SUMÁRIO:
Uma sequência de transações em que se inclui a criação de uma empresa veículo, desprovida de substância económica, que serviu apenas para a aquisição de participações sociais de uma outra sociedade, que ulteriormente distribuiu dividendos destinados à liquidação da dívida gerada por essa aquisição, constitui objectivamente um esquema abusivo enquadrável na cláusula geral anti-abuso, quando seja possível considerar que a finalidade principal das operações societárias foi a de evitar a tributação em IRS de rendimentos de capitais.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I – RELATÓRIO
1. No dia 12 de Maio de 2020, A..., contribuinte n.º..., e B..., contribuinte n.º..., residentes em Rua ..., ..., ..., ...-... ..., apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRS n.º 2017..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2017 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2017..., referentes ao ano de 2014, no valor global de €158.012,32, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... e da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico que tiveram como objecto os referidos actos de liquidação e do acto de liquidação de IRS n.º 2020..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2020... e da demonstração de acerto de contas n.º 2020..., emitidos na sequência do deferimento parcial do recurso hierárquico, dos quais resultou valor a pagar de €85.284,39.
2. Para fundamentar o seu pedido alegam os Requerentes, em síntese, o seguinte:
i. não se encontram preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT;
ii. a vantagem que fundamenta o recurso à CGAA tem de se traduzir num benefício que apenas foi obtido por recurso a uma forma artificiosa, pelo que não tendo os Requerentes recebido qualquer valor na sua esfera individual que não fosse preço, não obtiveram qualquer vantagem fiscal;
iii. a “D...” optou pela alienação das participações da Família H... e da Família K... à O..., como última ratio da reorganização societária, depois de se terem frustrado outras negociações;
iv. ainda que se pudesse aplicar a CGAA, apenas poderia ser aplicada ao valor efectivamente recebido pela Família C... (44.774,00€) e não ao valor devido pela alienação das acções da “D...”;
v. a AT interpreta o artigo 38.º, n.º 2 da LGT como aplicável ainda que sem qualquer manifestação de capacidade contributiva, o que viola o disposto no artigo 13.º da CRP, sendo, por isso, materialmente inconstitucional;
vi. vício de falta de fundamentação da aplicação da CGAA.
3. No dia 13-05-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 07-07-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 06-08-2020.
7. No dia 30-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
8. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
9. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelos Requerentes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
10. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
11. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A D..., S.A. (doravante, “D...”), pessoa colectiva n.º..., foi constituída em 1977, com o capital social inicial de €320.100,00, e tendo por objecto social o exercício da indústria e comércio de material eléctrico para equipamento, aquecimento, arrefecimento e iluminação.
2- Até 10-11-2011, figuravam como accionistas da “D...”:
a) a família C..., que detinha 33,33% do capital social, distribuído da seguinte forma:
i. E...– 15.760 acções representativas de 32,11%;
ii. F...– 200 acções representativas de 0,41%;
iii. G...– 200 acções representativas de 0,41%,
b) a família H..., que detinha 33,33% do capital social distribuído da seguinte forma:
i. I...– 15.760 acções representativas de 32,11%;
ii. J...– 600 acções representativas de 1,22%.
c) a família K..., que detinha 33,33% do capital social distribuído da seguinte forma:
i. L...– 15.760 acções representativas de 32,11%;
ii. M...– 300 acções representativas de 0,61%;
iii. N...– 300 acções representativas de 0,61%.
3- À data da apresentação do presente pedido arbitral, a estrutura acionista da “D...” era a seguinte: E..., 2.576 acções representativas de 1,62% e O... 167.244 acções representativas de 98,38%.
4- A P..., S.A. (doravante, “P...”), pessoa colectiva n.º..., foi constituída em 2004, tendo por objecto social a exportação, importação, fabrico e comércio por grosso e a retalho de material eléctrico para iluminação.
5- Aquando da constituição, e até 24-09-2009, as quotas da “P...” eram detidas da seguinte forma:
a) E..., quota de 50.000, representativa de 33%
b) L..., quota de 50.000, representativa de 33%;
c) J..., quota de 50.000, representativa de 33%.
6- Em 24-09-2009, na sequência de um aumento de capital de €900,00, a “P...” foi transformada em sociedade anónima detida pelos seguintes accionistas:
a) Família C... que detinha 33,33% do capital social, distribuído da seguinte forma:
i. E..., 100 acções representativas de 33,13%;
ii. F..., 20 acções representativas de 0,07%;
iii. G..., 20 acções representativas de 0,07%;
iv. A..., 20 acções representativas de 0,07%.
b) Família H..., que detinha 33,33% do capital social, distribuído da seguinte forma:
i. I..., 60 acções representativas de 0,20%;
ii. J..., 10.000 acções representativas de 33,13%;
c) Família K..., que detinha 33,33% do capital social, distribuído da seguinte forma:
i. L..., 10.000 acções representativas de 33,13%;
ii. M..., 30 acções representativas de 0,10%;
iii. N..., 30 acções representativas de 0,10%.
