SUMÁRIO:
O disposto no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, estabelece um regime discriminatório e incompatível com o Direito Comunitário, por violação do artigo 63.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o qual é aplicável a residentes em Estados terceiros.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro, Dr. Martins Alfaro, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 21-05-2021, profere a seguinte Decisão Arbitral:
A - RELATÓRIO
A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT): A..., titular do NIF..., residente na ..., Bloco E, número ..., ..., ...-... Oeiras.
A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.
A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral: Liquidação de IRS n.º 2020..., datada de 14/08/2020, no valor de € 18 278,27, relativa ao ano de 2019.
A.4 - Pedido: A anulação parcial da liquidação n.º 2020..., por padecer de vício de violação de lei (art. 63.º do TFUE), no valor de € 9.097,27, bem como a anulação dos respectivos juros compensatórios, referentes ao IRS de 2019; A condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, contabilizados desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito.
A.5 - Fundamentação do pedido de pronúncia arbitral:
No ano de 2019, o Requerente não foi residente em território português, por residir, durante esse período, nos Estados Unidos da América.
No ano de 2019, o Requerente alienou a quota-parte que detinha da nua-propriedade de um imóvel sito em território português, tendo declarado a mais-valia apurada com a alienação, no valor de € 64.980,47.
Daqui resultou a pagar imposto (IRS), no valor de € 18.194,53 e juros compensatórios, no valor de € 83,74.
Na determinação do rendimento colectável, foi considerada a totalidade da mais-valia realizada e não apenas metade.
Conclui que a liquidação em causa se afigura ilícita, porquanto as mais-valias, no cálculo feito pela AT, não foram calculadas da mesma forma que seriam para os residentes fiscais em território português, à luz do disposto no art. 43.º do CIRS, o que consubstancia uma violação do disposto no artigo 63.º do TFUE, por se traduzir num regime fiscal discriminatório para com os residentes num Estado Terceiro, vício esse que inquina a referida liquidação, e que deverá determinar a correspondente anulação, na parte em que foi considerada a totalidade da mais-valia obtida pelo Requerente.
Tendo o Requerente procedido ao pagamento do imposto em causa, a Requerida deve ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios.
A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:
O Requerente alega ter vivido nos Estados Unidos da América (EUA) no ano em que ocorreu o facto tributário com relevância para o presente processo.
Os EUA constituem um Estado não pertencente à União Europeia ou, sequer, ao designado como “espaço económico europeu”.
Razão pela qual não é aplicável aos residentes naquele país que hajam obtido rendimentos em Portugal o regime opcional previsto nos actuais números 14 e 15 (em 2019, números 9 e 10) do art. 72º do CIRS.
Ademais, a norma estabelecida no n.º 2 do artigo 43.º, e cuja aplicação o Requerente defende, encontra-se no capítulo II do CIRS que tem como epígrafe "Determinação do rendimento colectável", ou seja, estamos perante a determinação do rendimento.
Assim, o disposto no n.º 2 do artigo 43° do CIRS não é aplicável ao caso aqui em análise.
Também o pedido de condenação em juros indemnizatórios terá que improceder por não se verificarem os pressupostos constantes do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
Conclui, assim, no sentido da improcedência do pedido arbitral.
A.7 - Instrução:
Não foram invocadas excepções nem arguidas nulidades.
O Tribunal entendeu ser de dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAMT.
O Tribunal teve por desnecessária a produção de alegações.
B - SANEAMENTO:
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 21-05-2021.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, atenta a conformação do objecto do processo e face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAMT).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.
Não se verificam questões prévias, nulidades ou excepções de que cumpra oficiosamente conhecer e que obstem ao conhecimento de mérito.
C - FUNDAMENTAÇÃO:
C.1 - Matéria de facto - Factos provados:
Com relevância para a decisão da presente causa, têm-se por assentes os seguintes factos:
A data-limite de pagamento voluntário do imposto resultante da liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral, recaiu em 28/09/2020 - documento n.º 4, junto pelo Requerente e não impugnado.
O presente pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 29/12/2020.
