Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 49/2021-T
Data da decisão: 2021-10-11  IRS  
Valor do pedido: € 108.579,27
Tema: IRS – Avaliação indireta – Art. 89.º da LGT. Incompetência Material.
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Sumário:

1.            A liquidação de IRS resultante de uma correção por métodos indiretos à matéria coletável, ao abrigo da disciplina prevista no artigo 89.º-A da LGT, está excluída do âmbito (de competência) da jurisdição arbitral, nos termos do disposto nos artigos 4.º, n.º 1 do RJAT e 2.º, alínea b) da Portaria de Vinculação, exceto por ilegalidades autónomas do ato de liquidação que não respeitem à matéria coletável determinada.

2.            A determinação do valor da causa no processo arbitral tributário, quando seja impugnado um ato de liquidação, rege-se pelo valor da liquidação que se pretende anulada, considerado pelo legislador como equivalente ao parâmetro da utilidade económica do pedido, nos termos do disposto no artigo 97.º, n.º 1 do CPPT, por remissão expressa do artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral constituído em 21 de maio de 2021, Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Manuel Lopes da Silva Faustino e Rui Miguel Zeferino Ferreira (co-árbitros), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., adiante “Requerente”, de nacionalidade portuguesa, contribuinte número ..., residente na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Nadadouro, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente.

 

O Requerente pretende a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) referente ao ano 2016, emitida sob o n.º 2020..., e das inerentes liquidações de juros compensatórios n.ºs 2020... e 2020..., todas na importância global de € 219.043,50 (€ 202.588,78 de IRS e € 16.454,72 de juros), resultando no valor a pagar de € 108.579,27.

 

Como fundamento da sua pretensão, o Requerente invoca, em síntese:

 

a)            Erro de quantificação no cômputo dos juros compensatórios, por considerar que estes não podem ser calculados por período superior a 90 dias em caso de falta apurada em ação de fiscalização, com a consequente anulação, por esta razão, do valor de € 14.435,31 que entende haver sido calculado em excesso;

b)           Ilegalidade derivada da desconsideração, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”), da declaração de substituição modelo 3 apresentada em 2019 (em relação aos rendimentos de 2016), porquanto:

i)             Essa declaração contempla o rendimento de dividendos no valor de € 374.309,00, devendo os acréscimos patrimoniais do Requerente ser considerados justificados;

ii)            Tal declaração consubstancia um elemento de facto com influência na relação controvertida, a ter em conta até ao momento do encerramento da discussão, nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil (atual artigo 611.º),

com o consequente afastamento da taxa de 60% a que se refere o artigo 72.º, n.º 11 do Código do IRS (em vigor à data dos factos, atual n.º 16) e aplicação da taxa de 28%, conforme previsto no artigo 72.º, n.º 1, alínea d) do mesmo Código, e a anulação dos juros compensatórios.

 

É demandada a AT, doravante também designada por “Requerida”.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 22 de janeiro de 2021 e, de seguida, notificado à AT.

 

Com a aprovação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, foram suspensos os prazos procedimentais e processuais, no âmbito das medidas da pandemia Covid 19. Esta suspensão cessou com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, prosseguindo a tramitação processual a partir de 6 de abril de 2021.

 

Nos termos do disposto do artigo 5.º, n.º 3, do artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo.

 

Em 3 de maio de 2021, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 21 de maio de 2021.

 

Em 16 de junho de 2021, a Requerida juntou a Resposta, na qual começa por suscitar a questão prévia do valor da causa, que, em seu entender, deve corresponder ao valor dos atos de liquidação impugnados, de € 219.043,50, por corresponder à utilidade económica do pedido, e não o indicado pelo Requerente, de € 108.579,27.