7- A O..., Lda (doravante, “O...”), pessoa colectiva n.º..., foi constituída em 03-11-2011, com o capital social de €300.000,00, tendo por objecto social consultoria em gestão de projectos de engenharia industrial (eléctrica e eletrónica, mecânica, de sistemas, geológica e hidráulica).
8- Desde a sua constituição, a “O...”, apresenta a seguinte estrutura acionista:
a) E..., quota de 30.000, representativa de 10%;
b) F..., quota de 90.000, representativa de 30%;
c) G..., quota de 90.000, representativa de 30%;
d) A..., quota de 90.000, representativa de 30%.
9- No período de 2011 a 2015, o volume de negócios declarado pela O..., Lda refere-se exclusivamente a "Management Fees" prestados à participada “D...”, tendo apresentado prejuízo fiscal de € 1.640,86 (2011), € 4741,89 (2012) e € 101.126,83 (2013) e lucro tributável de € 13.209,78 (2014) e € 18.097,33 (2015);
10- No ano de 2009, foi feita uma primeira tentativa de colocação da “D...” no mercado de procura de potenciais compradores.
11- A consultora Q... (Q...) conduziu uma due diligence preliminar e elaborou um documento de apresentação da empresa a potenciais investidores no âmbito do que foi designado por Projecto ... .
12- Um potencial investidor – a R...– chegou a manifestar interesse em adquirir a “D...”, tendo reunido com os accionistas sobre este assunto, em Novembro de 2009.
13- A “D...” iniciou em 2011, o contacto com a sociedade de direito italiano S... (doravante, “S...”), o qual visava avaliar se existiria um interesse por parte desta entidade em participar na “D...”.
14- A “S...” opera no ramo da indústria de iluminação possuindo sucursais e participadas em diferentes países, designadamente, em Portugal.
15- A “S...” demonstrou, em Março de 2011, em visita realizada às instalações em Portugal da “D...”, interesse em apresentar uma proposta de compra não-vinculativa, a qual veio a ser concretizada em 28-04-2011.
16- A intenção da “S...” era financiar a operação através de um Leveraged Buy Out (LBO), a ser realizado por uma nova sociedade (“NewCo”) a ser constituída em Portugal, a qual seria financiada com recurso a capital próprio e empréstimos bancários.
17- Decorria da referida proposta de compra não vinculativa que a obtenção de financiamento bancário era essencial à concretização da proposta.
18- Em ordem à conclusão da referida aquisição, iniciou-se a due diligence que precedia a assinatura dos contratos de compra e venda das participações.
19- No âmbito do processo de negociação da venda das participações, os potenciais compradores – à data, a “S...” – impuseram algumas condições no que toca aos activos alienados e à estrutura final pretendida.
20- No âmbito da aquisição e reestruturação pelo Grupo “T...”, foi acordado que o acionista F... concretizaria um reinvestimento de 20% na nova estrutura da S... Portugal, o que seria realizado através de uma estrutura societária (a O...).
21- À data da constituição da “O...”, as partes optaram por serem os accionistas F..., G..., A... e E... a constituir aquela entidade em vez do acionista F... e a S..., conforme tinha sido inicialmente pensado.
22- A concretização da referida alienação estava dependente da “S...” obter os necessários financiamentos junto das instituições financeiras consultadas.
23- As instituições financeiras envolvidas nestas operações não aprovaram a linha de crédito solicitada pela “S...”.
24- A frustração do negócio proposto nos termos em que estava montado e no período temporal expectável para a sua conclusão, foi comunicada pelas...” em carta dirigida aos accionistas e datada de 29-11-2011.
25- Através de três contratos celebrados com os elementos das Famílias K... e H..., detentores das participações sociais na sociedade “D...”, todos datados de 11-04-2012, a sociedade O... adquiriu as seguintes participações na “D...”:
• 15.760 acções, representativas de 32,11% do capital social, detidas por I... e adquiridas pelo preço de €6.702.570,40;
• 600 acções representativas de 1,22% do capital social, detidas por J... e adquiridas pelo preço de €255.174,00;
• 15.760 acções representativas de 32,11% do capital social, detidas por L... e adquiridas pelo preço de €6.702.570,40;
• 300 acções representativas de 0,61% do capital social, detidas por N... e adquiridas pelo preço de €127.587,00;
• 300 acções representativas de 0,61% do capital social detidas por M..., adquiridas pelo preço de €127.587,00.
26- Através de dois contratos celebrados com a Família C..., datados de 06-06-2012 e 23-12-2013, a “O...” adquiriu 31,71% da “D...”, por €6.618.788,21.
27- A “D...” adquiriu as seguintes participações:
• Em 12-04-2012, 33,33% do capital social da “P...”, o qual era detido por J...;
• Em 12-04-2012, 33,33% do capital social da “P...”, o qual era detido por L..., N... e M... .
28- Em 13-04-2012, a “D...” passou a deter a “P...” na totalidade.
29- Em 25-06-2012, foi celebrado entre a S..., O... e a U..., S.A., um acordo de co-investimento e parassocial, nos termos do qual a S..., a O... e a U... S.A. deteriam a S... PT, sendo que os três accionistas se comprometiam a investir na S... PT através de um aumento de capital para a aquisição de participações sociais da “D...”.
