SUMÁRIO:
I. Consagrando uma medida de caráter excecional, também a norma do artigo 12.º-A, do Código do IRS, é, ela própria, excecional, na medida em que contraria os efeitos decorrentes das normas de incidência, exonerando os respetivos beneficiários do pagamento de IRS sobre “50% dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais”, nas condições ali definidas.
II. Exercendo o Requerente uma atividade profissional especificamente prevista na Tabela a que se refere o artigo 151.º, do Código do IRS, o seu rendimento tributável da categoria B resulta da aplicação (parcialmente condicionada) do coeficiente de 0,75, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º, do Código do IRS, à parte do rendimento não excluída de tributação pelo artigo 12.º-A, do mesmo Código.
III. Os rendimentos brutos sobre os quais incide a percentagem de 15%, para determinação do acréscimo ao rendimento tributável já apurado, não podem ser senão os rendimentos brutos sujeitos a imposto e dele não isentos.
IV. A não ser assim, sempre uma parcela da metade dos rendimentos isentos nos termos do artigo 12.º-A, do Código do IRS, ficaria sujeita a tributação, por via do acréscimo apurado nos termos do n.º 13 do artigo 31.º, deste Código, frustrando a intenção do legislador e o direito do Requerente ao benefício fiscal.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
Em 22 de março de 2021, A..., com o NIF-..., e com o domicílio fiscal em Rua ..., n.º..., ..., ...-... ... - LOURES, (adiante designado por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com os artigos 99.º e 102.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.
A. Objeto do pedido:
O Requerente pretende a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS com o n.º 2020..., referente ao ano de 2019, de que resultou o reembolso da quantia de € 468,69, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a manteve na ordem jurídica.
Pretende igualmente que a liquidação a anular seja substituída por uma outra em que seja apurado o reembolso que considera ser-lhe devido, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos legais.
B. Síntese da posição das Partes
a. Do Requerente:
Como fundamentos do pedido, o Requerente alega, em síntese, o seguinte:
1. O Requerente encontra-se abrangido pelo regime fiscal aplicável a ex-residentes, previsto no artigo 12.º-A, do Código do IRS, nos termos do qual são excluídos de tributação 50 % dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais, tendo declarado, para o ano de 2019, rendimentos profissionais (categoria B) no valor de € 62 498,33;
2. Por se encontrar enquadrado no regime simplificado de tributação, a determinação do rendimento tributável segue as regras previstas no artigo 31.º, do Código do IRS;
3. Contudo, a liquidação de IRS n.º 2020 ... ora impugnada, padece de erro sobre os pressupostos de direito, no que respeita ao cálculo das deduções previstas no artigo 31.º, n.º 13, do Código do IRS, uma vez que o acréscimo ao rendimento tributável, de 15% sobre a diferença positiva entre os rendimentos brutos e o somatório das deduções ali previstas, foi calculado sobre a totalidade dos rendimentos declarados, em violação do disposto no artigo 12.º-A, do mesmo Código, que isenta de tributação 50% daqueles rendimentos;
4. Em sede de reclamação graciosa, foi requerida a correção do cálculo da percentagem a acrescer ao rendimento tributável, assim como a inclusão da quantia de € 345,30, correspondente ao valor suportado a título de “quotizações pagas a ordens e outras organizações representativas de categorias profissionais” (Ordem dos Advogados);
5. Na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, a AT manteve os cálculos que suportaram a determinação do rendimento coletável da categoria B, não tendo aceite a dedução da quantia referente às quotizações pagas à Ordem dos Advogados, que parece confundir com os valores pagos à Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPSA);
6. Os erros da liquidação impugnada, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que têm por base uma interpretação ilegal das normas aplicáveis, afetaram o direito do Requerente ao reembolso em € 1 567,61 (valor equivalente à diferença entre o montante do imposto a reembolsar, de € 2 034,26 e o apurado na liquidação impugnada, de € 466,65), acrescido de juros indemnizatórios;
7. Termos em que o Requerente, atribuindo ao pedido o valor económico de € 1 567,61, pede a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2020 ... e, bem assim, a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a teve por objeto, com todas as consequências legais, designadamente, a emissão de novo ato de liquidação que apure corretamente o valor do reembolso que lhe é devido, com acréscimo de juros indemnizatórios sobre o montante a reembolsar.
b. Da Requerida
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou Resposta e o processo administrativo, vindo defender a legalidade e a manutenção do ato de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, levantando como questão prévia a do valor da causa.