 

De seguida, apresenta defesa por exceção, arguindo:

 

a)            A intempestividade da ação, por ter sido ultrapassado o prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o disposto no artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), atendendo a que o termo do prazo para pagamento do imposto e juros liquidados foi fixado em 21 de outubro de 2020 e que o pedido arbitral deu entrada em 21 de janeiro de 2021;

b)           A incompetência (absoluta) em razão da matéria, por estarmos perante correções por métodos indiretos (artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária – “LGT”), com fundamento na não verificação dos pressupostos de aplicação desse método de avaliação . De acordo com o disposto no artigo 2.º do RJAT e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, ex vi artigo 4.º do RJAT, a AT não se encontra vinculada à jurisdição arbitral relativamente a atos (como os que estão em discussão na presente ação) de determinação da matéria coletável por métodos indiretos (artigos 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 1 e n.º 2, e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT). Considera que a adoção de entendimento distinto seria inconstitucional por violação do artigo 212.º, n.º 3 da Constituição e do princípio do livre acesso aos tribunais, na vertente do direito ao duplo grau de jurisdição;

c)            O caso julgado material, uma vez que a matéria de facto e de direito sob apreciação na presente ação arbitral, sob pretensão de junção de nova prova, é exatamente aquela que foi objeto do processo jurisdicional que correu termos nos Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, com decisão de improcedência confirmada pelo Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”), sendo insuscetível de reapreciação por este Tribunal ou por qualquer outro Tribunal superior (artigo 577.º, alínea i) do CPC); e

d)           A impropriedade do meio processual, dado que a avaliação da matéria coletável por métodos indiretos assume a natureza de ato destacável e as ilegalidades de tais atos só podem ser arguidas no seu próprio processo impugnatório (o recurso do artigo 146.º-B do CPPT), que constitui uma exceção dilatória inominada.

               

                A Requerida conclui, neste âmbito, que estamos perante exceções dilatórias de conhecimento oficioso que conduzem à absolvição da instância (artigos 576.º, n.º 2 e 578.º do CPC). 

 

 A título subsidiário, defende-se por impugnação, alicerçada no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) e na decisão do TCAS. Alega que o Requerente não pode evitar a avaliação por métodos indiretos mediante a apresentação de declaração de substituição invocando uma justificação julgada “improcedente pela AT e pelo tribunal e que assim sendo, verdadeiramente não constitui qualquer facto superveniente. Tão pouco lhe pode ser creditada a presunção de veracidade uma vez que não cumpriu os deveres de esclarecimento da sua situação tributária (art.º 75º/2-b) LGT).”

 

Acrescenta que o Requerente não pode pretender que os montantes recebidos sejam tributados como rendimentos de capitais (dividendos - Categoria E) se os mesmos não se enquadram na norma da incidência como tal. Por outro lado, as entradas de dinheiro precederam (a data da) a invocada distribuição de dividendos. 

 

No tocante à alegada contagem dos juros compensatórios pelo período máximo de 90 dias, a Requerida considera que não tem qualquer suporte legal, conforme se retira da leitura do artigo 35.º da LGT, em particular do seu n.º 7.

 

Conclui pela procedência das exceções e, caso assim não se entenda, pela improcedência da ação, por não provada. Em relação à prova por declarações de Parte pronuncia-se no sentido de a mesma não ser admitida por ser despicienda e estar apenas em causa prova documental. Juntou o processo administrativo (“PA”).

Notificada para se pronunciar sobre o valor da causa e sobre a matéria de exceção, o Requerente manifestou, por requerimento de 7 de julho de 2021, a sua discordância em relação à posição da Requerida. Em relação à intempestividade acrescenta que a demonstração de acerto de contas que lhe foi notificada menciona duas datas distintas como “Data Limite de Pagamento”, sendo uma delas 23 de outubro de 2020, pelo que deve ser esta a prevalecer e não a de 21 de outubro de 2020. Sobre a incompetência ratione materiae, alega que não pretende nos presentes autos discutir a fixação da matéria coletável, única questão sobre a qual se fez caso julgado e que aceita. Porém, “neste caso estamos perante um ato autónomo e posterior àquele(s) apreciado(s) judicialmente”, radicando a causa de pedir no facto de a liquidação emitida pela AT ter ocorrido posteriormente à entrega pelo Requerente de uma declaração de substituição (que inclui o valor integral da matéria coletável determinada por métodos indiretos) e que pretende seja considerada, com a consequente tributação dos rendimentos como rendimentos de capitais (categoria E).