30- O negócio veio a frustrar-se, o que veio a ser comunicado por carta datada de 01-08-2012 e formalizado através de “Termination Agreement” assinado em Junho de 2013, por a S... ter entendido que as condições 4.2.7 do “Sale Agreement” e 5.2.j do anexo 5.1 ao “Sale Agreement” não estavam verificadas – cfr. carta e “Termination Agreement”.
31- Neste âmbito, as referidas dívidas foram liquidadas, na sua maioria, por recurso às figuras da cessão e compensação de créditos.
32- Em 11-04-2012, realizou-se uma escritura de compra e venda entre a “D...” e a sociedade V..., em que a primeira vende à segunda, pelo preço de €6.291.490,00, o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., sob o n.º... .
33- No mesmo dia, em 11-04-2012, foi celebrado um contrato de arrendamento entre a V... e a “D...”, em que a primeira dá de arrendamento à “D...” o imóvel que esta lhe vendeu, pelo prazo de 10 anos, automaticamente prorrogado por períodos sucessivos de dois anos, e o valor da renda estipulada é de 25.000,00€/mês.
34- Em 15-04-2012, por contrato de cessão de créditos celebrado entre I... e W... e a sociedade V..., os primeiros cedem o crédito no montante de €6.291.490,00, que detinham sobre a O... na sequência da venda das acções, à sociedade V..., que o transforma em suprimentos.
35- Em 16-04-2012, mediante contrato de cessão de créditos celebrado entre a V... e a “D...”, a primeira cede o crédito no montante de €6.291.490,00 à “D...” que, por sua vez, era titular de um crédito sobre aquela sociedade no mesmo montante, na sequência da venda do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., sob o n.º... .
36- A O... registou estas cedências de forma directa, anulando a dívida a I..., por contrapartida da conta “27880007 – Out. devedores e credores/D...” sem efectuar o registo intermédio na conta da sociedade V... .
37- Em 11-04-2012 a “D... ” vendeu três imóveis a L..., no valor de €2.500.000,00:
• Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., Concelho de Águeda sob o artigo..., afeto a armazéns e atividade industrial (€1.200.000,00);
• Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Oeiras sob o artigo ..., afeto a armazéns e atividade industrial (€1.000.000,00);
• Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Matosinhos sob o artigo ..., fração B, afeto a comércio (€300.000,00).
38- No mesmo dia, em 11-04-2012, foram celebrados três contratos de arrendamento entre L... e a “D...”, em que o primeiro dá de arrendamento à “D...” os imóveis adquiridos à própria “D...”.
39- No caso do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ..., o prazo do contrato é de 10 anos (automaticamente prorrogado por períodos sucessivos de dois anos) e o valor da renda é de €7.917,00/mês. Relativamente aos restantes dois imóveis, o prazo do contrato é de 1 ano (prorrogável por iguais períodos) sendo a renda mensal de €4.167,00 para o imóvel localizado na freguesia de ... e de €1.250,00 para o imóvel localizado na freguesia de ....
40- Em 16-04-2012, foi celebrado contrato de cessão de créditos celebrados entre a O... e L..., em que a primeira cede ao segundo o crédito de €616.678,00 que detém sobre a “D...”.
41- No mesmo dia, em 16-04-2012, por contrato de cessão de créditos celebrado pela “D...” e a O..., a primeira cede à segunda o crédito de €1.520.322,00 que detém sobre L... .
42- Em 16-04-2012, a “D...” passou a ser credora da O... dos montantes em dívida, decorrentes da venda das participações sociais detidas pelas Famílias H... e K..., na “D...”.
43- Os valores liquidados por família, em relação à compra das acções da “D...” e da “P...”, em duas datas distintas, 31-12-2013 e 31-12-2015 – eram os seguintes:
• Até 31-12-2013:
• Até 31-12-2015:
44- A Família H... foi paga, até 31-12-2013, do valor total devido pela aquisição pela O... das acções detidas na “D...”, no montante de €6.957.744,40.
45- A Família K... foi paga, até 31-12-2013, do valor total de €3.565.744,40, tendo recebido entre essa data e 31-12-2015, o valor de €1.500.000,00, o que perfaz um valor pago de €5.065.744,40, ascendendo o valor em dívida a essa data a €1.892.000,00.
46- No que respeita à Família C..., do valor total em dívida de € 6.618.788,27, foi a mesma paga até 31-12-2013, no valor de € 90.174,00 e desde aquela data até 31-12-2015, do valor adicional de € 354.600,00, sendo o valor total pago de €444.774,00 e o valor em dívida de €6.174.014,27.
47- No período compreendido entre 2013 e 2014, os dividendos intercalares deliberados distribuir pela “D...” totalizaram €11.207.418,00, dos quais a O... recebeu €11.025.423,05 e E... os restantes €181.994,95.
48- Os Requerentes foram objecto de um procedimento de inspecção, ao abrigo das ordens de Serviço n.ºs OI2017... e OI2017..., de âmbito parcial, em sede de IRS, que incidiu sobre os anos de 2013 e 2014.