A este respeito, alega a AT que, de acordo com o disposto no artigo 97.º-A, do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, quando seja impugnada a liquidação, o valor do processo é o da importância cuja anulação se pretende e que, pretendendo o Requerente a anulação da liquidação de que resultou o reembolso da quantia global de € 468,59, deverá ser esse o valor da causa.
Na defesa por impugnação, invoca a Requerida os seguintes fundamentos:
1. O Requerente encontra-se coletado na categoria B, no regime simplificado, referente a IRS, com o CAE Principal 6060 – Advogados e CAE secundário 69101 – Atividades Jurídicas, desde 31 de janeiro de 2019, tendo, no anexo B à declaração de IRS do ano de 2019, declarado:
a. Rendimentos profissionais no valor de € 62 498,33 (quadro 4A, campo 403);
b. Reunir as condições do regime aplicável a ex-residentes, previsto no artigo 12.º- A do CIRS (quadro 3C);
c. Aceitar as despesas e encargos previstos no artigo 31º, nº 13, alíneas b), c) e e) (quadro 17C);
2. Pelo que se reiteram todos os fundamentos aduzidos em sede de análise e decisão do processo de reclamação graciosa nº...2020...;
3. Da análise dos elementos constantes na base de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), verifica-se que o Requerente reúne os pressupostos para beneficiar do regime previsto no artigo 12.º-A do CIRS;
4. Relativamente ao alegado erro de cálculo fundado em ilegalidade, constata-se na liquidação ora em análise, que do rendimento declarado da categoria B, do valor de € 62 498,33, foi aplicada a exclusão de 50% (nos termos do artigo 12.º-A, do CIRS), perfazendo o valor tributável de € 31 249,65, tendo sido a este aplicado o coeficiente de 0,75 previsto na alínea b) do artigo 31.º do CIRS, apurando-se um valor de € 23 436,88;
5. Nos termos do n.º 13 do artigo 31.º, do CIRS, somou-se o valor de € 5 270,74, que é a diferença positiva entre o montante da dedução específica, prevista no nº 1 do artigo 25º do CIRS, no valor de € 4 104,00 e € 9 374,74 (correspondentes a 15% do rendimento bruto da categoria B do ano de 2019, no valor de € 62 498,33), perfazendo o valor global de € 28 707,61, valor este constante da liquidação ora em análise;
6. Relativamente à despesa referente a quotização, ao valor do montante da dedução específica previsto na alínea a) do artigo 25.º do CIRS, não soma o valor pago à Ordem dos Advogados, na importância de € 345,30, uma vez que a alínea a) do nº 13, do artigo 31º do CIRS, estabelece que se considera o montante da dedução específica previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 25.º, ou, quando superior, os montantes comprovadamente suportados com contribuições obrigatórias, para regimes de proteção social, conexas com as atividades em causa;
7. Assim, o montante de € 345,30 pago à Ordem dos Advogados, só influenciaria o cálculo do acréscimo ao rendimento, caso fosse de montante superior à dedução específica, o que não se verifica;
8. Uma vez que, à data dos factos, a Administração tributária fez a aplicação da lei nos termos em que como órgão executivo está adstrita constitucionalmente, não se pode falar em erro dos serviços nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT;
9. Termos em que a AT defende a improcedência do presente pedido de pronuncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação impugnado e absolvendo-se a entidade requerida do pedido.
*
Sendo as questões suscitadas essencialmente de direito e não tendo sido requerida a produção de prova adicional, foi, pelo despacho arbitral de 7 de setembro de 2021, dispensada a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, determinando-se que o processo prosseguisse com alegações escritas, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias, com informação de que a decisão arbitral seria prolatada até ao termo do prazo estabelecido pelo n.º 1 do artigo 21.º, do RJAT, e advertindo-se o Requerente de que deveria, até essa data, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.
Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteram as posições defendidas nos respetivos articulados iniciais.
