Sumário:
A fixação da matéria coletável em 50% apenas para as mais‑valias realizadas por sujeitos passivos residentes em Portugal, e não para os sujeitos passivos residentes noutro Estado-Membro da União Europeia que não optaram pelo regime de tributação previsto no artigo 72.º do Código do IRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. A..., NIF..., e B..., NIF..., ambos com residência em ..., Áustria, doravante “Requerentes”, requereram a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade dos atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.ºs 2020... e 2020..., relativos ao ano de 2019, requerendo a anulação parcial das liquidações impugnadas e restituição do imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, pedindo ainda a condenação da Requerida no pagamento das custas do presente processo.
Em substância, os Requerentes alegam que as liquidações em apreço padecem de ilegalidade, grosso modo, por a Autoridade Tributária (“AT”) ter desconsiderado a aplicação de 50% sobre a mais-valia apurada na alienação dos imóveis, no que resulta um tratamento diferenciado, à luz da legislação nacional ex vi artigo 43.º n.º 2 do Código de IRS, entre residentes e não residentes, quanto à determinação do rendimento coletável em sede de IRS resultante da transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, diferenciação essa que é considerada incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
Os Requerentes, em suporte da sua tese, trazem à colação o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferido no âmbito do no processo C-443/06, de 11 de outubro de 2017, bem como diversos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente os acórdãos proferidos no âmbito dos processos n.os 0439/06 de 2008.01.16; 01374/12 de 2013.04.30; 0699/15 de 2015.11.18; e 01172/14 de 2016.02.03, e ainda a jurisprudência constante dos tribunais arbitrais a funcionar junto do CAAD, de que são exemplo as decisões emitidas nos processos n.os 45/2012-T; 127/2012-T; 748/2015-T; 89/2017-T e 617/2017-T.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (Autoridade Tributária).
Na sua resposta, a Autoridade Tributária, em sede de impugnação, refere que tendo em conta o teor do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11, e no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão nele sufragada, foi aditado ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, o n.º 7 (atual n.º 9), cujo teor à data dos factos, era o seguinte: «9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.». Por sua vez, o n.º 8 (atual n.º 10) do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei n.0 67-A/2007, de 31/12, prescrevia, à data dos factos, que: «10- Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.»
Refere a Autoridade Tributária que, por força dessa alteração legislativa, as declarações de rendimentos respeitantes aos anos fiscais de 2008 (em vigor a partir de Janeiro de 2009) e seguintes, mais concretamente a Modelo 3, têm um campo para ser exercida opção pela taxa do artigo 68º do Código do IRS. Ora, consultadas as declarações entregues pelos Requerentes verifica-se que estes pretenderam a tributação pelo regime geral.
Por outro lado, a Autoridade Tributária sublinha que o quadro legal, bem como a obrigação declarativa, já não é aquele que existia à data do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, tendo em conta que foi efetuada a alteração à lei por força do aditamento dos n.ºs 7 e 8 (atuais 9 e 10) ao artigo 72 ° do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12.
A Autoridade Tributária traz ainda à colação a decisão arbitral proferida no processo 539/18-T, concluindo pela inexistência de qualquer incompatibilidade com o disposto no artigo 63.º TFUE, pelo que as liquidações impugnadas se deverão manter na ordem jurídica.
2. Em 4 de junho de 2021, a Requerente apresentou requerimento de modificação objetiva da instância, na sequência das correções, efetuadas pela Autoridade Tributária, às liquidações de IRS iniciais, as quais apenas incidiram sobre as despesas e encargos inscritos no Anexo G da Declaração Modelo 3, não invalidando, segundo a Requerente, «a causa in decidendum e, por conseguinte, o prosseguimento dos autos, da causa de pedir e do pedido ora formulado.»
Por despacho arbitral de 08 de Junho de 2021, a Requerida foi notificada para, ao abrigo do princípio do contraditório, se pronunciar, querendo, quanto à possibilidade de modificação objetiva da instância.