49- Através do ofício n.º ... de 28-08-2017, os Requerentes foram notificados do projecto de decisão de aplicação da cláusula geral anti-abuso, tendo exercido o seu direito de audição prévia.
50- Através do Ofício n.º... de 19-12-2017, os Requerentes foram notificados do Relatório de Inspecção Tributária, no qual a AT concluiu estarem reunidos os pressupostos para a aplicação da cláusula geral anti-abuso constante no artigo 38.º, n.º 2 da LGT.
51- Os Requerentes foram notificados do acto de liquidação adicional de IRS n.º 2017..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2017 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2017 ..., referentes ao ano de 2014, no valor global de €158.012,32.
52- Os Requerentes apresentaram reclamação graciosa tendo por objecto os referidos actos de liquidação, à qual foi atribuído o n.º ...2018... .
53- Através do Ofício n.º..., de 18-12-2018, os Requerentes foram notificados da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
54- Os Requerentes apresentaram recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa tendo sido notificados, através do Ofício n.º ... de 18-02-2020, da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico.
55- Na sequência da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico, os Requerentes foram notificados do acto de liquidação de IRS n.º 2020..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2020 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2020 ..., dos quais resultou valor a pagar de €85.284,39.
56- Inconformados com os referidos actos de liquidação, os Requerentes apresentaram o presente pedido de pronúncia arbitral.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
Em questão nos presentes autos está aferir a legalidade da aplicação da cláusula geral antiabuso, em função do disposto no art.º 38.º/2 da LGT e no art.º 63.º do CPPT, cuja redacção aplicável é a seguinte:
- Artigo 38.º/2 da LGT:
“São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”
- Artigo 63.º do CPPT:
“1 - A liquidação dos tributos com base na disposição antiabuso constante do n.º 2 do artigo 38º da lei geral tributária segue os termos previstos neste artigo.
3 – A fundamentação do projecto e da decisão de aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 contém necessariamente:
a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;
b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.
4 - A aplicação das disposições antiabuso referida no n.º 1 depende da audição prévia do contribuinte, nos termos da lei.
5 - O direito de audição prévia é exercido no prazo de 30 dias a contar da notificação do projecto de aplicação da disposição antiabuso ao contribuinte.
6 - No prazo referido no número anterior, poderá o contribuinte apresentar as provas que entender pertinentes.
7 - A aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 é prévia e obrigatoriamente autorizada, após a audição prévia do contribuinte prevista no n.º 5, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência.
8 - A disposição antiabuso referida no n.º 1 não é aplicável se o contribuinte tiver solicitado à administração tributária informação vinculativa sobre os factos que a tiverem fundamentado e a administração tributária não responder no prazo de 150 dias.”
*
Uma análise precisa e detalhada do enquadramento geral da aplicação da Cláusula Geral Antiabuso foi já feita, para alem do mais, no âmbito do processo arbitral 162/2017-T, do CAAD , em termos que, com a devida vénia, pela clareza se transcrevem:
“IV.1. Considerações introdutórias
A questão central que vem colocada relaciona-se com a aplicação ao caso da disposição do artigo 38º nº 2 da LGT.
Antes de entrarmos na análise da norma e nas questões que a Requerente levanta a propósito da sua aplicação ao caso concreto, é útil historiar as razões do seu surgimento, e de outras que, no âmbito do direito comparado, perseguem o mesmo objetivo.
O problema da evasão fiscal constitui uma das mais sérias ameaças à economia mundial e à capacidade dos Estados de realizarem as finalidades que lhe são cometidas pelo direito internacional dos direitos humanos e pelo direito constitucional no domínio da realização dos direitos sociais. Ele resulta em perdas significativas de receitas para o Estado e, por consequência, de despesa a favor dos cidadãos. Se considerarmos o tempo, o trabalho e o dinheiro despendidos na tentativa de evitar impostos e os custos de oportunidade envolvidos na evasão fiscal, concluímos essas perdas aumentam de forma dramática.
De há uns anos a esta parte, o problema da evasão fiscal tem estado no centro da agenda da comunidade internacional, nomeadamente através da iniciativa Base Erosion e Profit Shifting (BEPS) promovida pela OCDE. No âmbito da União Europeia, o problema não tem tido menor relevância, já que os Estados membros dependem em medida significativa do bom funcionamento do sistema fiscal para cumprirem os objetivos do Pacto de Estabilidade e Crescimento no quadro da União Económica e Monetária.
Neste contexto, a “manufatura da indeterminação factual”, consistindo entre outras coisas na criação artificial e artificiosa de complexidade acrescida nas transações empresariais, apresenta-se como um instrumento típico de evasão fiscal suscetível de produzir um impacto multinível.