II. SANEAMENTO
1. O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 22 de junho de 2021, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (o Requerente enquanto Advogado em causa própria, com inscrição ativa na Ordem dos Advogados), nos termos dos artigos 4.º e 10.ºdo RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;
3. O processo não padece de vícios que o invalidem;
4. Não foram invocadas exceções que ao tribunal arbitral cumpra apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as
suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral
tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e ao processo administrativo (PA), fixa-se como segue:
1. O Requerente está coletado para o exercício da atividade de Advogado(s) (CAE Principal 6060 e CAE secundário 69101 – Atividades Jurídicas) desde 31 de janeiro de 2019, reunindo, no ano a que respeita o imposto, os pressupostos enunciados no artigo 12.º-A, do Código do IRS, relativos ao “Regime fiscal aplicável a ex-residentes” (cfr. Resposta da Requerida e PA);
2. Em 3 de abril de 2020, o Requerente, na qualidade de residente em território nacional (Continente), procedeu à entrega da declaração modelo 3 de IRS referente aos rendimentos do ano de 2019, identificada com o n.º..., integrando um anexo B (Rendimentos da categoria B – Regime simplificado) e um anexo G (Mais-valias e outros incrementos patrimoniais) (cfr. Doc. n.º 3 junto ao PPA);
3. No anexo B à referida declaração de IRS, o Requerente declarou (cfr. Doc. n.º 3 junto ao PPA):
a. Beneficiar, no ano de 2019, do regime fiscal aplicável a ex-residentes (quadro 3C);
b. Ter auferido rendimentos provenientes de uma atividade profissional prevista na tabela do artigo 151.º, do Código do IRS, no valor bruto de € 62 498,33 (quadro 4A, campo 403);
c. Ter suportado retenções na fonte de IRS da quantia de € 7 812,30 (quadro 6, campo 602);
d. Relativamente às “Despesas e encargos previstos nas alíneas b), c) e e) do n.º 13 do artigo 31.º, do Código do IRS, a opção pelos valores comunicados à AT (quadro 17C);
4. Os rendimentos declarados no anexo G determinaram o apuramento de uma menos-valia (cfr. Doc. n.º 3 junto ao PPA e Resposta da Requerida);
5. Em 2 de outubro de 2020 a AT emitiu, com base na declaração de rendimentos antes mencionada, a liquidação de IRS n.º 2020..., em que foi apurado o rendimento coletável de € 28 707,61 e a coleta líquida de € 7 345,65 de que, por abate do valor das retenções na fonte suportadas (€ 7 812,30), resultou o apuramento do reembolso de imposto da quantia de € 466,65, acrescida de juros indemnizatórios de € 1,94, no montante global de € 468,59 (cfr. Doc. n.º 2 junto ao PPA);
6. Em 19 de outubro de 2020, foi instaurado no Serviço de Finanças de Loures ... o procedimento de reclamação graciosa n.º ...2020..., tendo por objeto a anulação da liquidação de IRS n.º 2020..., por erro no cálculo do rendimento coletável da categoria B, em violação dos artigos 12.º-A e 31.º, do Código do IRS (cfr. Doc. n.º 4 junto ao PPA);
7. Ao requerimento da reclamação graciosa, juntou o Requerente prova documental do pagamento de quotas para a Ordem dos Advogados, efetuado em 16 de janeiro de 2019, no valor de € 345,30 (cfr. Docs. n.ºs 4 e 5 juntos ao PPA);
8. A reclamação graciosa foi indeferida por despacho do Senhor Chefe do Serviço de Finanças de Loures ..., de 11 de dezembro de 2020, notificado ao Requerente por ofício do mesmo Serviço de Finanças, expedido ViaCTT em 16 de dezembro de 2020 (cfr. PA);
9. Da informação que suportou a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, constam, entre outros, os seguintes fundamentos (cfr. PA):
B – Factos não provados:
Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.
C – Fundamentação da matéria de facto provada:
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos dados como provados decorrem da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, do processo administrativo e da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados.
III.2 DO DIREITO
1. Questão prévia
Como questão prévia, coloca a AT a do valor da causa, a que o Requerente o valor económico de € 1 567,61, equivalente à diferença entre o valor do reembolso a que considera ter direito e o que foi apurado na liquidação objeto dos autos.