 

O Tribunal dirigiu ao Requerente convite ao aperfeiçoamento para indicação dos factos em relação aos quais pretende produzir prova por declarações de parte, o que se verificou por requerimento de 19 de julho de 2021, e determinou a notificação daquela para proceder à junção de cópia legível do documento de demonstração de acerto de contas, tendo este esclarecido, por requerimento junto em 2 de setembro, que “apenas dispõe da cópia já junta ao pedido de pronúncia arbitral como Doc.1.”

 

Em 6 de outubro de 2021, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações, por desnecessidade, afigurando-se ser manifestamente procedente a matéria de exceção suscitada pela Requerida, e indicou o dia 25 de outubro de 2021 como data previsível para prolação da decisão arbitral, devendo o Requerente, até essa data, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”) e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD.

 

II.            QUESTÕES PRÉVIAS E PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

A Requerida suscita a verificação do valor da causa que, segundo entende, deve corresponder ao valor das liquidações impugnadas e, bem assim, quatro exceções – de intempestividade, incompetência material, caso julgado e impropriedade ou inidoneidade do meio processual –, para cuja apreciação interessa atender à matéria de facto, seguidamente fixada, após o que tais questões serão decididas por este Tribunal. 

 

1.            FACTOS PROVADOS

 

Com relevo para a matéria de exceção, importa atender à seguinte factualidade, que se julga provada:

 

A.           Em 2016, A..., aqui Requerente, casado com B..., recebeu transferências monetárias nas importâncias de USD 695.055,43 e de € 403.511,24, provenientes da sociedade “C... LLC”, com sede no Estado norte americano de Delaware, da qual era titular do respetivo capital social, conjuntamente com a sua esposa – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) e PA.

B.            Em 11 de dezembro de 2017, o Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS nº (...), referente ao ano de 2016, tendo declarado rendimentos de trabalho dependente no Anexo A, no valor total de € 51.800,00 – cf. RIT e PA.

C.            Desta declaração de IRS resultou a liquidação n.º 2017..., de 15 de dezembro de 2017, com um valor de imposto a reembolsar de € 2.981,73 – cf. RIT e PA.

D.           Em 18 de outubro de 2018, foi iniciado um procedimento inspetivo externo ao Requerente, tendo por objeto o IRS dos anos 2015 a 2017 (estando em causa na presente ação apenas o período de tributação de 2016), ao abrigo das Ordens de Serviço OI2018.../... /.... Este procedimento terminou em 3 de junho de 2019 – cf. RIT e PA.

E.            No projeto de relatório resultante da ação inspetiva, a AT concluiu por um acréscimo patrimonial injustificado de € 1.015.893,00 proveniente das transferências da sociedade C... LLC, que, deduzido do rendimento coletável apurado na declaração modelo 3 de IRS, de € 46.102,00, resultou na fixação de rendimentos da categoria G, de € 969.791,00, com fundamento nos artigos 87.º, n.º 1, alínea f) e 89.º-A, n.ºs 3 e 5 da LGT e no artigo 9.º, n.º 1, alínea d) do Código do IRS – cf. RIT e PA.

F.            Na sequência do exercício de direito de audição do Requerente, a AT considerou ter sido feita prova parcial do enquadramento do valor referido no ponto anterior a título de suprimentos, permanecendo, contudo, por justificar o valor remanescente de € 374.309,00, cuja qualificação como dividendos  (categoria E) não foi aceite pela AT – cf. RIT e PA. 

