DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
A..., doravante designado como “Demandante”, contribuinte nº..., residente na ..., ..., Alcabideche, apresentou, em 04-09-2020, ao abrigo do disposto no art.º 2.º, nº 1, al. a) do Regime Jurídico de Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT), pedido de pronúncia arbitral, com vista a:
1) A anulação parcial do ato de liquidação resultante da Declaração Aduaneira de Veículo n.º 2020/..., de 15.07.2020, relativa a Imposto Sobre Veículos (ISV).
2) A condenação da Demandada à devolução do imposto indevidamente pago no valor de 19.110,18€ e ao pagamento dos respetivos juros indemnizatórios.
É demandada a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Demandada”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 08-09-2020.
Nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º e da alínea b) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 30-10-2020, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 02-12-2020.
A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido, por nenhuma ilegalidade afetar o ato impugnado, e nomeadamente, por o art.º 11.º do Código do Imposto sobre Veículos (doravante CISV), após ter sido objeto de alteração pela Lei n.º 42/2016, de 28.12, ser compatível com o art.º 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
A AT considera que a regra de cálculo do imposto, contida no art.º 11.º do CISV, não prevendo redução da componente ambiental da taxa em função da idade do veículo, é justificada por prosseguir objetivos de proteção ambiental, em obediência à Constituição Portuguesa e ao próprio art.º 191º do TFUE, além dos tratados internacionais em matéria ambiental – Protocolo de Quioto e Acordo de Paris – assinados por Portugal.
Tendo o Tribunal, por despacho de 11 de agosto de 2021, proposto a prescindência da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT e a da apresentação de alegações finais, veio o Requerente pedir a concessão de prazo para a produção de alegações finais, o qual foi fixado pro despacho de 17-09-2021.
Em alegações, veio o Demandante clarificar os fundamentos do pedido, concluindo que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado-Membro, no âmbito do cálculo do Imposto sobre Veículos, o art.º 11º do CISV é incompatível com o direito da União Europeia, sendo em consequência o ato impugnado ilegal.
A AT não apresentou alegações.
II. Saneamento
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 2º, e do nº 1 do artigo 10º, ambos do RJAT e é materialmente competente.
As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4º e nº2 do artigo 10º, do mesmo diploma e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
III. Questões a apreciar
Constituem questões a apreciar no presente processo arbitral:
1ª questão: Saber se o art.º 11º do CISV, ao prever, na determinação do imposto aplicável a automóveis usados originários de outros Estados-Membros da União, uma redução da taxa normal em função da idade, que é limitada à “componente cilindrada, excluindo a componente ambiental”, viola prima facie o art.º 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia;
2ª questão: Saber se, existindo uma antinomia entre o art.º 11º do CISV, por prever este, na determinação do imposto aplicável a automóveis usados originários de outros Estados-Membros da União, uma redução da taxa normal em função da idade, limitada à “componente cilindrada” e excluindo a “componente ambiental”, e o art.º 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, tal antinomia se pode considerar justificada por: i) imperativos de política ambiental com assento constitucional ; e ii) pelo imperativo de cumprimento de obrigações assumidas pelo Estado Português no âmbito de Tratados Internacionais relativos a matérias ambientais;
3ª questão: Saber se uma interpretação do direito interno (art.º 11º CISV) e do direito europeu (art.º 110º do TFUE) que conclua pela violação do segundo pelo primeiro e pela necessidade da sua desaplicação, resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa;
4ª questão: Saber se, ao decidir pela ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11º do CISV com o artigo 110º do TFUE, o Tribunal violaria o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva;
5ª questão: Saber se o Tribunal está, no caso concreto, obrigado a efetuar o reenvio prejudicial para o TJUE, ao abrigo do art.º 267º do TFUE.
IV. Fundamentação
1. Matéria de facto
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
A) O Demandante introduziu em território nacional, em 25-06-2020, proveniente da Alemanha, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado de usado, da marca ..., a que foi atribuída em Portugal a matrícula ...;
B) O referido veículo teve a sua primeira matrícula em 05.05.2011;
C) O referido veículo foi adquirido no país de origem (Alemanha) pelo montante de € 70.000,00 (setenta mil euros);
D) Para efeito de introdução do suprarreferido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega do Jardim do Tabaco a Declaração Aduaneira de veículos nº 2020/..., na qual foi liquidado Imposto Sobre Veículos no valor de 29.533,23€ (vinte e nove mil, quinhentos e trinta e três euros e vinte e três cêntimos);
E) O Demandante pagou integralmente o imposto liquidado;
F) Do valor de ISV liquidado, o montante de € 4.052,99 (quatro mil e cinquenta e dois euros e noventa e nove cêntimos) corresponde à “componente cilindrada” e o montante de € 25.480,24 (vinte e cinco mil, quatrocentos e oitenta euros e vinte e quatro cêntimos) corresponde à “componente ambiental”;
G) No cálculo do imposto, de acordo com o n.º 1 do art.º 11.º do CISV, foi aplicada uma redução de 75% à “componente cilindrada”, não tendo sido aplicada qualquer redução na “componente ambiental”;
Não existem factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.