Não está em causa a legitimidade de uma medida razoável de planeamento fiscal por parte dos agentes económicos, através da utilização das isenções, deduções, abatimentos e outros benefícios fiscais que o legislador põe à disposição dos contribuintes por entender que dessa forma prossegue da melhor maneira os seus objetivos financeiros, económicos e sociais. Quando age deste modo, o contribuinte nada faz de ilegal, do ponto de vista puramente formal e material. Diferentemente se passam as coisas no planeamento abusivo, quando se pretende reduzir os impostos de uma maneira que é "contrária ao espírito da lei". Nestes casos, pretende-se contornar os objetivos materiais do sistema fiscal através de uma utilização meramente formalista e ardilosa das normas fiscais, numa ótica de fraude à lei.
É nestes casos que se manifesta a insuficiência de uma interpretação meramente literal sendo importante a interpretação teleológica. Este aspeto é especialmente importante na medida em que, nos termos do artigo 103º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 5º n.º 1 da LGT, os objetivos da tributação expandem-se muito para além do simples aumento das receitas fiscais. Assumindo uma natureza social de interesse público, eles incluem a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas de forma a permitir-lhes, entre outras coisas, a efetivação dos direitos sociais constitucionalmente consagrados, a promoção da justiça social e da igualdade de oportunidades e a necessária correção das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento. Da prossecução destes objetivos depende, em última análise, a legitimidade dos sistemas político e fiscal.
O que explica o desenvolvimento, ao longo das últimas décadas, de doutrinas jurídico-fiscais anti-abuso, como sejam
a) primazia da substância sobre a forma (substance over form);
b) substância económica do negócio (economic substance);
c) teste do principal propósito (PPT);
d) transação por passos (step transaction) ou
e) transação-farsa (sham transaction).
No seu conjunto, estas doutrinas visam a preservação da base tributária e o combate ao planeamento fiscal abusivo. O respetivo conteúdo sobrepõe-se em boa medida.
Estas doutrinas, inicialmente de emanação jurisprudencial, acabaram por servir de base, em vários países, à introdução legislativa de regras ou cláusulas gerais e especiais anti-evasão fiscal (General anti-avoidance Rules – GAAR; Special anti-avoindance rule - SAAR). As GAAR, entre nós conhecidas por cláusulas gerais anti-abuso (CGAA) têm a vantagem de serem aplicáveis a todas as transações e a todos os impostos, podendo atuar subsidiariamente mesmo relativamente a uma cláusula especial. O objetivo destas cláusulas gerais e especiais é claro: incentivar o pagamento de impostos e desincentivar a evasão fiscal. Podendo e devendo ser mobilizadas de autonomamente ou de forma combinada, as mesmas possibilitam à administração fiscal e aos tribunais a desconsideração e recaracterização de transações jurídicas destituídas de substância económica ou comercial bastante.
As CGAA’s são deliberadamente redigidas com recurso a conceitos vagos abertos e carecidos de uma interpretação e aplicação ativa por parte das administrações tributárias e dos tribunais. As mesmas apostam na criação de alguma indeterminação, suscetível de desincentivar o planeamento fiscal agressivo e a evasão e fiscal. Elas representam um desvio considerável ao raciocínio jurídico formal, baseado na análise linguística e da sucessão das leis no tempo e na garantia estrita de tipicidade, certeza e previsibilidade, que tem caracterizado o direito fiscal. A certeza e a segurança jurídicas são fundamentais para incentivar o investimento e estruturar transações comerciais. Embora estes princípios continuem a caracterizar a prática quotidiana da formulação, interpretação e aplicação das normas fiscais, como resulta das exigências do Estado de direito, os mesmos não se apresentam como imperativos categóricos absolutamente subtraídos a um processo de ponderação.
As CGAA’s repousam no reconhecimento de que uma adesão estrita ao formalismo jurídico-fiscal é absolutamente irrealista e quixotesca diante das possibilidades quase infinitas de manipulação das formas jurídicas e de planeamento fiscal agressivo a nível nacional e internacional. A recente intensificação e globalização das condutas de evasão e fraude fiscal impõe, nalgumas situações, a assunção de uma atitude mais realista, pragmática e orientada para os resultados, por parte do legislador, da administração e dos tribunais tributários.
Esta abordagem exige que, nos casos em que se vise prevenir o planeamento fiscal abusivo, a administração e os tribunais ultrapassem os limites da análise linguística de textos legais e da investigação da história legislativa e avancem para um inquérito normativo quanto aos fins prosseguidos pela legislação tributária e os melhores meios para alcançar esses fins. A postura da administração e dos tribunais deve ser prática e enraizada em resultados empíricos.
Entre nós, o TCAS teve ocasião de se pronunciar sobre a CGAA, tendo salientado que “as normas anti-abuso encontram a sua “raison d´être”, no comportamento evasivo e fraudatório dos sujeitos passivos em matéria fiscal e na necessidade de estabelecer meios de reação adequados por forma a garantir o cumprimento do princípio da igualdade na repartição da carga tributária e na prossecução da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas”. Neste sentido, as CGAA’s exprimem a ponderação harmonizadora e proporcional do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança – com as suas exigências de tipicidade e legalidade – com outros bens constitucionalmente protegidos, como sejam a preservação da base tributária, a equidade tributária e a efetivação dos direitos fundamentais e da justiça social. Elas reconduzem-se ainda a uma ponderação constitucionalmente saudável de valores e princípios constitucionais.