O Requerente, durante todo o ano de 2019, teve a sua residência fiscal nos Estados Unidos da América, mais concretamente no ... New York, Estado Unidos da América - documento n.º 1, junto pelo Requerente e não impugnado.
A 17 de Maio de 2019, o Requerente alienou a quota-parte que detinha da nua propriedade de um imóvel sito na Rua ..., n.º..., ..., Portugal - documento n.º 2, junto pelo Requerente e não impugnado.
O Requerente não auferiu qualquer outro rendimento em 2019, passível ou sujeito a tributação no ordenamento fiscal português - facto alegado pelo Requerente e não impugnado.
O Requerente apresentou, em 2020, a Declaração Modelo 3 de IRS referente ao ano fiscal de 2019, acompanhada do respectivo anexo G – “Mais-Valias e Outros Incrementos Patrimoniais”, onde declarou a mais-valia apurada com a alineação, no valor de € 64.980,47 - documento n.º 3, junto pelo Requerente e não impugnado.
Dessa declaração, resultou a liquidação de IRS n.º 2020..., e o imposto a pagar, no montante de € 18.278,27 - documento n.º 4, junto pelo Requerente e não impugnado.
Daquela liquidação, resulta que o montante de € 18.194,53 respeita a tributação autónoma, e que o remanescente (€ 83,74) corresponde a juros compensatórios devidos pela apresentação tardia da declaração - documento n.º 4, junto pelo Requerente e não impugnado.
Na determinação do rendimento colectável de IRS, a AT tributou a totalidade da mais-valia realizada e não apenas metade - documentos nrs. 3 e 4, juntos pelo Requerente e não impugnados.
No ano de 2019, o Requerente não foi residente em território português, por residir, durante esse período, nos Estados Unidos da América - documento n.º 1, junto pelo Requerente e não impugnado.
C.2 - Matéria de facto - Factos não provados:
Não se encontra provado nos autos que o imposto e os respectivos juros compensatórios, objecto do pedido de pronúncia arbitral, foram pagos, sendo certo que a prova do pagamento é necessariamente documental e o respectivo ónus probatório compete ao Requerente.
Para além deste facto, não há outros factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
C.3 - Motivação quanto à matéria de facto:
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados em função da sua relevância jurídica, face às soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAMT.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pelo Requerente, não impugnados ou em face da sua verosimilhança e ausência de impugnação específica por parte da Requerida.
O facto dado como não-provado, assentou na falta de prova documental do mesmo.
Conforme consta na resposta da Requerida, esta «verificou que não há nenhum procedimento administrativo (reclamação graciosa, pedido de revisão ou recurso hierárquico) instaurado em nome do Requerente».
A convicção do Tribunal fundou-se igualmente nos factos articulados pelas partes, cuja aderência à realidade não se entende posta em causa, e no acervo probatório carreado para os autos, o qual foi objecto de uma análise crítica e de adequada ponderação, à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e de razoabilidade.
C.4 - Matéria de direito:
C.4.1 - Questões a decidir:
1.ª) Do estabelecido no artigo 43.º, do Código do IRS, resulta uma diferenciação entre residentes e não-residentes -, na base de incidência, em IRS, quanto às mais-valias provindas da alienação onerosa de direitos sobre bens imóveis, a qual é incompatível com a liberdade de circulação de capitais, prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), assim se traduzindo num regime fiscal menos favorável para os não-residentes, incompatibilidade essa que abrange os residentes em Estados terceiros?
2.ª) Deve ser anulada a liquidação de juros compensatórios?
3.ª) Deve a Requerida AT ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios?
C.4.2 - Primeira questão a decidir: Do estabelecido no artigo 43.º, do Código do IRS, resulta uma diferenciação entre residentes e não-residentes, na base de incidência, em IRS, quanto às mais-valias provindas da alienação onerosa de direitos sobre bens imóveis, a qual é incompatível com a liberdade de circulação de capitais, prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), assim se traduzindo num regime fiscal menos favorável para os não-residentes, incompatibilidade essa que abrange os residentes em Estados terceiros?