A Requerida nada veio dizer.
Por despacho arbitral de 30 de junho de 2021, foi determinada a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e prosseguimento do processo para alegações.
Apenas vieram os Requerentes apresentar alegações, mantendo a sua anterior posição.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Requerida nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.°da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03 de Maio de 2021.
II – Saneamento
4. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não há exceções ou questões prévias a apreciar.
O processo não enferma de nulidades.
Cabe apreciar e decidir.
III – Fundamentação
5. Os factos relevantes para a decisão da causa tidos como assentes são os seguintes:
A) Desde Dezembro de 2014 que os Requerentes são comproprietários, em partes iguais, de duas frações autónomas sitas na freguesia de ... e ..., em concreto:
(i) a fração destinada a habitação, designada pela letra “P”, do prédio urbano sito na Rua ..., n.º..., ..., ..., ..., ...-... Estoril, freguesia de ...–..., do concelho de Cascais, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º..., adquirida pelo montante global de Eur 130.000,00; e
(ii) a fração destinada a serviços designada pela letra “P”, do prédio urbano sito na Rua ..., n.º ... (e...), 6.º andar, ..., ..., ...-... Estoril, freguesia de ...– ..., do concelho de Cascais, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo..., e descrita na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º..., adquirida pelo montante global de Eur 100.000,00.
B) em Março de 2019, os Requerentes alienaram as suas quotas-partes (50%) de ambas as frações autónomas, assim:
(i) a fração destinada a habitação, designada pela letra “P” inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., alienada pelo montante global de Eur 220.000,00;
(ii) a fração destinada a habitação, designada pela letra “P” inscrito na matriz predial urbana sob o artigo..., alienada pelo montante global de Eur 265.000,00.
C) em 28 de Junho de 2020 os Requerentes apresentaram as suas Declarações de Rendimentos Modelo 3 do IRS relativas ao ano de 2019, nas quais declararam-se como não residentes em Portugal, não tendo sido exercida a opção pela tributação ao abrigo dos regimes especiais aí previsto.
D) Das Declarações de IRS resultaram os seguintes valores a pagar:
(i) Na esfera da Impugnante mulher: EUR 25.494,48, conforme resulta da demonstração de liquidação do IRS n.º 2020 ... .
(ii) Na esfera do Impugnante homem: EUR 28.279,23, conforme resulta da demonstração de liquidação do IRS n.º 2020... .
E) O pedido arbitral deu entrada em 27 de Novembro de 2020.
F) Subsequentemente, a Autoridade Tributária corrigiu a liquidação da Impugnante mulher, no âmbito do Ofício n.º 02-..., de 15 de Dezembro de 2020, assim como a liquidação do Impugnante homem, no âmbito do Ofício n.º 02-..., de 26 de Fevereiro de 2021, dando origem, respetivamente, às liquidações n.º 2021 ... e n.º 2021..., das quais resultaram um valor adicional a pagar, para cada Requerente, de € 256,44.
O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no requerimento dos Requerentes de 4 de junho de 2021, evidenciando-se que existe o consenso das partes quanto à mesma.
Factos não provados
Não existem factos não provados que tenham relevância para a decisão da causa.
Matéria de direito
Modificação Objetiva da Instância
5. As liquidações de IRS n.º 2020... e n.º 2020..., relativas ao ano de 2019 e que constituem objeto (inicial) destes autos arbitrais, foram substituídas, no seguimento de notificação efetuada pela Autoridade Tributária relativamente a situação de irregularidade identificada em cada uma das declarações e respeitantes a despesas e encargos, por novas liquidações de IRS, com o n.º 2021 ... e n.º 2021..., das quais resultou, para cada Requerente, um valor adicional a pagar de € 256,44.
Os Requerentes vieram requerer o prosseguimento dos autos contra as novas liquidações, com fundamento na subsistência da mesma ilegalidade do ato substituído. Para tanto, invocam o artigo 20.º do RJAT que prevê no seu n.º 1 que a “substituição na pendência do processo dos atos objeto de pedido de decisão arbitral com fundamento em factos novos implica a modificação objetiva da instância”.