IV.2. O artigo 38º nº 2 da LGT
É no quadro destes desenvolvimentos que deve ser entendida entre nós a introdução de uma CGAA. Ela surgiu pela primeira vez por força da Lei nº 100/99 de 22 de julho, que acrescentou um n.º 2 ao artigo 38º da LGT. Aí se dizia:
“São ineficazes os atos ou negócios jurídicos quando se demonstre que foram realizados com o único ou principal objetivo de redução ou eliminação dos impostos que seriam devidos em virtude de atos ou negócios jurídicos de resultado económico equivalente, caso em que a tributação recai sobre estes últimos.”
Entretanto, a CGAA do artigo 38º n.º 2 da LGT foi alterada na sua redação pela lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro. Aí se dispõe agora:
“São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”
Relativamente à versão inicial, a redação atual da CGAA destaca-se por circunscrever a ineficácia de atos e negócios jurídicos ao âmbito tributário, conservando os mesmos a sua validade e eficácia noutros domínios. Digna de nota é, outrossim, a eliminação da exigência de demonstração, sugerindo uma atenuação do standard probatório por parte da AT. No entanto, deve ter-se em conta o artigo 63º n.º 3 alínea b) do CPPT onde se dispõe que a fundamentação do projeto e da decisão de aplicação da CGAA deve conter a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à produção de vantagens fiscais. Esta última referência, feita em termos genéricos, aponta para a irrelevância da questão de saber quem é que efetivamente obteve as vantagens fiscais. Se qualquer das partes envolvida na transação obteve uma vantagem fiscal indevida, por não ter sido contemplada pelo legislador tributário e não ter correspondência com a substância económica, cabe à AT considera-la ineficaz e neutralizar a produção da mesma. Este aspeto é especialmente relevante nos casos em que a vantagem é produzida e obtida dentro de uma lógica de grupo.
O artigo 38º n.º 2 da LGT vincula a CGAA a um principal purpose test (PPT), formulado pelo legislador nacional como propósito essencial ou principal, e à presença de condutas que indiciem o recurso a meios artificiosos e fraudulentos e o abuso de formas jurídicas. Ponto é que se tenha em vista a) a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos devidos por força de factos, atos ou negócios de idêntico fim económico ou b) a produção de vantagens fiscais dependentes daqueles meios. Num caso e noutro, a tributação é feita de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos atos e meios em causa, não se produzindo as vantagens fiscais referidas.
Da exegese do artigo 18º n.º 2 da LGT resulta que a AT deve carrear elementos indiciários que lhe permitam estabelecer a existência de uma operação artificiosa e abusiva de acordo com o crivo, de exigência intermédia, da preponderância da prova ou equilíbrio das probabilidades que em vários quadrantes tem vindo a ser associado à aplicação das CGAA’s. Isso obriga a uma abordagem contextual e factual dos casos concretos, simultaneamente atenta à teleologia das normas fiscais e às características e objetivos das transações. Especialmente importante é a análise da transação na sua totalidade, atentando a todos os seus passos e participantes, reservando um escrutínio particularmente exigente quando se tratar de transações envolvendo sócios e sociedades do mesmo grupo. Nestes casos, o princípio da primazia da substância sobre a forma admite que certas entidades “agrupadas” possam ser consideradas com um único contribuinte.
A ambiguidade parece ser o principal objetivo deste tipo de técnica legislativa. Ao recortar a CGAA do artigo 38º n.º 2 da LGT, o legislador fiscal reconhece a necessidade de preservar a base tributária e habilitar a AT e os tribunais a proteger as finalidades substantivas do legislador fiscal. A incerteza deliberadamente gerada nos contribuintes leva-os a não se aproximarem muito da linha que demarca a fraude e elisão, permitindo, a um tempo, que a CGAA seja suficientemente flexível para acompanhar as novas transações geradas pela dinâmica e acelerada “indústria do planeamento fiscal agressivo” e que a AT e os tribunais preencham as lacunas do sistema fiscal em situações imprevistas e potenciadoras de abusos.
A CGAA do artigo 38º n.º 2 da LGT não permite a redução, eliminação, diferimento de impostos ou a produção de vantagens fiscais nos casos em que a transação que as originou não possa ser razoavelmente considerada como tendo um propósito económico principal e manifeste uma utilização artificiosa, fraudulenta e abusiva das formas jurídicas. Nesses casos, a AT tem o poder/dever de requalificar a operação realizada e liquidar o imposto de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e como se a vantagem fiscal nunca tivesse sido produzida. Por outras palavras, ela tem o poder de reescrever a transação abusiva e liquidar os impostos que seriam devidos se a mesma nunca tivesse ocorrido.”