Como é sabido, sobre a questão decidenda existem inúmeras decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, bem como pelo Supremo Tribunal Administrativo e pelo Tribunal Arbitral do CAAD.
Em especial, esta questão foi já abordada na Decisão Arbitral deste CAAD, proferida no Processo n.º 208/2019-T, de resto, na linha do também já decidido em diversas outras decisões arbitrais.
Ora, não havendo motivo para alterar o entendimento expresso nas referidas decisões, o Tribunal irá seguir o que, a propósito, foi decidido na sentença arbitral deste CAAD, proferida no processo n.º 208/2019-T, pela singular clareza que revela.
"Nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do artigo 10.º, do Código do IRS, “constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de (...) alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis...”.
Esses rendimentos, desde que resultantes da transmissão de direitos reais relativos a imóveis situados em território português consideram-se aqui obtidos (CIRS, artigo 18.º, n. º1, alínea h), ficando, assim, abrangidos pela incidência deste tributo quando auferidos por titulares não residentes (CIRS, artigos 13.º, n.º 1 e 15.º, n.º 2).
Conforme resulta do artigo 10.º, n.º 4, do Código do IRS, o ganho sujeito a tributação é constituída pela diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição, sendo este valor actualizado pelo coeficiente de correcção monetária e acrescido de encargos com a valorização dos bens, comprovadamente realizados nos últimos 12 anos e bem assim das despesas necessárias e efectivamente praticadas inerentes à aquisição e alienação, nos termos dos artigos 50.º e 51.º do mesmo Código.
O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias, integrando a Categoria G do IRS, é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, conforme prevê o artigo 43.º, n. º1, do citado Código.
No entanto, segundo o n.º 2 do mesmo artigo, na redacção em vigor à data da ocorrência do facto tributário a que se reporta o presente pedido de pronúncia arbitral, o referido saldo, positivo ou negativo, quando respeitante a mais-valias imobiliárias, é apenas considerado em 50% do seu valor, quando “respeitante às transmissões efectuadas por residentes”.
Quando auferidos por sujeitos passivos residentes esses rendimentos são sujeitos a englobamento e, em conjunto com outros rendimentos auferidos no mesmo ano pelos respectivos titulares, sobre eles incidem as taxas gerais previstas no artigo 68.º do Código do IRS.
Diversamente, se esses rendimentos forem auferidos por titulares não residentes em território português, são sujeitos a tributação autónoma, incidente à taxa especial de 28% sobre a totalidade das mais-valias, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código.
A assinalada desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias entre os sujeitos passivos residentes e não residentes foi submetida à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia, por via de um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal Administrativo (Ac. de 28-09-2006, Proc.439/06).
Respondendo à questão colocada, o Tribunal de Justiça, em acórdão de 11-10-2007, proferido no Processo C-443/06 (Hollmann), declarou que “O artigo 56º do Tratado que Instituiu a União Europeia deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efectuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais-valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel.”
Na sequência da referida decisão, o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 16-01-2008, proferido naquele Processo 439/06, veio igualmente a decidir que “O n.º 2 do artigo 43º do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal, viola o disposto no artigo 56º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais-valias que tenham sido realizadas por um residente noutro Estado membro da União Europeia.”
A orientação referida tem vindo a ser invariavelmente seguida pelo Supremo Tribunal Administrativo conforme se pode verificar dos acórdãos de 22-03-2011- Proc. 01031/10, de 10-10-2012, Proc. 0533/12, de 30 -04-2013, Proc. 01374/12, de 18-11-2015, Proc. 0699/15, de 03-02-2016, Proc. 01172/14 e, de 20-02-2019, Proc. 0901/11.
Porém, o legislador nacional, por via da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, procurou obviar o tratamento discriminatório dos residentes comunitários e do Espaço Económico Europeu, facultando-lhes, em termos opcionais, a possibilidade de tributação das mais-valias imobiliárias em condições similares às aplicáveis aos residentes em território português, aditando ao artigo 72.º do Código do IRS os números 7 e 8 (n.ºs 9 e 10 à data dos factos, na renumeração operada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, a que correspondem os actuais n.ºs 13 e 14), com a seguinte redacção:
“9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.
