autos, não tendo sido questionados pela AT na sua resposta.

Os factos dados como provados em i) e j) foram confirmados, unanimemente, pelas testemunhas, as quais, no entender do tribunal arbitral, depuseram com verdade e conhecimento de causa. O depoimento das testemunhas foi conforme ao constante da escritura de justificação de posse e ao, tempestivamente, declarado pela Requerente à AT.

Mais, os factos dados por provados por prova testemunhal são totalmente conformes com as regras de experiência.

 

III.2 - Factos não provados

 

Não existem factos não provados relevantes para a decisão a causa.

 

IV- O DIREITO

 

Considerados os factos provados, a única questão de direito a decidir é se a aquisição de um imóvel por usucapião, o qual, antes, era propriedade, ainda que não registada, e posse do pai da Requerente, está isenta de Imposto do Selo.

 

Esta questão foi objeto de acórdão uniformizador de jurisprudência proferido pelo STA em 2-05-2012 (proc. 0746/11), no qual nos louvamos integralmente. Citamos:

 

 A questão que se discute nos autos é a de saber se está sujeita a imposto de selo a aquisição de imóvel por usucapião, titulada por escritura notarial, na qual foi invocada a posse derivada de anterior doação verbal ou de partilha de bens pertencentes aos progenitores dos impugnantes, isto tendo em conta a isenção constante do artº 6º, alínea e), do Código do imposto do Selo.

(…)

 A partir da revogação Código da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações (a partir de 1/1/2004 por força dos arts. 31º e 32º do DL nº 287/2003, de 12/11), as transmissões gratuitas de imóveis passaram a ser reguladas pelo Código do Imposto de Selo (CIS), cujo artº. 1º dispõe, no que aqui interessa, o seguinte:

 

1 - O imposto do selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.

2 – (…)

3 - Para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, são consideradas transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objecto:

 

a) Direito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião; (Redacção introduzida pela Lei nº 39-A/2005, de 29/7).

(…)

 

Por sua vez, o artigo 2º (incidência subjectiva) dispõe:

 

1-  – (…)

 

2 - Nas transmissões gratuitas, são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares para quem se transmitam os bens, sem prejuízo das seguintes regras:

(…)

b) Nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos respectivos beneficiários. (Redacção introduzida pelo DL nº 287/2003, de 12/11).

 

E o artigo 3º (Encargo do imposto) dispõe:

 

1 - O imposto constitui encargo dos titulares do interesse económico nas situações referidas no artigo 1º. (Redacção introduzida pelo DL nº 287/2003, de 12/11).

 

2 - (…)

3 - Para efeitos do nº 1, considera-se titular do interesse económico:

a) Nas transmissões por morte, a herança e os legatários e, nas restantes transmissões gratuitas, bem como no caso de aquisições onerosas, os adquirentes dos bens;

(…)

Por sua vez, o artigo 6º - Isenções subjectivas – dispõe:

 

«São isentos de imposto do selo, quando este constitua seu encargo:

 

(…)

e) O cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários.»

 

(…)

Ora, é, precisamente, com base nesta al. e) do art. 6º do CIS que a recorrente sustenta estar isenta do pagamento de imposto de selo aqui em causa, alegando que nas transmissões gratuitas (ficcionadas ou não), e ao invés das aquisições originárias, existe sempre uma relação bilateral, ou seja, um sujeito passivo e um sujeito activo e que o Acórdão recorrido interpreta erradamente aquele normativo, ao entender que nas aquisições por usucapião - qualificadas como transmissões gratuitas para efeitos do CIS - o cônjuge, descendentes e ascendentes, que forem beneficiários, não estão isentos de imposto, sendo que dessa interpretação/aplicação, resultaria inútil (como aliás resultou) a consagração e qualificação, pelo legislador do CIS, de que as aquisições por usucapião constituem transmissões gratuitas, porquanto sempre estariam sujeitas ao pagamento de imposto de selo.

Ora, quando o legislador veio, no art. 1º, nº 3, do CIS, dizer que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a “aquisição por usucapião”, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, nem quis alterar essa natureza. O objectivo do legislador, visando alargar a base de incidência objectiva do imposto, foi o de equiparar, para efeitos de imposto de selo, a usucapião às transmissões gratuitas. Trata-se, por conseguinte, de uma ficção legal para efeitos fiscais.

 

Ficção que é repetida nas normas seguintes, quando o legislador, no art. 2º do CIS, ao regular a incidência subjectiva do imposto, volta a dizer que “Nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos beneficiários” (alínea b) do mesmo preceito).

 

Finalmente, no art. 6º do CIS repete então o legislador que, no que concerne às isenções subjectivas, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2. da tabela geral de que são beneficiários, são isentos de imposto do selo, quando este constitua seu encargo, o “cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes”.