A fixação da matéria de facto baseia-se no alegado e não contradito pelas Partes e no processo administrativo junto pela Demandada.
2. Discussão de direito
a. Ordem
A questão suscitada pelo Demandante no presente processo arbitral em matéria tributária é a da ilegalidade da liquidação de Imposto sobre veículos (ISV), efetuada ao abrigo do art.º 11º do respetivo código (CISV) por alegada violação, por parte deste preceito, do art.º 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), no qual se consagra a proibição de os Estados-membros fazerem incidir sobre os produtos dos outros Estados-membros, imposições internas superiores às que incidem sobre produtos nacionais.
Deste modo, a apreciação da questão implica uma interpretação de uma norma do direito da União Europeia - o art.º 110º do TFUE – e um exame da conformidade do direito nacional – art.º 11º do CISV – com essa norma do direito europeu.
E assim sendo, o Tribunal Arbitral deve necessariamente considerar a necessidade de proceder a um reenvio prejudicial da questão decidenda para o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do art.º 267º do TFUE.
Com efeito, nos termos do art.º 267.º al. a) do TFUE, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a “interpretação dos Tratados”.
De acordo com o mesmo preceito, “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante um qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
E ainda segundo o mesmo preceito, “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”
Temos assim que a questão da necessidade de um reenvio prejudicial para o TJUE está dependente: i) em primeiro lugar, de um juízo sobre se se está perante um problema de “interpretação dos Tratados” que justifique um reenvio prejudicial para o TJUE; e ii) de um juízo interpretativo sobre a obrigação que impende sobre o Tribunal Arbitral de proceder ao reenvio.
Existe neste momento uma já vasta jurisprudência dos tribunais arbitrais que vai unanimemente no sentido de considerar que, efetivamente, o art.º 11º do CISV viola o art.º 110º do TFUE:
Processo no 572/2018-T; Processo no 346/2019-T; Processo no 348/2019-T; Processo no 350/2019-T; Processo no 459/2019-T; Processo no 466/2019-T; Processo no 498/2019-T; Processo no 660/2019-T; Processo no 776/2019-T; Processo no 833/2019-T; Processo no 872/2019-T; Processo n o 13/2020-T; Processo no 34/2020-T; Processo no 52/2020-T; Processo no 75/2020-T; Processo no 98/2020-T; Processo no 113/2020-T; Processo no 117/2020-T; Processo no 117/2020-T; 158/2020-T; Processo no 201/2020-T; Processo no 209/2020-T; Processo no 246/2020-T; Processo no 293/2020-T; Processo no 309/2020-T; Processo no 329/2020-T; Processo no 347/2020-T.
Por outro lado, referindo-nos agora já à questão da obrigatoriedade ou oportunidade de o Tribunal Arbitral proceder ao reenvio prejudicial da questão ao TJUE, o mesmo conjunto de decisões considera não existir uma “questão de interpretação dos Tratados” que justifique ou exija um tal reenvio, porquanto o sentido do art.º 110º do TFUE, aplicado ao Imposto sobre veículos, estaria perfeitamente clarificado, através quer da jurisprudência do TJUE quer da jurisprudência nacional.
Em face desta jurisprudência arbitral, e embora fosse possível outra abordagem, considera-se dever ser analisada em primeiro lugar a questão substancial da compatibilidade do art.º 11º CISV com o art.º 110º TFUE, no sentido de averiguar em que medida existe um problema de interpretação que justifique ou exija o reenvio prejudicial.
b. Questão da existência de uma violação do art.º 110º do TFUE através do art.º 11º do CISV
O artigo 110.° TFUE proíbe aos Estados-Membros que façam incidir sobre os produtos de outros Estados-Membros imposições internas superiores às que incidam sobre os produtos nacionais similares, ou imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções (acórdãos De Danske Bilimportører (C-383/01, EU:C:2003:352, n.º 36) e Brzeziński (C-313/05, EU:C:2007:33, n.º 27).