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Posto isto, a questão ora em apreço, já foi, na sua substância, objecto de apreciação no quadro do processo arbitral 258/2020T, do CAAD , nos termos que se seguirão e a que se adere:
“18. No caso concreto, a AT partiu da existência de uma sequência de negócios jurídicos nos termos, valores e datas acima descritos, que considerou na sua totalidade – i.e. a) a constituição da O... detida pela família D..., b) a alienação pelas Famílias H... e K..., das participações que detinham na C... à O..., c) a alienação pela Família D..., do capital da C... à O..., d) a alienação por E... da sua parte do capital da C... à O..., e) o reconhecimento pela O... de uma dívida aos ex-acionistas da C...– Famílias H... e K... e f) a liquidação de parte desta dívida através da cessão de créditos pela O... à C...; e g) distribuição pela C... de dividendos à O... para compensar a dívida constituída junto da C... por força da cessão de créditos efetuada por I... e L... à O..., compensar a cessão de créditos de clientes e regularizar a dívida contraída junto da participada –, tendo considerado que essa sequência de negócios jurídicos, em que os Requerentes participavam através da aquisição, detenção e alienação de participações sociais, configurava a utilização de meios artificiosos e ao abuso das formas jurídicas, sendo principalmente, ainda que não exclusivamente, ao diferimento temporal de impostos. A existência de uma sequência de negócios jurídicos fiscalmente relevante é inquestionável.
19. O carácter artificioso e abusivo das formas jurídicas utilizado na sequência de negócios jurídicos em causa deduz-se do defeito de habitualidade das transações em causa, quando analisadas objetivamente à luz do critério do contribuinte razoável, ordeiro e consciencioso e tendo como pano de fundo a comparação contrafáctica com transações alternativas consideradas normais, visto que o objetivo da retirada de lucros da sociedade C... poderia e deveria ter sido atingido, em condições normais, com a simples distribuição de dividendos aos acionistas Família D..., onde se incluem os Requerentes, e não à sociedade veículo, a O... (pessoa coletiva), desprovida de substância económica, que serviu apenas para a aquisição das participações sociais da sociedade C... pela Família D... (pessoas singulares), sem que tenham despendido qualquer montante.
20. Por outras palavras, além da inexistência de substância económica da O..., verifica-se a utilização de meios pouco usuais, por comparação – externa e hipotética – com os que seriam habitualmente utilizados por entidades não relacionadas transacionando entre si, de boa-fé, à distância de um braço (arm’s lengh principle), sendo manifesta a existência de pelo menos dois meios mais diretos, simples e normais para alcançar o mesmo resultado, a saber, a distribuição de dividendos da C... à família D... ou a aquisição por esta das participações sociais das famílias H... e K... .
21. Uma sequência de transações pode, evidentemente, servir diferentes finalidades fiscais e não fiscais. Não se exclui, portanto, a existência de um objetivo económico e comercial, entre 2009 e 2011, na tentativa de alienação das participações na C... das famílias H... e K..., na procura de um investidor externo e na criação da O... . Não obstante, a existência de uma finalidade principal (principal purpose test) de “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios” não exclui a presença de outras finalidades, implicando tão somente a análise do espaço que as mesmas razoavelmente ocupam no contexto global da sequência das transações societárias ocorridas e das formas utilizadas. Do mesmo modo, a aplicação do critério da finalidade principal não supõe necessariamente uma análise subjetiva das finalidades e motivações subjetivas do contribuinte, devendo antes inferir-se, razoavelmente, a partir de uma análise objetiva da totalidade dos factos e circunstâncias relevantes. Não é necessário encontrar provas conclusivas acerca da intenção subjetiva das pessoas envolvidas na sequência de transações em causa, bastando ser razoável concluir, após uma análise objetiva de todos os fatos e circunstâncias relevantes, que um dos principais objetivos da sequência foi a obtenção de uma vantagem fiscal.
22. A análise dos critérios de razoabilidade e finalidade principal subjacentes à CGAA do artigo 38.º. n.º 2, da LGT, é, pois, uma operação essencialmente objetiva. A esta luz, são especialmente significativos os factos de que a C..., ao distribuir dividendos à O... (que servem para pagar as referidas participações sociais), não reteve qualquer imposto, nos termos do artigo 97.º do CIRC, bem como de a O... nunca ter exercido qualquer atividade económica genuína, de a mesma ter contraído, pouco tempo depois da sua constituição, uma dívida junto das famílias H... e K... de cerca de catorze milhões de euros e de nunca ter distribuído resultados aos seus sócios, não havendo assim tributação em sede de IRS na esfera dos acionistas por rendimentos da categoria E, visto aqueles dividendos, distribuídos pela C... . terem servido para mera regularização da quantia em dívida por parte da Família D... perante os antigos acionistas (Famílias H... e K...).
23. Nesta montagem negocial societária, a entidade que não tem atividade e que é tida como empresa veículo é a O..., a quem foram alienadas as participações sociais que os acionistas detinham na C... . Esta última é que favorece a distribuição de dividendos, por efeito da sua atividade operacional, e o que sucede é que esses pagamentos são efetuados a título de reembolso por virtude do reconhecimento da dívida resultante da aquisição de participações. A circunstância de a C... produzir lucros não descaracteriza o esquema abusivo, e é antes um dos seus fatores, na medida em que permite a distribuição de dividendos que não serão tidos como rendimentos de capital. Sem a utilização destes meios – válidos e lícitos, mas desprovidos de qualquer substância económica – os contribuintes beneficiários (membros da Família D...) não evitariam a tributação, resultante da transformação dos dividendos não tributados em dividendos tributados, ficando sujeitos a imposto. Dada a íntima relação que existe entre a O... e a família D..., as mesmas podem, à luz da CGAA e do inerente princípio da primazia da substância sobre a forma, ser tratadas como se fossem uma só entidade para efeitos substantivos e processuais, aspeto fundamental para validar a notificação da liquidação.