10 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.”
E o regime opcional acima referido não veio sanar o regime discriminatório que se mantém em vigor e foi aplicado à liquidação de IRS ora questionada.
Após a alteração legislativa acima referida ficaram a vigorar, na área da tributação dos rendimentos qualificados como mais-valias originadas pela transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis situados em território português, dois regimes distintos, aplicáveis a não residentes: um regime geral, aplicável a quaisquer sujeitos passivos não residentes, traduzido na tributação desses rendimentos à taxa especial de 28% incidente sobre a totalidade do rendimento e um regime especificamente aplicável a residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, equiparável ao regime de que beneficiam os sujeitos passivos residentes.
Este regime específico de equiparação aos residentes é opcional, não afastando, contudo, o carácter discriminatório da norma do artigo 43.º, n.º2, conforme, aliás, em vindo a ser decidido em diversas decisões arbitrais.
Com efeito, esta matéria, já na decorrência de situações posteriores à alteração legislativa acima referida, tem vindo a ser objecto de diversas decisões arbitrais tendo-se firmado jurisprudência, largamente maioritária, no sentido de que a opção em causa, constitui um ónus suplementar comparativamente aos residentes, insusceptível de excluir a discriminação em causa.
Nesse sentido, pode ler-se na decisão arbitral de 22-05-2019, Proc.74/2019-T:
“Sucede que a existência deste regime não afasta a invalidade do regime discriminatório ainda em vigor e que foi aplicado à liquidação de IRS em causa.
De facto, actualmente, em matéria de tributação dos rendimentos resultantes das mais-valias provenientes da alienação de direitos reais sobre imóveis situados em Portugal, por não residentes neste território, mas residentes noutro Estado membro da União Europeia ou Espaço Económico Europeu, resulta do disposto nos n.ºs 1 e 8 do artigo 72.º do Código do IRS que, coexistem dois regimes fiscais:
i. O regime que sujeita os rendimentos a uma taxa especial de 28% e
ii. O regime equiparado ao que vigora para os sujeitos passivos residentes em território português, segundo o qual, os mesmos rendimentos são sujeitos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português, tomando-se em consideração, neste regime, todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora de Portugal, mantendo-se em vigor a disposição constante do n.º 2 do citado artigo 43.º do Código do IRS.
Porém, a previsão deste regime facultativo faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, não sendo a opção de equiparação susceptível de excluir a discriminação em causa.
Na realidade, o regime de equiparação actualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o carácter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter que optar por dois regimes, um legal e outro ilegal.
Neste sentido, o TJUE considerou, no Acórdão Gielen, de 18/03/2010 (Processo C-440/08), num caso de evidente paralelismo (ainda que naquele acórdão estivesse em causa a violação do artigo 49.º), o seguinte:
a. «a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, (...) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório», frisando que essa escolha não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.».
b. «o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (...) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49. ° TFUE em razão do seu carácter discriminatório».
c) O Tratado «se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (...) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes”.
No mesmo sentido, considerou-se, em decisão arbitral de 14-05-2013, Processo. 127/2012-T que “(...) a opção que é dada a um sujeito passivo residente na União Europeia ou espaço económico europeu entre um regime que continua a ser discriminatório, por violação do disposto artigo 63.º da TFUE e um outro alegadamente não discriminatório, equiparando-os com os residentes no território português, para além de terem a obrigação de optar e de declarar os rendimentos auferidos fora daquele território, não exclui nem neutraliza os efeitos discriminatórios do primeiro daqueles dois regimes. Concluindo aquele aresto que «ao se reconhecer que os referidos efeitos não são eliminados, estar-se-á a admitir que a referida opção valida um regime fiscal que continua em si mesmo a violar o artigo 63.º do TFUE, pelos motivos acima enunciados, o que não se coaduna com o direito comunitário”.