G.           A AT deduziu ao mencionado valor de € 374.309,00 direitos de crédito de € 5.335,47 e o rendimento coletável apurado na declaração modelo 3 de IRS do Requerente, de € 46.102,00, fixando os rendimentos da categoria G do Requerente em € 322.871,54, por acréscimo patrimonial injustificado, a que corresponde IRS na importância de € 193.722,92, por aplicação da taxa de 60% – cf. RIT e PA.  

H.           O Requerente carreou para os presentes autos um documento intitulado demonstrações financeiras (“Financial Statements”), relativo ao ano terminado a 31 de dezembro de 2016, que contém na demonstração de resultados (“Profit and Loss”) uma referência a dividendos a pagar (“Dividends Payable”) no montante de € 374.309,00 – cf. Documento 6 junto pelo Requerente.

I.             O RIT foi notificado ao Requerente por Ofício de 17 de junho de 2019, com as conclusões enunciadas nos pontos F e G supra – cf. Documento 2 junto pelo Requerente.

J.             Inconformado, o Requerente apresentou, em 28 de junho de 2019, uma declaração de substituição modelo 3 de IRS (n.º 2016...) em que, no anexo E, inscreveu rendimentos de € 374.309,00, como rendimentos de capitais – cf. Documento 6 junto pelo Requerente.

K.            O Requerente apresentou também recurso jurisdicional da fixação do rendimento coletável, ao abrigo do artigo 89.º-A, n.ºs 7 e 8 da LGT, em conjugação com o disposto no artigo 146.º-B, n.º 5 do CPPT, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, com sentença de improcedência, confirmada por acórdão do TCAS, de 5 de março de 2020, sob o n.º .../19...BELRA (disponível online em www.dgsi.pt), de que se transcreve parcialmente a seguinte fundamentação:

“A decisão [de primeira instância] está correta, bem fundamentada e a nosso ver não poderia ser outra. O documento em que o Recorrente se baseia para fundamentar o recebimento de dividendos foi junto a fls. 29 dos autos e dele consta para o ano terminado a 31 de dezembro de 2016 (Profit and loss for the year ended 31 December 2016) a quantia relativa a “Dividends Payable” no montante de € 374.309,00.

Ora, mesmo admitindo a autenticidade de tal documento, quando nele se refere “Dividends payable” - dividendos a pagar - não é o mesmo que dizer “Dividends Paid” - dividendos pagos. Ou, dizendo de outra maneira, se em 31 de dezembro de 2016 o documento refere a existência de “dividendos a pagar” é razoável supor que nessa data ainda não tinham sido pagos.

Contudo, a transferência para o Contribuinte de € 1.021.228,47 (resultante da conversão à taxa de câmbio aproximada de 1,123 à verba de USD 715.222,48) ocorreu no dia 14 de abril de 2016. Daí que como muito bem se diz no RIT (fls. 12 verso da douta sentença) em descrédito do documento, a entrada de dinheiro não justificado na conta bancária do sujeito passivo precede a distribuição de dividendos.

Sendo isto verdade, mesmo considerando todas as diferenças de relato de contas entre os EUA e a Europa, não há como considerar justificada a título de dividendos uma quantia que foi creditada na conta do Recorrente antes da sua distribuição.

Por conseguinte, a prova de que era outra a fonte do acréscimo patrimonial não foi cumprida satisfatoriamente pelo Recorrente. A sentença decidiu bem, não merecendo qualquer censura nesta parte.

A outra questão está ligada à declaração de substituição entregue pelo Recorrente em junho de 2019, após a conclusão da ação de inspeção, declarando um rendimento adicional de dividendos no valor de € 374.309,00.

Defende que por força desta declaração está verificada a hipótese da sub alínea III da alínea b) do n.º 3 do art.º 59º do CPPT e louvando-se na doutrina do ac. do STA processo n.º 390/07 de 06/06/2007 considera que os pressupostos da aplicação dos métodos indiretos devem ser analisados à luz da nova declaração que se presume verdadeira, representando uma correção de que resulta, nos termos da lei, “imposto superior ao liquidado” em relação à primeira liquidação. E como tal, deverá concluir-se pela não verificação dos pressupostos do art.º 89º-A da LGT para recurso à determinação do rendimento tributável com base em métodos indiretos.