Entende a Requerida que, pretendendo o Requerente a anulação da liquidação de IRS n.º 2020..., de que resultou o reembolso da quantia de € 468,59, deverá ser esse o valor da causa, à luz do disposto no artigo 97.º-A, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), subsidiariamente aplicável.
A taxa de arbitragem, devida pela constituição do tribunal arbitral, a fixar na decisão arbitral, é definida nos termos do “Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária”, para que remete o n.º 1 do artigo 12.º, do RJAT.
De acordo com a alínea a) do artigo 6.º, do citado “Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária”, são de aplicação subsidiária “As normas relativas ao valor da causa constantes do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Constam tais normas do artigo 97.º-A, do CPPT, no qual se dispõe, designadamente, que:
“Artigo 97.º-A - Valor da causa
1 - Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes:
a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende;
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) (…)
2 - (Revogado);
3 – (…).”
Face à redação da alínea a) do n.º 1 daquele artigo 97.º-A, do CPPT, há que saber se o valor atendível para efeitos de custas é o valor da liquidação cuja anulação se pretende, ou se é o valor do imposto a anular, caso de tal anulação resulte reembolso superior ao apurado na liquidação impugnada, como é o caso dos autos.
Embora a liquidação, em sentido estrito, se possa identificar com o ato tributário, enquanto ato final de um procedimento através do qual a Administração Fiscal define o direito do credor e/ou a obrigação do devedor da prestação tributária e cujo resultado pode ser o reembolso do excesso do imposto pago por conta (v.g., através de retenções na fonte), em sentido lato, a liquidação engloba as operações de determinação da matéria coletável à qual vai ser aplicada a taxa e apurado o imposto a pagar ou a reembolsar.
Deste modo, nem sempre o resultado da liquidação coincide com o valor do imposto devido a final e, sempre que tal resultado determine um reembolso inferior ao devido, não há como não considerar que o valor cuja anulação se pretende seja o do imposto liquidado em excesso e não o do reembolso resultante dessa liquidação, de montante inferior ao legalmente devido.
Falece, portanto, razão à Requerida, no que ao valor do processo respeita, pois a determinação de um reembolso de montante superior ao inicialmente apurado, sempre resultará da anulação do imposto pago em excesso.
Mantém-se, por isso, o valor do processo indicado no pedido de pronúncia arbitral.
2. Da ilegalidade da liquidação impugnada
Tal como decorre do Pedido de Pronúncia Arbitral, da Resposta da Requerida e da decisão da reclamação graciosa junta ao processo administrativo, a divergência entre as Partes reside no procedimento a adotar na determinação do quantitativo dos rendimentos líquidos sujeitos a imposto, tendo em consideração o estatuto de ex-residente do Requerente, de acordo com o artigo 12.º-A, do Código do IRS, e as regras de determinação dos rendimentos tributáveis da categoria B, segundo o regime simplificado de tributação, estabelecidas pelo artigo 31.º, do mesmo Código.
O artigo 12.º-A, do Código do IRS, foi aditado pelo artigo 258.º, da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2019, com a seguinte redação:
“Artigo 12.º - A Regime fiscal aplicável a ex-residentes
1 - São excluídos de tributação 50 % dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais dos sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 16.º em 2019 ou 2020:
a) Não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores;
b) Tenham sido residentes em território português antes de 31 de dezembro de 2015;
c) Tenham a sua situação tributária regularizada.
2 - Não podem beneficiar do disposto no presente artigo os sujeitos passivos que tenham solicitado a sua inscrição como residente não habitual.”
Trata-se de uma norma que, embora inserida no Código do IRS, consubstancia um benefício fiscal automático e temporário, enquanto medida de caráter excecional instituída tendo em vista incentivar o regresso “daqueles que tiveram de sair do país em consequência da crise económica que afetou Portugal”, enquadrada no Programa Regressar (de acordo com as “Medidas Fiscais de Apoio às Famílias” incluídas no Relatório do Orçamento do Estado para 2019 – pág. 42), interesse público extrafiscal, cuja proteção o legislador considerou superior ao da própria tributação que impede.
Consagrando uma medida de caráter excecional, também aquela norma do artigo 12.º-A, do Código do IRS, é, ela própria, excecional, na medida em que contraria os efeitos decorrentes das normas de incidência, exonerando os respetivos beneficiários do pagamento de IRS sobre “50% dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais”, nas condições ali definidas.