O artigo 110.° TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação das mercadorias entre os Estados-Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas discriminatórias relativamente a produtos originários de outros Estados-Membros (acórdãos Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C-221/06, EU:C:2007:657, n.º 30 e jurisprudência referida) e Tatu (C-402/09, EU:C:2011:219, n.º 34). Assim, este dispositivo legal deve garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos nacionais e produtos importados (acórdãos De Danske Bilimportører (C-383/01, EU:C:2003:352, n.º 37) e Tatu (C-402/09, EU:C:2011:219, n.º 35).
Segundo jurisprudência constante, um sistema de tributação de um Estado-Membro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.° TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios (acórdãos Brzeziński (C-313/05, EU:C:2007:33, n.º 40); Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C-221/06, EU:C:2007:657, n.º 50) e Oil Trading Poland (C-349/13, EU:C:2015:84, n.º 46 e jurisprudência referida).
De acordo com o art.º 5º do Código, o Imposto sobre veículos é um imposto que se aplica sobre o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal. Ou seja, trata-se de um imposto que se aplica quer sobre veículos fabricados ou montados em Portugal, quer sobre veículos originários de outros países, seja por importação (de países terceiros) seja por “admissão em território nacional” (de países membros da EU).
Importante também é ter em conta que se trata de um imposto de obrigação única, que se aplica uma única vez, no momento da introdução no consumo no território nacional.
As taxas do imposto, no caso de automóveis em geral, são determinadas, nos termos do art.º 7º, pela soma de duas parcelas: um montante de imposto calculado em função da cilindrada (“componente cilindrada”) e um montante de imposto calculado em função do nível de emissão de dióxido de carbono (“componente ambiental”).
O art.º 11.º do CISV aplica-se especificamente à admissão de veículos usados (portadores de matrículas definitivas) provenientes de outros Estados-Membros da UE.
De acordo com este preceito, a taxa de imposto a aplicar a estes veículos também é dada pela soma de duas parcelas, a “componente cilindrada” e a “componente ambiental”.
Quanto à “componente cilindrada”, ela corresponde à taxa que o art.º 7º manda aplicar à introdução no consumo de um veículo novo, mas minorada por um coeficiente que varia com a idade do veículo. Esta minoração procura fazer corresponder uma redução do montante do imposto à redução do valor comercial que o veículo sofre em função da idade.
Mas já quanto à “componente ambiental”, a taxa de imposto aplicável é igual à de um veículo novo introduzido no consumo em Portugal.
Por outro lado, no caso de um veículo que foi sujeito a ISV em estado novo, o montante do ISV (“componente cilindrada” mais “componente ambiental”) pago uma única vez no momento da introdução no consumo, vai sendo amortizado ao longo da vida útil do veículo. Neste processo, as duas componentes – “cilindrada” e “ambiental” – são amortizadas exatamente na mesma proporção.
Quando o veículo (que foi sujeito a ISV em estado novo) é vendido em estado usado, o seu valor de venda irá refletir não apenas a desvalorização/perda de utilidade do veículo, mas também a amortização do ISV pago aquando da introdução no consumo. As amortizações das duas componentes da taxa concorrerão proporcionalmente para reduzir o valor comercial do veículo.
No caso de um automóvel admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro, por força das regras do art.º 11º, a “componente ambiental” do imposto é igual à que incidiria sobre um veículo novo.
Desta forma, o montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro é superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo.
Não há qualquer dúvida de que o art.º 11º tem como efeito fazer incidir sobre os produtos de outros Estados-Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares.
E assim, há que concluir que, prima facie, existe uma antinomia entre o art.º 11º do CISV e o art.º 110º do TFUE.
Sustenta a Demandada, contudo, que esta antinomia, a verificar-se, não constituiria uma violação do direito da União porquanto estaria justificada por: i) imperativos de política ambiental com consagração constitucional; e ii) pelo imperativo de cumprimento de obrigações assumidas pelo Estado Português no âmbito de Tratados Internacionais relativos a matérias ambientais, incluindo o próprio TFUE, no seu art.º 191º.
Sobre a primeira questão, impõe-se observar que o direito da União, em virtude do princípio do primado, se sobrepõe ao direito nacional dos Estados-membros, incluindo o direito constitucional e que, no caso do ordenamento português, é a própria Constituição que, no seu art.º 8º, nº 4, estabelece esse mesmo princípio. Pelo que uma violação dos Tratados da União nunca poderia, em face quer de um quer de outro, ser justificada por uma norma ou princípio de direito constitucional português que se lhe sobrepusesse.