A MM.ª juiz refletiu sobre a questão e negou-lhe procedência pois o facto de a Recorrente «...ter apresentado declaração de rendimentos de substituição – modelo 3 de IRS referente ao ano de 2016, não acarreta que, ainda que supervenientemente, tenha de ser levada em conta e beneficie da presunção de veracidade, porquanto, como acima se disse, o caso em apreço encaixa-se numa das causas tipificadas de cessação da presunção de veracidade, incumbido ao recorrente o ónus de demonstrar que o referido valor provinha de distribuição de dividendos da já indicada sociedade, prova que não logrou realizar.

Dado que da alegação produzida e o documento junto, no âmbito dos presentes autos, nos termos exarados na fundamentação da decisão de facto, não resultam infirmados os factos e valores atendidos quanto ao ano de 2016 pela administração tributária, impõem-se julgar o presente recurso totalmente improcedente, mantendo-se a decisão de fixação da matéria colectável aqui sindicada.»

Esta fundamentação também nos parece acertada, mas impõem-se algumas considerações adicionais.

Com efeito, a lei faculta ao contribuinte a possibilidade de apresentar declaração de substituição (art. 58º-A/3 CIRS) nos termos e condições previstas no art. 59º CPPT. Em especial, no que para o caso releva, a sub alínea III) da alínea b) do n.º 3 do art.º 59 CPPT permite a apresentação de declaração de substituição até sessenta dias antes do termo do prazo de caducidade, para a correção de erros imputáveis aos sujeito passivos de que resulte imposto superior ao anteriormente liquidado.

Resultando da declaração de substituição imposto superior ao anteriormente liquidado e considerando que o prazo de caducidade do direito à liquidação expiraria em 31/12/2020, estariam reunidos os requisitos formais para a apresentação de tal declaração e consequente apreciação pela AT e pelo tribunal, em conformidade com a doutrina do acórdão do STA n.º 0390/07, de 06-06-2007, referido pelo Recorrente em cujo sumário se lê que «A declaração de substituição de maior rendimento colectável em IRS, apresentada, antes da prolação da sentença, em recurso interposto pelo contribuinte ao abrigo do artigo 146.°- B do Código de Procedimento e de Processo Tributário, com vista à não verificação dos pressupostos do artigo 89.°-A da Lei Geral Tributária (“manifestações de fortuna”), configura-se como um facto jurídico superveniente, a levar em consideração na respectiva sentença, nos termos do artigo 663. ° do Código de Processo Civil.»

Mas não esqueçamos que a declaração de substituição retoma uma “justificação” considerada improcedente pela AT e pelo tribunal e que assim sendo, verdadeiramente, não configura qualquer facto jurídico superveniente de acordo com a noção que se colhe do art.º 611º do CPC.

Ou seja, depois de não ter conseguido justificar a quantia de € 374.309,00, não pode evitar a avaliação por métodos indiretos mediante a apresentação de declaração de substituição invocando uma justificação - distribuição de dividendos- considerada improcedente e que não constitui qualquer facto superveniente.

Tão pouco lhe pode ser creditada a presunção de veracidade uma vez que não cumpriu os deveres de esclarecimento da sua situação tributária (art.º 75º/2-b) LGT).

Concluímos assim, estar demonstrado o acréscimo de valor superior a (euro) 100 000, verificados simultaneamente com a existência, no mesmo período de tributação, de uma divergência não justificada com os rendimentos declarados (art.º 87º/1-f) LGT) razão pela qual a AT estava legitimada a efetuar a avaliação indireta da matéria coletável.

Cabia então ao sujeito passivo a comprovação de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte do acréscimo de património (art.º 89-A/3 LGT), o que não conseguiu.