Não dispondo o Requerente de contabilidade organizada, a determinação dos seus rendimentos profissionais é feita com base nas regras decorrentes do regime simplificado (artigo 28.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS), constantes do artigo 31.º, do Código do IRS, no qual se prevê o processo de determinação dos rendimentos líquidos da categoria B, em concretização do princípio da tributação do rendimento líquido objetivo, índice da verdadeira capacidade contributiva .
Assim é que, exercendo o Requerente uma atividade profissional especificamente prevista na Tabela a que se refere o artigo 151.º, do Código do IRS, o seu rendimento tributável da categoria B resulta da aplicação (parcialmente condicionada) do coeficiente de 0,75, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º, do Código do IRS, à parte do rendimento bruto não excluída de tributação pelo artigo 12.º-A, do mesmo Código, no que ambas as Partes estão de acordo.
Porém, a aplicação do coeficiente de 0,75 a 50% dos rendimentos auferidos pelo Requerente no ano de 2019, encontra-se parcialmente condicionada à verificação dos encargos previstos nas alíneas do n.º 13 do artigo 31.º, do Código do IRS, aditado pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, acrescendo ao rendimento decorrente da aplicação do referido coeficiente a diferença positiva entre a totalidade dos encargos dedutíveis e 15% dos rendimentos brutos das prestações de serviços a que se referem as alíneas b) e c) do n.º 1 do mesmo artigo.
É, pois, na verificação das condições de aplicação do coeficiente de 0,75 aos rendimentos tributáveis, que reside a discordância entre a Requerida e o Requerente.
Entende a AT que a expressão “rendimentos brutos” a que se refere o n.º 13 do artigo 31.º, do Código do IRS, se reporta à totalidade dos rendimentos profissionais auferidos pelo Requerente; considera este que a mesma expressão se refere apenas aos rendimentos não excluídos de tributação, por força da isenção prevista no artigo 12.º-A, do Código do IRS.
Ora, se, como já se referiu, as normas que consagram benefícios fiscais contrariam os efeitos decorrentes das normas de incidência, constituindo requisito negativo da tributação, os rendimentos brutos sobre os quais incide a percentagem de 15%, para determinação do acréscimo ao rendimento tributável já apurado, não podem ser senão os rendimentos brutos sujeitos a imposto e dele não isentos.
A não ser assim, sempre uma parcela da metade dos rendimentos isentos nos termos do artigo 12.º-A, do Código do IRS, ficaria sujeita a tributação, por via do acréscimo apurado nos termos do n.º 13 do artigo 31.º, deste Código, frustrando a intenção do legislador e o direito do Requerente ao benefício fiscal.
Pelos motivos expostos, procede, nesta parte, a pretensão do Requerente, devendo considerar-se como “rendimentos brutos”, para efeitos de aplicação da percentagem referida no n.º 13 do artigo 31.º, do Código do IRS, apenas 50% dos auferidos no ano a que respeita o imposto, posto que a parte restante se encontra isenta, não contribuindo para a determinação do rendimento coletável.
Determinado o primeiro termo de comparação, ou seja, a parcela do rendimento bruto sobre que deverá incidir a percentagem de 15% a que se refere o n.º 13 do artigo 31.º, do Código do IRS, haverá agora que apurar o segundo termo dessa comparação, a fim de aferir da quantificação do acréscimo dela resultante.
De entre os encargos a que se refere o n.º 13 do artigo 31.º, do Código do IRS, na redação aplicável, interessam à situação dos autos os previstos nas suas alíneas a) e e):
“Artigo 31.º - Regime simplificado
(…)
13 - A dedução ao rendimento que decorre da aplicação dos coeficientes previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 está parcialmente condicionada à verificação de despesas e encargos efetivamente suportados, acrescendo ao rendimento tributável apurado nos termos dos números anteriores a diferença positiva entre 15 % dos rendimentos brutos das prestações de serviços previstas naquelas alíneas e o somatório das seguintes importâncias:
a) Montante de dedução específica previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 25.º ou, quando superior, os montantes comprovadamente suportados com contribuições obrigatórias para regimes de proteção social, conexas com as atividades em causa, que não sejam dedutíveis nos termos do n.º 2;
(…)
e) Outras despesas com a aquisição de bens e prestações de serviços relacionadas com a atividade, que constem de faturas comunicadas à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos do Decreto-Lei n.º 198/2012, de 24 de agosto, ou emitidas no Portal das Finanças, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 115.º, designadamente despesas com materiais de consumo corrente, eletricidade, água, transportes e comunicações, rendas, contencioso, seguros, rendas de locação financeira, quotizações para ordens e outras organizações representativas de categorias profissionais respeitantes ao sujeito passivo, deslocações, viagens e estadas do sujeito passivo e dos seus empregados;
(…).”