Ficou comprovada a emissão pela Autoridade Tributária destes novos atos de liquidação de IRS reportados ao ano de 2019, com a consequente substituição dos atos inicialmente impugnados, pelo que nos termos do citado artigo 20.º do RJAT é admissível e devida a modificação da instância.
Com efeito, foram eliminados da ordem jurídica os atos que vinham impugnados, tendo sido substituídos por outros que contêm a regulação da relação jurídico-tributária [IRS], com referência ao mesmo ano, aos mesmos sujeitos e factualidade.
São, pois, estes derradeiros atos de liquidação e IRS de 2019 dos Requerentes que importa apreciar, pelo que se defere a requerida modificação, prosseguindo a instância contra os atos substitutivos, a liquidação n.º 2021..., de 2021-01-08, no valor de € 25.750,92, e a liquidação n.º 2021..., de 2021-01-08, no valor de € 28.535,67.
Questão Decidenda
6. A questão essencial em debate é a de saber se a não aplicação, a cidadãos da União Europeia não residentes em Portugal, do regime de exclusão de tributação de 50% das mais-valias imobiliárias, previsto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS e aplicável a contribuintes residentes, é ou não incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
A Autoridade Tributária defende, em resumo, que a alteração operada ao artigo 72.º do Código do IRS, por via da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, possibilita que os não residentes, à semelhança dos residentes, beneficiem do regime previsto no artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS (isto é, da consideração do saldo da mais-valia em apenas 50% do seu valor), desde que optem pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território, opção essa que, no caso em apreço, não foi exercida pelos Requerentes, concluindo assim que as liquidações operadas não enfermam de incompatibilidade com o disposto no artigo 63.º do TFUE.
Do ponto de vista dos Requerentes, existe um tratamento diferenciado, à luz da legislação nacional, ex vi artigo 43.º n.º 2 do Código de IRS, entre residentes e não residentes, quanto à determinação do rendimento coletável em sede de IRS resultante da transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, diferenciação esta que já foi, por diversas vezes, considerada incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE. Os Requerentes socorrem-se de ampla jurisprudência do TJUE, do Supremo Tribunal Administrativo e dos tribunais arbitrais a funcionar no CAAD, reproduzindo a fundamentação neles aduzidas para suportar a ilegalidade que apontam às liquidações de IRS ora em crise, bem como para sustentar a impossibilidade de aplicação do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS por sujeitos passivos residentes noutro Estado Membro da União Europeia (não residentes em Portugal), fora do âmbito de aplicação do regime previsto nos n.os 13 e 14 do artigo 72.º do Código do IRS (à data dos factos).
Sobre a questão em discussão, o TJUE pronunciou-se recentemente sobre a mesma, em sede de reenvio prejudicial, no âmbito do caso MK (C-388/19, de 18 de março de 2021), com origem num Tribunal Arbitral constituído sob a alçada do CAAD.
No âmbito do referido processo, questionava-se se os artigos 18.° e 63.° a 65.° do TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à regulamentação de um Estado Membro que, para permitir que as mais valias provenientes da alienação de imóveis situados nesse Estado Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais valias realizadas por um residente do primeiro Estado Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.
Tendo começado por afastar a relevância do artigo 18.º TFUE de acordo com o critério da especialidade, o TJUE utilizou a seguinte fundamentação que, pela sua clareza, se transcreve:
«26. No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que, tratando se de mais valias realizadas no momento da alienação onerosa de um bem imóvel situado em Portugal, o artigo 43.°, n.° 2, e o artigo 72.°, n.° 1, do CIRS previam regras de tributação diferentes consoante os sujeitos passivos do imposto sobre o rendimento residissem ou não no território desse Estado Membro.