 

Porém, para o Acórdão fundamento, aqui a expressão “transmissão gratuita” já não inclui a usucapião.

Ora, fica-se sem se perceber por que é que não há dúvidas quanto ao facto de nos preceitos anteriores (arts. 1º e 2º do CIS) a usucapião considerar-se equiparada ou ficcionada a uma transmissão gratuita, mas já não ser assim quando se chega ao preceito relativo às isenções. É verdade que o legislador nos preceitos anteriores referiu-se sempre à usucapião e no art. 6º do CIS não o faz. Mas o problema que se pode colocar-se, quando muito, é o de saber se era necessário fazê-lo.

 

Com efeito, repare-se que o legislador no art. 2º do CIS já regula a incidência subjectiva do imposto de selo, referindo expressamente que “nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos beneficiários.” O que significa que quando se chega ao art. 6º já não há necessidade de voltar a repetir-se a expressão. Primeiro porque o objectivo do preceito está centrado na enumeração das pessoas que estão isentas de imposto e não nas operações, o que foi tratado anteriormente. Em segundo lugar, realce-se que o preceito diz expressamente que são isentos “o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários”. Isto é, o preceito ao remeter expressamente para as “transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral” dispensa a necessidade de repetir a expressão usucapião porque o nº 3 do art. 2º do CIS, para onde a alínea e) do art. 6º do CIS remete, já contém, precisamente, a noção de “transmissões gratuitas” para efeitos daquela tabela onde se inclui a usucapião. O que significa que, por mera interpretação declarativa, se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da isenção da alínea e) do art. 6º do CIS.

 

Finalmente, a prevalecer a tese do Acórdão fundamento, ficaria também por responder qual a razão de ser de dar tratamento diferente discriminando a usucapião das demais aquisições gratuitas, quando o objectivo da isenção prevista na alínea e) do art. 6º do CIS é o de favorecer precisamente o cônjuge ou equiparado e os descendentes e ascendentes. Não vemos razão para adoptar nesta sede uma noção restrita de “transmissão gratuita”, distinta do sentido amplo adoptado nos demais preceitos. Se o objectivo da lei é proteger as pessoas indicadas na alínea e) do art. 6º do CIS, então o mais natural é que valha a aqui a noção ampla de “transmissão gratuita” adoptado pelo legislador nos demais preceitos.

Acresce ainda que deve considerar-se contrário ao princípio da confiança e da certeza e segurança jurídica, enquanto sub-princípios do princípio do Estado de Direito, que o legislador possa utilizar, sobretudo ao nível de normas de isenção fiscal e no âmbito do mesmo imposto, os mesmos conceitos com significados opostos, para daí extrair encargos económicos sobre os contribuintes de forma pouco clara e transparente.

Em face do exposto, não podemos deixar de concluir no sentido do consignado no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 13/10/2010, proc nº 0431/2010, que, “por um lado, a alínea a) do nº 3 do artigo 1º do Código do Imposto de Selo, considera, desde sempre, transmissões gratuitas os casos de aquisição por usucapião de imóveis (….)”. E, por outro lado, o teor da alínea e) do artigo 6º do Código do Imposto de Selo é muito claro e de sentido unívoco: o cônjuge está isento do imposto de selo, quando o imposto constitua encargo seu – como teria de acontecer no caso, se não houvesse isenção legal a favor do cônjuge. E, assim, poderemos, a propósito, formular o seguinte silogismo: se o cônjuge está isento de imposto de selo nas transmissões gratuitas; e, para efeitos fiscais, a aquisição por usucapião é uma transmissão gratuita; a aquisição por usucapião pelo cônjuge está isenta de imposto de selo.

 

Restará acrescentar que este entendimento continua a ser perfilhado pelo STA, nomeadamente no recente ac. nº 0121/16, de 20-05-2020.

 

IV - Juros indemnizatórios

 

Nos termos do n.º 1 do art. 43º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Tais pressupostos estão verificados: que existiu erro imputável aos serviços na liquidação impugnada, da autoria da AT, uma vez que foi feita uma errónea aplicação da lei, para mais em contradição com jurisprudência uniformizada do STA, e a Requerente pagou, pelo menos, parte do imposto liquidado.

 

V – Decisão

 

- Anula-se, na totalidade, a liquidação impugnada, devendo ser devolvido o montante de imposto pago.

- Condena-se a Requerida, ainda, a pagar à Requerente o montante de juros indemnizatórios legalmente devido.

 

CUSTAS pela Requerida, por ter sido total o seu decaimento.

 

VALOR: € 21.377,00

 

27 de Outubro de 2021

 

O Árbitro

Rui Duarte Morais