Quanto à segunda questão, observamos, em primeiro lugar, que os Estados-Membros só podem adotar medidas que contrariem os Tratados nos casos especialmente previstos nos mesmos. E, em segundo lugar, que o TFUE não prevê a possibilidade de uma medida nacional que seja contrária ao artigo 110º TFUE poder ser justificada por qualquer razão (acórdão Valev Visnapuu, CC-198/14, ECLI:EU:C:2015:463, no 57). Por conseguinte, razões ambientais não são uma justificação admissível para uma medida nacional que esteja em antinomia com o art.º 110º.
Conclui-se assim que o art.º 11º do CISV viola efetivamente o art.º 110º do TFUE, na medida em que faz incidir sobre os produtos de outros Estados-Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares.
Esta conclusão foi confirmada pelo recente acórdão do TJUE de 02-09-21 no processo C‑169/20, em que o Tribunal apreciou exatamente a questão que aqui nos ocupa, tendo colocado a questão nos seguintes termos:
“No caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, na sequência do Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C 200/15, não publicado, EU:C:2016:453), a República Portuguesa reformou o seu regime de tributação dos veículos objeto de uma primeira colocação em circulação em Portugal. Segundo o regime resultante da referida reforma, o imposto em causa, cobrado nessa ocasião, inclui duas componentes, uma calculada em função da cilindrada do veículo em questão e a outra, denominada «componente ambiental», em função do nível de emissão de dióxido de carbono desse veículo.
Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, não está prevista nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que reflita a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.
Daqui resulta que a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.
A este respeito, não contestando que o Código do Imposto sobre Veículos não prevê nenhuma redução da componente ambiental do imposto em causa relativamente aos veículos usados importados no seu território, a República Portuguesa considera, antes de mais, que esta circunstância se justifica por um objetivo de proteção do ambiente. Com efeito, o pagamento integral da componente ambiental não tem por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas subordinar essa entrada a um critério seletivo aplicando exclusivamente critérios ambientais.
Ora, importa recordar que, embora os Estados Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C 213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).”
Concluindo o Tribunal:
“Nestas condições, há que declarar que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no Código do Imposto sobre Veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.”
c. Questão da violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa
Com o devido respeito, não alcançamos claramente o argumento da Demandada, pois o princípio da legalidade que esta invoca – o princípio da legalidade da atuação da Administração Tributária, previsto no art.º 266º, nº 2 da CRP e no art.º 8º, nº 2, a) da LGT – tem como destinatários os órgãos e agentes da administração tributária, não podendo os sujeitos passivos, através das suas ações ou das pretensões formuladas em juízo, cometer violações do princípio da legalidade da atuação da Administração Tributária.
Por outro lado, a legalidade da atuação da Administração Tributária tem forçosamente que se traduzir numa conformidade dessa atuação com todo o ordenamento jurídico, a começar pelas normas de nível hierárquico superior, que é o caso, precisamente, dos tratados da União. E havendo uma incompatibilidade entre uma destas normas de nível superior e uma norma de nível inferior, a legalidade da atuação da Administração Tributária exige o respeito pela primeira e o desrespeito pela segunda.
Não vemos, pois, como possa proceder esta alegação da Demandada.
d. Questão da violação do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva
Sustenta a Demandada que, ao decidir pela ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, estar-se-ia a violar o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva, uma vez que o RJAT não prevê um recurso de direito e de facto das decisões proferidas em processo arbitral tributário.
Efetivamente, o RJAT prevê possibilidades limitadas de recurso das decisões arbitrais, sendo que as possibilidades previstas não se baseiam num princípio abrangente do duplo grau de jurisdição, mas se limitam ao controlo de questões específicas. Nomeadamente, no caso concreto, não seria possível à Demandada interpor qualquer recurso para obter uma reapreciação da questão decidenda fundamental, que é a da compatibilidade do art.º 11º do CISV com o art.º 110º do TFUE.
Porém, este argumento poderia ser utilizado para toda e qualquer decisão a ser proferida em processo arbitral tributário, e não apenas para o presente processo, pelo que, a atender-se ao argumento da Demandada, nunca um tribunal arbitral poderia anular um ato da Autoridade Tributária e Aduaneira. Pelo que, só por si, a invocação da irrecorribilidade da decisão arbitral não pode impedir o tribunal arbitral de apreciar a legalidade dos atos aqui em causa.
Todavia, cremos que o argumento da Demandada se enlaça, de certo modo, com a questão da obrigatoriedade de o tribunal nacional proceder ao reenvio prejudicial sempre que no processo não seja admitido recurso, nos termos do art.º 267º do TFUE.
O art.º 267º do TFUE dispõe que o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: (al. a) “sobre a interpretação dos Tratados”.