27. Em especial, nos termos do artigo 43.°, n.° 2, do CIRS, as mais valias realizadas por residentes no momento da alienação de bens imóveis situados em Portugal eram apenas consideradas em 50 % do seu valor. Em contrapartida, para os não residentes, o artigo 72.°, n.° 1, do CIRS previa a tributação dessas mesmas mais valias sobre a totalidade do seu montante à taxa autónoma de 28%.
28. Daqui decorre que, em aplicação destas disposições, a matéria coletável deste tipo de mais valias não era a mesma para os residentes e para os não residentes. Assim, no que diz respeito à venda de um mesmo bem imóvel situado em Portugal, no caso de realização de mais valias, os não residentes estavam sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que era aplicada aos residentes, encontrando se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos (v., neste sentido, Acórdão de 11 de outubro de 2007, Hollmann, C 443/06, EU:C:2007:600, n.° 37).
29. Com efeito, enquanto, por força do artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, um não residente era tributado a uma taxa de 28 % aplicada sobre a matéria coletável correspondente à totalidade das mais valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria coletável das mais valias realizadas por um residente permitia que este beneficiasse sistematicamente de uma carga fiscal inferior a esse título, qualquer que fosse a taxa de tributação aplicada à totalidade dos seus rendimentos, uma vez que, segundo as observações apresentadas pelo Governo português, os rendimentos dos residentes estavam sujeitos a um imposto de acordo com uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado era de 48 %, isto embora se pudesse aplicar uma taxa adicional de solidariedade de 2,5 % a rendimentos coletáveis de 80 000 euros a 250 000 euros e de 5 % acima desse valor.
30. Ora, no Acórdão de 11 de outubro de 2007, Hollmann (C 443/06, EU:C:2007:600, n.° 40), o Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de declarar que a fixação, pelo artigo 43.°, n.° 2, do CIRS, de uma matéria coletável de 50 % para as mais valias realizadas apenas por sujeitos passivos residentes em Portugal, e não por sujeitos passivos não residentes, constituía uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.° TFUE.
31. Esta constatação não é posta em causa pelo n.° 44 do Acórdão de 19 de novembro de 2015, Hirvonen (C 632/13, EU:C:2015:765), no qual o Tribunal de Justiça declarou que uma diferença de tratamento entre contribuintes não residentes e contribuintes residentes, que consiste em sujeitar os rendimentos brutos dos primeiros a uma tributação a título definitivo a uma taxa única, através de retenção na fonte, ao passo que os rendimentos líquidos dos segundos são tributados de acordo com uma tabela progressiva que inclui um abatimento de base, é compatível com o direito da União, na medida em que essa constatação está sujeita, todavia, à condição de a taxa única não ser mais elevada do que a taxa resultante da aplicação efetiva para o interessado da tabela progressiva aos rendimentos líquidos que excedem o abatimento de base. Ora, no caso em apreço, como resulta do n.° 29 do presente acórdão, o regime de tributação diferenciado em causa conduz a que os não residentes sejam sistematicamente sujeitos a uma carga fiscal superior à aplicada aos residentes aquando da realização de mais valias sobre a venda de imóveis.
32. Nestas condições, a fixação da matéria coletável em 50 % para as mais valias realizadas por todos os sujeitos passivos residentes em Portugal, e não para os sujeitos passivos não residentes que optaram pelo regime de tributação previsto no artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE.»
Quanto à existência de uma justificação para as restrições à livre circulação de capitais à luz do artigo 65.°, n.os 1 e 3, do TFUE, o TJUE recorreu à fundamentação que se transcreve:
«36. Ora, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os sujeitos passivos residentes e os sujeitos passivos não residentes prevista pela regulamentação portuguesa diz respeito a situações objetivamente comparáveis. Além disso, esta diferença de tratamento não é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.
[...]
39. Esta constatação não é posta em causa pela ratio legis do artigo 43.°, n.° 2, do CIRS, que prevê o abatimento de 50 % aplicável às mais valias realizadas pelos residentes, que, segundo o Governo português, consiste em evitar a tributação excessivamente onerosa desses rendimentos considerados anormais e fortuitos, na medida em que nada permite excluir que essa consideração não possa vir a dizer respeito aos sujeitos passivos não residentes.»