É, pois, esta a orientação que tem vindo a ser acolhida na jurisprudência arbitral do CAAD, não só nas decisões acima citadas, como em muitas outras, designadamente as proferidas nos processos 748/2015-T, 89/2017-T, 520/2017-T, 617/2017-T, 644/2017-T, 370/2018-T,583/2018-T, 596/2018-T 600/2018-T e 613/2018-T, não se suscitando quaisquer dúvidas sobre a incompatibilidade do actual quadro normativo em causa com o direito comunitário, em especial com o artigo 63.º do TFUE.
Também dúvidas se não suscitaram ao Supremo Tribunal Administrativo que, em acórdão de 20-02-2019, proferido no Proc. 0901/11.0BEALM.0692/17 – reportando-se a mais-valias realizadas em 2010, portanto já na vigência das alterações introduzidas pela Lei n.º 67-A/2007 - se pronunciou sobre a matéria em causa nos seguintes termos:
“12. O Estado Português, através da Lei 3-B/2010 de 28-04, instituiu um regime opcional, ex vi n.ºs 7 e 8 do artigo 72.º do CIRE, com vista à equiparação dos não residentes aos residentes, permitindo àqueles a opção de englobamento dos rendimentos obtidos por mais-valias imobiliárias e, assim, serem tributados em condições similares às dos residentes.
13. Tratando-se de um regime opcional e mantendo-se o regime geral discriminatório, a sua apreciação foi objecto do Acórdão Gielen de 18-03-2010 do TJUE, que veio a manter as anteriores conclusões referidas no Acórdão Hollmann.
14. E no caso sub judice foi a Autoridade Tributária que determinou a forma de tributação, através da correcção da liquidação, não validando os elementos declarados pelos Impugnantes na sua declaração anual de IRS, não dando hipótese do exercício desta opção aos Impugnantes.
15. Mesmo assim, tal regime opcional não vem sanar a discriminação entre as normas do n.º 2 do artigo 43.º do CIRS e o artigo 56.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia, já que a norma anterior se manteve como geral, apenas sendo criada uma outra opcional.
16. Na verdade, já este STA se pronunciou em situação similar à presente - acórdão de 03-02-2016, Proc. 01172/14 – negando provimento a um recurso e decidindo no sentido de que tributação em sede de mais valias imobiliárias apuradas por um não residente, devem ser consideradas apenas em 50%, evitando assim a situação discriminatória que a Fazenda Pública pretende ver aqui reconhecida.
17. Concluindo que a aplicação do n.º 2 do artigo 43 do CIRS, que discrimina negativamente a tributação dos não residentes face aos residentes, é incompatível com o direito comunitário, porque limita os movimentos de capitais que o artigo 56 do Tratado CE consagra”
Assim - e acompanhando sem reservas a jurisprudência do STA e do CAAD acima referidas e, em particular, o muito douto acórdão proferido no Processo n.º 208/2019-T, deste CAAD, que aqui se transcreveu, considera o Tribunal que se não suscitam dúvidas quanto à incompatibilidade das normas aplicadas - e que fundaram a liquidação objecto de pedido de pronúncia arbitral - com o direito europeu, o qual prevalece sobre o direito nacional.
Acresce, ainda, que no dia 9 de Dezembro de 2020, foram proferidos, em Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, dois Acórdãos de uniformização, nos processos n.º 75/20.6BALSB e n.º 64/20.0BALSB -, pelos quais se consolidou o entendimento – já antes consagrado em Acórdãos da Secção daquele Tribunal -, segundo o qual o n.º 2 do artigo 43.º, do Código do IRS, ao prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não-residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, incompatível com o artigo 63.º, do TFUE, não tendo essa discriminação negativa dos não-residentes sido ultrapassada pelo regime opcional introduzido no artigo 72.º, do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, ou, na outra versão, quanto a mais-valias imobiliárias obtidas por não-residente em território português e residente noutro Estado membro da União Europeia, que declarou pretender a tributação pelo regime geral sem opção de acordo com o regime previsto no artigo 72.º, do Código do IRS, não é de excluir a aplicação do previsto no artigo 43.º, n.º 2, do mesmo Código quanto a ser considerado 50% do respectivo saldo.