E assim sendo, o respetivo acréscimo constituirá rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G (art.º 89-A/5-a) LGT ex vi do art. 87º/2 LGT, com o que improcedem todas as conclusões de recurso.

[…]”.

L.            Na sequência do procedimento inspetivo ao ano 2016, foram emitidas as liquidações de IRS e correspondentes juros compensatórios, referentes a esse período de tributação, sob os n.ºs 2020 ... (IRS), 2020 ... e 2020 ... (estas últimas de juros), no valor global de € 219.043,50 (sendo € 202.588,78 de IRS e € 16.454,72 de juros), resultando no valor a pagar de € 108.579,27 mencionado na demonstração de acerto de contas – cf. documento 1 junto pelo Requerente.

M.          A cópia da demonstração de acerto de contas junta pelo Requerente contém três menções à “Data Limite de Pagamento” do valor a pagar de € 108.579,27. Duas das menções são nítidas e referem 2020-10-21. A outra referência, apesar de menos nítida, também aparenta representar a data de 2020-10-21 – Documento 1 (2.ª parte) junto pelo Requerente:

 

N.           Em discordância com os atos tributários de liquidação de IRS e juros compensatórios referentes ao período de 2016, acima identificados, o Requerente apresentou no CAAD, em 21 de janeiro de 2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do ppa no SGP do CAAD.

 

2.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos, tendo em conta as posições assumidas pelas Partes.

 

                3.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não se provou que as liquidações de IRS e de juros compensatórios tivessem como data limite de pagamento o dia 23 de outubro de 2020 (facto alegado no artigo 3.º do ppa). Pelo contrário, ficou demonstrado que o documento de acerto de contas tem aposta como data limite de pagamento “2020-10-21”. De salientar que o Requerente, solicitado pelo Tribunal para apresentar uma cópia mais legível do documento em causa, não o fez, dizendo que apenas dispunha daquela cópia. Isto, apesar de se tratar de um documento cujo original é remetido pela AT ao contribuinte, não existindo qualquer evidência de ter sido solicitada pelo Requerente uma certidão do documento em causa ou uma segunda via deste.

 

Também não se provou que em 2016 tivessem sido transferidos para o Requerente € 374.309,00 a título de dividendos (artigos 23.º, 33.º, 38.º, 61.º, 62.º 75.º do ppa).

 

Com relevo para a decisão, não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

4.            DA INCOMPETÊNCIA MATERIAL

 

A liquidação de IRS controvertida resultou de uma correção por métodos indiretos à matéria coletável do Requerente, ao abrigo da disciplina prevista no artigo 89.º-A da LGT.

 

Neste âmbito, a Requerida suscitou a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria, por considerar que as pretensões relativas a atos tributários que provenham da fixação da matéria tributável por métodos indiretos de avaliação estão excluídas da jurisdição arbitral, de acordo com o disposto no artigo 4.º, n.º 1 do RJAT e no artigo 2.º, alínea b) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, adiante “Portaria de Vinculação”.

 

Estabelecem os preceitos citados que a vinculação da AT à jurisdição arbitral depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que veio excecionar essa vinculação no que se refere às “[p]retensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão”.

 

Como refere a decisão arbitral n.º 76/2012-T, de 29 de outubro de 2012, é pacífico que o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, como expresso no artigo 18.º, n.º 1 da Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro) que, na ausência de regulação pelo RJAT, é aplicável por analogia .

 

                A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, a qual é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que importa, antes de mais, proceder à respetiva apreciação, com precedência sobre os demais pressupostos processuais (v. artigos 16.º do CPPT, 13.º do CPTA e 96.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e) do RJAT).

 

Derivando os atos tributários em análise da aplicação de métodos indiretos de avaliação, é de entender, em sintonia com a posição da Requerida, que está vedado à jurisdição arbitral conhecer dos mesmos. Neste sentido, como escreve JORGE LOPES DE SOUSA, “a Administração Tributária afastou essa possibilidade ao excluir expressamente da sua vinculação àqueles tribunais as «pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão» [alínea b) do artigo 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março]” (v. Guia da Arbitragem Tributária, Coord.: Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina,  pp.138-139).