Por último, quanto à opção de tributação segundo as mesmas modalidades que os residentes, o TJUE apresentou a seguinte fundamentação:
«42. Antes de mais, há que salientar que a possibilidade de as pessoas residentes na União ou no EEE optarem, ao abrigo do artigo 72.°, n.os 9 e 10, do CIRS, por um regime de tributação análogo ao aplicável aos residentes portugueses e, assim, beneficiarem do abatimento de 50 % previsto no artigo 43.°, n.° 2, desse código permite a um contribuinte não residente, como MK, escolher entre um regime fiscal discriminatório, a saber, o previsto no artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, e outro que não o é.
43. Ora, cumpre frisar a este respeito que, no caso em apreço, essa escolha não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.
44. Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 63.° TFUE em razão do seu caráter discriminatório (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C 440/08, EU:C:2010:148, n.° 52).
45. Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado FUE, no caso em apreço a livre circulação de capitais, é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C 440/08, EU:C:2010:148, n.° 53 e jurisprudência referida).
46. Daqui resulta que a escolha concedida, no litígio no processo principal, ao contribuinte não residente, de ser tributado segundo as mesmas modalidades que as aplicáveis aos contribuintes residentes, não é suscetível de tornar a restrição constatada no n.° 32 do presente acórdão compatível com o Tratado.»
No respeito pela primazia do direito da União Europeia sobre o direito nacional e pela autoridade interpretativa do TJUE, e tendo presente a proximidade dos factos e a identidade das normas analisadas no caso MK (C-388/19), acolhe o presente tribunal o entendimento propugnado pelo TJUE, considerando que a norma do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS estabelece uma discriminação injustificada entre residentes e não residentes relativamente à tributação de mais-valias provenientes da alienação de bens imóveis situados em Portugal, incompatível com o artigo 63.º do TFUE, devendo, por conseguinte, ser declarada a ilegalidade parcial e anulação das liquidações de IRS de 2019 n.º 2021 ... e n.º 2021 ..., com todas as consequências legais.
Do direito a juros indemnizatórios
A par da anulação dos atos de liquidação, e consequente reembolso das importâncias indevidamente cobradas, os Requerentes solicitam ainda que lhes seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, os Requerentes efetuaram o pagamento de importâncias manifestamente indevida.
Resulta, também, dos autos, que a ilegalidade dos atos de liquidação objeto do presente processo é diretamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, os praticou sem suporte legal, padecendo de errada aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.
Reconhece-se, assim, aos Requerentes o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante indevidamente cobrado, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, art. 43.º, n.º 1 e CPPT, art. 61.º).
IV – Decisão
Termos em que o Tribunal Arbitral decide:
a) deferir a modificação objetiva da instância derivada da substituição dos atos de liquidação de IRS que constituíram o objeto inicial da ação arbitral;
b) julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, anular os atos tributários objeto dos presentes autos, por violação de lei, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração total da mais-valia imobiliária, com as demais consequências legais;
c) condenar a Requerida a restituir aos Requerentes o valor de imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, a contar da data em que foi efetuado o pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito;
d) condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.
V - Valor do processo
Perante um erro na determinação ou na indicação do valor da utilidade económica do pedido pelo sujeito passivo, o tribunal arbitral deverá corrigir oficiosamente o erro, assim que se aperceba do mesmo, podendo fazê-lo por despacho, decisão interlocutória ou mesmo na decisão final.
Perante o exposto supra quanto ao pedido e causa de pedir, considera-se fixado o valor da causa em € 27.143,30 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPTA).
VI – Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.530,00, nos termos da Tabela I anexa ao RCPTA, a cargo da Requerida.
Notifique-se
Lisboa, 30 de Setembro de 2021,
O Árbitro
Francisco Melo