II - O entendimento contrário é discriminatório, nos termos do artigo 65.º n.º 3, por referência ao n.º 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e não pode ser aplicado pois violaria o princípio do primado com assento no artigo 8.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
Estando o sentido da decisão deste Tribunal Arbitral em plena sintonia com esta jurisprudência do STA, que, entretanto, se consolidou.
O disposto no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, estabelece um regime discriminatório e incompatível com o Direito Comunitário, por violação do artigo 63.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
A Requerida defende que, em qualquer caso, o Requerente - residente nos Estados Unidos da América, ou seja, em Estado terceiro relativamente ao território da União - não se encontra abrangido pelo princípio da liberdade de circulação de capitais, previsto no artigo63.º, do TFUE.
Ora, o despacho de 6 de Setembro de 2018, proferido no processo C-184/18, o TJUE (7.ª Secção) confirmou não só o juízo de incompatibilidade do artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, com o direito da União, como que tal incompatibilidade também é aplicável a residentes em Estados terceiros, nos seguintes termos:
Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita as mais‑valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse Estado‑Membro, efectuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as mais‑valias realizadas por um residente naquele Estado‑Membro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é abrangida pela excepção prevista no artigo 64.°, n.° 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.°, n.° 1, TFUE.
Nestes termos, dúvidas não restam de que a liquidação impugnada, na parte que considera como base de tributação das mais-valias realizadas pelo Requerente mais de 50% do seu valor, carece de fundamento legal, o que determina a ilegalidade da liquidação ora impugnada, e como totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral.
Por tudo isto, julga-se incompatível com o direito comunitário a norma contida no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não-residentes - ainda que residentes em Estados terceiros -, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º, do TFUE.
Consequentemente, o acto de liquidação em causa encontra-se ferido de ilegalidade, ilegalidade essa limitada ao excesso de tributação, na parte que considerou como base de tributação das mais-valias imobiliárias realizadas pelo Requerente mais de 50% do seu valor, pelo que o acto tributário objecto do pedido de pronúncia arbitral é parcialmente anulável.
C.4.3 - Segunda questão a decidir: Deve ser anulada a liquidação de juros compensatórios?
O Requerente peticiona a anulação da liquidação de juros compensatórios.
O artigo 35.º, n.º 1, da LGT, estatui que «são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária».
Nos presentes autos, concluiu-se já que a liquidação de IRS, objecto do pedido de pronúncia arbitral é de anular quanto ao excesso de tributação, em IRS, na parte que considerou como base de tributação das mais-valias imobiliárias realizadas pelo Requerente mais de 50% do seu valor.
Constituiu pressuposto da liquidação de juros compensatórios o retardamento da liquidação de IRS, objecto do pedido de pronúncia arbitral.
Ora, anulada, ainda que parcialmente, a liquidação de IRS, a liquidação de juros compensatórios referente àquela, perdeu objecto na parte do imposto anulado, já que, quanto a esta parte da liquidação, deixou de existir liquidação à qual possa ser imputado retardamento.
De resto, a liquidação de juros compensatórios tem como pressuposto a liquidação de IRS, pelo que enferma dos mesmos vícios,
Pelo que a liquidação de juros compensatórios irá ser anulada, quanto aos juros incidentes sobre o excesso de tributação, em IRS, na parte da liquidação que considerou como base de tributação das mais-valias imobiliárias realizadas pelo Requerente mais de 50% do respectivo valor.
C.4.4 - Terceira questão a decidir: Deve a Requerida AT ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios?
Peticiona o Requerente que a Requerida AT seja condenada no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos constantes do n.º 4, do artigo 43.º, da LGT.
O artigo 43.º, n.º 1, da LGT, estatui que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
Contudo, não se encontra provado nos autos que o imposto e os respectivos juros compensatórios, objecto do pedido de pronúncia arbitral, foram pagos.
Na falta de tal prova, não é possível a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
Diga-se, ainda, que, mesmo que se encontrasse efectuada a prova de pagamento das prestações tributárias, a resposta a esta questão não seria diferente.