24. Resulta de todas as precedentes considerações, que a CGAA se destina a eliminar as vantagens fiscais ilegítimas obtidas na esfera jurídica pelo contribuinte através de atos ou negócios abusivos praticados com o intuito de obviar ao pagamento do imposto que seria devido caso se tivesse recorrido às formas negociais comuns. No caso vertente, a vantagem fiscal ilícita que justificou a sua aplicação traduziu-se na evitação de pagamento de imposto, por parte dos Requerentes, por rendimentos da Categoria E relativamente à distribuição de lucros da C..., que, normalmente, seria objeto de tributação como rendimentos de capitais, nos termos da alínea h) do n.º 2 artigo 5.º do Código do IRS, e que foi alcançada através de um conjunto sucessivo de operações societárias que se encontram assim descritas. Assistiu-se, assim, a uma série de transações por passos (“step transaction”) com um efeito consequencial elisivo.
25. Não pode perder-se de vista o sentido geral da Diretiva Antielisião Fiscal (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016, que, no artigo 6.º, n.º 2, esclarece que uma montagem (ou série de montagens) será considerada como não genuína na medida em que não coloque em prática um propósito comercial válido baseado em razões que reflitam a realidade económica. Não sem antes dispor, no n.º 1, que “os Estados-Membros devem ignorar uma montagem ou série de montagens que, tendo sido posta em prática com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável” não seja genuína tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes”. Este aspeto reveste-se de grande relevo, no âmbito do direito da União Europeia, onde há muito se entende, no quadro do dever de cooperação leal, que mesmo o direito nacional anterior a uma diretiva da União Europeia deve ser interpretado e aplicado, pelos juízes nacionais, em conformidade com teor literal e as finalidades da mesma.
26. No caso, não encontra, o presente tribunal, um objetivo suficientemente definido e justificado, do ponto de vista financeiro, na constituição de uma nova sociedade que apenas se destina a titular a dívida da alienação de participações sociais que os acionistas detinham numa outra empresa. Pelo contrário, observa-se a existência de um desvio significativo relativamente ao padrão das transações habituais. Subsistem, por conseguinte, factos indiciários suficientes para se considerar, razoável e objetivamente, que o presente conjunto articulado e sequencial de operações societárias teve como principal finalidade, ainda que não necessariamente a única, obstar à tributação em sede de IRS dos rendimentos de capitais, havendo fundamento bastante para a declaração de ineficácia dos negócios jurídicos em aplicação da CGAA a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT.”.
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Concorda-se integralmente com o decidido no acórdão que se vem de transcrever, já que para que se evidencie que a vantagem fiscal, que motivou o negócio jurídico em crise, foi deste motivo exclusivo ou principal, dever-se-á demonstrar, dentro do razoavelmente possível (dado que se trata da prova de um facto negativo), que inexistiram outras motivações relevantes para a realização do acto ou negócio jurídico em questão, ou seja, dever-se-á demonstrar que a mesma se sobrepõe, prevalece, ressalta, de entre as restantes motivações que se apresentem como passíveis de ter assistido à actuação em apreciação.
Torna-se necessário, em suma, que se demonstre que de entre todas as razões que, demonstradamente, possam ter determinado a realização do acto ou negócio jurídico cuja eficácia se questiona, a vantagem fiscal almejada se assuma como proeminente, em termos de se poder dizer que a mesma terá dado um impulso decisivo para a sua concretização.
Importa notar que, movendo-nos no terreno movediço das intenções, não se poderá acolher aqui um puro subjectivismo, reconduzível, em última instância, à demonstração do estado psicológico e emocional dos agentes no momento da prática do acto ou da celebração do negócio. Antes, relevará a motivação tal como revelada em factos objectiva e concretamente apreensíveis, o que não se confunde, obviamente, com a mera corporização, em documentos, de declarações de intenção.
No caso, é isso que acontece, já que, como ressaltado no acórdão arbitral citado, não se descortina “um objetivo suficientemente definido e justificado, do ponto de vista financeiro, na constituição de uma nova sociedade que apenas se destina a titular a dívida da alienação de participações sociais que os acionistas detinham numa outra empresa”, a não ser, precisamente, a vantagem fiscal que daí adveio para os beneficiários singulares.
Daí que, aqui como ali, haja de improceder na íntegra o pedido arbitral principal formulado, bem como os pedidos acessórios.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Absolver a Requerida do pedido; e
b) Condenar os Requerentes nas custas do processo, abaixo fixadas.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 85.284,39, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.754,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelos Requerentes, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 18 de Outubro de 2021.
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Ricardo Rodrigues Pereira)
O Árbitro Vogal
(Sofia Ricardo Borges)