A alínea a) do n.º 13 do citado artigo 31.º, do Código do IRS, contém uma remissão expressa para a alínea a) do n.º 1 do artigo 25.º, do mesmo Código, considerando encargo dedutível aos rendimentos da categoria B o mesmo valor da dedução específica ali prevista para os rendimentos da categoria A – trabalho dependente, que, no ano de 2019, foi de € 4 104,00.
Também, à semelhança do que se determina no n.º 2 do artigo 25.º, do Código do IRS, se prevê na alínea a) do n.º 13 do artigo 31.º, que, são dedutíveis “os montantes comprovadamente suportados com contribuições obrigatórias para regimes de proteção social, conexas com as atividades em causa”, se de valor superior a € 4 104,00.
Por sua vez, a alínea e) do mesmo n.º 13 do artigo 31.º, do Código do IRS, faz expressamente menção à dedutibilidade das despesas incorridas com “quotizações para ordens e outras organizações representativas de categorias profissionais respeitantes ao sujeito passivo”, como é o caso das quotizações pagas pelo Requerente à Ordem dos Advogados, que se não podem confundir com as quotizações para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, essas sim, com a natureza de “contribuições obrigatórias para regimes de proteção social”.
Assim, o segundo termo de comparação é, no caso concreto dos autos, constituído pelo somatório dos encargos enunciados nas alíneas a) e e) do n.º 13 do artigo 31.º, do Código do IRS, acrescendo ao rendimento tributável apurado nos termos dos números anteriores do mesmo artigo, a diferença positiva entre aquele somatório e 15% dos rendimentos sujeitos a tributação.
Termos em que procede integralmente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IRS impugnada, por erro nos pressupostos de direito, decorrente da incorreta interpretação e aplicação das normas dos artigos 12.º-A e 31.º, do Código do IRS.
Consequentemente, justifica-se a sua anulação, bem como a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a teve por objeto, assim como a sua substituição por uma nova liquidação, em que seja corretamente apurado o imposto devido a final e o montante do imposto a reembolsar.
3. Do pedido de juros indemnizatórios
O processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte), da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), devendo entender-se incluídos na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os poderes que, na impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, como é o de apreciar o erro imputável aos serviços.
Por outro lado, face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, fica a AT vinculada a, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”.
De igual modo, o n.º 1 do artigo 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, estabelece que “1 - A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.
O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º da LGT, de acordo com cujo n.º 3, alínea a), estes são devidos “Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos”.
Revertendo para o caso dos autos, verifica-se que a ilegalidade da liquidação de IRS do ano de 2019, que constitui seu objeto mediato, deriva de erro nos pressupostos de direito, imputável exclusivamente à AT, do qual resultou apuramento de imposto superior ao devido e, consequentemente, reembolso inferior àquele a que o Requerente tem direito.
Há, assim, que reconhecer o direito do Requerente ao pagamento de juros indemnizatórios sobre o valor do imposto a reembolsar, desde a data em que aquele valor deveria ter sido restituído até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral:
a. Declarar a ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2019, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a manteve na ordem jurídica;
b. Condenar a AT na emissão de nova liquidação em que se apure o reembolso legalmente devido;
c. Reconhecer o direito do Requerente a juros indemnizatórios sobre o montante do imposto a reembolsar, calculados desde a data em que o reembolso deveria ter sido emitido, até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1 567,61 (mil, quinhentos e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 306,00 (trezentos e seis euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se.
Lisboa, 22 de outubro de 2021.
O Árbitro,
/Mariana Vargas/
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.