Com efeito, decorre do que até aqui se escreveu, que os serviços da Requerida aplicaram uma norma do Código do IRS declarada incompatível com o Direito da União, o que parece, à primeira vista, configurar erro sobre os pressupostos de direito.
Não obstante, a verdade é que a aplicação, na determinação do imposto, da norma (agora) julgada incompatível com o direito da União, não é imputável aos serviços da AT.
É que a Administração Pública - e a AT, aqui, em particular -, encontra-se sujeita ao princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente.
Pelo que, encontrando-se em vigor o artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, os serviços da Requerida encontravam-se estritamente obrigados a cumprir o que naquela norma se estatui - o que, aliás, fizeram.
E não podia a AT agir de outro modo, considerando a sua vinculação à lei e a impossibilidade de a desaplicar com base num juízo de desconformidade com a lei comunitária que lhe não cabe fazer.
Isto é, aquando da prática do acto tributário controvertido, a AT cumpriu a lei, sendo que, não estando em causa normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, aquela não poderia ter agido de outro modo, considerando a sua vinculação à lei e a impossibilidade de a desaplicar com base num juízo de desconformidade com o direito comunitário que lhe não cabe fazer, a isso não obstando a posterior declaração de incompatibilidade da norma aplicada com o direito da União, no presente caso concreto.
E daí que, para efeitos de condenação no pagamento de juros indemnizatórios, ainda que o pagamento do imposto e dos juros compensatórios estivesse provado nos autos, não poderia ser imputado, aos serviços da AT, erro determinador do pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, pois não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu.
Neste sentido, embora quanto à questão da declaração de inconstitucionalidade de certa norma, veja-se, por todos, o douto proferido pelo Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, em 04-03-2015, no processo n.º 1529/14.
Nestes termos, o Tribunal não concederá provimento ao pedido do Requerente, de condenação da Requerida em juros indemnizatórios.
D - DECISÃO:
De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade das liquidações de IRS e de juros compensatórios controvertidas, sendo tal declaração de ilegalidade limitada, quanto a ambos os actos, ao excesso de tributação na parte que considerou como base de tributação das mais-valias imobiliárias realizadas pelo Requerente mais de 50% do seu valor;
b) Em consequência, anular parcialmente a liquidação de IRS e de juros compensatórios, objecto do pedido de pronúncia arbitral, relativa ao ano de 2019, com o n.º 2020..., datada de 14/08/2020, anulação esta limitada, quanto a ambos os actos, ao excesso de tributação na parte que considerou como base de tributação das mais-valias imobiliárias realizadas pelo Requerente mais de 50% do seu valor;
c) Não determinar, nesta instância, o reembolso, ao Requerente, do IRS e dos juros compensatórios, resultantes da anulação a que se referem as alíneas anteriores, dado que não se encontra demonstrado nestes autos que o pagamento tenha ocorrido, sempre com a ressalva de que a anulação do IRS e dos respectivos juros compensatórios, agora decidida, cria, na esfera jurídica da AT, o dever de proceder ao respectivo reembolso, caso tenha ocorrido pagamento;
d) Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida AT no pagamento de juros indemnizatórios e absolver esta do pedido.
E - VALOR DA CAUSA:
O Requerente indicou como valor da causa o montante de € 9.097,27, correspondente à parte impugnada da liquidação de IRS, objecto do pedido de pronúncia arbitral.
O valor indicado pelo Requerente não foi impugnado e não considera o Tribunal existir fundamento para o alterar, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 9.097,27.
F - CUSTAS:
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 918,00, indo a Requerida, que foi vencida quanto ao pedido de declaração de ilegalidade do acto objecto do pedido de pronúncia arbitral, condenada em 95% das custas do processo, e o Requerente, que foi vencido quanto ao pedido de juros indemnizatórios, condenado em 5% das custas do processo.
Notifique.
Lisboa, 05 de Outubro de 2021.
O Árbitro,
Assinado digitalmente com chave móvel digital
(Martins Alfaro)