O terceiro parágrafo desta disposição diz por sua vez que “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”
Não nos parece haver dúvidas de que, com esta norma, o Tratado procurou precisamente acautelar que um tribunal nacional não tenha a última palavra quanto a uma questão de “interpretação dos Tratados”, a fim de assegurar a uniformidade na interpretação do direito primário da União.
Contudo, para que esta obrigatoriedade exista, é necessário – e aqui acompanhamos, mais uma vez, a jurisprudência arbitral citada antes – que exista “uma questão de interpretação dos Tratados”, nos termos do art.º 267º TFUE.
Na sua doutrina sobre a obrigação dos tribunais nacionais lhe submeterem questões prejudiciais, o Tribunal de Justiça já deixou claro que, a fim de determinar em que condições um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal, é necessário interpretar a expressão “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada” para efeitos do Direito da União (acórdão CILFIT, C-283/81, ECLI:EU:C:1982:335, no 8).
No acórdão CILFIT (já citado, nº 21) o Tribunal de Justiça concretizou as condições em que um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter uma questão ao Tribunal.
Nessa sentença, o Tribunal afirma que “um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça, a menos que dê como provado que a questão suscitada não é pertinente, ou que a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, ou que a correta aplicação do “Direito comunitário” se impõe com tal evidência que não deixa lugar a dúvida razoável alguma; a existência de tal circunstância deve ser apreciada em função das características próprias do “Direito comunitário”, das dificuldades particulares que apresenta a sua interpretação e do risco de divergência no interior da “Comunidade”.
Ora, no caso dos autos, o Tribunal de Justiça pronunciou-se recentemente, no seu acórdão de 02-09-21 no processo C‑169/20, já citado, sobre a exata questão da compatibilidade do art.º 11.º do CISV com o art.º 110.º do TFUE, tendo-se pronunciado no sentido de que a norma de direito português viola essa disposição do Tratado.
Não existe, pois, qualquer dúvida que possa justificar o reenvio prejudicial nos presentes autos.
e. Questão da devolução do imposto pago e dos juros indemnizatórios
Tendo o Demandante pago a totalidade do imposto liquidado nos atos aqui impugnados, pede ao Tribunal que condene a Demandada, em caso de procedência do seu pedido, à devolução do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios.
De harmonia com o disposto na alínea b) do art.º 24º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
Embora o art.º 2º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (CAAD, proc. no 277/2020-T; CAAD, proc. no 220/2020-T).
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art.º 43º, nº 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art.º 61º, nº 4 do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea” ( CAAD, proc. no 277/2020-T; CAAD, proc. no 220/2020-T).
O nº 5 do art.º 24º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral” (CAAD, proc. no 277/2020-T; CAAD, proc. no 220/2020-T).
Na sequência da anulação do ato impugnado, o Demandante terá direito a ser reembolsado do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24º, nº 1, alínea b), do RJAT e 100.o da LGT.
Quanto ao direito a juros indemnizatórios, dispõe o art.º 43.º nº 3 LGT que “são também devidos juros indemnizatórios (...) d) em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.
É o caso dos presentes autos, em que se julga o art.º 11º do ISV, no qual se basearam os atos de liquidação impugnados, incompatível com o art.º 110º do Tratado da União Europeia.
Pelo que há que concluir que, transitada a presente decisão arbitral em julgado, o Demandante terá direito a ser ressarcido nos termos do art.º 43º, nº 3, al. d), através do pagamento de juros indemnizatórios.
V. Decisão
Assim, nos termos anteriormente expostos, decide-se:
(I) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, e anular parcialmente o ato de liquidação impugnado, concretamente a liquidação de ISV constante da Declaração Aduaneira de Veículo (“DAV”) nº: 2020/..., de 15.07.2020, na parte resultante da não aplicação à “componente ambiental” das taxas de minoração previstas na Tabela A do art.º 7º do CISV.
(II) Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada à devolução do imposto indevidamente pago, no montante de € 19.110,18 (dezanove mil, cento e dez euros e dezoito cêntimos).
(III) Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada ao pagamento dos juros indemnizatórios calculados sobre o montante do imposto indevidamente pago.
VI. Valor do processo
Nos termos do art.º 97º -A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 29º do RJAT e do nº 3 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 19.110,18 (dezanove mil, cento e dez euros e dezoito cêntimos).
VII. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1 224.00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Demandada.
Notifique-se o Ministério Público, nos termos do artigo 252º do CPC, e do artigo 72º, nº 1, al a) e nº 3
da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
Notifiquem-se as Partes.
Porto, 21 de outubro de 2021.
O Árbitro
(Nina Aguiar)