Neste contexto, afirma a decisão arbitral n.º 76/2012-T, de 29 de outubro de 2012, que “nem foi o legislador que excluiu a determinação da matéria colectável por métodos indirectos do âmbito da jurisdição arbitral, mas sim a própria Administração, através de Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois esta não é um acto legislativo, mas sim de um acto de natureza regulamentar, praticado por membros do Governo ao abrigo da sua competência administrativa, no caso a prevista na alínea c) do art. 199.º da CRP, e não da competência legislativa, indicada no artigo anterior.”

 

E, nos moldes assinalados pela decisão arbitral n.º 15/2021-T, de 24 de setembro, a jurisprudência arbitral maioritária, que se acompanha, considera que esta exclusão abrange os atos tributários de liquidação (citando, entre outras, as decisões arbitrais n.ºs 17/2012-T, de 14 de maio de 2012; 52/2012-T, de 22 de outubro de 2012; 70/2012-T, de 31 de outubro de 2012; 175/2013-T, de 16 de janeiro de 2013; 310/2014-T, de 26 de novembro de 2014; 324/2016-T, de 27 de fevereiro de 2017; 359/2017-T, de 17 de dezembro de 2017; 544/2018-T, de 7 de julho de 2019 e 112/2020, de 20 de janeiro de 2021).

 

                Apesar de o Requerente afirmar que não pretende nos presentes autos discutir a fixação da matéria coletável, convém notar que, na situação vertente, as ilegalidades por este invocadas em relação ao ato de liquidação de IRS respeitam à matéria coletável determinada, que o Requerente propugna inexistir, por se encontrar justificada.

 

                Nestas circunstâncias, permitir a impugnação arbitral de atos de liquidação sequentes à aplicação de métodos indiretos equivale a sindicar a decisão de determinação da matéria coletável por avaliação indireta, que está, de forma expressa, excluída pela Portaria de Vinculação.

 

Termos em que se conclui pela falta de vinculação da AT a este Tribunal Arbitral, do que deriva a impossibilidade da eficácia subjetiva do julgado, caso viesse a ser proferida uma decisão por este tribunal nas matérias excluídas, consubstanciando falta de jurisdição (delimitada em função da matéria) geradora da incompetência absoluta deste tribunal arbitral (v. artigos 2.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1 do RJAT conjugados com a alínea b) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação) .

 

                5.            SOBRE O VALOR DA CAUSA

 

                Segundo o disposto no artigo 306.º do CPC, é ao Tribunal que cabe fixar o valor da causa , sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as Partes.

 

                Sobre esta matéria, o Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária prevê, de forma expressa, no seu artigo 3.º, n.º 2 que o “valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, dispondo, por seu turno, este último preceito, com relevância para a questão em análise, que:

 

“Artigo 97.º-A

Valor da causa

1 - Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes:

a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende;

b) Quando se impugne o ato de fixação da matéria coletável, o valor contestado;

c) Quando se impugne o ato de fixação dos valores patrimoniais, o valor contestado;

[…]”.

 

                Na situação vertente, o pedido do Requerente dirige-se à anulação (integral) dos atos de liquidação adicional de IRS e de juros compensatórios, devendo reger-se, portanto, pelo critério da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, i.e., pelo valor da liquidação que se pretende anulada, considerada, assim, pelo legislador como equivalente ao parâmetro da utilidade económica do pedido  na ação impugnatória.

                Ficou demonstrado nos autos que os atos de liquidação de IRS e inerentes juros ascendem à importância total € 219.043,50, distinta daquela indicada pelo Requerente como valor da ação, de € 108.579,27.

 

                Na sequência da impugnação do valor da causa pela Requerida, veio o Requerente invocar que a utilidade económica do pedido não é a das liquidações cuja anulação pretende, mas a da importância a pagar evidenciada na demonstração de acerto de contas.

 

                Porém, não lhe assiste razão.

 

                Com efeito, o montante a pagar resultante da demonstração de acerto de contas não constitui o critério legal escolhido para aferir o valor da causa e está influenciado por diversas

operações de compensação financeira, nomeadamente com créditos/imposto a reembolsar e estornos, que são alheias aos atos de liquidação e ao seu efetivo impacto económico.

 

                Acresce que, in casu, o imposto resultante das correções (por acréscimo) ao rendimento coletável do Requerente representa € 193.722,92, importância que, mesmo sem contar com os juros compensatórios, está muito além dos € 108.579,27 que o Requerente considerou.

 

                À face do exposto, fixa-se o valor da causa no montante de € 219.043,50, havendo lugar ao pagamento pelo Requerente do valor remanescente da taxa de arbitragem em correspondência com o valor da causa fixado.

 

6.            QUESTÕES DE CONHECIMENTO PREJUDICADO

 

                Procedendo a exceção de incompetência material, fica prejudicada a apreciação das restantes questões prévias suscitadas pela Requerida, nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

              

                Em qualquer caso, sempre se dirá que, atendendo à data limite de pagamento dos atos tributários – 21 de outubro de 2010 –, à data de propositura da presente ação (data de entrada do requerimento inicial no sistema de gestão processual do CAAD), em 21 de janeiro de 2011, já se encontrava expirado o prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, em conjugação com o disposto no artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT.

 

                Interessa notar que os prazos para a propositura de ações são prazos substantivos, de caducidade, e integram a própria relação jurídica material controvertida. Visam determinar o período para o exercício de um direito e são perentórios, pois o seu decurso extingue o próprio direito.

 

                Deste modo, a contagem do prazo deve observar as regras do artigo 279.º do Código Civil, como de resto prevê expressamente artigo 20.º, n.º 1 do CPPT, no que se refere à impugnação judicial. A natureza arbitral deste tribunal não acarreta qualquer modificação relativa à natureza, modalidades e forma de contagem dos prazos, como se extrai da leitura do RJAT.  E, se dúvidas houvesse, dispõe o artigo 29.º, n.º 1 do RJAT a aplicação subsidiária das normas de natureza procedimental ou processual tributárias, das normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários, do Código do Procedimento Administrativo e do Código de Processo Civil.

 

Nestes termos, se não procedesse a exceção de incompetência, ter-se-ia de concluir pela intempestividade do pedido arbitral.

 

Por fim, afigura-se que também seria procedente a exceção de caso julgado, pois resulta dos factos provados que os mesmos fundamentos de facto e de direito alegados pelo Requerente nestes autos arbitrais haviam sido apreciados pelos Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal em ação por aquele intentada (v. acórdão do TCAS, de 5 de março de 2020, processo n.º 845/19.8BELRA) e aí julgados improcedentes.

 

EM SÍNTESE,

 

À face do exposto, conclui-se pela procedência da exceção de incompetência ratione materiae, que constitui uma exceção dilatória nos termos do disposto no artigo 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, alínea a) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.  As exceções dilatórias obstam a que o Tribunal conheça do mérito da causa e conduzem à absolvição da instância (v. artigos 576.º, n.º 2 e 608.º, n.º 1 do CPC, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

                III.          DECISÃO

 

Termos em que acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar procedente a exceção de incompetência material e absolver a Requerida da instância, com as legais consequências, nomeadamente em matéria de custas.

 

IV.          VALOR DO PROCESSO

 

                Fixa-se ao processo o valor de € 219.043,50, correspondente à liquidação de IRC e de juros compensatórios que o Requerente pretende anular, conforme ponto 4 da secção II supra – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do RCPAT.

 

V.           CUSTAS

 

                Custas no montante de € 4.284,00, a cargo do Requerente, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de outubro de 2021

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

Manuel Lopes da Silva Faustino

Rui Miguel Zeferino Ferreira